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45º Encontro Anual da Anpocs. GT06 - Ciências sociais e educação

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Academic year: 2022

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45º Encontro Anual da Anpocs

GT06 - Ciências sociais e educação

Título do Trabalho: Racismo religioso em escolas públicas: uma análise antropológica sobre casos de discriminação escolar

BÓRIS MAIA

Professor Substituto – Dpto. De Antropologia

Universidade Federal Fluminense

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Introdução

Neste artigo propomos uma leitura racializada das disputas que vêm ocorrendo no campo religioso brasileiro e que afetam o cotidiano de escolas públicas por conta de situações de discriminação envolvendo estudantes e profissionais da educação. A abordagem é racializada porque parte-se do pressuposto de que os conflitos entre adeptos de religiões pentecostais e de religiões de matrizes afro-brasileiras, identificados na sociedade brasileira e nas escolas em particular, são parte de um processo social estrutural que explicita como o racismo se manifesta no campo religioso a partir da subalternização das religiões afro-brasileiras.

Para qualificar os casos de discriminação étnico-racial-religiosa em escolas públicas partimos da ideia de racismo religioso, o qual é entendido como o resultado de manifestações de desconsideração do direito ao livre culto e crença nas religiões de matrizes africanas, assim como do direito à preservação da cultura afro-brasileira (MIRANDA ET AL., 2021). O racismo religioso refere-se a uma modalidade de discriminação sofrida em virtude da intersecção entre pertencimento étnico-racial e religiões de populações historicamente marginalizadas no Brasil. O termo surgiu por conta do agravamento dos conflitos envolvendo os afrorreligiosos, nas últimas duas décadas no Brasil, buscando ressaltar a dimensão política e violenta da vitimização sofrida por esses atores, fenômeno que até então vinha sendo chamado de “intolerância religiosa”

(MIRANDA; CORREA, 2015; MIRANDA, 2020). Portanto, o racismo religioso envolve simultaneamente a violação de direitos civis e de direitos humanos, especialmente quando tratamos de casos, como será feito neste trabalho, que lidam com violações do direito de crianças e adolescentes, à vida e à integridade física.

A interseccionalidade tem sido mais estudada a partir de eixos de subordinação social baseados no gênero, na raça e na classe social (CRENSHAW, 1989; 1991;

COLLINS; CHEPP, 2013; CARASTATHIS, 2016). No Brasil, diferentemente do contexto norte-americano em que o conceito de interseccionalidade se desenvolveu, as minorias raciais são caracterizadas também por uma especificidade com relação à sua identidade religiosa. Nos Estados Unidos, brancos e negros são devotos majoritariamente de religiões cristãs, especialmente do protestantismo e, em menor grau, do catolicismo. Já no Brasil, a maioria da população é cristã (católica e protestante), mas existem diversas religiões de matrizes africanas – sendo mais conhecidas publicamente, no Rio de Janeiro, o Candomblé e a Umbanda. O modo como essas religiosidades se expressam no espaço público tornam

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a religião um eixo de subordinação social relevante, especialmente quando associado às minorias étnico-raciais.

Entre os estudos antropológicos sobre educação, muitos já demonstraram como a experiência escolar de crianças e jovens é fortemente marcada pela intersecção entre seus pertencimentos identitários, como raça, gênero, etnia, origem nacional e classe (DEI ET AL., 1997; DEYHLE, 2009; FORDHAM, 1993; KEDDIE, 2010; VILLENAS ET AL., 2006). Esses estudos têm mostrado sistematicamente como o fracasso e o sucesso escolar de grupos minoritários estão diretamente relacionados a processos de exclusão e discriminação institucionais e estruturais, isto é, como as práticas escolares e as relações sociais no âmbito mais abrangente da sociedade são permeadas por comportamentos, discursos e dispositivos discriminatórios que afetam o desempenho acadêmico de estudantes pertencentes a grupos marginalizados.

Poucos estudos, no entanto, têm tomado a religião como um eixo definidor das relações sociais de subordinação interseccional no âmbito da escola. Uma notável exceção são os estudos sobre a experiência de escolarização de imigrantes muçulmanos em contextos ocidentais. Através de uma análise etnográfica, Zine (2001) mostra como o sistema escolar canadense pressiona os estudantes muçulmanos a conformarem seu estilo de vida aos padrões da cultura dominante local, apesar da resistência que os jovens manifestam. Essa tentativa institucional de conformidade cultural envolve práticas discriminatórias que envolvem diferenças identitárias relacionadas a fatores raciais, de gênero e religiosos. Em trabalho sobre educadoras engajadas em práticas pedagógicas de empoderamento de minorias em escolas inglesas, Keddie (2010) argumenta que os padrões de exclusão e discriminação que caracterizam a experiência de meninas muçulmanas estão relacionados a uma racialização da imigração mais geral que permeia a sociedade britânica.

De modo similar, Azim e Happel-Parkins (2019) analisam as experiências de mulheres estudantes sauditas nos Estados Unidos, mostrando como elas sofrem microagressões individuais e institucionalizadas em função de suas identidades interseccionadas baseadas no gênero, na religião e na nacionalidade. Todos esses trabalhos dão destaque à identidade religiosa na intersecção com outras diferenças sociais que são tomadas como base para práticas mais nuançadas, sutis e dissimuladas de discriminação que envolvem o sistema educacional.

Neste artigo, porém, vamos tratar de casos de discriminação mais explícitos e diretos que envolvem a identidade religiosa de atores em escolas públicas no Estado do

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Rio de Janeiro. O primeiro caso trata de um estudante que sofreu discriminação religiosa na sala de aula por sua professora depois de ir à escola trajando um adereço típico das tradições religiosas afro-brasileiras, o que é legalmente permitido. O segundo caso ocorreu com uma professora de Língua Portuguesa de uma escola pública que, após começar a introduzir em suas aulas conteúdos sobre cultura afro-brasileira e africana, em conformidade com a política educacional vigente, foi afastada do colégio devido a uma série de conflitos com a direção da escola, os pais e os alunos.

O foco em situações de discriminação que envolvem práticas mais agressivas e violentas não tem a ver com uma visão pessimista sobre as relações raciais e religiosas no Brasil, mas com o pressuposto de que tais fenômenos permitem desvelar as relações entre sistemas de poder inter-relacionados e novas possibilidades de resistência política por parte dos grupos subalternizados (COLLINS, 2017).

Além disso, a constatação de que a violência escolar repercute negativamente no processo de ensino-aprendizagem desperta a necessidade de se compreender de forma qualitativa de que maneiras os conflitos se manifestam e são administrados nas escolas (MAIA; VERÍSSIMO; FILPO; 2019), e também como o tema pode ser desenvolvido junto aos professores, equipe pedagógica e alunos, a fim de que seja possível desenvolver políticas públicas que possibilitem a construção de um ambiente escolar mais democrático e includente. A relevância da temática também pode ser demonstrada pelo fato de os conflitos escolares estarem transbordando os muros da escola, envolvendo outras instituições estatais chamadas a intervir, como a Guarda Municipal, a Polícia Militar e o Conselho Tutelar, como bem ressaltaram Aguinnsky et al. (2014).

Os dados sobre os casos que vamos analisar foram obtidos a partir de uma pesquisa multissituada sobre o crescimento da discriminação religiosa no Brasil, em especial nas últimas duas décadas. O trabalho de campo, que se estendeu entre 2009-2013, foi realizado em diferentes locais para acompanhamento de denúncias de discriminação étnica-racial- religiosa: na sede e nos eventos promovidos por uma organização da sociedade civil chamada Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), em delegacias de polícia e em tribunais. Posteriormente escolhemos também uma escola pública para fazer trabalho de campo, pois começamos a ter acesso a casos de conflitos surgidos em salas de aula envolvendo a religião de professores ou de estudantes. Dois desses casos tiveram grande repercussão na imprensa local, sendo também divulgados e acompanhados pela CCIR. São os dois casos que analisaremos adiante.

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Antes de descrever os casos, vamos fornecer o background educacional, racial e religioso que permite entender a natureza das discriminações contra afrorreligiosos, que têm sido registradas em escolas públicas nas últimas duas décadas no Brasil. Isso porque adotamos uma abordagem etnográfica que não se limita a pensar a escolarização apenas a partir de aspectos organizacionais da escola, limitando a análise aos constrangimentos institucionais que afetam as interações entre os atores da escola. Consideramos, diferentemente, que a escola não pode ser tomada como uma unidade fechada em si mesma, mas sim como uma instituição atravessada pelas disputas e discursos da sociedade na qual está inserida. Como Ogbu (1981) argumentou, a etnografia escolar deve considerar os processos sociais que vão além da sala de aula e da escola – o que chamou de uma abordagem multinível, de modo que a análise possa incluir os elementos estruturais e históricos, como o racismo e o sexismo, que condicionam as interações escolares. Desse modo, buscaremos mostrar que as experiências escolares de discriminação, dentre tantos outros casos que temos notícia, são resultado de processos sociais envolvendo discursos e práticas antagônicas sobre raça, gênero e religião, que estão se desenrolando paralelamente na sociedade brasileira e que incidem no campo educacional de modo particularmente intenso.

Racismo, religião e educação no Brasil

Nas últimas três décadas, assim como ocorreu na maioria dos países da América Latina, o sistema educacional brasileiro tem sido gradualmente modificado por políticas de inspiração multicultural. As políticas educacionais multiculturais têm no seu cerne a valorização da diversidade cultural, incluindo temáticas no currículo escolar que contemplem ainda questões como a justiça social, direitos humanos, equidade e igualdade de oportunidades, em geral pensadas a partir do prisma da relação das minorias com grupos sociais e culturais estabelecidos de um determinado contexto nacional. Desde o final da década de 1990, a diversidade e a diferença têm se transformado de modo mais consistente em princípios das políticas educacionais no Brasil. A lei federal que define e organiza a educação brasileira, aprovada em 1996, delimitando as obrigações dos poderes central, estadual e municipal na esfera educacional, estabelece que os currículos escolares precisam contemplar “as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro” (BRASIL, 1996). Já em 1997, a “pluralidade cultural” foi incluída nas diretrizes

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elaboradas pelo governo federal para auxiliar os professores e administradores escolares a desenvolverem as atividades e os conteúdos curriculares em sua prática cotidiana.

Com relação à temática étnico-racial, as políticas educacionais orientadas nessa direção começaram a ganhar força a partir da década de 2000. O Brasil foi um dos países participantes da Conferência de Durban, em 2001, na qual o governo brasileiro firmou o compromisso de combater o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e intolerâncias correlatas. A educação foi considerada a via prioritária para a implementação de políticas públicas de ação afirmativa e de enfrentamento do racismo no país. Um marco nesse sentido foi a aprovação em 2003 de uma lei federal (Lei 10.639/03) que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio1. A introdução de conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira foi pensada como uma estratégia pedagógica de valorização da cultura afro- brasileira, o que poderia propiciar a elevação da autoestima de estudantes negros. Outra dimensão que se pretendia alcançar era o enfrentamento de relações raciais assimétricas no espaço escolar e fora dele.

Essas políticas educacionais de inspiração multicultural abriram um novo campo de disputas na educação brasileira. Caputo (2015) defendeu que o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana tinha o potencial de reduzir a crescente intolerância religiosa no país. Argumentando pela necessidade de políticas reparadoras no âmbito da educação para o combate à discriminação religiosa, Boaz (2010) chegou a sugerir que o Brasil foi o país ocidental que mais obteve progresso para as religiões de origem africana.

No entanto, embora muitos avanços tenham sido alcançados, tem ficado cada vez mais evidente que os efeitos não foram os esperados. No geral, a temática étnico-racial ficou mais reservada à realização de celebrações em datas especificas (maio por conta do fim oficial da escravidão no Brasil e novembro por ser o mês da consciência negra no país).

Embora não seja voltada para a discussão de temáticas religiosas, os conteúdos envolvendo a implementação da lei tem privilegiado à dimensão religiosa (PEREIRA, 2010), e quando envolvem a exposição de elementos simbólicos e históricos das tradições religiosas afro- brasileiras costumam gerar tensões no ambiente escolar. Nesse sentido, a presença cada

1 Essa lei foi posteriormente alterada por outra (Lei 11.465/08) que incluiu também como obrigatório o ensino de história e cultura indígena. As duas legislações foram resultado de uma articulação entre diversos setores da sociedade brasileira – meio universitário, movimentos sociais negros e indígenas e profissionais da educação.

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vez maior de atores evangélicos nas escolas - estudantes, professores e equipe técnico- pedagógica – tem ocasionado uma forte resistência à realização de atividades pedagógicas vinculadas à cultura negra, como debates sobre religiões afro-brasileiras e oficinas de capoeira2.

Mas esses conflitos não estão restritos às escolas. Quando se trata de assumir uma identidade religiosa em público, é comum que mesmo pessoas brancas ou negros de pele mais clara sejam alvos de discriminação caso estejam portando símbolos associados às tradições religiosas afro-brasileiras, como o uso de vestimentas brancas às sextas-feiras.

Além disso, são vários os relatos de que em muitas favelas e bairros periféricos, grupos criminosos que exercem domínio armado (MIRANDA; MUNIZ, 2018) sobre esses territórios têm proibido a prática dos cultos de religiões afro-brasileiras, uma vez que os traficantes se convertem a religiões evangélicas (pentecostais ou neopentecostais) e fazem acordos com igrejas locais para se beneficiarem mutuamente através da prática da lavagem de dinheiro (ALMEIDA, 2019). Em muitos casos, os templos sofrem depredações; em outros, os religiosos são obrigados a se mudar da região sob ameaças de represálias caso permaneçam morando na localidade. Proíbe-se o uso de roupas brancas e de qualquer traço cultural associado às tradições afro-brasileiras.

Nesse contexto, o questionamento de Gomes (2005) sobre como é possível construir uma identidade negra positivada é um desafio, já que a sociedade brasileira historicamente ensinou aos negros que para ser aceito socialmente é preciso negar sua própria identidade, inclusive na escola. A complexa relação entre racismo e discriminação, no caso brasileiro, faz com que qualquer expressão cultural percebida como de origem negra é passível de ser considerada inferior e maléfica (BENTES, 1993), como os casos em escolas públicas que vamos analisar a seguir também mostram.

“Filho do diabo”: o caso Felipe

O caso de Felipe, um jovem negro adepto do Candomblé, é emblemático por revelar uma situação cotidiana na qual o racismo religioso se expressa de forma naturalizada nas escolas públicas brasileiras. Esse caso foi incluído em relatórios entregue pela Comissão

2 A capoeira é uma prática cultural que mistura arte marcial, dança e música, e que foi perseguida pelo Estado brasileiro até 1937. Durante as reformas da educação pública nos anos 1930-40, a capoeira passa a ser ensinada nas escolas como parte das atividades de educação física. Na década de 1990 passa a ser valorizada e reconhecida como prática cultural afro-brasileira (OLIVEIRA; LEAL, 2009).

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de Combate à Intolerância Religiosa a organizações para fazer pressão em busca de soluções3, como uma situação de vitimização por intolerância religiosa por parte de sua professora de português. A opção por tomá-lo como foco de análise neste artigo está relacionada a tantos outros casos de discriminação sofridos por crianças e jovens integrantes de religiões afro-brasileiras. O episódio aqui narrado foi reconstruído a partir de informações sobre o caso extraídas de documentos da escola pública em que o jovem estudava, da polícia, do Ministério Público, além de entrevistas e conversas informais com a advogada e com a mãe de Felipe.

Na época do acontecimento, Felipe estava com 14 anos de idade e cursava o 6º ano do ensino fundamental numa escola da cidade do Rio de Janeiro. O estudante estava na sala de aula fazendo um trabalho escolar de outra disciplina quando a professora de português entrou. Felipe estava usando no pescoço um fio de contas, colar típico dos afrorreligiosos. O fio de contas é parte da indumentária religiosa. Sua confecção e uso são parte do ritual de iniciação dos noviços na religião, que passam a ser unidos e protegidos pelos orixás. Os colares identificam ainda a ascensão na hierarquia do candomblé a partir das cores, tipos, materiais utilizados, quantidade de fios e modos de uso. Felipe conversava com outros colegas de turma sobre a personagem sacerdotisa do candomblé de uma popular novela brasileira que era transmitida diariamente no mais importante canal de televisão do país. Após ver a cena, a professora, que era evangélica, teria destruído o trabalho escolar de Felipe, chamando-o de “filho do diabo”.

Por solicitação da mãe de Felipe, a escola trocou o estudante de turma, pois a professora continuou a constranger o estudante para que ele não assistisse mais às suas aulas após o episódio narrado. Ainda assim, Felipe foi reprovado, tendo que cursar novamente as mesmas disciplinas no ano letivo seguinte. A mãe de Felipe contou que, na verdade, a professora já vinha desde o início do ano letivo perseguindo o estudante, expulsando-o da sala de aula algumas vezes sob a justificativa de que não poderia assistir às aulas usando o fio de contas no pescoço. Também não teria sido a primeira vez que chamou o menino de “filho do capeta”, dizendo ainda aos demais alunos presentes na sala

3 O relatório de casos assistidos pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa foi entregue a Organização das Nações Unidas em 2009. No mesmo ano, foi apresentado em um dossiê de denúncia organizado pelo órgão estadual que fiscaliza a observância dos direitos de crianças e adolescentes no Rio de Janeiro, abordando a questão das crianças vítimas de intolerância na escola. Participamos da realização das duas atividades.

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de aula que “macumba é engano”. Um colega de turma de Felipe contou que a professora, depois de expulsar o menino da sala de aula, orientou os demais estudantes a não se misturarem com Felipe, pois ele era “bicha” e “macumbeiro”. Ela justificou a homossexualidade de Felipe para a turma pelo fato de o jovem usar brincos. A professora chegou a falar com outras mães de estudantes para que seus filhos não convivessem com Felipe, pois se permitissem tal convivência as crianças “iriam se dar muito mal”. Uma semana depois do ataque da professora a Felipe, a professora conversou com a turma sobre o episódio e pediu que Felipe pedisse desculpas a ela. Felipe se recusou e então foi expulso da sala novamente e encaminhado para conversar com a diretora. Alguns estudantes da turma de Felipe relataram que a professora os obrigou a assinar um abaixo-assinado em apoio a ela sob pena de represálias a quem não concordasse em assinar.

A mãe de Felipe registrou o caso na delegacia de polícia e procurou o Conselho Tutelar, órgão responsável por zelar pelos direitos de crianças e adolescentes no Brasil. O órgão forneceu atendimento psicológico ao estudante, que após o caso ocorrido com a professora de português acabou desenvolvendo um quadro clínico de depressão. A psicóloga que atendeu a Felipe relatou em um dos documentos analisados que ele disse ter pensado em se suicidar após os acontecimentos.

A professora de português e a diretora da escola foram chamadas para prestar esclarecimentos no Conselho Tutelar. A diretora explicou que, quando o caso foi relatado a ela pela mãe de Felipe, chamou a professora para uma reunião em que foram negadas as acusações de discriminação contra o estudante. A diretora e a professora levaram alguns documentos no Conselho Tutelar para tentar mostrar que Felipe era um aluno-problema, que tinha dificuldades de relacionamento com os colegas e possuía baixo desempenho escolar. Um dos documentos levados pela diretora referia-se a uma reunião com a mãe de Felipe seis anos antes, cujo assunto era “agressividade e sexualidade”. O documento dizia que Felipe agredia fisicamente os colegas quando era provocado e gostava de brincar de boneca e de fazer desenhos com temáticas femininas. Por conta desses comportamentos, o documento trazia a recomendação de encaminhar Felipe para uma avaliação psicológica.

Em 2009, ano seguinte ao episódio ter ocorrido com Felipe na escola, uma matéria sobre o caso foi publicada num jornal de grande circulação do Estado do Rio de Janeiro.

Com o título de “os herdeiros da intolerância”, a matéria denunciava as discriminações sofridas nas escolas por crianças iniciadas no candomblé. Até então, a direção da escola não havia tomado nenhuma providência em apoio à queixa de Felipe e de sua mãe, a não

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ser trocar o estudante de turma; tampouco havia reconhecido que Felipe sofreu discriminação por conta de sua religião. Devido à repercussão da matéria, que ganhou prêmios nacionais e internacionais de associações de jornalistas, a escola emitiu um comunicado pedindo desculpas à Felipe pelo que ocorreu.

Helena, Exu e a “guerra santa”

Helena, uma mulher branca, de olhos verdes, e adepta da Umbanda, era uma professora de Língua Portuguesa com 49 anos, que trabalhava há oito anos numa escola pública de Macaé, uma cidade no nordeste do Estado do Rio de Janeiro. A comunidade escolar era em sua maioria evangélica (neopentecostal), principalmente os estudantes e a equipe gestora. Mesmo deixando público que era umbandista, Helena se relacionava bem com toda a comunidade escolar, e nunca tinha sofrido discriminação por conta de sua religião.

Helena começou a fazer um curso oferecido pela prefeitura da cidade com vistas à formação dos professores em conteúdos sobre questões étnico-raciais, mais especificamente sobre “história e cultura afro-brasileira e africana”, como previsto pela lei 10.639/03. Em suas aulas de literatura e gramática para alunos do ensino fundamental, com idade entre onze e quinze anos, já costumava tratar de temáticas relativas a minorias étnico- raciais, mas até então privilegiava conteúdos sobre os povos indígenas brasileiros. Como estava gostando muito do curso de formação sobre questões étnico-raciais, começou a planejar formas de introduzir em suas aulas pontos sobre a cultura e a história do povo negro. Foi então que seus problemas na escola começaram.

Helena foi até a biblioteca da escola e encontrou um de seus alunos lendo o livro Lendas de Exu. O menino contou à professora sobre o conteúdo do livro e sugeriu a ela que o utilizasse em suas aulas. Helena se interessou pela obra e levou um exemplar para analisar se o conteúdo era pertinente para suas aulas. O livro é uma reunião de lendas sobre Exu, uma das muitas divindades – chamadas de orixás – cultuadas na tradição religiosa afro-brasileira. Na introdução do livro, o autor deixa claro que a obra serve como material didático voltado à implementação da lei sobre história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, sendo publicado dois anos após a promulgação da referida lei. No Brasil, existe um programa do governo federal de compra para as bibliotecas de escolas públicas de livros voltados a auxiliar os professores na preparação de suas aulas. O livro Lendas de Exu foi um dos livros selecionados pelos especialistas em educação do governo federal

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para ser adquirido e doado às bibliotecas escolares em todo o país, pois seu conteúdo foi considerado apropriado para discutir questões étnico-raciais com crianças e adolescentes.

Essa é a razão pela qual o livro compunha o acervo da biblioteca da escola em que Maria Cristina trabalhava.

Quando começou a usar o livro em sala de aula, Helena disse que os estudantes não conheciam Exu; alguns mencionaram já ter ouvido falar sobre ele, mas não sabiam de seu significado como uma deidade central na tradição religiosa afro-brasileira. Ao tratar do personagem durante suas aulas, a professora explicou que um dos seus objetivos era

“desconstruir uma possível imagem negativa de Exu” junto aos alunos. Isso porque, no contexto brasileiro, Exu é comumente associado no imaginário cristão à figura de Satanás, a uma criatura divina com poderes maléficos (SHIREY, 2009). A professora fez uma atividade em sala em que os estudantes faziam desenhos sobre os personagens do livro e depois iam para a frente da sala e explicavam para os demais colegas a que conteúdo do livro os desenhos se referiam. Helena ficou satisfeita com o resultado, chegando a tirar fotos dos trabalhos e das apresentações dos estudantes. A professora considerava importante que os estudantes se interessassem pelos elementos culturais do povo negro e os percebessem como algo positivo. Ela contou orgulhosa que em uma de suas aulas explicou sobre os cabelos black power, um penteado que valorizava a identidade e a beleza dos negros. Uma das alunas teria na aula seguinte aparecido com o cabelo no estilo black power, exibindo seu novo penteado à professora e aos colegas de classe.

Dois meses depois de ter começado a trabalhar com o livro Lendas de Exu na escola, começaram os conflitos. Os problemas se iniciaram no momento em que foram passados trabalhos de casa para os alunos sobre o livro. Os pais dos estudantes procuraram a direção da escola com diversas reclamações quanto ao conteúdo transmitido por Helena.

O principal argumento da reclamação dos pais foi sobre a temática religiosa, que na opinião deles, não poderia ser tratada na escola. A diretora e o vice-diretor, ambos evangélicos, começaram a pressionar Helena para que não usasse mais o livro com os estudantes, concordando com os pais de que não deveria falar sobre questões religiosas durante as aulas de literatura. A professora procurou a CCIR para denunciar o que estava ocorrendo na escola, que considerava ser um preconceito contra as religiões afro-brasileiras.

A CCIR organizava alguns eventos públicos para dar visibilidade aos casos de discriminação religiosa que eram denunciados e enviavam releases a jornalistas contando alguns desses casos, inclusive o de Helena. Isso fez com que o caso da professora fosse

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noticiado em um jornal popular do Estado do Rio de Janeiro. Segundo Helena, isso desencadeou o que definiu como sendo uma “guerra santa” na escola. A diretora afixou no mural da sala dos professores um provérbio bíblico que dizia:

Estas seis coisas aborrecem o senhor e a sétima sua alma abomina: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que máquina pensamentos viciosos, pés que se apressam a correr para o mal, testemunhas falsas que proferem mentiras, e o que semeia contendas entre irmãos.

(Provérbios 6: 16-19).

As palavras destacadas foram grifadas no papel pela diretora. Helena queixou-se do constrangimento de conviver diariamente na sala dos professores com o provérbio deixado pela diretora como retaliação à veiculação de seu caso na imprensa. Segundo ela, durante as reuniões de professores, a diretora começou a cobrar relatórios das atividades de suas atividades como professora de anos letivos anteriores. A Secretaria de Educação do município convocou Helena para uma reunião após denúncia da diretora de que a professora estivesse fazendo proselitismo religioso em suas aulas contra a vontade dos estudantes e de seus pais, que eram evangélicos. Em função das ações de divulgação da CCIR, nas semanas posteriores o caso foi noticiado novamente pela imprensa, agora no maior jornal impresso de circulação do Rio de Janeiro – com o título “Exu não pode?” – e em programas de dois canais de televisão, um dos quais anunciou o caso como “guerra santa numa escola municipal”.

As novas reportagens sobre o caso fizeram com que o conflito se acirrasse ainda mais. A diretora passou um abaixo-assinado que previa o afastamento de Helena da escola para os alunos assinarem. No Brasil, os professores de escolas públicas não podem ser demitidos, apenas quando sofrem um processo administrativo, o que é muito raro de acontecer. Portanto, nem a diretora e nem o secretário de educação local tinham o poder de demitir Helena, mas apenas de transferi-la de unidade escolar. Após a ampla divulgação do caso pela imprensa, a procuradoria da cidade começou uma investigação, ouvindo a equipe gestora e os professores da escola. Os professores e a equipe gestora depuseram contra Helena, o que, segundo ela, fez com que se sentisse abandonada por todos na escola.

Alguns dias depois, a professora foi chamada para uma reunião com a subprefeita da cidade e acabou sendo afastada da escola. Apesar de ficar sem trabalhar, ela continuava recebendo seu salário. Nesse período fizemos uma entrevista com Helena, que se mostrava humilhada com o que estava acontecendo:

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Por que é que eu estou fora de sala de aula? O que é que eu fiz? Será que eu matei alguém? Poxa vida, eu fiz um concurso público e eu estou aplicando uma lei! E tenho que ficar fora de sala de aula? O que é isso?! O que é isso?! Tem alguma coisa errada!

A professora foi autorizada a voltar à escola meses depois, sem qualquer retratação por parte da escola ou da secretaria de educação, mas não aceitou. Para evitar que o caso gerasse mais repercussão, a secretaria municipal de educação criou um núcleo de estudos sobre diversidade étnico-racial em que Helena foi alocada.

Discriminações, silenciamentos e identidades marginais

Ser uma criança negra, de classe baixa e adepta de religiões afro-brasileiras no Brasil é, entre outras tantas coisas definidoras da identidade, estar subordinada a um padrão de opressões estruturais e institucionais. O caso de Felipe revela como a intersecção dessas identidades no Brasil contemporâneo pode resultar em experiências escolares de crianças e adolescentes marcadas por agressões e traumas. Já o caso de Helena é particularmente importante por mostrar uma discriminação sofrida contra uma professora, situação que é pouco descrita nas discussões sobre os processos de exclusão escolar, as quais privilegiam em grande medida os casos em que estudantes aparecem como agentes sujeitos a diferentes tipos de opressão.

Ambos os casos envolvem agressões e violências que podem ser qualificadas como atos de racismo religioso, uma vez que são motivadas por uma discriminação que intersecciona raça e religião dos sujeitos envolvidos como vítimas e agressores.

Diferentemente da ideia de intolerância religiosa, a categoria de racismo religioso coloca em relevo mais diretamente o componente racial que fundamenta os atos de discriminação envolvendo a religião de certos grupos sociais, destacando a violência desses atos. Ao fazer isso, recusa-se a explicar os casos de conflitos religiosos apenas como resultado de diferenças objetivas doutrinárias e/ou rituais de tradições religiosas que entram em choque, mas localiza o conflito numa prévia percepção social dos sujeitos que é informada por uma leitura racial dessas tradições religiosas. Essa leitura, por sua vez, carrega o peso de experiências históricas de marginalização social motivadas por discriminações raciais às quais foram submetidos determinados segmentos da sociedade.

Os casos de racismo religioso analisados colocam em evidência as pressões sociais que grupos minoritários sofrem por assimilação cultural em ambientes escolares, um tema

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amplamente discutido nos estudos antropológicos sobre educação. Fordham e Ogbu (1986) cunharam de “acting White” as estratégias de encobrimento da negritude que estudantes negros utilizavam na escola para se adequarem ao comportamento padrão de alunos que alcançam o sucesso escolar. O encobrimento da identidade religiosa entre devotos das religiões afro-brasileiras também tem sido identificado em escolas públicas urbanas.

Analisando o processo de discriminação sofrido por crianças do Candomblé no espaço escolar, Stela Caputo (2012) mostrou que muitas delas ocultavam sua real identidade religiosa e diziam ser católicas para evitar maiores conflitos, situação que também foi encontrada em Portugal por Correa (2021).

Tanto Felipe quanto Helena sofreram pressões para que ocultassem seu pertencimento religioso e se conformassem à cultura dominante da escola. Felipe foi expulso da sala de aula diversas vezes e insultado verbalmente por expressar na escola sua religião através de seu colar (fio de contas). Helena foi afastada de sua posição de professora por falar durante suas aulas sobre as religiões afro-brasileiras, o que é previsto no currículo das escolas brasileiras. Ambos experimentaram sentimentos de humilhação motivados por racismo religioso. Mesmo assim, eles não cederam às pressões e buscaram auxílio para levarem adiante o direito de expressarem suas identidades subordinadas. Eles se recusaram ao fardo de “agirem como cristãos” (acting Christian) em troca da aceitação dos demais atores no ambiente escolar. Galman (2013) encontrou resistências similares analisando experiências femininas de conversão ao Islã, em que mulheres escolhiam deliberadamente revelar seu “self marginalizado”, ao se vestirem publicamente como muçulmanas, mesmo tendo como consequência a perda de proteção social contra potenciais agressões motivadas por discriminações étnico-raciais.

A postura de Felipe e de Helena de revelarem suas identidades marginalizadas e discutirem temáticas étnico-raciais na sala de aula constitui um desafio para as estratégias por meio das quais as desigualdades são ignoradas e a branquitude, que no Brasil envolve a pertença a tradições religiosas cristãs, é legitimada na escola. A partir de uma etnografia sobre o papel que a raça desempenha no cotidiano de uma escola de ensino médio na Califórnia, Pollock (2009) mostrou a tendência dos professores e gestores de evitar falar sobre questões de raça na escola em ocasiões públicas. Ela argumenta que essa

“colormuteness”, fundada na supressão de rótulos e palavras raciais, mesmo quando motivada por receio de reproduzirem discursos discriminatórios, é uma prática racista e que evita o desconforto de alocar responsabilidades individuais sobre as desigualdades

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raciais. Acompanhando práticas e discursos de professores sobre educação multicultural, Castagno (2008) também enfatizou como o silêncio sobre questões raciais produz uma cultura escolar leniente com a perpetuação do racismo na sociedade americana. A autora faz uma distinção particularmente útil para nossa análise dos casos de racismo religioso entre silêncio e silenciamento. O silêncio sobre questões de raça deve ser diferenciado do silenciamento que os agentes escolares almejam ao censurarem qualquer expressão de

“falas sobre raça” (race talk).

As políticas educacionais de valorização da diversidade cultural implementadas nas últimas décadas no Brasil, associadas ao aumento dos evangélicos e de alianças entre elites políticas e religiosas em torno de agendas educacionais, fez com que o debate sobre questões étnico-raciais oscilasse entre silêncios e silenciamentos. Antes das políticas educacionais de inspiração multicultural, a escola brasileira abria muito pouco espaço para discussões sobre raça e etnicidade, havendo uma situação geral de silêncio sobre tais questões. Na atual conjuntura, porém, existe uma situação caracterizada por frequentes atos de silenciamento, isto é, processos ativos por parte de pessoas ou grupos com vistas a impedir que determinadas questões sejam discutidas no ambiente escolar. Felipe e Helena foram submetidos a atos de silenciamento em suas escolas, embora tenham resistido a eles.

Os atos de silenciamento nas salas de aula são o equivalente interacional do que Moeller (2020) chamou mais recentemente de política de apagamento curricular, que se refere à tentativa de grupos conservadores no Brasil de retirar do currículo escolar as discussões sobre raça, gênero e sexualidade.

Outro efeito da política de autoafirmação das identidades raciais e religiosas relacionadas ao povo negro foi que, se antes a ideologia da democracia racial e do embranquecimento fazia com que os estudantes raramente se identificassem como negros, assim como evitavam traços culturais (penteados, roupas, adereços, gêneros musicais) que remetessem de alguma forma à negritude, agora a assunção das identidades negras, que podem estar associadas, entre outros, a pertencimentos religiosos, artísticos e estéticos, permite à comunidade escolar distinguir mais claramente naquele contexto aqueles que são negros daqueles que não são, ou, ao menos, aqueles que querem expressar vínculos identitários com a negritude daqueles que se conformam em maior grau à cultura escolar hegemônica associada à branquitude.

Em contextos institucionais em que a direção e os professores da escola se mostram sensíveis às questões identitárias, a expressão de formas de identidade negra é vivida como

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uma experiência positiva (GUIMARÃES, 2017), alcançando os objetivos das políticas educacionais multiculturais de normalizar a presença dos negros e de sua cultura na vida pública brasileira, o que é considerado um passo na direção de uma sociedade antirracista.

Por outro lado, quando existe uma hegemonia evangélica na escola, situação cada vez mais comum, a expressão de identidades negras por parte de estudantes e professores tende a ter efeitos negativos para si próprios. Isso ocorre de modo muito evidente com os adeptos de religiões afro-brasileiras, que sofrem discriminações frequentes ao expressarem seu pertencimento religioso na escola.

Não se pretende argumentar aqui que as políticas educacionais de promoção da igualdade e da diversidade cultural são prejudiciais às minorias étnico-raciais. Todos os casos de racismo religioso que encontramos nas escolas parecem indicar a necessidade de que essas políticas sejam ainda mais desenvolvidas no contexto escolar brasileiro. Por outro lado, não pretendemos ter uma visão ingênua sobre como os discursos, princípios e valores que inspiram a legislação e a política educacional se traduzem nas práticas escolares, como se as últimas fossem um reflexo direto das primeiras. Como Shore e Wright (2003) argumentaram, o funcionamento das políticas públicas não pode ser visto como algo linear, de cima pra baixo, mas como processos complexos e frequentemente desordenados, o que pressupõe análises sobre como são recebidas e experimentadas pelo público para o qual são dirigidas e por meio do qual são efetuadas.

Considerações finais

O Brasil contemporâneo está diante de uma disputa pela hegemonia na produção de discursos e práticas discursivas educacionais que contemplem as identidades negras a partir de traços culturais que não sejam cristãos. Isso permite explicar parcialmente as situações de perseguição que estudantes e docentes vinculados às tradições religiosas afro- brasileiras experimentam no ambiente escolar. O pertencimento religioso cristão, ao se afirmar no espaço público, passa invariavelmente pela negação e demonização das práticas afro-brasileiras. Tais práticas têm significado uma mudança na forma de lidar com o racismo na sociedade brasileira. O que se vê não é mais um “racismo ambíguo” (GOMES 2005), no qual se nega a existência de discriminação racial, mas um racismo cada vez mais manifesto por conta do pertencimento religioso. Alguns grupos cristãos evangélicos- pentecostais pretendem impedir a manifestação de qualquer prática associada às matrizes africanas, o que resulta na emergência do racismo religioso (ALMEIDA, 2019).

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O racismo religioso hoje observado nas escolas urbanas é resultado da conjunção entre dois fenômenos mais estruturais que permeiam a sociedade brasileira e suas instituições, especialmente nas últimas duas décadas. Por um lado, o descobrimento de selfs marginalizados ligados a identidades negras, como a expressão de pertencimento às religiões afro-brasileiras, estimulada por políticas multiculturais. Por outro, as práticas de silenciamento de identidades marginalizadas levadas à cabo por grupos mais conservadores do chamado “populismo de direita” (ALVES ET AL., 2021), os quais vêm aumentando significativamente sua esfera de influência na vida pública brasileira.

Embora seja difícil sustentar que o fenômeno do racismo religioso nas escolas possa ser explicado exclusivamente por fatores intraescolares, uma vez que os casos de agressões de evangélicos neopentecostais contra afrorreligiosos na sociedade brasileira ocorrem em diversos ambientes, isso não torna os agentes escolares menos responsáveis pelos casos que ocorrem na instituição. Nesse sentido, ressaltamos a necessidade de descrever os mecanismos mediadores das práticas escolares que constroem regularmente as discriminações raciais (FOLEY, 1991). É por meio desses mecanismos que desigualdades da sociedade mais ampla são construídas em complexas interações e processos institucionais entre estudantes e profissionais da educação nas escolas.

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