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Academic year: 2022

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(1)

Alerta da Organização Mundial de Saú- de: o sufoco económico e o empobreci- mento da classe média estão a acele- rar um processo que já era preocupan- te - a deterioração da saúde mental.

i

Em Portugal, os sintomas são evi-

dentes. O consumo de antidepressivos

e ansiolíticos não pára de aumentar.

—i Um em cada três portugueses sofre de um distúrbio psicológico. A taxa de suicídio duplicou na última década,

—i Nas contas da tragédia portugue- sa^ preciso obedecer a uma nova equa-

ção. Há cada vez mais gente a somar dí- vidas e a subtrair conforto à vida.

i

Até

ao dia em que estoira.

textoRicardo J.Rodrlguas

-i

fotografa Sandra Rocna/Kamaraphoto

(2)

Manuel Palma édoente blpolar edono de uma imobiliária. Acrise económica está a atlngl-lo em cheio.

Eletentaresistir.

massaDequea aflição nãoêamiga dasua doença.

A

janelaé estupenda.da casa deEncaixa-Marta da noterceiro andar de umprédio nosubúrbio lisboeta, consegue aextraordinária proeza deteruma vista desafogada eimensamente verde, apesar deestar nomeioda urbanida- de.Nãoserá injusto dizer que aquelajanela

éoprivilégio maior da casa. Mas hádois anos queosestores permanecem fechados.

Ganharam tanta ferrugem que hoje éim- possível abri-los

-

de facto, aúnica maneira deadmirar apaisagem éespreitando pelas frestas. «Gosto deestarnoescuro», dizMar- ta que,aoscinquenta anos, trabalha dez ho- raspor dianum supermercado, ganha 600 euros por mês e paga 350 pelo aluguer do apartamento. «Senãohouver luz,eudurmo, esedurmo, não penso. Eeu estou farta de pensar. Quanto mais penso navida, mais triste fico.»

dezanos, Marta vivia numa moradia dedois pisos com jardim, era dona deuma lojademobiliário queempregava cinco fun- cionários, viajava três vezes porano ao es- trangeiro, comprava roupa duas vezes por mês etinha ofilho aestudar num colégio privado, cuja mensalidade era superior ao seuordenado actual. «O negócio começou a piorar em 2000.Eu não podia ter aloja va- zia, se ofizesse estava condenada. Passei anos sem facturar osuficiente para pagar aosfornecedores efui acumulando dívidas.»

Em 2005 viu-se obrigada ahipotecar avi- venda, no ano seguinte fechou oestabeleci- mento. O pouco quetinhaserviu para pagar asindemnizações dosempregados. «De re- pente fiquei sem nada. Nemcasa, nemcar- ro, nempoupanças, nada.» Reagiu. «Tentei encontrar um emprego razoável, mas di- ziam-me que tinha demasiado currículo.

A única hipótese foitornar-me caixa num

supermercado.» Desde esse dia,oquotidia- no deMarta étrabalho euma casa escura.

«Ter qualquer forma deprazer na vida tor- nou-se umluxo a que não meposso dar.»

A tristeza mora ao nosso lado, mesmo quando nãoreparamos. Ahistória deMarta éadealguém que conhecemos.

outros três milhões de portugueses que sofrem de distúrbios mentais, assegura oConselho Eu- ropeu das Doenças Cerebrais. Osnúmeros estão aaumentar, com a ansiedade e ade- pressão aperfazerem mais deoitenta por centodos casos. «Numasociedade deconsu- mooempobrecimento ésentido como uma afronta, uma terrível injustiça.» António Pa- checo Palha, director doserviço dePsiquia- tria doHospital de SãoJoão, no Porto, não tem dúvidas de que aactual conjuntura fi- nanceira temajudado acriar novos casos de depressão edesespero. Ofacto éparticular- mente visível napopulação emidade activa,

(3)

educada,

que trabalha, tem dívidas

e

tem vin-

doa

perder qualidade

de

vida. «A

possibili-

dade

deas pessoas

terem

de

aceitar um em- pregodemenorcategoriaouforadasuaárea de especialização implica um ataque

à sua

auto-estima.Quandoaauto-estimase reduz,

estão abertas as

portas para

a depressão.»

«É

cada

vez mais difícil arranjar trabalho

e

ainda mais difícil

é

arranjar trabalho onde

se

ganhe alguma

coisa

de jeito», palavras de Luís Robert,

psicólogo

no Centro

de Saúde

da Lapa, uma zona

abastada

da capital onde

o

fenómeno da nova pobreza - gente que

trabalha

e

tem competências,

mas não

con-

segue

pagar

ascontas

-

estáa

tornar-se cada vez mais flagrante.

«Os pedidos de

apoio

psi- cossocial

não param

de

aumentar. Veja,

as pessoas

trabalham de manhã

à

noite para ganhar

setecentos euros e

pagar quinhentos de renda

de casa.

Isto não

é

normal. Pode-

mos

dizer que

asdoenças físicas se

desen- volvem

através

de umabactéria. E

o

que ve-

mos

hoje

équea

carência económica

está a

tornar-se também ela numa bactéria, que provoca

doenças ese

propaga rapidamen-

te.»

É como

se

Portugal

vivesse

um surto de

aflição,

de

ansiedade.

Angústia

«De repente fiquei sem casa, carro, pou- panças, fiquei sem nada.Ter qualquer forma de prazer na

vida tornou-se um luxo a que não me

posso dar.»

o peso da solidão

Está uma mulher carregada

de sacos a

cor- rer

ao

longo

do

Mosteiro

dos

Jerónimos, em

Lisboa.

Está

a

tentar chegar

a

tempo

à

para- gem de autocarro, que

passa de

meia em meia hora. Ela chama-se Isabel Manuel, tem 29

anos e

um filho de

dois.

Nasceu em Ango-

la mas

vive em Portugal há

12anos.

Vai na- quela correria desenfreada para ir buscar

o

filho

à

creche da Segurança

Social,

que fica em Santa Apolónia.

Sai do

emprego - traba- lha na copa de um restaurante em Belém -

às

cinco

e

meia da tarde.

As

educadoras guardam

as

crianças

atéàs seis e

ela,

se

não houver

atrasos nos três

autocarros

que

tem de apanhar, com um bocadinho de sorte

eo passo estugado, consegue

chegar

ao

jardim- -de-infância

às seis e

meia. «Menos mal,

as-

sim não ralham comigo.»

a

mão

ao

gaiato,

seele está

de birra

co-

loca-o

àscavalitas, e

torna

a

apanhar um

au-

tocarro, direito

ao Cais do Sodré.

Daí, apa- nha

o

barco para Cacilhas

e

espera vinte mi-

nutos

por outro autocarro, que

a

leva

à

Baixa da Banheira. Nunca põe

o

pé dentro de

casa

antesdasoitodanoite.Duashorasemeiade viagem para

cada lado, todos osdias.

No mí- nimo. Depois

é

fazer

a

sopa para

o

rapaz, dar-lhe banho, comer alguma

coisa se

hou-

ver.

E cama, que o dia começa

àsseis

menos quinze. «Ganho 565 euros por

mês,

incluin-

do

o

subsídio

de

alimentação.

Pago

200 euros de renda

decasa,

50 da

escola e 55 de passe social.

Como

o

meu trabalho funciona

por turnos,

estou

muitas

vezes

com

o

horá- rio

das

cinco da tarde

àsduas

da manhã, por

isso

pago mais 100 euros

a

uma senhora que me toma conta do menino. As contas da

água,

da luz

e dogás

dão mais ou menos 30 euros por

mês.»

Sobram-lhe

130

para comer, vestir

e

comprar

de

vez em quando um brin- quedo

ao

filho.

Isabel tem uma depressão. Quando

se

senta

à

mesa da cozinha, tudo

édesespero.

alguma fruta que

a

ama

do

filho vai bus-

(4)

caràpraça, são assobras dodia.

Cerelac para opequeno-aJmoço do miúdo. Elafaz normalmente uma refeição por dia, aque lhedão no restaurante. «Desmaio muitas vezes. Pensava queerade fome, mas não é só. Também tenho tremores, diarreia, vó- mitos. Não consigo parar de pensar no que aminha vida setornou, não consigo dormir, preocupada com omeu filho. Aiseeu um dia adormeço, ai sechego atrasada para oir buscar ouparaoirlevar. Etenho tanto me- dodeser despedida.»

Ofuturo não existe. Ela nãosabe oqueirá fazer quando orapaz crescer efor paraaes- cola primária. Ou quando tiver delhecom-

prarlivros. Ou quandoo miúdo fordemasia- do grande paraandaraocolo damãeetiver de pagar bilhete deautocarro. «Sefinancei- ramente não estás bem, emocionalmente também não.Como é que te consegues

rir

se estás apassar fome? É por isso que aspes- soas enlouquecem. Eeuàsvezes sinto que passo abarreira, que não aguento mais, sei lá,quepasso paraooutro lado. Mas nãote- nho medo de enlouquecer. Loucura éesta vida que levo.»

As paredes doapartamento onde Isabel vive estão cheias deretratos dela, do peque- no e dafamília deuma colega do trabalho, com quem partilha acasa. Fotografias tão

sorridentes quanto pretéritas. «Às vezes, quando chega ao fim-de-semana, vou ao centro comercial encher osolhos na Zara.

Gostava decomprar umacamisola oudeter um telemóvel, masnãoposso. Tudo oquete- nho vai paraasfraldas, paraoleite, paraapa- pa.Étãodifícil criar omenino sozinha. Hou- veum dia em queestava tão desesperada que pensei daromeufilho para adopção, paraele ter uma vida melhor do que aquela que eu lhe consigo dar.» Baixao rosto, envergonha- da.«Claro que nunca conseguia fazer isso.»

Isabel estudou atéaonono ano emLuan- dae,quando chegou aPortugal, começou a trabalhar no que mais gostava: tomar conta

(5)

decrianças.

À

noite estudava. Tirou umcur- so desecretariado, outro de inglês, um de informática eainda acarta de condução.

«Investi naminha formação cparaquê? Só arranjo emprego alavar pratos. Devia ter poupado essedinheiro, hoje dava-me mui- to maisjeito para comer.» Aos sábados fre- quentava osescuteiros e faziaparte deum grupo de jovens, naIgrejadeArroios.«Gos- tava de ajudar osoutros. Sempre gostei.»

Depois veio a gravidez, ascenas deviolên- cia doméstica como companheiro, ascrian- ças dequem tomava conta cresceram e

não precisavam dela. Foi aí quesecomeçou airabaixo.

«Sei que estou doente.» Sem esperança.

Nem apoio deninguém. Isabel precisa de antidepressivos para aguentar osdias, de calmantes para as noites, mas só ostoma quando tem dinheiro ou quando alguém da Segurança Social lhe arranja a medicação sem custos.

cinco anosganhava bem, ti- nha umaboacasa, podiacomprar roupa eti- rarcursos, podia fazer voluntariado. Perdeu tudo. Eestádoente.

Ocaso deIsabel éumentre muitos. Luís Robert, opsicólogo daLapa, tem outra opi- nião: oque está doente éomodelo social.

«Estamos adesenvolver uma alergia àtris- teza e acomunidade exige aos seus mem- bros que, mesmo sentindo-se mal, aparen- temestar bem. O conceito alargado defamí- lia desapareceu e quem sofre, sofre cada vez mais sozinho.» Arevista norte-americana Psychology Today calculou num estudo de 2003que, em2050,mais demetade dapo- pulação no mundo ocidental tivesse tido umadepressão pelo menos uma vez navi- da. Diante de uma possibilidade destas, é obrigatório colocar umaquestão: são as pes- soas que não seadaptam aesta construção social ou é esta construção social que não

serve aspessoas?

Depressão «como é q ue

te podes rir se não tens dinheiro para

comer? É por isso que as pessoas enlou- quecem. E loucura é a minha vida.»

Isabel ganha pouco evive numa aflição permanente.

«Quefuturo posso euoferecer aomeu filho?»

awnaoaopoço

A partir de2003,onúmero desuicídios em Portugal ascendeu aos1100casos anuais.

Atéaosanos 2000,amédiaerade

500

ocor-

rências. Numasódécada, houve um aumen- to superior acem por cento. Acomunidade médica temexpresso o seualarme, ogover- no lançou recentemente um plano nacional de saúde mental [vercaixa], oque torna ainda mais estranho oqueestá aacontecer como SOSVoz Amiga, uma linhatelefónica deemergência eprevenção dosuicídio, cria- dahátrinta anospela Liga Portuguesa para aHigienc Mental

(LPHM).

APT,quesupor- tavaum número gratuitoentre as21h00 e as

24h00,decidiu cancelar esseapoio apartir do início de2008.OsMinistérios daSaúdee doTrabalho eSolidariedade Social, quesub- sidiavam ainstituição, ainda não pagaram as

verbas de2007. Ealistatelefónica continua aindicar umnúmero verde quejánão exis- te. «Pedimos para pelo menos colocarem uma gravação aindicar onovo número de telefone», diz Afonso Faria, dadirecção da Liga, «mas pediram-nos quarenta euros por mês.» Incrível.

uma diminuição nas chamadas: até 2007, havia em média cinco mil pessoas a pedirajudatodos os anos.AtéaofinaldeOu- tubro de2008,o SOSVoz Amiga tinha re- gistados 3721telefonemas. Mesmo assim, o número de pessoas que abordavam oassun- todasdificuldades financeiras duplicou em relação aosanosanteriores. «O mais impres-

(6)

Avida deHelena segue aleide Murphy: guando algocorre mal. pode sempre piorar.

Aprovado peio Conselho de Ministros,

oPlano Nacional de saúoe Mental pretende mudar aspolí- ticas dosector até2016. Aprimeira reforma èambiciosa-' garantir a todos oscidadãos oacesso acuidados de saúde específicos. Alémdisso, três hospitais psiquiátricos vãoterservi- ços de internamento para doentes mimputáveis. umemLisooa. outro noPorto eumterceiro emcoimDra.

0 plano também prevê acriação de unidades detratamento para pertur- bações docomportamento alimentar.

0 documento quer «reduzir oimpacte das perturbações mentais e contribuir paraapromoção dasaúde mental das populações». Masa coisa arrancou mal.0 piano traçava medidas a partir de2007 massô foi publicado em Diário úaßepúúlicaem Março de2008. Apesar de o documento dogoverno apontar deficiências nonúmero de profissionais ac saúde que se dedicavam às questões da saúde mental, vários psicólogos emédicos doHospital Miguel Bombarda, em Lisboa, foram dispensados em2008.

Eas notícias doencerramento desse estabeiecimentojá não deixam dúvidas a ninguém, odirector do serviço dePsiquiatria doHospital Júlio deMatos, José Manuel Jara, tentou explicar ao diário Público asua interpretação dos factos:

«os princípios dareestruturação estão certos, mas aideia também é poupar.»

_L SIQUG «Só quero olhar para a televisãcr e anestesiar- me com a vida dos outros. Ou então olhar um espaço vazio, tão vazio que não me faça sentir nada.»

sionante detudoéque hámuita gente aper- guntar sepodemos ligar de volta, porque nãotêm dinheiro para otelefonema. Enós não podemos, mesmo que escutemos uma voz desesperada que ameaça suicidar-se no outro lado da linha. Temos de desligar.

Émuito cruel», contesta MariaAzenha, vo- luntária há12anos na

LPHM.

Osvoluntários dizem quehámuita gente que liga etemapoio psiquiátrico

-

mas que,

apesar de estaracompanhadapor ummédi- co,sente-se igualmente perdida. «Osantide- pressivos, talcomo outros psicofármacos, são medicamentos necessários para resol- veralgumas crises edoenças, mas oque me parece óbvio é que secaiu num enorme fa- cilitismo nouso destes medicamentos», opi- naDelfim Oliveira, presidente daAssocia- ção deApoio aosDoentes Depressivos eBi- polares. «Oproblema éque, nocaso de uma depressão mais ligeira, quais são asalterna- tivas?

Ir

passar férias fora, fazer terapia? Pa-

raaclasse média, que empobrece aolhos vistos, émuito maisfácil ebarato tomar um comprimido.»

Segundo oInfarmed, aautoridade nacio- nal domedicamento, notop 10 dosmedica- mentos mais vendidos emPortugal estão dois psicofármacos famosos, oLorcnin eo Xanax, algo queháumadécada seria inima- ginável. Em2007,destes dois produtos fo- ramvendidas cerca de 2,5milhões deemba- lagens. Retoma apalavra Delfim Oliveira:

«As pessoas tomam mais medicamentos e vão saltando para depressões médias, ou até mesmo profundas, eemcasos graves come- çamaprecisar deantipsicóticos. Eaípioram gravemente asuacondição de saúde.»

Manuel Palma ébipolar. Tirou um curso naquilo que chama «a arte deempobrecer alegremente», ouseja, em agronomia, eva- gueou por umasérie deempregos até que há cinco anos decidiu criaroseupróprio negó- cio. Umaagência imobiliária. «Os dois pri-

meiros anos serviram paramontar umaes- trutura e, assim queas coisas ficaram pron- tas,começou uma tremenda crise nosector imobiliário. Nunca tive um ano dourado.»

A estabilidade laborai passava por vender um apartamento pormêsmas, garante ele, desde Agosto de

2008

que não consegue vender umacasa. «Aimportância deterre- cursos é assegurarem- me uma certa tran- quilidade. A instabilidade emque vivo hoje não émuito amiga da doença de que sofro.»

Delfim Oliveira concorda. «Osdoentes bi- polares perfazem umvalor que oscila entre 1,5e dois por cento da população. É uma doença crónica com aqual seconsegue vi- ver sem problemas, desde que secumpra uma medicação, semantenha umavida re- grada. Aangústia de nãoter dinheiro para pagar ascontas, para educar osfilhos, é um factor que pode desencadear crises manía- cas ou depressivas.» EPacheco Palha, psi- quiatra doHospital de SãoJoão, atira outra

(7)

acha

para

a

fogueira «Com

a

vinda

desta

cri-

se,e

nomeadamente com

a

perda

de

empre-

go, alguns

doentes tratados

e

recuperados, que estavam há muito em equilíbrio psíqui-

co,

têm sofrido

recaídas.

É então que

ossin-

tomas

depressivos

reaparecem.»

«TunSoésnada»

«Na minha outra vida eu fui cantora.» Hele- na Costa tem 42

anos, mas

fala de uma exis- tência anterior, quando tinha vinte. Era

vo-

calista

de

uma banda de garagem que toca- va em bailes

de

aldeia

e bares

de

rockabillies.

Foi um tempo em que dava concertos em- poleirada em carroças

e se

sentia no céu.

«No

palco,

eu era

eu.

Sentia-me plena, cheia

de

mim. Hoje não consigo cantar, nem

se-

quer no banho. Tornou-se

tudo.

tão diferen-

te, está

tudo tão

longe.

Eu já

não sei ser eu.»

A vida

de

Helena deu umas cambalhotas.

Engravidou

e,ao

sexto

mês

de

gestação, se-

parou-se do companheiro. Deixou-se de cantorias, tinha uma filha para criar. Há uma década que trabalha para

a

Câmara Municipal de Lisboa. Quando

a

miúda

nas-

ceu, mudou-se para

casa

da mãe. «É uma derrota grande, voltares

atrás

depois de ter

saído.»

Reconciliou-se com

o

companhei-

ro,

engravidou outra vez. Separaram-se

e

ela viu-se sozinha com

duas

crianças

nos

braços

e

pouco

peso nos bolsos. «Passei os

últimos dez

anos a

trabalhar

a

recibos ver-

des,

sem segurança alguma, numa angústia constante por não saber quando ia perder

o

emprego. Tive de abdicar da minha vida, de qualquer divertimento.»

A instabilidade no trabalho,

a

falta de di- nheiro, fê-la mergulhar numa depressão enorme. «Há dez

anos,

eu era uma compra- dora

de

roupa compulsiva. Agora tenho de esperar pelo reembolso

do

IRS para poder ir

às

compras.» Tem um olhar triste, amargo.

No início

do ano, após

uma década

a

traba- lhar

arecibos verdes,

foi finalmente integra- da

nos quadros.

«Foi

a

pior

coisa

que me po- dia ter acontecido. Até aqui, ganhava

1100 euros

brutos por

mês,

que me davam ajusta para pagar uma renda de

casa, a escola e a

creche

das

miúdas,

o passe,

comida,

o

taba-

co.

Agora,

passei

para 600 euros ilíquidos.

Não

sei o

que hei-de

fazer.»

Para Helena,

a

vida tem seguido

a

lei de Murphy: quando

ascoisas

parecem mal, po- dem sempre correr

pior.

Arranjou um part-

-time

numa papelaria, que lhe garantia 200 euros mensais extra,

mas

foi

dispensada

no fim

de

2008. Está

a

viver com metade

do

di- nheiro que tinha. «E

não

vejo qualquer pers- pectiva de melhorar. Como

é

que eu vou vi- ver com 600 euros por

mês se

tenho

de

pa- gar uma renda de 280, mais

a

creche

ea escola?

Não há uma porra duma luz

ao

fun-

do do

túnel? Tinha

dois

empregos,

mas não

tinha tempo para

as

miúdas. Agora tenho tempo,

mas

não tenho condições de

assus-

tentar. É horrível.»

A mãe vai ajudando, oferece

todos osdias

jantar àlinhagem inteira. «Estou

a

sobrecar-

regá-la, bem

sei,e

sinto-me mal com

isso.

Mas

se

não

o fizesse

não havia

solução.

E um dia que ela desapareça,

o

que

é

que eu vou fazer? Isto não

é

vida, não

é

nada Sinto que perdi

o

direito

a

rir-me,

a

divertir-me, a tirar algum gozo

dos dias.

E

isso

deixa-me embai-

xo,

desmotivada, triste. Sozinha, sinto-me muito sozinha.»

Aos

fins-de-semana

as

crianças abalam

para

casa do

pai

e

Helena fica em

casa, sen-

tada,

à

espera de

coisa

nenhuma Há tanta

gente em Portugal como ela Fingimos que

não

é

nada connosco,

mas

podemos ouvir

estas palavras

em três milhões

de bocas. «Só

quero não

pensar.

Olhar para

a

televisão

e

anestesiar-me com a vida

dos

outros, ou en-

tão ficar em silêncio,

a

olhar para um

espaço

vazio,

tão

vazio que não me faça sentir na-

da.»

Depois

as

miúdas voltam. Helena mal

tem tempo de ver

asfilhas, mas

anda tão tris-

te que

as

garotas

àsvezes

perguntam-lhe

se está

triste,

seestá

zangada. «E eu digo sem-

pre que

não,

que estou

cansada.

Mas para

mim

penso:

vá meninas, vão lá para

a

cama

que é para eu poder chorar.»«

(8)
(9)

Referências

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