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KIERKEGAARD TRIUNFOU: OU COMO CONTRAPOR OS ARGUMENTOS DE UM RELOJOEIRO KIERKEGAARD TRIUMPHED: OR HOW OPPOSING THE ARGUMENTS OF A WATCHMAKER Fransmar Costa Lima

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Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.

KIERKEGAARD TRIUNFOU: OU COMO CONTRAPOR OS ARGUMENTOS DE UM RELOJOEIRO

KIERKEGAARD TRIUMPHED: OR HOW OPPOSING THE ARGUMENTS OF A WATCHMAKER

Fransmar Costa Lima*

RESUMO

O presente texto trata a questão da subjetividade e suas implicações na formulação da contemporaneidade a partir do pensamento de Kierkegaard. Procura refletir sobre algumas notas do texto de Theodor Adorno intitulado Kierkegaard outra vez, de 1963, na qual o pensador alemão retoma, com uma análise aprofundada a obra do filósofo dinamarquês, objeto de sua Tese de Habilitação (1931). Nossa reflexão parte da transgressão do conceito de subjetividade que Kierkegaard propõe ao romper com a tradição hegeliana e, em seguida, partindo da crítica de Adorno diz algo sobre a cultura contemporânea, sugerindo uma perspectiva que contemple a individualidade em sua completude.

Palavras-chave: Subjetividade; Individualidade; Adorno; Hegel.

ABSTRACT

This paper discusses the question of subjectivity and its implications in the formulation of contemporary from the Kierkegaard´s thought. It attempts to reflect on some notes of Adorno´s work entitled Kierkegaard outra vez, published in 1963. In this text, the German thinker using a detailed analysis takes the work of Danish philosopher that is the subject of his Tese de Habilitação (1931). In addition, this study derives from the transgression of the concept of subjectivity proposed by Kierkegaard when he broke with the Hegelian tradition.

Then, from the Adorno´s critical it says something about contemporary culture suggesting a perspective that considers the individuality in its completeness.

Keywords: Subjectivity; Individuality; Adorno; Hegel.

* Bacharel e licenciado em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma universidade. É professor convidado da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) para o curso de pós-graduação em Educação e Ética para uma Cultura de Paz. Organizador, junto com Jorge Miranda de Almeida, do livro Filosofia, Cultura e Subjetividade, publicado pela editora LiberArs. E-mail: fransmar@uol.com.br.

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Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF.

1. Introdução

Vivemos a época do sucesso desmedido e da ambição desenfreada.

Pensar nossa época implica em pensar geralmente o comum como unidade, onde a individualismo sobrepõe a individualidade, pois o cotidiano do homem comum situa-se em uma rotina sistematizada implementada pela constância dos objetivos estabelecidos.

O desejo humano passa a ser um objetivo declarado e, o que agrava ainda mais a situação, o motivo pelo qual se vive nem sempre é fundado na individualidade, mas em um desejo do comum.

Todos desejam o mesmo e o mesmo é o desejo latente no objetivo que se acredita permitir a realização do sucesso e a conversão da mera satisfação em felicidade.

Na época em que todos buscam o sucesso, a felicidade é um objeto comum que se deseja, não por si, mas para que aja uma equiparação entre o eu e o todo.

Se todos desejam o mesmo, qual fator seria capaz de nos diferenciar enquanto indivíduos, ainda mais se pensarmos em indivíduos únicos e singulares dispostos frente à uma existência que exige mais do que a satisfação comum e pueril ?

Nossa investigação não é pela condição do sucesso simplesmente, mas pela forma como o sucesso invadiu a sociedade contemporânea aniquilando a individualidade e fomentando o individualismo, a ponto de criar uma falsa constituição da identidade onde os objetivos se mostram cada vez mais necessários, uma vez que o eu, por si, não é mais suficiente para garantir a realização do homem, agora imerso em uma unidade comum. Nossa reflexão busca na subjetividade e no indivíduo singular uma possibilidade de transgressão do sistema cultural imposto como forma única de realização e satisfação a partir do sucesso.

É neste sentido que buscamos embasamento na crítica ao sistema que

Adorno perpetra contra a cultura social contemporânea, bem como à transgressão kierkegaardiana do sistema, a partir do uso da linguagem indireta, da ironia, do enfrentamento da angústia e da constituição singular do indivíduo em sua existência.

O presente artigo trata a subjetividade enquanto verdade para a edificação do Indivíduo bem como os desdobramentos e implicações da existência em uma cultura que privilegia o sucesso político e o contentamento superficial como remédio para os males do espírito, onde até a felicidade é obra de um artifício.

2. Entre a felicidade e o sucesso

Ao conceber um bem supremo, ou um sumo bem, Aristóteles define que este bem seja a felicidade. O sistema aristotélico, organizando o pensamento na instância lógica, contempla este bem como uma relação que se dá entre o homem e a sociedade, pois toda ação que o move é em vista de um bem para si mesmo e se torna ético quando esta mesma ação é convertida em um direcionamento para o bem comum.

O sistema norteador da sociedade contemporânea, ou pelo menos a lógica que norteia tal sistema, encontra seu princípio em Aristóteles. Apesar de todas as discussões, teses e alterações que provém do desenvolvimento histórico, todas as concepções sistemáticas que advém como condição estrutural da sociedade, e aceitamos que inclusive a cultura cristã tenha se formado em uma lógica pagã, encontra seu princípio em Aristóteles. É impossível escaparmos dele se desejamos analisar a constituição do indivíduo contemporâneo.

Por este motivo é necessária uma rápida leitura exegética sobre a noção de felicidade aristotélica que prevalece como idéia comum até nossos dias. Assim, diz o estagirita:

É ela (a felicidade) procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em

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outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria (ARISTÓTELES, 1973, p. 55).

Concordamos com Aristóteles quando a felicidade é estabelecida como o sumo bem, porém, questionamos a determinação da felicidade como fim último, pois – e usamos a mesma estrutura lógica por conveniência – se é fim, o bem que deseja é um objetivo almejado e, portanto, pode ser adquirido pela ação.

Note-se que o próprio Aristóteles inicia sua Ética Nicomaquea forjando o elo que une o bem à ação humana quando afirma que admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem (Cf. ARISTÓTELES, 1973, 49).

O grande problema é que o filósofo de Estagira considera como bem apenas a ação tomada como virtude, pensando a ética em um contexto político como se a natureza do homem não vislumbrasse outra coisa além do controle que a razão deve exercer sobre as paixões. Porém esquece que a satisfação do espírito extrai o homem do universo político comum, ele não é mais um entre outros idênticos (detentores da mesma identidade) que almejam por fim o mesmo bem, e se o fazem, não o fazem como objeto de uma ação, mas como um desejo por si, sem justificativas plausíveis do que se espera ou do que se entende por este bem. Aristóteles não previa que a história e o desenvolvimento do sistema à seu ponto máxima (atingido em Hegel), subtrairia a felicidade do universo de conseqüências da ação. A felicidade

técnica, se a podemos chamar assim, só pode subsistir a partir do momento em que o humano está imbricado no sistema político e sua individualidade está sobrepujada pela totalidade.

Entretanto, com o advento do capitalismo e dos movimentos reformáticos cristãos, o paradigma da felicidade abandona a esfera do bem comum, prescrevendo a noção de todo e instaurando o indivíduo como uma generalidade ímpar.

A felicidade continua como objetivo primordial, porém agora não é mais uma condição ética dada na conjuntura do todo.

Não está implícita na totalidade uma vez que este indivíduo passa a ansiar, não pelo bem em si, mas pelo bem para si. É a este tipo de bem ao qual Rousseau se refere quando, ao tratar da origem da desigualdade humana contempla os diversos privilégios e benefícios que têm uns, em detrimento dos outros (Cf. ROUSSEAU, 1973, p. 241).

Chegamos à era do individualismo.

Quando pensamos que a desigualdade entre os homens se instaura a partir de uma relação de domínio e submissão da vontade de um homem frente a outro, entendemos que o individualismo desponta como uma condição categórica egocêntrica determinante em nossa época.

O desejo de felicidade é substituído pelo sucesso.

Se por um lado a felicidade tinha como aspecto conceitual a equiparação entre as condições humanas, propiciando uma visão existencial onde a desigualdade se atenuava, o sucesso busca de maneira radical e feroz acentuar a distância das diferenças entre um e outro. E como consequência, o um perde-se em si mesmo, tornando-se na busca gananciosa do “ser mais” uma réplica do outro frente ao qual se sentia menorizado, ou seja, a busca pela igualdade – no contexto pós-revolução francesa – acentua as diferenças e torna o indivíduo uma reação existencial fechada sobre si mesmo.

Neste caso, a existência não é propriamente autentica mas uma pseudo

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existência uma vez que não se basta por si, mas torna-se um reflexo do que se espera ou se tem como ideal de sucesso. Não é autentica pois não está pautada na individualidade mas em uma relação individualista sistemática onde o eu é simulacro do humano, desprovido de liberdade e decisão. Constitui-se em torno deste eu, um aparato objetivo que desconsidera qualquer verdade é essencialmente qualquer decisão.

Kierkegaard nos lembra, no Post-Scriptum, que a subjetividade é verdade, e ainda mais, que a subjetividade é essencialmente decisão no instante.

Assim, como pode o indivíduo constituir-se autenticamente em uma época onde os objetivos sobrepujam a autenticidade, e o homem é um simulacro da verdade? Qual felicidade é possível, na época do sucesso?

Em tempo, talvez o leitor atento exclame: Mas o grande construtor do sistema de verdades foi Hegel! Porque fundamentar o sistema de verdades e a felicidade como fim último em Aristóteles?

Porque iniciar esta discussão pensando o sucesso da contemporaneidade, a partir da desconstrução da filosofia antiga?

No que diz respeito a Hegel, observando o que diz Kierkegaard em seus diários, deixemo-lo em seu claustro construindo relógios (Cf. KIERKEGAARD 1989, p. 78).

3. O eu e o outro diante do eu como todo:

a comunidade é um risco

Se o estagirita entendia felicidade como bem comum, e necessariamente essa felicidade implica uma relação do sujeito com o todo, é latente pensar que o todo é fundamental na política aristotélica para que a ética surja com suas características racionais. Por outro lado, o individualismo engendrado na humanidade a partir do sucesso coloca o indivíduo em segundo plano e privilegia o todo, como se a universalização do homem constituísse uma

comum unidade. É desta forma que a cristandade sintetiza a totalidade, unindo o um e o outro no espaço político do comum, como se todos fossem parte de uma única existência.

Se a modernidade transpôs a totalidade sistemática para o individualismo sistemático, Kierkegaard efetua na história do pensamento contemporâneo uma nova transgressão: a individualidade e a singularidade enquanto existência surge como contraposição ao individualismo.

Quando se refere ao Indivíduo singular, o que pensamos agora não é mais um indivíduo perdido entre o todo, e tampouco disposto na generalidade do comum, mas autêntico e decisivo em sua historicidade.

Livre pela angústia de sua existência, tomada como decisão no instante absoluto.

O pensamento kierkegaardiano transcende a totalidade e o individualismo por não determinar um fim objetivo para a questão da verdade, pois a dimensão que estabiliza a individualidade existencial é a subjetividade na singularidade. É importante ressaltar que estabilizar a individualidade não significa determinar ou definir essa individualidade. Por este motivo, o pseudônimo Johannes Climacus afirma no Post-Scriptum, que a subjetividade é a verdade, assim como a subjetividade é a não verdade (Cf.

KIERKEGAARD, 1992).

Transgressor da objetivização de sua época, Kierkegaard não contempla a idade da cultura de massa, do cristianismo de massas e da comunicação em massa (talvez em virtude da misericórdia, ou do bom humor Divino). Porém, cultura, cristianismo e comunicação são dimensões cruciais na relação que um Indivíduo (Enkelt) mantém com o outro, e na relação que mantém com o indivíduo (Individed).

Desta forma, cultura e cristianismo são as dimensões mais significativas à individualidade, ao mesmo tempo em que nelas se depositam os maiores riscos de naufragar na existência e fundir a autonomia decisiva com uma unidade

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comum, na generalidade onde todo homem torna-se ninguém e ninguém pode ser qualquer um.

A comunicação, por sua vez, torna- se a mais singular das dimensões que relacionam um Indivíduo com outro, ou o Indivíduo com o indivíduo. Para Kierkegaard comunicar é desvelar, fazer-se reconhecer, descobrir-se e entregar-se em constante movimento dialético, onde a singularidade da comunicação indireta fala à subjetividade, mesmo no silêncio. A subjetividade comunica na autenticidade, sem mediadores e sem vãs suposições do que se espera ouvir. Reconhece no outro o que é verdadeiramente outro, em confluência ao eu, verdadeiramente eu.

Não por acaso encontramos muito da comunicação kierkegaardiana na poesia e na literatura, influenciando grandes nomes como Franz Kafka e Fernando Pessoa, ambos comunicando o eu de maneira que este fosse capaz de desvelar sua singularidade ao outro sem, no entanto perder-se no mesmo de forma a serem total e vulgarmente compreendidos, como um Zaratustra que escreve um livro para todos e para ninguém.

Kierkegaard, porém, não vive a sociedade do sucesso desmedido, mas profeticamente antevê na história a desconstrução da individualidade e a existência perdida no todo. Percebe um homem trôpego na existência, perguntando- se do porque de sua constante inclinação subserviente frente à utilidade que o sistema dele espera.

[...] o maior paradoxo do pensamento é querer descobrir algo que ele próprio não possa pensar. Esta paixão do pensamento está, no fundo, presente nele por todas as partes, assim como no pensamento do indivíduo, na medida em que este, enquanto pensante, não é somente ele mesmo. Mas por causa do hábito não se percebe isso. Assim também, o caminhar do homem, [...] é um constante cair; mas um homem decente e bem educado, que toda

manhã vai ao seu escritório e ao meio- dia volta à sua casa para almoçar, provavelmente achará que isso é um exagero, pois o seu avançar é, afinal, a mediação. Como lhe ocorreria a idéia de que vai caindo sem cessar, ele que não faz outra coisa senão seguir atrás de seu nariz? (KIERKEGAARD, 2008, p.

62, grifos nossos)

Observemos como Kierkegaard coloca bem os termos paixão, exagero e mediação. Ora, não era na mediação entre as paixões que Aristóteles situava a virtude, categoria indispensável para a felicidade? E no exagero, a corrosiva tendência a este ou aquele extremo de maneira radical, estavam dispostos os vícios?

Kierkegaard indica que, no espaço sistemático onde cada um segue atrás de seu nariz, não há espaço para o Indivíduo, e se existe espaço para o outro, este é apenas um reflexo do que há de verdadeiro sem nunca ser capaz de pensar a verdade, já que o sistema está construído sobre objetivos de uma comum unidade.

A questão que aqui se propõe é o ponto de partida das Migalhas filosóficas, de Johannes Climacus, ou seja, em que medida se pode aprender a verdade, e em que medida se pode procurar a verdade?

(Cf. KIERKEGAARD, 2008) Mas a verdade da individualidade que aqui se trata não se encontra engendrada pelo sucesso individualista, pois o positivo do individualismo esta contaminado pelo hábito, pelo costume da rotina e não permite que um homem tenha qualquer outra ação necessária que seja contraria à de um seguidor. É desta forma que o melhor dos homens, sendo prisioneiro de sua rotina diária, torna-se incapaz de perceber o seu declínio diante de si mesmo.

Entrementes, Theodor Adorno percebe a relação de subserviência que o sistema do sucesso impõe ao indivíduo singular. Em Kierkegaard outra vez, o pensador alemão escreve:

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Frente à objetificação e à socialização de todas as relações entre os homens nos cem anos após sua morte, a posição do indivíduo, à qual ele atribuía a mais alta dignidade, mostrou-se como um refúgio da exploração dominante, inimiga da determinação individual, que degrada todos ao mero desempenho de seu papel. Kierkegaard pôde tornar- se popular porque o indivíduo absoluto, que ele então contrapôs às massas do alto capitalismo que recém começavam a se tornar visíveis, entrementes apareceu como a situação de todos os integrantes dessas massas (ADORNO, 2010, p. 347).

Se o anseio pelo sucesso advém como o positivo do individualismo, a

individualidade insere na

contemporaneidade o negativo e, desta forma, a obra de Kierkegaard – voltada essencialmente à comunicação indireta da existência – permite uma assimilação ímpar no tocante a seu significado e interpretação.

Não há, ou não se pode descobrir – nas palavras do pensador dinamarquês – uma chave hermenêutica que desvende todo o significado da obra, o sentido do método ou a possibilidade inexistente de um sistema, o que imbrica em seu pensamento todo o peso da negatividade. Por este motivo, Adorno vislumbra um Kierkegaard triunfante, tomado pela intelectualidade dinamarquesa que se contrapõe ao sistema e à religiosidade oficial, bem como às determinações culturais que se estabelecem sob essas pilastras. É na negatividade que se vislumbra o triunfo de Kierkegaard.

4. O triunfo de Kierkegaard

No início de Kierkegaard outra vez, Adorno afirma categoricamente que, segundo a medida de sua própria obra, Kierkegaard não pode e não deve triunfar (ADORNO, 2010, p. 339) e mais enfaticamente ainda afirma na segunda parte do texto que Kierkegaard triunfou, pois, depois que se prestou atenção ao

extraordinário, ele se tornou, primeiro, como costuma ocorrer, psicologicamente interessante. O filósofo de Frankfurt remete a estrutura da obra de Kierkegaard ao sucesso desmedido do capitalismo, bem como o uso que dela foi feita e a recepção que lhe foi dada entre a intelectualidade transgressora do século XX, que nele encontra um ponto de partida para romper com o sistema que se estabelece positivamente. O pensador dinamarquês desponta assim, como um Sócrates revivido, que ironicamente contrapõe ao pensamento estabelecido sua ironia e angústia. É nesta condição que Kierkegaard não poderia e não deveria, por uma questão de coerência e justiça para com seu pensamento, lograr sucesso, uma vez que sua estrutura está enraizada na verdade enquanto subjetividade sendo sua obra propriamente negatividade. Diz Adorno:

O princípio do sucesso, no qual o mecanismo competitivo da sociedade burguesa se reflete e coloca no lugar da divindade derrocada, é desafiado por Kierkegaard como raramente se fez; até mesmo o seu triunfo póstumo ele teria registrado como uma prova contra sua própria verdade, como um testemunho de uma secreta cumplicidade com o que ele chamava de status quo. Isso, porém, é muito difícil de aceitar (ADORNO, 2010, p. 343).

O texto de Adorno inicia-se com uma preleção sobre o testemunho da verdade, verdade esta que só pode se edificar na existência a partir da subjetividade. Tal verdade é muito bem colocada em contraposição ao mecanismo competitivo da sociedade burguesa, ao capitalismo radical e certamente contra qualquer forma de exagero ou radicalidade objetiva. A única radicalidade a ser assumida é a existência e assim mesmo, não como radicalidade em si mas, como existência radical.

No embate contra os extremismos, Kierkegaard se situa como um pensador do

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absoluto transcendente, o eterno no instante, distante de toda a constituição sistemática, seja política, cultural ou religiosa, observa em si mesmo o desdobramento da autenticidade, em contraposição ao simulacro da verdade.

O mundo, contra o qual Kierkegaard esgrimia a cristicidade, que o mundo só finge realizar – esse mundo no qual, como ele diz, o sujeito desapareceu –, é a sociedade do alto capitalismo como, ao mesmo tempo e sem que soubessem um do outro, Marx o analisava. Contra o absoluto ser-para-um-outro do mundo das mercadorias é que foi inventado o absoluto ser-para-si do indivíduo kierkegaardiano (ADORNO, 2010, p.

361).

Entendemos que o problema não é a lógica sobre a qual o sistema se estabelece, mas as mudanças sociais e culturais sobre ele constituídas, que motivam a construção (e não a edificação) de uma cultura do comum onde o individual se perde e a autenticidade dá lugar à representação.

Ninguém mais é para si, mas vive-se em uma constituição idolátrica em que se deixa de ser. A autonomia da decisão, da liberdade e da ação cede seu espaço para um absoluto que não admite diferenças entre os homens.

A própria essência do cristianismo perde-se no comum. Não há opção. A sociedade do sucesso engendra em si todas as soluções morais e todos ocupam um lugar definitivo, tendo por objeto o sucesso que se almeja, a função que se estabelece e a condição superposta da representação. O homem de nossos dias é personagem que representa o avesso do que se é, e se não é autentico, livre e decisivo por sua própria vontade, qual o valor de sua ação? Que valor tem uma ação da qual, em verdade, não se pode dar testemunho?

Assim, eles estão sempre contra todas as parcialidades. Ninguém diga que o ódio de Kierkegaard contra o status quo

era demasiado abstrato. Basta apenas imaginar-se bem a figura de Martensen, para se saber contra quem e contra o que Kierkegaard arremete, e que já não se trata, há muito, da igreja luterana dinamarquesa. Na negação determinada, Kierkegaard conseguiu, conforme sua linguagem, sair da interioridade. Se o todo, enquanto totalidade e sistema era para ele o engano absoluto, ele enfrentou o todo em que se encontrava atrelado como todos. (ADORNO, 2010, p. 365).

É necessário testemunhar, como vivência existencial, autentica e irrefutável como uma prova que não se pode fraudar (Cf. ADORNO, 2010, p. 341) a rejeição que se estabelece pela recusa da representação. É neste sofrimento que o Indivíduo se fortalece, edificado em firmes alicerces, tornando-se capaz de comunicar sua recusa em participar da era da conversa fiada.

5. Conclusão

A contradição que se observa na estrutura do sistema é que, para um homem pertencer a comum unidade, deve estar enquadrado em uma totalidade absoluta.

Porém na totalidade não há espaço para a completude, e este indivíduo jamais exercitará sua singularidade e sua unicidade uma vez que toda dimensão existencial autentica será vista é compreendida apenas de maneira parcial e, portanto, sofrerá a rejeição motivada pelo não reconhecimento das diferenças. É desta verdade, segundo Kierkegaard, que se deve dar testemunho.

Adorno percebe que a ação autentica, valorosa na existência, deve ser rejeitada como testemunho da verdade pois não depende da objetivação de seu tempo e sustenta-se sobre a diferença estabelecida por sua unicidade. Em uma perspectiva religiosa, o salmista nos lembra que a pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se pedra angular (Sl 122, 22), ou seja, a pedra que se diferenciava entre todas as outras e

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por isto foi rejeitada, é testemunha da construção do comum, onde todas as outras são idênticas sem, entretanto, serem capazes de sustentar a partir do alto – pois a pedra angular é normalmente utilizada na construção de arcos e abóbadas – toda a estrutura condicionada do comum.

Kierkegaard sustenta o testemunho de sua obra sem excluir-se do processo social, político e cultural de seu tempo. O Indivíduo kierkegaardiano não está alheio à história mas se diferencia em sustentar, na historicidade, a decisão de pertencer a ela, enquanto ação exemplar que, unicamente padece a rejeição dos que aceitam o sucesso como objetivo último. O triunfo de Kierkegaard, então, deve-se à ação comunicativa de sua linguagem e não à forma de seu discurso, ou a estrutura elaborada de seus argumentos, pois seu reconhecimento é indiferente às determinações políticas de sua época e sua apropriação histórica rejeita o comum para tornar-se decisivo.

Referências

ADORNO, T. W. Kierkegaard: construção do estético. São Paulo: UNESP, 2010

ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os pensadores).

KIERKEGAARD, S. A. Diário íntimo.

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______. Concluding Unscientific Post- Script to Philosophical Fragments I/II.

New Jersey: Princeton University Press, 1992

______. Migalhas filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus.

Petrópolis: Vozes, 2008.

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ROUSSEAU, J.J. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os pensadores).

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