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MADEMOISELLE CHANEL e O CHEIRO DO AMOR

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Academic year: 2021

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MADEMOISELLE

CHANEL

e O CHEIRO DO AMOR

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Tradução CLÁUDIA ABELING

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A M U L H E R

Q U E N Ã O U SA

P E R F U M E

NÃO T E M FUTURO

COCO CHANEL

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PRÓLOGO 1897

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Um, dois, três, quatro, cinco... Um, dois, três, quatro, cinco...

Nenhum som saía de sua boca, apenas os lábios se movimentavam.

Em silêncio ela contava as pedrinhas do mosaico no piso. Seixos irregula- res de rio, desgastados por séculos, por onde Gabrielle andava imaginando formas geométricas ou imagens místicas.

Aqui havia cinco estrelas, lá cinco flores, em algum lugar um pen- tágono. A disposição nunca era casual.

Ela havia aprendido que o cinco era um número simbólico para os membros da Ordem de Cister: considerado puro, perfeita personificação das coisas. As rosas, por exemplo, tinham cinco pétalas, maçãs e peras es- condiam um pentagrama se partidas ao meio, na horizontal. O ser humano contava com cinco sentidos e as cinco chagas de Cristo eram lembradas em todos os ofícios. Mas as freiras não ensinaram que cinco também era o número do amor e de Vênus, a soma indivisível do masculino número três e o feminino dois. Ela descobrira esse fato tão interessante para uma menina de 14 anos num livro que lia escondida, no sótão.

A biblioteca do convento abrigava as coisas mais surpreendentes:

os sermões medievais de Bernardo de Claraval, menos escandalosos, porém igualmente não adequados para os olhos de uma adolescente, nos quais o autor lembrava os significados dos aromas em orações e lavagem rituais para os monges. No instante do olhar voltado para dentro, o fundador da Ordem de Cister chegava a aconselhar seus irmãos de fé a imaginar o peito perfumado da Virgem Maria, enquanto era exaltada em cânticos. Incenso e jasmim, lavanda e rosas sobre o altar aprofundavam a contemplação, com ajuda do olfato.

Para crianças órfãs como a solitária menina que ela sempre fora, os aromas das plantas do jardim do convento equivaliam a um sonho distan- te, assim como se imaginar no colo farto de uma mãe amorosa. Os educan- dos eram esfregados regularmente numa tina com sabão barato, de modo

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a não se apresentarem sujos do trabalho no campo ou na cozinha, e que exalassem limpeza em vez de suor do medo e da exaustão. Não havia como pensar em aromas. Os ásperos lençóis brancos, que lavavam, cerziam e tinham de empilhar bem dobrados, na lavanderia, eram tratados com mais cuidado do que a pele dos órfãos.

Um, dois, três, quatro, cinco...

Ela passava o tempo com números, enquanto esperava numa fila junto com outras meninas para se confessar com o padre. Depois de fica- rem imóveis por uma eternidade, como soldados num pátio de um quartel, começavam a entrar no confessionário. Achava que as irmãs exigiam essa postura silenciosa, que nenhuma criança suporta por muito tempo, para que elas tivessem algo a confessar em seguida. Em geral, nenhuma delas havia pecado desde o domingo anterior. Ali no alto da rocha cercada por ventos, sobre a qual o convento de Aubazine havia sido erguido no século XII, não existiam oportunidades para pecados.

Há dois anos Gabrielle estava vivendo naquele mundo isolado, no centro da França, longe o suficiente da estrada principal até Paris para que fugas não fossem arquitetadas. Mais de 700 dias se passaram desde a morte da mãe e da hora em que o pai a colocara sobre uma charrete, entre- gando-a às monjas de Cister. Simples assim. Como se ela fosse uma carga.

Em seguida, ele sumiu para sempre e o inferno se abriu na alma frágil da menina. Ela começou a ansiar pela hora em que tivesse idade suficiente para deixar o convento e poder iniciar uma vida independente. Talvez a agulha de costura fosse a chave para isso. Quem soubesse costurar e tivesse obstinação suficiente poderia chegar a Paris e se empregar numa maison importante. Ela ouvira falar a respeito, mas no fundo não sabia o que isso realmente significava.

De todo modo, parecia promissor. Maison era uma palavra que lhe despertava uma lembrança de belos tecidos, como sedas farfalhantes, voiles perfumados, rendas finíssimas. Não que sua mãe tivesse sido uma dama. Fora lavadeira e o pai, mascate. Nunca vendera artigos assim tão finos, porém ela relacionava todo pensamento de coisas belas à maman. A saudade era tanta que às vezes ela ficava tonta, de tanto desejo por acolhi- mento, aquele que sempre recebeu da mãe.

Mas Gabrielle estava entregue à própria sorte, passava por dificul- dades e treinamentos, castigos e, por vezes, recebia a absolvição divina. O que mais queria, entretanto, era um pouco de afeição. Será que se tratava

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de pecado a ser confessado? Será que esse segredo acabaria por pesar de- mais, impedindo a paz de sua alma? Talvez, ela refletiu em silêncio. Talvez não. Ela não iria revelar ao seu confessor que a única coisa que desejava da vida era amor. Não naquele dia. E provavelmente em nenhum outro.

Contou mentalmente as pedrinhas de mosaico do piso no seu ca- minho à catedral de Aubazine: um, dois, três, quatro, cinco...

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PRIMEIRA PARTE 1919-1920

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CAPÍTULO 1

Os faróis amarelos cortavam a neblina que subia do rio Sena, envolvendo freixos, amieiros e faias como um pano branco. Como uma mortalha, pen- sou Étienne Balsan.

A imagem de um morto no caixão formou-se em sua mente: mem- bros esmagados, pele queimada, coberto pelo linho. Aos pés havia um ramo de buxo; sobre o peito, um crucifixo. Uma bacia com água benta ao lado da cabeça dissimulava o cheiro da morte. A luz de velas lançava sombras bruxuleantes sobre o cadáver, arrumado pelas freiras para sua aparência causar a menor comoção possível.

Étienne tentou imaginar como estaria desfigurado o bonito rosto do amigo. Ele o conhecia quase tão bem quanto o seu.

É provável que não tivesse sobrado muito dos traços harmonio- sos, dos lábios cheios, elegantes, e do nariz reto. Quando um automóvel rola por uma ladeira abaixo, se choca contra a parede de pedra e pega fogo, não são muitos os ossos que permanecem no lugar. Alguma ha- bilidade era necessária para recompor minimamente a aparência do acidentado fatal.

Ele sentiu um fio úmido escorrendo pelas suas bochechas. Estava chovendo dentro do carro? Ele quis ligar o limpador do para-brisa, procu- rando com tanta aflição pelo comando que o carro saiu lateralmente da pista. Ao pisar no freio, em pânico, a lama espirrou contra a janela lateral.

Não estava chovendo. Por fim, a borracha rangeu sobre o vidro. Lágrimas escorriam de seus olhos, uma onda de cansaço e tristeza o oprimia, amea- çando explodir sua cabeça. Mas se ele não quisesse ter um fim semelhante ao do amigo, era preciso se concentrar na estrada.

O carro estava parado, atravessado na pista. Étienne se esforçou para acalmar o ritmo da respiração, desligou o limpador, agarrou o volante com ambas as mãos. O motor gemeu quando ele pisou no acelerador, as rodas giraram. Depois de um tranco, o carro retomou sua trajetória. Ele

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sentiu a pulsação se normalizar. Felizmente não havia tráfego no sentido oposto, tão tarde assim depois da meia-noite.

Ele se obrigou a olhar fixamente para a estrada. Tomara que ne- nhum animal noturno resolvesse cruzar seu caminho. Ele não estava com vontade de atropelar uma raposa; se fosse o caso, uma caçada a cavalo era mais seu estilo. Seu amigo sentia igual, o amor aos cavalos foi o que unira os dois. Arthur Capel, o eterno jovem, que nunca conseguiu abandonar o apelido infantil, “Boy”, era um fantástico jogador de hóquei – melhor, tinha sido. Boy fora um bon-vivant, tão intelectual quanto charmoso, cem por cento gentleman, um diplomata britânico, promovido na guerra a capitão.

Por fim, alguém que todos gostavam de ter por perto. Étienne podia se considerar um sujeito de sorte por ser um dos seus mais velhos e melhores amigos. Tinha sido...

Outra lágrima escorreu sobre a face bronzeada de Étienne. Mas ele não tirou a mão do volante para secá-la. Ele não podia se distrair com pensamentos se quisesse chegar são e salvo em Saint-Cucufa. Essa viagem era o último serviço que podia prestar ao morto. Ele tinha de transmitir a terrível notícia a Coco, antes de ela ser informada no dia seguinte, pelos jornais ou pela ligação de uma fofoqueira. Realmente não era tarefa agra- dável, mas ele a cumpria com o coração.

Coco era o grande amor de Boy – tinha sido. Sem dúvida. Para todo mundo, principalmente para Étienne. Afinal, ele apresentara os dois. Naquele verão, em sua propriedade. Boy havia chegado a Royallieu por causa dos cavalos – e fora embora com Coco. Embora ela fosse namorada de Étienne. A bem da verdade, na época ela não era nem isso. Era uma garota que se apresentava em Moulins, cidade com uma guarnição militar, entoando canções de sentido dú- bio no cabaré barato do lugar, e que de dia cerzia as calças dos oficiais com os quais se divertia à noite. Delicada, de aspecto pueril, lindíssima, cheia de vida, frágil e, apesar disso, incrivelmente corajosa e cheia de energia. O perfeito oposto da grande dame que tantas jovens da Belle Époque ambicionavam ser.

Étienne tinha se divertido com ela e lhe dado guarida quando ela apa- receu de repente, diante de sua porta, mas não mudou em nada a própria vida por causa disso. No início, ele nem a queria por perto, mas ela era teimosa e

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simplesmente foi ficando. Um ano, dois anos... Ele não conseguia se lembrar mais por quanto tempo ela viveu ao seu lado sem que a percebesse como com- panheira. Na verdade, foi Boy quem primeiro lhe abriu os olhos para a beleza interior de Coco e sua força. Mas daí já era tarde demais. Daí ele já lhe tinha roubado a concubina que nem era sua amante fixa, como se costumava fazer em seu círculo antes da Grande Guerra. Mas ele se tornou amigo dela. E con- tinuaria assim, mesmo depois do último suspiro de Boy. Era uma promessa.

Ela tinha que parar de se enlouquecer.

Há horas Gabrielle rolava na cama. Volta e meia caía num sono profundo, do qual logo despertava, assustada, confusa e presa num sonho do qual não conseguia se recordar. Daí tateava o outro lado da cama a fim de sentir o corpo tão familiar, que tanto a amparava. Mas o travesseiro es- tava vazio, o lençol intocado – e Gabrielle absolutamente desperta de novo.

Claro. Boy não estava. Ontem – ou teria sido anteontem? – ele to- mara o caminho de Cannes, a fim de alugar uma casa na qual passariam juntos os feriados. Um tipo de presente de Natal. Ela amava a Riviera e achava muito importante que ele passasse o Natal em sua companhia e não com a mulher e a filhinha. Ele tinha até falado em pedir a separação. Assim que ele encontrasse a casa adequada, ela iria ao seu encontro. Entretanto, não houvera um telefonema nem um breve telegrama para avisá-la de que ele chegara bem no sul da França.

Será que os planos tinham mudado?

Desde seu casamento, há quase um ano e meio, Gabrielle volta e meia era acometida por dúvidas. No começo ficou chocada porque ele esco- lhera como esposa uma mulher que personificava o seu oposto: uma loira alta, tão pálida quanto blasé, rica, pertencente à alta nobreza britânica, e que proporcionava a Boy a ascensão social na sociedade da Inglaterra. Entretanto, ele já conseguira muita coisa sem um relacionamento desses. Como filho de um negociante plebeu de navios de Brighton, havia se tornado conselhei- ro do presidente francês Clemenceau e membro da Conferência de Paz de Versalhes. Isso posto, para que ele precisava de uma cara-metade nobre?

Acima de tudo: havia dez anos que ele e Gabrielle viviam juntos.

Ela dava como certo que um dia se casariam. Será que ela não seria um

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bom partido? Bem, havia sua origem simples que ela ocultava com um pano escuro, sem qualquer transparência. Mas ela conquistara alguma fama. Coco Chanel era uma estilista de sucesso e até uma mulher rica.

Começou como chapeleira, financiada pelo velho amigo Étienne Balsan. Suas criações tão simples quanto elegantes logo chamaram a aten- ção das parisienses. Nada de penas ou outros adereços – o que caiu no gosto das senhoras após um longo tempo de enfeites exagerados. As blusas no estilo marinheiro, soltinhas, que ela desenhou em Deauville fizeram sucesso. Gabrielle baniu o espartilho e costurou calças para as mulheres.

Depois vieram os anos de fome da Grande Guerra e – totalmente pragmáti- ca – ela tentou criar vestidos simples e trajes de noite funcionais, de jérsei de seda barato, com os quais as mulheres, elegantes e confortáveis, podiam se esconder nos porões dos ataques alemães. As nobres damas quase que arrancavam as peças das mãos dela. Quase todas, sim, toda a alta nobreza ia até Gabrielle para ser vestida por Coco Chanel.

Por que Boy precisava da certidão de casamento com a represen- tante dessa gente? Gabrielle tinha subido na vida e feito um nome. Como ele podia sacrificar o grande amor dela por uma carreira cujo auge ele já tinha alcançado? Gabrielle não compreendia, nunca iria compreender. E o sofrimento corroía seus ossos como a tísica.

Mas daí ele tinha voltado para ela. O elo que unia Boy e Gabrielle era mais forte do que os anéis dourados que ele trocara com Diana Wyndham, filha de lorde Ribblesdale. Claro que hesitara, mas depois Gabrielle caiu em seus braços. Melhor aceitar o novo papel como concubina do que abrir mão totalmente dele, esse era seu lema. O que havia de mal nesse arranjo?

Nada. Ou... Tudo ia bem, mas as dúvidas continuavam a rondá-la secreta- mente, como as traças.

Boy vivia praticamente separado da mulher, estava a maior parte do tempo em Paris. Mas de tempos em tempos, claro, era preciso aparecer do lado da esposa. Gabrielle o deixava partir porque tinha conquistado a se- gurança de que ele voltaria. O amor deles era maior do que tudo. Apesar de todas as tormentas, esse amor tinha completado dez anos e não se extingui- ria. Se algo estava destinado à eternidade, então era o relacionamento deles.

Gabrielle estava convencida. Mesmo assim, às vezes os pensamentos mais sombrios emergiam e a faziam cair do céu feito Lúcifer. Como nessa noite.

Ele se virou de lado, afastou o lençol com os pés, tremeu de frio e voltou a puxar o cobertor até a altura do queixo.

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Por que Boy não tinha falado com ela desde que partira? A magia do Natal o fazia lembrar-se da filhinha de nove meses? Será que estava tão encantado pela família que reprimia a lembrança da amante, deixada no palacete onde ela morava nos arredores de Paris? Será que seu destino não era o sul da França, a fim de procurar uma casa para Gabrielle e para si?

Mas e Cannes e a reconciliação com a esposa? Ele havia falado de separa- ção antes da viagem. Gabrielle entrou em pânico. Conciliar o sono passou a ser realmente impossível.

Mas ela não se levantou, nem acendeu a luminária da mesinha de cabeceira, não escolheu uma leitura leve que pudesse distraí-la. Ela se entregou aos demônios, cansada demais para fazer qualquer outra coisa.

Em algum momento, a exaustão puxou-a novamente para a profunda escu- ridão de um pesadelo inquieto...

Um estalo acordou Gabrielle. Era o inconfundível ruído de borra- cha sobre pedregulhos. Pneus de um carro que tinha sido freado. No silên- cio da noite, os sons atravessavam muito nítidos a janela fechada do quarto de Gabrielle. Em seguida, os cachorros começaram a latir.

Ainda meio sonada, ela pensou: Boy!

Intimamente radiante, imaginou que ele estava voltando para bus- cá-la. Ele não queria que ela viesse apenas depois. O corpo dela tremia de felicidade. Só Boy podia ser tão maluco. Ela o amava tanto. Tanto fazia pas- sar o Natal no sul da França ou nesse palacete afastado em Saint-Cucufa.

La Milanaise, seu nome, onde o verão rescendia a lilases e rosas, era um pouco desoladora no inverno do norte da França. Por isso eles se decidiram por uma estadia na Côte d’Azur. Mais desolador ainda era o lugar onde eles não estavam juntos. Por que Gabrielle não compreendera isso antes?

Nesse instante, bateram à porta. “Mademoiselle Chanel?” Era a voz de Joseph Leclerc, seu mordomo. Não o esperado sussurrar de seu amante.

De súbito ela estava absolutamente desperta.

Étienne Balsan conhecia Boy Capel quase tão bem como a si mesmo, e Coco também lhe era familiar como fora ao amigo. Quando Coco entrou na sala na qual Étienne fora instado por Joseph a aguardá-la, a primeira coisa que pensou foi em quão pouco ela mudara desde o primeiro encontro,

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há treze anos. Aos 36 anos, ela ainda parecia uma jovem. Quase uma me- nina, pequena e frágil, seios pequenos e quadris estreitos, o cabelo preto cortado curto todo desgrenhado, como depois de um abraço apaixonado.

Se ele não se lembrasse do calor do pequeno corpo metido no pijama bran- co de seda, a teria achado um ser andrógino, sem qualquer apelo erótico.

Um segundo depois, ele se assustou. Olhara seus olhos – e vira a morte.

Ela sempre conseguia manter os sentimentos bem escondidos atrás de uma fachada de indiferença, mas os olhos escuros descortinaram uma visão da alma profunda dessa mulher. Naquele instante, exprimiam agonia desesperada e atônita. Mas nenhuma lágrima brilhava.

E ela fazia silêncio. De túnica branca, postava-se muda diante dele, mantendo a postura feito Maria Antonieta diante da guilhotina. Era terrível. Se ela tivesse soluçado, Étienne saberia o que fazer. Poderia tê-la abraçado. Mas seu sofrimento silencioso, os olhos secos, eram de partir o coração.

“Sinto muito incomodá-la no meio da noite”, ele começou.

Pigarreando baixinho o tempo todo, continuou gaguejando: “Achei que devia isso ao Boy, avisá-la... Lorde Rosslyn telefonou de Cannes...” Ele ins- pirou fundo. Sentia imensa dificuldade em anunciar a notícia triste para Coco. “Boy sofreu um acidente terrível. O carro saiu da estrada. Boy estava ao volante, seu mecânico no assento do passageiro. Mansfield ficou seria- mente ferido... Para Boy, o resgate chegou tarde demais.”

Estava dito. Mas ela ficou sem reação.

Com algum atraso, Étienne se deu conta de que o mordomo já havia transmitido as novas. Certamente Joseph precisou ter explicado porque per- mitira a entrada de um estranho no meio da noite, tirando mademoiselle da cama. Por que ela não falava nada?

Para quebrar o silêncio, Étienne continuou: “A polícia deve estar investigando ainda... Até agora não se sabe exatamente o que se passou.

De toda forma, Paris ainda não está sabendo. O que temos: o acidente aconteceu em algum ponto da Riviera. O freio do automóvel, ao que pa- rece, falhou...”

Mademoiselle entendeu, monsieur”, Joseph cortou-lhe a palavra.

Étienne assentiu com a cabeça, constrangido. Nunca antes tinha se sentido tão desconfortável. Ele via a mulher soluçar sem verter uma lágri- ma sequer. Cada centímetro de seu corpo irradiava assombro e desespero.

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Ele podia ver, literalmente, como a tristeza ia se apossando dela mais e mais intensamente. Porém, ela ainda não chorava.

Sem dizer palavra, ela se virou e saiu da sala. A porta se fechou às suas costas.

Desconcertado, Étienne ficou onde estava.

“Posso lhe oferecer algo, monsieur?”, perguntou Joseph. “Talvez um café?”

“Conhaque. Duplo, por favor.”

Ele tinha acabado de ser generosamente servido, fechado os dedos ao redor do copo bojudo para se aquecer e à bebida, quando a porta da sala foi aberta de novo.

Coco estava de volta. Dessa vez, usava um vestido até a altura do tornozelo, o sobretudo pousava no braço, a mão segurava uma bolsa com o estritamente necessário. Ela apertava tanto a alça que os ossinhos da mão ressaltavam, brancos. Entretanto, esse era o único sinal visível de tensão.

Sua face se mantinha, como antes, uma máscara. Os olhos estavam vazios.

“Podemos ir”, ela explicou com voz firme.

Espantando, Étienne balançou a cabeça.

Ela devolveu o olhar, mas não disse nada.

Num ato de total desamparo, ele fez um sinal de sim. Como se sou- besse para onde. Mas ele não tinha a menor ideia do que ela queria fazer no meio da noite. Deu um grande gole no conhaque, torcendo para que o álcool o tranquilizasse. Em vão. Percebeu que a mão que segurava o copo tremia.

“Você está se referindo a mim?” Ele hesitou, irritado, inseguro, sem saber se ela não preferia sair com o motorista, seja lá para onde.

“Vamos para a Riviera.” Novamente essa firmeza em sua voz, que não combinava em nada com sua aparência fantasmagórica. “Quero vê-lo.

E quero sair imediatamente, Étienne.”

“O quê?” Ele ofegou, entornando mais um tanto de conhaque na garganta. “É perigoso lá fora. A estrada está escura e tem neblina e...”.

“Não demora muito para começar a clarear. Não devemos perder tempo. O caminho é longo até a Côte d’Azur.” Ela se virou para partir.

Ele trocou um olhar de desespero com Joseph. Por que ela não pe- diu para seu motorista tomar as providências necessárias para uma partida de manhãzinha? Suas obrigações de amigo incluíam apoiar a loucura de Coco? Ela não está louca, Étienne constatou, triste.

Sem nenhum comentário, ele a seguiu noite adentro.

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CAPÍTULO 2

A festiva atmosfera do Natal que Gabrielle encontrou em Cannes lhe pare- ceu dolorosamente estridente e barulhenta. Músicas natalinas com letras em inglês e animadas canções de jazz escapavam dos cafés, enquanto res- taurantes espalhavam seu som pelo calçadão. Um agrado aos inúmeros tu- ristas das ilhas britânicas e dos Estados Unidos. Para que os estrangeiros se sentissem em casa na Riviera, ao lado dos sinos – costumeiros na França --, também penduraram estrelas de papel nas palmeiras.

Estava fresco, quase sem vento, e o céu estrelado estendia-se sobre a baía, cintilante como tule azul-marinho bordado com paetês transparen- tes. Croisette, o famoso bulevar, era sinônimo de elegância. Automóveis caros desembarcavam gente fina trajando roupas de noite caras, diante dos hotéis de luxo. Era véspera de Natal: rolhas de champanhe espocavam por todos os lados, mesas postas com porcelana fina, cristal e prata, estavam decoradas com galhos de azevinho e visco, ostras eram abertas e bolos es- peravam em câmaras refrigeradas para serem servidos na sobremesa.

Gabrielle sentiu enjoo ao pensar numa ceia festiva. Ela estava em trânsito há quase vinte horas, mas quase nada havia mudado em sua per- plexidade, dor, desespero e petrificação interior.

Quando Joseph batera à sua porta, ela sentiu medo. Boy não teria acordado o mordomo, ele usaria a própria chave e, claro, teria chegado ao quarto sem ajuda de terceiros. Alguma coisa que perturbava a ordem tinha acontecido. Lá no fundo de sua mente a suspeita de uma tragédia era despertada, mas ela a descartou. Boy possuía a aura de um herói, nada poderia acontecer a um homem como ele. Mas então o bom e fiel Joseph desferiu o golpe. Com cuidado, atenção, empatia. Claro. Em ne- nhum momento seu mordomo perdeu a calma, embora ele certamente também estivesse devastado com a notícia trazida por monsieur Balsan.

De súbito, tudo havia mudado. Gabrielle sentiu quase fisicamente a sua vida se partindo em pedaços.

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Em seguida, veio a esperança de que se tratava de um engano.

Ela se agarrou a esse pensamento durante alguns minutos grotescos. Mas rapidamente se deu conta de que Étienne não teria vindo no meio da noite de Royallieu até Saint-Cucufa para fazer uma brincadeira. E Joseph não en- traria no seu quarto naquela hora movido por uma bagatela. Não, Boy não estava mais entre eles. De repente nada era mais importante do que seu desejo de vê-lo. Talvez ela precisasse ter uma prova de que ele realmente ti- vesse morrido. Provavelmente ela queria se convencer de que ele não tinha sofrido. Ela queria velá-lo. Ele era seu homem mesmo sem ser seu marido, e ainda assim a parte mais importante de sua vida. Não, não era uma parte – ele era a sua vida inteira.

Sem Boy, coisa alguma fazia sentido.

Ela não comeu nada e enquanto Étienne parou no meio do cami- nho numa pousada, ela protestou para tomar o café que ele lhe trouxe- ra; mais não queria. Ela nem desceu do carro. Ficou sentada no banco de couro como que congelada. E estava tão silencioso quanto em casa, na La Milanaise. O amigo não merecia o silêncio, ela sabia. Mas Gabrielle tinha a sensação de não conseguir falar mais do que o essencial – como se Boy também tivesse levado sua fala. Para longe. Para sempre.

Étienne não conduziu seu carro pela subida sinuosa até a entrada principal do Hotel Carlton, mas parou embaixo. O motor morreu. Por um instante, o silêncio reinou no carro, do lado de fora ruídos de festa eram abafados pelos vidros erguidos. Étienne inspirou profundamente antes de se virar para ela. “Espero que encontremos Bertha. Tenho a informação de que ela se hospeda aqui. A irmã dele será quem melhor vai saber o que aconteceu com Boy e onde o corpo está sendo velado.”

“Sim”, ela disse apenas. Gabrielle ergueu o colarinho de seu sobre- tudo e escondeu o rosto pálido nele.

Num gesto quase paternal, Étienne tocou seu braço. “Você precisa dormir um pouco, com certeza. Certamente haverá dois quartos livres e...”

Dormir? Que ideia idiota. Como se ela tivesse de aceitar que sua vida prosseguia. Como ela conseguiria dormir sem ao menos ter visto Boy mais uma vez?

“Não.” Ela balançou a cabeça com veemência. “Não. Por favor.

Descanse você. Você merece uma cama de hotel. Ficarei esperando no carro.”

Silêncio.

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Gabrielle notou que o amigo estava profundamente desconfortá- vel. Seus maxilares se movimentavam como se ele cerrasse os dentes para esmagar a raiva que possivelmente sentia dela. Claro que ele estava cansa- do depois da longa viagem. Uma segunda noite sem dormir cobrava seu preço inclusive em homens cheios de vida como Étienne Balsan. Mas ela não o liberou de sua tortura.

“Volto logo”, ele prometeu afinal. Hesitou brevemente mais uma vez e acabou descendo do carro.

Ele venceu a subida com passadas ágeis. Era um homem incomu- mente alto para um francês, inclusive superando Boy em meia cabeça. No começo, foi a estatura de Étienne o que mais impressionou Gabrielle. Era compatível com a dos briosos oficiais da cavalaria, com os jogadores de polo e com os criadores de cavalos. Um homem de postura impecável. Um amigo melhor do que ela jamais imaginara.

Enquanto observava Étienne, Gabrielle começou automaticamente a procurar pela carteira de cigarros dentro da bolsa. Tratava-se quase de um reflexo. Ela fumava o tempo todo, já estava envolvida com os cigarros quando fumar ainda não era considerado comme il faut para uma dama. A nicotina tinha um efeito calmante para ela. Ter na mão o tabaco enrolado no papel fino, em brasa, ou a piteira, lhe dava uma segurança muito espe- cial. No começo, ela se divertia em fazer algo que não era convencional e que chocava os paladinos dos bons costumes. Nesse meio-tempo, os cigar- ros se tornaram sua companhia natural. E ninguém mais se escandalizava com mulheres usando calças de montaria ou fumando. Coco Chanel havia trazido novos ventos à moda.

O isqueiro de bolso também foi encontrado rapidamente. Ela tocou o mecanismo de ignição e uma chama azul de gás surgiu na escuridão do carro.

Em sua mente, uma faísca se acendeu. Uma pequena luz amarela na noitinha verde-azulada de uma noite de verão no interior. Estava quase escuro no terraço, mas à luz do isqueiro, Gabrielle conseguiu ver nitida- mente a mão pequena, bem-cuidada, de unhas polidas...

“Uma mulher como você nunca deveria ter de acender o próprio cigarro”, afirmou uma voz masculina áspera com um ligeiro sotaque, como se a pessoa tivesse engolido uma rolha.

Ela não prestou atenção no conselho e inalou, sem fazer maiores comentários, a primeira tragada. Com o olhar voltado para os dedos do

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estranho que agora sacudiam o fósforo, concluiu: “Você tem mãos de mú- sico”. A cada palavra ela soltava minúsculos círculos brancos de fumaça.

“Toco um pouco de piano.” Embora ela não estivesse vendo, sabia que ele sorria. “Mas sou melhor no polo.”

“É por isso que você está por aqui?” Ela fez um movimento amplo com a mão que abarcava todo o castelo de Royallieu, os estábulos com os puros-sangues de Étienne e o campo de jogo ao lado do parque.

Ele balançou a cabeça. “Creio que o destino me trouxe até aqui para encontrá-la, mademoiselle Chanel.”

“Verdade?” Ela riu dele de uma maneira nada galante. Também não tinha a intenção de flertar com o desconhecido. “Já que você conhece o meu nome, eu deveria saber com quem estou falando.”

“Arthur Capel. Meus amigos me chamam de Boy”.

“Coco?”

Ela estremeceu.

Demorou um pouco até que a mente de Gabrielle voltasse à rea- lidade. A lembrança daquela noite de verão em Royallieu a assombrara.

Sentiu claramente a presença de Boy, cada segundo de seu primeiro encon- tro. Ele tinha estado junto dela. Dolorosamente se deu conta de que estava no carro de Étienne e não no terraço de Étienne – e não no começo da vida com Boy, mas no final.

Em silêncio, ela desceu o vidro e jogou a bituca na rua.

“Falei com Bertha”, disse Étienne. “Ela está inconsolável...” Ele se interrompeu, fez uma pausa, antes de acrescentar: “Claro que está”.

Um ventinho morno entrou, dava para ouvir o marulho das ondas.

Nos arredores, uma animada voz de barítono desafinava Jingle bells: Dashing through the snow

in a one-horse sleigh...

Gabrielle voltou a subir o vidro.

“Onde posso vê-lo?”, ela perguntou baixinho.

Étienne suspirou. “Você... Nós... Eu...” Ele parou com os balbucios de- solados, esfregou os olhos. “Perdão, Coco. Vamos nos deitar por umas hori- nhas. Pelo menos até o nascer do sol. Bertha está lhe oferecendo a suíte dela...”

“Onde está Boy?”, ela insistiu.

Num primeiro instante ele não respondeu, depois soltou a voz.

Parecia berrar com alguém que não estava presente: “O caixão já foi

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fechado e levado para um navio. Hoje pela manhã aconteceu uma cerimô- nia fúnebre na catedral de Fréjus com todas as honras militares. Madame Capel tinha pressa. Ela se preocupou em garantir a presença da comuni- dade britânica da Côte d’Azur e nenhum dos amigos franceses dele pôde se despedir.” Por um instante, ele perdeu o controle e esmurrou o volante, mas logo se conteve novamente. Como se não compreendesse como as coisas pudessem ter se passado daquele jeito, ele murmurou: “Sinto muito, Coco. Chegamos tarde demais”.

Diana quis evitar que eu estivesse presente na cerimônia fúnebre, ela pensou. Na vida, Boy era meu; na morte, ele me foi tirado por ela.

O choque veio na sequência desses pensamentos. Ela começou a tremer. Como num calafrio muito forte. Ela estava sentindo frio. Ao mesmo tempo, ficou tonta. A fachada diante do para-brisa se transformou numa massa escura. A dor de cabeça martelava sua testa, o corpo foi tomado por enjoo, os ouvidos zumbiam. Seus dedos procuraram apoio no painel e agarraram o vazio. Todos os sentidos foram afetados de uma só vez. Só as lágrimas redentoras não vinham.

Étienne tomou sua mão gelada. “Você se desestruturar não vai tra- zer Boy de volta. Por favor, Coco, vamos entrar e dormir um pouco. Se você não quiser ficar com Bertha, vou pegar um quarto para você...”

O cérebro dela ainda funcionava. “Bertha sabe onde foi o aciden- te?”, ela sussurrou.

“Sim. Ela disse que aconteceu na estrada nacional 7, entre Saint- -Raphaël e Cannes, em algum lugar na região de Fréjus, próximo a uma pequena cidade chamada Puget-sur-Argens.”

“Quero ir até lá.”

“Amanhã”, ele prometeu com um tom de voz desesperado. “Amanhã te levo lá, assim que clarear. Por favor, seja razoável e agora venha comigo para o hotel.”

Ela não retrucou. O que havia para discutir? Ela não podia passar as próximas horas dentro do carro de Étienne estacionado no centro de Cannes. Era inevitável que em algum momento a polícia haveria de apa- recer e o escândalo estava dado: Coco Chanel tinha passado a noite num automóvel em vez de se registrar num hotel! Sair imediatamente até o local do acidente, esse era seu impulso. Mas ela não podia exigir que Étienne empreendesse mais uma perigosa viagem noturna. Ele a tratara com tan- to carinho, mais do que um amigo, quase um irmão. Merecia que ela se

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mostrasse razoável e lhe permitisse algumas horas de sono. O fato de ela própria não conseguir descansar era outra coisa.

As pernas ameaçaram não funcionar, mas Gabrielle finalmente desceu do carro. Os músculos estavam tensos de tantas horas sentada, os ossos lhe doíam. Ela tropeçou ao dar o primeiro passo, mas Étienne pegou- -a pelo braço e ofereceu apoio.

Étienne esclareceu ao porteiro que Lady Michelham aguardava mademoiselle, e depois o amigo escolheu para si outro quarto no mesmo andar.

Gabrielle ficou calada. Nem uma palavra enquanto atravessavam o saguão de mármore até o elevador, observada com desconfiança pelos outros hóspedes que se admiravam pelos trajes inadequados e a falta de bagagem, além de sua aparência fantasmagórica. Gabrielle não tomou co- nhecimento dessa gente.

O que lhe interessava os vivos? Seus pensamentos concentravam- -se em um morto. Ela ficou calada quando o mensageiro acompanhou-os à suíte de Bertha. Apenas marchava lado a lado de Étienne pelo comprido corredor do hotel, os saltos de seus sapatos espetavam em silêncio as cer- das felpudas do tapete.

Ao contrário de Gabrielle, a irmã de Boy estava banhada de lágri- mas. Ela beijou as faces secas de Gabrielle, deixando-lhe um filme úmido sobre a pele.

“É terrível”, Bertha soluçou. “Quisera eu que nos víssemos em ou- tra circunstância.”

“Sim”, Gabrielle retrucou secamente.

“Você precisa descansar, querida. Pedi para arrumarem a cama aqui ao lado...”

“Não”, Gabrielle se interpôs. “Não preciso de cama.” Ela olhou para a sala elegantemente decorada com móveis Luís XVI até que seus olhos se fixaram na chaise-longue junto à janela. “Se você não se importar, gostaria de me sentar ali.”

Irritada, Bertha olhou para a porta do segundo quarto. Seus cílios encharcados com lágrimas tremiam. “Como você quer dormir aí? Vá para a cama, é muito mais confortável.”

Gabrielle balançou a cabeça e sem mais explicações foi até o móvel estofado. Sentou-se ereta. Sentia-se grata por Étienne já ter se recolhido ao seu quarto. Provavelmente suas estratégias de persuasão seriam mais difíceis de serem suportadas do que os ataques desesperados de Bertha.

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Ela não se despiu, rejeitando a camisola leve, o penhoar e a co- berta fina que Bertha pediu que lhe trouxessem. Completamente vestida, Gabrielle ficou no lugar que havia escolhido, olhando para a janela.

Dali ela conseguia olhar para o céu. Era o melhor lugar possível para seu velório particular. Depois de lhe negarem um último olhar ao seu amado, talvez ela conseguisse ao menos enxergar a ascensão da alma de Boy ao paraíso.

O sol nascendo mergulhou as formações rochosas muito recortadas numa luz púrpura e os pinheiros-bravos destacavam-se feito debruns pretos so- bre o vestido azul-claro do céu da manhã. O mar à esquerda da estrada que ondulava curvas fechadas era um tapete platinado, longínquo.

O motorista que Bertha Michelham lhes colocou à disposição di- rigia devagar no perigoso trajeto. Ele certamente estava tão concentrado como seus passageiros porque também pensava no acidente que motivava aquela viagem. Bertha havia sugerido a Étienne e Gabrielle usarem seu carro para irem até o local da tragédia. Uma solução prudente, pois assim ela tirava de Étienne a tarefa da procura – seu funcionário conhecia o lugar.

Mas, apesar de toda cautela, o motorista não pôde evitar que o car- ro derrapasse ao ultrapassar uma carroça puxada por um burro quando, no mesmo instante, teve de desviar do coelho que havia saltado das folhagens de um zimbreiro para a pista.

Gabrielle, amuada no banco traseiro, foi atirada contra os ombros de Étienne. Inconscientemente, ela segurou a respiração, perguntando-se se aquele era seu fim. Um segundo acidente na estrada entre Cannes e Saint-Raphaël num intervalo muito curto de tempo. Um grande amor que chegou ao fim nesse maciço montanhoso. Provavelmente a melhor solução seria mesmo ela seguir Boy.

“Não aconteceu nada”, disse Étienne, acariciando de leve o braço dela, antes de empurrá-la de volta ao seu lugar. O carro voltou a rodar sua- vemente através da paisagem solitária.

Não, pensou Gabrielle enquanto olhava pela janela, minha morte não seria a melhor solução. Seria o caminho mais simples, mas não aquele que Boy teria escolhido. Ela não sabia como continuar vivendo sem ele. Mas

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teria de encontrar um jeito. Mais tarde haveria de pensar em como viver sem o homem que, na realidade, foi quem lhe dera a vida. A vida de Coco Chanel.

Ele não fora apenas seu amante, mas também pai, irmão, amigo.

Mademoiselle, monsieur, chegamos.” O motorista freou o carro, estacionou no acostamento, o motor silenciou. Depois desceu, a fim de abrir a porta aos passageiros.

Gabrielle sentiu como se estivesse observando a si mesma. Como se observasse uma mulher com trinta e poucos anos que segura o chapéu que ameaça voar devido ao vento que sopra naquela altitude. Cuja roupa está amassada, que se movimenta com passos cuidadosos, desajeitados.

Havia restos de um carro incendiado que havia sido puxado da ribanceira até a lateral da estrada. As rochas e suas quinas começavam a descer logo atrás; eucaliptos e arbustos partidos indicavam onde o carro estivera.

Gabrielle estava sozinha, ambos os homens que a acompanhavam ficaram para trás, zelosos. Como num transe, ela se enxergava -- a mulher se aproximando dos destroços queimados, retorcidos, de lata, madeira, couro e borracha, outrora um conversível. Tudo tão irreal quanto uma se- quência de cinema.

Apenas quando se postou bem ao lado dos escombros é que ela tomou consciência da realidade. Um cheiro forte lhe subiu ao nariz. O fe- dor de gasolina, enxofre e borracha queimada ainda pairava sobre o carro.

Curiosamente o olfato expunha mais intensamente a realidade do terrível acidente do que a visão. De repente aquilo que ela não conseguia conceber até então se tornara muito concreto.

O sol espocava flashes brilhantes que se alternavam com sombras escuras mais longas; o conjunto ofuscava o motorista. O vento que vinha de encontro estava úmido e frio, fazia a pele formigar; ao se encontrar com a respiração quente, embaçou seus óculos. Entretanto, ele continuava em alta velocidade, como se estivesse num percurso reto e de excelente vi- sibilidade. Ele dirigia sempre muito rápido, não era um homem que fizes- se nada de maneira refletida ou lenta. O ronco do motor era música para seus ouvidos, por vezes scherzo por vezes rondó. Os freios guincharam. Aço raspando sobre aço, borracha sobre lona. Em seguida, o carro se ergueu no ar, quebrou arbustos e árvores, para finalmente bater no canto de uma rocha e explodir numa bola de fogo.

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Gabrielle estendeu a mão com cuidado, tocou os restos amassados do Rolls-Royce, imaginando que se queimaria. Mas o metal já estava tão frio quanto o corpo de Boy no caixão.

Nesse instante, ela desmontou. As lágrimas que não queriam es- correr desde a chegada de Étienne em La Milanaise vieram aos borbotões.

Como se todas as comportas de seu corpo, alma, coração, fossem abertas, Gabrielle começou a chorar.

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