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Rev. Bras. Psiquiatr. vol.23 número4

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Academic year: 2018

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175 Rev Bras Psiquiatr 2001;23(4):175

Como definir o “espírito do momento” nos Estados Unidos? O horror indignado e sofrido das primeiras semanas foi substi-tuído por outro sentimento generalizado, que me interessa com-preender. Estresse, ansiedade, pânico: são algumas das pala-vras que têm aparecido na mídia local. Na cobertura da im-prensa brasileira, além desses termos, encontrei paranóia, his-teria e doença sociogênica.

Estresse constitui uma noção confusa, pouco específica e inadequada para o entendimento desse fenômeno de massa. A pátria da competitividade orgulha-se de cultivar e de gerenciar estresses crônicos como fator de progresso. Paranóia e histeria referem-se a conceitos da psicopatologia clássica, demasiada-mente específicos e valiosos para ser desperdiçados em sua acepção do senso comum. E, com certeza, não há pânico social. Falta caos para tanto. De fato impressiona o esforço que esse país faz para normalizar a vida. Mesmo a corrida às farmácias (até atravessando fronteiras) para armazenar medicamentos e a enorme freqüência de falsos alarmes provocados por pós com cores suspeitas e pela presença de pessoas têm acontecido de modo organizado, sem pandemônios.

Do ponto de vista epidemiológico, síndrome sociogênica cole-tiva é o mais interessante desses conceitos. Há diversos relatos de sintomatologia de massa compartilhada por estudantes e gru-pos profissionais nas principais cidades norte-americanas. Um número ainda não mensurado de pessoas, principalmente jo-vens e mulheres, tem apresentado um quadro neurológico inca-pacitante, aparentemente contagioso, porém benigno. No que pese o arsenal clínico e laboratorial utilizado, nenhum microor-ganismo ou causa ambiental tem sido imputado como responsá-vel pelos sintomas. Pode ser interessante examinar o registro histórico de surtos epidêmicos dessa natureza.

No ano de 1918, ocorreu uma epidemia desse tipo na Bahia, cujos principais sintomas eram perda de visão e uma fraqueza muscular aguda, provocando quedas súbitas. A Gazeta Médica da Bahia, na época uma das principais publicações científicas do país, relatou em detalhe a semiologia da doença, parecida com os casos observados nos EUA. Porém, o que impressiona é o grau de semelhança dos respectivos contextos. Em 1918, o Bra-sil acabara de entrar na Primeira Guerra Mundial. O porto de Salvador pela primeira vez recebia navios de guerra aliados; a cidade estava repleta de soldados e marinheiros; as famílias lo-cais se preparavam para enviar seus filhos para uma guerra dis-tante. Para completar o quadro, uma epidemia de gripe espanho-la grassava em todo o país (onde acabaria causando mais de 300 mil mortes), ameaçando principalmente cidades portuárias como Salvador. O povo soteropolitano batizou sua estranha síndrome sociogênica coletiva de caruara. O episódio deixou uma “cica-triz lingüística”: ainda hoje, em nosso dialeto baiano, caruara

Editorial

Ansiedade antraz

quer dizer incômoda fraqueza nas pernas, que ocorre nos mo-mentos mais tensos da vida, principal sintoma de um medo atroz. Em Cuba, início da década de 90, fim da Guerra Fria (e, apesar disso, manutenção do infame bloqueio diplomático e comercial imposto pelos Estados Unidos), 50 mil pessoas foram acometidas de um quadro neurológico altamente incapacitante, com sinto-mas agudos de fadiga e perda da acuidade visual. Nenhuma lesão ou microorganismo foi identificado, porém a maioria dos casos experimentou recuperação em poucos meses. Sem muita compro-vação, atribuiu-se a misteriosa neuropatia epidêmica à carência nutricional generalizada dos primeiros meses de racionamento, que se seguiram à súbita retirada dos subsídios soviéticos e ao bloqueio total da ilha. Porém, há algo mais nessa história. Na época, Cuba experimentava uma severa epidemia de dengue, com numerosos casos da forma hemorrágica e muitas mortes. A despei-to de se tratar de um território isolado geográfica e politicamente, a epidemia havia eclodido simultaneamente em pontos distantes da ilha. Epidemiologistas cubanos e outros latino-americanos consideraram esse padrão incompatível com epidemias naturais, lançando-se a suspeita de guerra bacteriológica.

Não obstante as ironias históricas, algo se passa, reprime-se e se constrói nos “corações e mentes” deste povo. (É de propósito que uso tal expressão, emprestada de um glossário ainda atual na língua nativa, mera evocação da Guerra do Vietnã). Creio que uma síndrome sociogênica coletiva está se instalando. As pes-soas temem por tudo e por todos, parentes e pespes-soas queridas, tempos e eventos, lugares que deixaram de freqüentar, hábitos perdidos ou suprimidos. Evidentemente, há uma base factual para tal sentimento, desencadeada pelos atos terroristas de se-tembro e pela contaminação do antraz, reforçada por uma pro-funda penetração midiática no cotidiano de todos. Percebo um medo geral, denso e difuso, crônico e contagioso. Um imenso medo contido. Porém um imperativo cívico responde à pátria ameaçada, resguardando laços sociais, e reprimindo, ao máxi-mo, o sentimento de pânico. Foi assim na Bahia em 1918 e em Cuba em 1992-1993. É curioso que, como pano de fundo das três situações, ocorrem epidemias de agentes biológicos.

Como todos, procuro respostas, fico ainda mais atento. Nova-mente é a televisão, esse excepcional veículo de acesso a um imaginário fragmentado, que me serve de oráculo: uma emissora intitula um bloco do seu noticiário como Anthrax anxiety. Tradu-ção para o nosso idioma: Ansiedade antraz. Encontro nesse jogo de palavras um nome para o sentimento que percebo: os america-nos padecem de ansiedade atroz. Ou, em bom baianês, caruara.

Naomar de Almeida Filho

Referências

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