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O Pantera Negra hollywoodiano: uma análise da trilha sonora (2018)

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uma análise da trilha sonora (2018)

resumo

Hollywood legitima discursos através da premiação do Oscar, e por isso investigar os vencedores nos diz muito acerca daquilo que se aceita, entende e defende no tempo presente. Estudar o atual vencedor de melhor trilha sonora, Pantera Negra (2018), assim, parece importante para compreender as dinâmicas acerca dos discursos sobre negritude e africanismo no tempo presente. Tomando as condições sociais de produção, bem como os usos sonoros propriamente ditos que opõem a música tradicional africana à cultura estadunidense do hip-hop, analisaremos aqui esse tratamento a partir da perspectiva das impressões de autenticidade de um lugar sonoro.

DANIEL DÓRIA P. CARRIJO

ufpr

palavras-chave

autenticidade lugarsonoro trilhasonora negritude

JORNADA INTERDISCIPLINAR DE SOM E MÚSICA NO AUDIOVISUAL, RIO DE JANEIRO, 4ª EDÃO, P.173-189, 2019.

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Recentemente a chamada “fase quatro” do Universo Cinematográfico Marvel (UCM), imaginário fantástico erigido ao longo de 22 filmes desde 2008, chegou à sua conclusão com Vingadores: Ultimato, que, no presente momento de escrita, alcança o segundo lugar enquanto maior bilheteria da história do cinema, perdendo apenas para Avatar (2009) de James Cameron. Representando não apenas um grande sucesso – e reviravolta – para a Marvel, tanto como estúdio quanto como editora de histórias em quadrinhos, quanto mesmo para o cinema, ao levar milhões de pessoas com regularidade para acompanhar essas narrativas de heróis, investindo seu dinheiro em salas de projeção 3-D numa época em que cada vez mais a cultura cinematográfica tende a se restringir experiência doméstica e o acesso se dá através de torrent e serviços de streaming, essa série de filmes de fato se tornou um fenômeno cultural de proporções imensas no século XXI. Dentre suas conquistas, destacamos aqui Pantera Negra (2018) que, para além de seu sucesso de público e bilheteria, ainda conquistou aclamação social por uma série de motivos associados aos debates raciais, trazendo um protagonista e a maioria de seu elenco de negros, chegou a ganhar três Oscars na edição desse ano (2019) por figurino, direção de arte e trilha sonora, e é aqui que começa nossa investigação. O que pôde ser notado através de uma observação atenta e minuciosa do filme é que a trilha sonora, ao contrário do que seria sugerido, em verdade não faz um elogio à cultura africana, tal como fora proposto. Além disso, existe uma confusão, pois, ao passo que a trilha é assinada por Ludwig Görrans-

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son, muito alarde se fez em relação à participação de Kendrick Lamar, artista da cena hip-hop estaduni- dense, que coordenou e produziu o álbum do filme.

Partindo dessas inquietações, o que propomos aqui é primeiramente compreender como essa trilha é tra- balhada e contrapô-la à repercussão e num segundo momento pensar a premiação do Oscar enquanto um lugar de legitimação de discursos, atuando sobre uma forma de discurso acerca da negritude que está em verdade muito mais associada aos debates nor- te-americanos do que à tradição e cultura africanas, propriamente ditas.

O FILME

Lançado em 15 de fevereiro de 2018, o filme conta a história de T’Challa (Chadwick Boseman), herói co- nhecido pelo codinome de Pantera Negra, que fora introduzido em Capitão América: Guerra Civil (2016).

Aqui, o mote da narrativa é, frente à sucessão do trono de Wakanda, um reino fictício ancestral, tec-

nologicamente utópico e escondido do mundo no coração do continente africano, numa região que pa- rece ser ao Norte do Lago Turkana, fronteiriço com o Quênia, Etiópia, Uganda e Sudão do Sul e levemen- te inspirado no pequeno reino de Lesoto, de acordo com a produção, o protagonista deve compreender e assumir sua função social, tanto como herói quan- to como rei, uma vez que o anterior, seu pai, fora assassinado no filme que o antecede. Após os ritos adequados T’Challa perde o trono para seu primo, Erik Kilmonger (Michael B. Jordan) e deve daí cum- prir o arco de redenção para retomar seu lugar de direito e reestabelecer a ordem. Em meio a isso, a trama nos traz questionamentos sociais e políticos acerca de temas como racismo, subdesenvolvimento, questões pós-colonialistas e problematizações geo- políticas acerca de isolacionismo e o problema dos refugiados. Em termos de relevância cultural, é uma obra de peso. Muitos elogios à cultura africana como um todo também foram perseguidos e aclamados – de forma um tanto equivocada, eventualmente.

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Algo que chama a atenção em relação à produção é que o diretor, Ryan Coogler, bem como o ator Michael B. Jordan e Ludwig Göransson, o responsável premiado pela trilha sonora, trabalharam juntos em Creed (2015), a recente continuação da série Rocky, estrelada originalmente por Sylvester Stallone. Nesse caso, temos um clássico “adaptado”, por assim dizer, para um protagonista negro. O filme fora sucesso de crítica e públi- co, agraciado com quatro prêmios no NAACP, incluindo melhor diretor e roteiro, e um Globo de Ouro para Stallone por atuação coadjuvante. Além desse exemplo, também notamos a colaboração desses profissionais em outros exemplos, como em Fruitvale Station (2013), onde encontramos os três juntos novamente – Coogler assinando direção e roteiro, Jordan no papel principal e Göransson na trilha. O que parece claro aqui é que existe um esforço de grupo, uma “cena”, por assim dizer, que visa produ- zir material audiovisual socialmente engajado com o elogio, promoção e defesa da cultura negra – entretanto, devemos aqui destacar e ter claro em mente, uma cultura afro-americana.

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Sua recepção fora significativamente positiva. Se tomarmos como referência a plataforma Adoro Ci- nema, temos as notas 4,3/5, dada pelos meios de im- prensa, 4,5/5 pelos usuários e um mais humilde 4,0/5 pela equipe do próprio site. Consultando o IMDb (Internet Movie Database), o reflexo é semelhante, apensar de um pouco menos lisonjeiro, com uma mé- dia 7,3/101. Nas resenhas nota-se um destacado elo- gio ao tratamento sonoro, chamando a atenção para a presença dos tambores. Entretanto, pouco mais do que isso se percebe em verdade. Como observa Han- derson Ornelas do site Plano Crítico,

Só que acostumamos a esperar sempre algo sur- preendente de Kendrick Lamar, e o que nos depa- ramos aqui não possui tanto frescor de inovação, se

1 A plataforma oferece uma análise detalhada acerca das no- tas. A partir desses dados, temos o seguinte: sua receptividade fora significativamente mais acalorada entre o publico femini- no, com uma média 7,8 contra 7,2 dos homens – dado compre- ensível, se pensarmos o grande protagonismo de personagens

apegando de forma excessiva ao trap e, vez ou ou- tra, batidas clichês do gênero. Além disso, para um filme que aborda a cultura africana (Wakanda, a terra do herói do longa, é um país fictício do leste africano), temos aqui uma trilha sonora demasiada- mente americana. Kendrick já fez viagens ao conti- nente africano, experiência que resultou em muitas faixas de To Pimp A Butterfly; é normal esperar que o artista se preocupe em inserir bastante da marcante percussão do som africano. Não que isso não acon- teça – várias faixas pegam tais características, como os beats selvagens da excelente “Pray For Me” e seu coro referenciando barulhos tribais – mas em sua maior parte o álbum sugere mais imagens do subúr- bio americano do que de um território efetivamente africano.

como Danai Gurira, que interpreta a guerreira líder das Dora Milaje, Okoye. Além disso, a média varia também significativa- mente entre espectadores estadunidenses e estrangeiros, opon- do um 7,7 contra um 7,1 – dado que é significativo também frente às conclusões que chegaremos afrente.

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É com base nesse referencial que pautaremos nossa investigação: como ficou evidente na crítica acima citada, um exame mais atento aponta para essa pre- dominância de uma estética estadunidense credita- da a Kendrick Lamar, sendo que a responsabilidade pela trilha e sua composição, na realidade, coube a Göransson, algo que parece não ter sido notado pela grande maioria do público, se observamos as reações manifestas nas diversas mídias. Entretanto, primeira- mente devemos destacar alguns pressupostos teórico- metodológicos que nortearão nossa reflexão.

AUTENTICIDADE DO LUGAR COMO PROBLEMA DE ANÁLISE

Nossa relação, enquanto humanos, para com o mun- do que nos cerca se dá através de formas codifica- das e mais ou menos estruturadas de linguagens. A teoria psicanalista lacaniana pensa mesmo o nosso inconsciente estruturado enquanto linguagem pro- priamente dita (MILNER, 2016, p.48), e para diversas

correntes de pensamento os discursos de identidade estruturam-se a partir da alteridade, afirmando-se um “eu” a partir de um “tu”, e um “nós” a partir do

“eles”. Nesse sentido, nos interessa pensar represen- tações acerca de determinado tema mais pelo viés do autêntico do que do real, ou mesmo de concepções tal como verossímil ou verossimilhante. Tomaremos aqui emprestada a definição do sociólogo David Gra- zian, que define o conceito da seguinte maneira:

A habilidade de um lugar ou evento de estar em conformidade com uma representação idealizada da realidade – como deve parecer, soar e sentir; ou a credibilidade e sinceridade de uma performance que emerja naturalmente e sem esforço [...]. Autentici- dade é sempre manufaturada, sempre uma perfor- mance, que pode ou não ser mais convincente que outras, o que leva como resultado a constatar que no mundo há uma série de ideais estereotipadas acerca de como os vários mundos seriam (GRAZIAN, 2005, pp.10-11).

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Nesse sentido, interessa compreender que tipos de narrativas acerca do objeto são constituídas e trans- mitidas, e em última análise isso nos permitiria iden- tificar mais acerca do lugar de fala de quem produz essa narrativa do que do objeto em si, mais sobre o significado do mesmo para aquele contexto do que sobre sua real natureza e problemas.

Partindo desse conceito que se mostrou discretamen- te há pouco, a ideia de lugar, propomos aqui, uma vez que se debruce sobre a trilha sonora e desenho de som de um filme, que se tome a concepção de lugar sonoro enquanto recurso metodológico de aná- lise. O motivo é simples: comumente recorrer-se ao tradicional conceito de paisagem sonora (soundsca- pe) originalmente proposto por Murray Schafer, que seria em verdade o conjunto de objetos e eventos sonoros que podem ser identificados em determi- nado ambiente (SCHAFER, 1991, p.180). Entretanto, sua natureza é muito mais descritiva, carecendo as- sim de certa precisão com relação a aspectos qua-

litativamente simbólicos dessa dita “paisagem”. Es- ses espaços sonoros sempre são condicionados por elementos e agentes locais, que, como propõe Giles Deleuze e Félix Guattari, territorializam esse espaço, estabelecendo marcas dinamicamente que, através do seu gestual, afirmam sua presença e por vezes domínio (DELEUZE, GUATTARI, 1997). Entretanto, se falamos de um espaço/paisagem sonoro(a) associado a uma tradição, uma cultura, ou mesmo uma espécie de lógica arquetípica, temos um problema: se não há dinamicidade não poderíamos, grosso modo, chama- -lo de território, seguindo essa lógica. A alternativa é pensar o lugar: Pierre Nora, por exemplo, ao propor o conceito de lugar de memória, chama a atenção para a sua natureza, sendo “simples e ambíguos, na- turais e artificiais [...]. São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcio- nal, simultaneamente, somente em graus diferentes”

(NORA, 1993, p.21); em Paul Ricoeur, o lugar apare- ce de forma semelhante, diferenciando-o do “sítio enquanto concepção abstrata do espaço geométri-

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co e lugar para a espacialidade vivida. O lugar, diz ele [Casey], não é indiferente à ‘coisa’ que o ocupa, ou melhor, que o preenche” (RICOEUR, 2007, p.59);

Michel de Certeau, pensando mais a ideia de lugar de fala, ao problematizar a produção acadêmica e o fazer científico, segue pelo mesmo caminho, ao propor que “lugar é, através dos procedimentos, o ato presente desta produção e a situação que hoje o torna possível, determinando-o” (CERTEAU, 2010, p.53); finalmente, Michel Chion, uma das principais referências para os estudos sobre som e música no audiovisual, também destaca esse contexto, ao afir- mar, por exemplo, que ”não existe banda sonora [ao menos unificada], mas um lugar de imagem e dos sons” (CHION, 2011, p.38). Dessa forma, propõe-se aqui essa chave de pensamento: erigem-se as identi- dades em grande parte a partir de uma relação “am- biental”2, um diálogo de identificação e ação sobre

2 Para Lily Kong esse é um aspecto importante. Em seu artigo

“Música popular nas análises geográficas” (1995) ela propõe que a “música também é um meio para as pessoas comunicarem suas experiências ambientais [...]. Da mesma forma que é um meio para comunicar incontáveis experiências, a música é o resultado

o espaço, e as sonoridades, que podemos estender desde a música até os sotaques e as características físicas naturais no ambiente, determinam em parte essa experiência. Não são simplesmente paisagens, e extrapolam a lógica do território/ritornelo, mas são, efetivamente, lugares, e sobre esses lugares cons- troem-se discursos e narrativas que buscam uma au- tenticidade, ou seja, uma correspondência para com narrativas reconhecíveis acerca daquele espaço/tem- po característico, e, estando o sucesso de uma obra fílmica de ficção grandemente vinculada à identifi- cação e pertinência dessa representação em função desse imaginário predominante (DAVIS, 1986, p.463), analisar esse tratamento sonoro de um filme em fun- ção de seu objeto contraposto à recepção nos diz muito acerca dos significados e usos desse artefato ou referencial cultural para um presente narrador. E isso se torna mais inquietante quando se identificam imprecisões e estereótipos que não são notados ou, pior, são aclamados.

da experiência ambiental. Os músicos compõem canções como uma consequência de suas experiências” (KONG, 1995, p.133).

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ELOGIO À TRADIÇÃO AFRICANA?

A personagem T’Challa, conhecido como Pantera Negra, surgiu original- mente nas histórias em quadrinho da editora Marvel, sendo o primeiro herói negro a ganhar sua própria história. Fez sua primeira aparição na edição número 52 da revista do Quarteto Fantástico, em julho de 1966, um ano após morte de Malcom X e alguns meses antes do surgimento do Partido dos Panteras Negras em outubro do mesmo ano, precedendo uma série de outros representantes étnicos que viriam logo na sequência, como Falcão (1969), o Lanterna Verde John Lewis (1971), Luke Cage (1972) e Blade (1973). A ideia era criar um herói que fizesse uma homenagem à cultura africana. Por conta disso, além de derrotar os quatro super-he- róis em combate, o mesmo ainda era o rei de uma utopia tecnológica no coração do continente africano, desconstruindo a ideia tradicionalmente associada de subdesenvolvimento à região. A mesma proposta fora per- seguida no filme, mas nesse caso alguns problemas podem ser notados.

Primeiramente, já na cena e abertura, onde uma bela animação em que a areia toma diversas formas para informar ao espectador sobre a história de Wakanda, temos a presença de tambores, o principal símbolo musical associado à cultura do continente, mas que não assume um real prota- gonismo, uma vez que a linguagem musical predominante – e assim será

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durante boa parte da obra – é de uma orquestração que dialoga com a tradição clássica do romantismo alemão, com grande presença de arranjos de cor- das. Uma cena que chama a atenção é a chegada da nave do herói à metrópole de Wakanda: enquanto a nave se aproxima, sobrevoando savanas, rios e flo- restas, temos exclusivamente tambores, e à medida que aproximam-se vão sendo introduzidos arranjos de cordas; entretanto, no momento em que a bar- reira holográfica é transposta temos imediatamente a introdução de instrumentos de sofro – trompas, pensando a lógica de Schafer de som arquetípico as- sociado a esse tipo de instrumento3 (SCHAFER, 2001, p.74) – com a supressão dos tambores, o que parece estranho, frente à proposta da obra. Outro momen- to de semelhante escolha se dá à ocasião do duelo entre T’Challa e M’Baku (Winston Duke) pelo direito ao trono, pois, frente a uma circunstância de tensão, em que comumente têm-se usado como recurso para

3 Associando-o à tradição da caça e da guerra, Murray Schafer em A Afinação do Mundo (1977) propõe que o som desse instru- mento assumiu características arquetípicas no nosso imaginário humano, associados à tensão, ao conflito e ao heroísmo.

incremento dramático os tambores, temos a predo- minância de uma orquestração tradicional, ficando o recurso percussivo restrito ao fim do embate apenas.

Parece assim haver uma hesitação em sustentar o tra- tamento sonoro baseado nos tambores, tão arque- tipicamente associados às tradições africanas, mas, para além disso, podemos mesmo identificar uma espécie de negligência frente aos padrões melódi- cos e harmônicos dessa tradição, que não se sustenta apenas enquanto rítmica. Não nos cabe julgar aqui as intenções do compositor, ou mesmo os debates en- volvendo o aspecto social e empresarial que se fize- ram presentes, como as decisões dos produtores, dos estúdios Disney ou mesmo do diretor, mas não deixa de dizer algo acerca de como essa tradição é pensa- da. Essa questão, entretanto, torna-se um pouco mais problemática quando observamos o tratamento so- noro atribuído à presença do antagonista, Kilmonger.

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Construído como contraponto discursivo ao prota- gonista, o vilão interpretado por Jordan traz em seu discurso como principal reivindicação uma espécie de justiça racial histórica em forma de vingança. Nasci- do em Wakanda e criado em Oakland, Califórnia, a personagem experienciou o racismo e as injustiças sociais perpetradas contra sua etnia enquanto sua terra natal prosperava em seu isolacionismo enquan- to o “seu povo” sofria, o que o leva a acreditar que tomar o trono para si seria uma boa alternativa de correção. Enquanto o elemento americano, seu tra- tamento sonoro é consideravelmente diferente, com

predominância de estilos ligados à cultura hip-hop estadunidense, que floresceu a partir da década de 1970 nas comunidades jamaicanas, afro-americanas e latinas de Nova York, tais como o rap e o trap – aqui sim com maior influência das composições de Kendrick Lamar. Um bom destaque é a sequência de sua posse, que se inicia ao enfrentar T’Challa dialogi- camente na sala do trono, segue para o combate na cachoeira, passa pela sua viagem ao Plano Ancestral, onde adquire os poderes de Pantera Negra, até que enfim retorna à sala do trono e expõe seus planos geopolíticos. Analisemos brevemente.

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Quando o vilão – que na narrativa soa quase como um anti-herói – desafia o protagonista (1:20’) temos uma breve e discreta introdução de tam- bores, em alusão provavelmente ao aspecto tradicional – logo, africano – do ritual de legitimação, mas no momento do debate opta-se por um tratamento mais convencional, orquestrado, para dar o tom dramático pretendido que irá durar até a revelação da identidade do desafiante, quando bruscamente temos a presença novamente do trap – a canção

“Kilmonger” – que dá lugar enfim a um tratamento sonoro quase ex- clusivamente dominado por tambores para embalar e dar o tom do mo- mento decisivo do duelo, ao contrário do que vimos no embate contra M’Baku. Os tambores perdurarão até a morte de Zuri (Forest Whitaker) que tenta impedir a execução de T’Challa, quando temos o retorno da orquestra. Na sequência temos o ritual de transe induzido por uma subs- tância que concede os poderes ao guerreiro através de uma viagem ao Plano Ancestral. Curiosamente aqui, num trecho daí sob a responsabili- dade de Göransson, é trilha é composta de um drone grave e algumas notas de violinos e violoncelos – elemento curioso, uma vez que é comum o uso de tambores associados a momentos de transe ou de contato com elementos primitivos em narrativas, e logo aqui, numa obra em que os tambores em teoria deveriam assumir proeminência, isso não ocorre. A cena dá lugar enfim ao momento em que Kilmonger, já tornado o novo Pantera Negra, adentra a sala do trono para se encontrar com as elites de Wakanda (1:40’): o enquadramento é curiosíssimo, uma vez que a

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câmera começa posicionada de ponta cabeça, e vai, ao girar, pouco a pouco se orientando novamente, como se fizesse alusão a um mundo invertido que se reordena. Enquanto adentra a sala o que temos é, novamente, a presença da textura sonora que faz referência à tradição estadunidense, deixando clara a sua postura plenamente ativa. Enquanto debate com as lideranças temos a presença dos tambores africanos sobrepostos ao trap, mas, ao enfim con- vencer uma maioria de suas intenções imperialistas sobre o mundo branco, vemos o retorno absoluto e onipresente do trap. Uma leitura simples que se pode fazer acerca desse tratamento sonoro é a de que esse elemento afro-americano, temperado por debates sociais mais militantes e cheios de ressenti- mento, busca impor-se sobre a tradição propriamente africana para usa-la em nome da justiça defendida por Kilmonger. O que a narrativa nos mostra é um embate simbólico e cultural a partir da alternância

das estéticas musicais escolhidas, o que parece ser, ao fim e ao cabo, a tônica do filme: o isolacionismo utópico monárquico de Wakanda contra um univer- salismo político e globalizante daquele que vem da realidade dos guetos dos EUA.

Esse tipo de tratamento se faz presente também nos duelos finais entre os dois Panteras, no momento em que as forças de Wakanda se dividem em suas filiações, quando Shuri (Letitia Wright) e Okoye (Da- nai Gurira) enfrentam Kilmonger, que, uma vez que começa com a vantagem, impõe, de certa forma, o seu tratamento sonoro à cena, que é substituído por uma orquestração com acréscimo de tambores no momento da reviravolta, e mesmo quando temos o embate final entre as duas personalidades, quando o estilo estadunidense acaba perdendo espaço dentro da trilha na mesma medida em que a personagem de Jordan caminha para seu desfecho trágico.

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WAKANDA, ÁFRICA CENTRAL X OAKLAND, EUA:

QUESTÕES SOBRE NEGRITUDE

Pois bem, nos encaminhemos então para a conclu- são da presente reflexão. Como pudemos observar, a despeito de se propor um elogio e valorização da cultura do continente africano, a trilha sonora em verdade apresenta poucas referências. Os padrões melódicos entoados pela voz cantante aparecem em apenas dois momentos – um no começo e outro no final – e mesmo os arquetípicos tambores aparecem timidamente, sendo o tratamento tradicional orques- tral muito mais predominante. Importante destacar inclusive alguns usos um tanto desajeitados, como a introdução de texturas sonoras muito mais associadas às tradições meso-orientais, como no debate aos 10’

entre os dois irmãos – os pais de T’Challa e Kilmonger – ou a cena da queima das plantas místicas (1:40’). É compreensível até certo ponto a escolha, pois a cos- ta oriental da África sofrera grande influência árabe

muçulmana desde a Idade Média, mas, de uma for- ma ou de outra, consiste numa tradição incorporada posteriormente. O que está proposto aqui é que, con- trariando os elogios feitos pela crítica, em verdade os elementos propriamente africanos da trilha assinada por Ludwig Göransson são notadamente pontuais e um tanto imprecisos. Por outro lado, sua repercussão nos diz muito sobre os parâmetros de autenticidade socialmente construídos que o modelam, aquilo que o grande público reconhece enquanto música africana, o que nos diz, logo, que existe um grande problema aqui, uma lacuna acerca do conhecimento popular a respeito da tradição musical do continente, que a limita a seus aspectos percussivos e atribui a esse ele- mento, que também igualmente é pensado enquanto um referencial tribal, um lugar central e metoními- co. Isso na verdade nos faz pensar que a imagem de subdesenvolvimento, ignorando toda uma história de grandes e prósperos reinos, como o de Mali, é predo- minante no nosso imaginário coletivo.

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Por outro lado, é curioso notar a grande comoção que o álbum do filme, que conta com as faixas ou produzidas ou coordenadas por Kendrick Lamar, sus- citou, levando inclusive a um relativo ocultamento de Göransson nas críticas e resenhas, mesmo tendo sido a ele endereçado o Oscar. Como propomos, o filme se orienta a partir de uma oposição entre a tradicional Wakanda e os debates contemporâneos advindos da cultura urbana estadunidense do hip-hop. Da mesma forma, as diferentes formas de linguagem musical parecem não dialogar, mas debater, se enfrentar pela hegemonia na trilha, como fica muito evidente na cena comentada da posse de Kilmonger. A aclamação do trabalho conduzido por Lamar e a relativa falta de problematização acerca do tratamento dado por Göransson nos diz algo importante: confunde-se aqui um discurso sobre negritude e outro sobre valoração da tradição africana. O primeiro nos parece clara- mente ligado aos movimentos sociais estadunidenses,

que ganharam força nos anos 1960 com o surgimen- to do Partido dos Panteras Negras e com toda a evo- lução das lutas pelos Direitos Civis, e tem no massivo sucesso comercial de seus artistas ligados à cultura do hip-hop – rappers, cantores de R&B, DJs de trap – um símbolo de seu valor cultural em termos globais.

Por outro lado, o segundo, que podemos pensar aqui mais próximo dos debates pós-colonialistas, carece dessa “segurança”, por assim dizer, e ainda apresen- ta uma postura tímida, fruto possivelmente de sua posição ou imagem de subdesenvolvimento. Ficou claro que para o público mundial o fato do filme ter sido um marco cultural por trazer a cultura negra de forma mais ampla, bem como um elenco de prota- gonistas dessa matriz étnica, e por ter alcançado o sucesso que atingiu aparentemente satisfez as de- mandas do movimento. Mas o que causa incômodo é a não problematização acerca da pouca atenção dada à cultura do continente.

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Pantera Negra nos mostrou que os debates e reivin- dicações políticas ligados a uma cultura da negritude numa dimensão universalista estão mais associados à tradição estadunidense do hip-hop, que é bem suce- dida e orgulhosa, do que da africana propriamente dita, e o que nos mostra isso é precisamente a investi- gação a partir do conceito de autenticidade aplicado ao lugar sonoro construído para Wakanda: como é esse lugar? Ele é estruturado a partir de referenciais reconhecíveis da linguagem musical ocidental, com o uso de cordas e trompas para dar um ar de gran- deza, de poder, de hegemonia. Entretanto, existem elementos propriamente africanos ali, e quais se- riam? Precisamente os tambores, elemento mais co- mumente associado à sua tradição musical, que em verdade possui outros instrumentos próprios, como o goje, o kakaki, kisanji e akonting, além de padrões melódicos próprios. A impressão e autenticidade as- sim é atingida simplesmente com a introdução des-

se referencial estético um belo tanto estereotipado.

Caberiam aqui problematizações centrífugas, como o porquê desse fenômeno, possivelmente associado às narrativas tradicionais acerca da influência da cul- tura africana para a gênese dos estilos americanos, como o blues, o jazz, o samba, os estilo do caribe, que comumente atribuem precisamente ao aspecto dos ritmos e da síncope seu maior legado, ou mesmo nos indagar acerca das intenção desse grupo de rea- lizadores – Göransson, Coogler, Jordan – que estão a produzir uma série e produtos audiovisuais acerca do tema e que, de certa forma, acabam por atuar sobre a imagem acerca da cultura negra para o grande pú- blico. Entretanto, a presente comunicação almejou apenas apontar para alguns pontos problemáticos a fim de trazer luz a essa questão e, principalmen- te, pensar o papel de hollywood nesse contexto en- quanto um lugar de legitimação de discursos, uma vez que premiou essa trabalho.

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Por fim, temos a seguinte conclusão: uma organização estadunidense pre- miando a trilha sonora de um filme igualmente estadunidense sobre um herói africano que fora criado por artistas estadunidenses e que apresenta um predomínio muito maior de música estadunidense do que daquele ligada propriamente à África. Não é de se admirar que um dos grandes destaques tenha sido precisamente a personagem de Michal B. Jordan, pois, aparentemente, a tradição afro dos EUA parece mais atraente ao público do que à do continente originário, que permanece exotizada, um lugar para além dos limites da alteridade, cuja autenticidade ainda se pauta a partir de elementos fragmentários.

REFERÊNCIAS

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Referências

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