Leonardo Santos Simão* | Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação da República de Moçambique
AO LONGO DOS TEMPOS, os povos africanos demonstraram sempre uma vontade firme de serem donos do seu destino, associada a um desejo manifesto de cooperar com outros povos.
As diversas formas de luta que os africanos adoptaram contra o colonialismo tiveram, como factores comuns:
(i) a conquista da independência política, que lhes permitisse tomar decisões pró- prias e;
(ii) a conquista da independência económica, através da exploração e transformação dos recursos naturais, abundantes no continente.
Cedo, a experiência demonstrou-lhes que a sua luta pela independência, para ser bem sucedida e abrangente, necessitava de um instrumento unificador e co- ordenador e, assim, a 25 de Maio de 1963, os países africanos criaram a Orga- nização da Unidade Africana (OUA), em Adis Abeba.
A Carta da OUA é explícita no seu preâmbulo e articulado, quanto aos objec- tivos políticos, económicos e sociais prosseguidos pela então nova organização con- tinental, nomeadamente os seguintes1:
(i) “a promoção da unidade e solidariedade dos Estados Africanos”;
(ii) “a coordenação e intensificação da sua cooperação e esforços para o alcance de melhor vida para os povos de África”;
(iii) “a defesa da sua soberania, integridade territorial e independência”; (iv) “a erradicação de todas as formas de colonialismo em África”; e
(v) “a promoção da cooperação internacional, tendo em conta a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
*O autor é médico de profissão, com um mestrado em Saúde Pública pela Escola de Saúde Pública de Londres. Desde 1994, exerce as funções de Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação da Repú- blica de Moçambique, após ter sido Ministro da Saúde, de 1988 a 1994. Tem estado envolvido nas nego- ciações que levaram à criação da União Africana e da Nova Parceira para o Desenvolvimento de África. 1“OAU Charter and Rules of Procedures” (1992): OAU General Secretariat, Addis Abbeba, Ethiopia.
África em busca de um futuro melhor:a União Africana
África em busca de um futuro melhor: a União Africana
Introdução
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8 A referida Carta preconiza ainda a coordenação e harmonização de políticas gerais entre os Estados-membros, principalmente nas áreas político-diplomática, cooperação económica e técnica, bem como na defesa e segurança.
Apesar dos objectivos abrangentes definidos pela OUA em 1963, quis a história que a grande vitória da Organização fosse a libertação do continente do jugo colonial, tendo registado poucos progressos em outras áreas de cooperação. Mais ainda, quando se olha para a estrutura da orgânica da OUA, torna-se claro que a Organização não criou instrumentos eficazes para a realização do conjunto dos seus objectivos, excepto os de natureza política.
Embora sem estruturas adequadas, a OUA nunca perdeu a perspectiva da sua agenda global, o que é atestado pelas seguintes resoluções, declarações e outros ins- trumentos:
– Resoluções que preconizavam a integração económica africana: Argélia (1968), Adis Abeba (1970 e 1973);
– Declaração (Ministerial) de Kinshasa (1976), que preconiza a criação da Comu- nidade Económica Africana;
– Cimeira de Libreville (1977), que endossa a Declaração de Kinshasa;
– Plano de Acção de Lagos (1980), que decide sobre a criação da Comunidade Eco- nómica Africana, até ao ano 2000;
– Cimeira de Abuja (1991), que estabelece, finalmente, a Comunidade Económica Africana e indica etapas para a sua implementação plena, ao longo dos próximos 35 anos, incluindo a criação das Comunidades Económicas Regionais, tais como a SADC, CEDEAO, a Comunidade de Estados da África Central, e outros.
Um dos maiores impedimentos ao desenvolvimento económico e social de África, após as independências nacionais, foi a existência de inúmeros conflitos, quer intra-estatais, quer interestatais. Esta situação levou à realização da “Con- ferência Africana sobre Segurança, Estabilidade, Desenvolvimento e Cooperação em África”, em Kampala, Uganda, nos princípios da década de 90, que recomendou um conjunto de medidas destinadas a pôr cobro a este estado de coisas.
Assim, ao longo da sua existência, a OUA tomou uma série de decisões para fazer face aos grandes desafios do continente, mas, como já referido, o progresso económico e social não aconteceu na medida do desejado, mas a vontade política dos Estados-membros de alcançá-lo mantinha-se inabalável.
Entretanto, o mundo inicia um ciclo de grandes mutações políticas, econó- micas, sociais e culturais, simbolizado pela queda do Muro de Berlim, em 9 de
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Novembro de 1989. A Guerra Fria chegou ao fim e dá origem ao conceito de 9
“dividendo da paz”, segundo o qual, os vastos recursos humanos, tecnológicos e financeiros usados no conflito Leste-Oeste passariam a estar livres e seriam di- reccionados ao desenvolvimento global do planeta, em particular do continente africano.
Neste contexto, as Nações Unidas e outras organizações internacionais realizam inúmeras conferências, tendo o tema “desenvolvimento” como dominante. Vários livros e artigos de imprensa são produzidos, mesas redondas e palestras têm lugar em todo o mundo, para debater a questão do desenvolvimento. Várias organizações internacionais e regionais realizam exercícios de introspecção crítica, procurando certificar-se se os modelos organizacionais que adoptaram são ainda adequados aos novos tempos que nascem, e iniciam processos de auto-reforma. Debates intensos e reformas também têm lugar ao nível dos Estados, nas esferas política, económica, social e cultural. A OUA não poderia ficar à margem deste movimento universal.
Por iniciativa da Líbia, os Che- fes de Estado e de Governo da OUA encontraram-se em Sirte para discutir o futuro do continente, tendo em conta a experiência acumulada pela OUA, as mudanças políticas e económicas que ocorrem no mundo, geralmente designadas por “globa- lização”. Nessa reunião, os Membros da OUA aprovaram, a 9 de Setembro de 1999, a Declaração de Sirte, que, no essencial, preconiza:
(i) a criação da União Africana, organização continental sucedânea da OUA; (ii) a aceleração da implementação do Tratado que cria a Comunidade Económica Africana (Abuja 1991), considerando que o período previsto de 35 anos é dema- siado longo e os desafios que o continente enfrenta são prementes;
(iii) a convocação de uma conferência ministerial africana sobre Segurança, Esta- bilidade, Desenvolvimento e Cooperação em África, a fim de rever e actualizar o documento da conferência de Kampala.
No imediato, teve início o processo negocial intenso e complexo, que culminou com a adopção pela 36.ª Cimeira da OUA, realizada em Lomé, Togo, a 11 de Julho de 2000, do Acto Constitutivo da União Africana, documento que engloba 33 ar- tigos. No fundamental, a União Africana (UA) retoma os dispositivos contidos na Carta da OUA, no Tratado de Abuja de 1991 e na Declaração sobre Segurança, Es- tabilidade, Desenvolvimento e Cooperação em África, esta última aprovada numa conferência ministerial que teve lugar em Abuja, Nigéria, entre outras fontes.
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A génese da União Africana, seus objectivos e princípios
10 Os objectivos da União Africana são os seguintes2:
a) “o alcance de maior grau de unidade e solidariedade entre os países africanos e os povos de África”;
b) “a defesa da soberania, integridade territorial e independência dos seus Estados- -membros”;
c) “a aceleração da integração política e económica do continente”;
d) “a promoção e defesa de posições africanas comuns, em questões de interesse para o continente e para os seus povos”;
e) “o encorajamento da cooperação internacional, tendo em devida conta a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos”;
f) “a promoção da paz, segurança e estabilidade no continente”;
g) “a promoção de princípios democráticos e instituições, participação popular e boa governação”;
h) “a promoção e protecção dos direitos humanos e dos povos, de acordo com a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e outros relevantes instrumentos dos direitos humanos”;
i) “o estabelecimento das condições necessárias que capacitem o continente a jogar o seu papel de direito na economia global e em negociações internacionais”; j) “a promoção de um desenvolvimento sustentável aos níveis económico, social e cultural, bem como a integração das economias africanas”;
k) “a promoção da cooperação em todas as áreas da actividade humana, para ele- vação dos níveis de vida dos povos africanos”;
l) “a coordenação e harmonização de políticas entre as Comunidades Económicas Regionais existentes e futuras, para o alcance gradual dos objectivos da União”; m) “acelerar o desenvolvimento do continente, através da promoção da pesquisa em todas as áreas, particularmente nas da ciência e tecnologia”;
n) “trabalhar com os relevantes parceiros internacionais na erradicação de doenças preveníveis e na promoção de boa saúde no continente.
Quanto aos princípios de funcionamento são de salientar os seguintes:
a) “a igualdade soberana e interdependência entre os Estados-membros da União”; b) “o respeito pelas fronteiras existentes na altura da independência”3;
c) “a participação dos povos africanos nas actividades da União”;
2“Constitutive Act of the African Union” (2000): OAU General Secretariat, Addis Abbeba, Ethiopia.
3É de notar que este princípio não consta da Carta da OUA e foi aprovado através de uma resolução de 1965.
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d) “o estabelecimento de uma política de defesa comum para o continente africano”; 11 e) “a resolução pacífica de conflitos entre os Estados-membros, através de medidas apropriadas tais que possam ser decididas pela Assembleia”;
f) “o direito de intervenção da União num Estado-membro em cumprimento de uma decisão da Assembleia, em função de graves circunstâncias, nomeadamente: crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade”;
g) “o direito de os Estados-membros solicitarem a intervenção da União para o restabelecimento da paz e segurança”;
h) “a promoção da igualdade de géneros”;
i) “o respeito pelos princípios democráticos, direitos humanos, Estado de Direito e boa governação”;
j) “a promoção da justiça social, que assegure um desenvolvimento económico equi- librado”;
k) “o respeito pela santidade da vida humana, condenação e rejeição da impunidade e assassinato político, actos de terrorismo e actividades subversivas”;
l) “a condenação e rejeição de mudanças inconstitucionais de Governos”.
Os órgãos da União compreendem as seguintes instituições:
a) a Assembleia da União, constituída pelos Chefes de Estado e de Governo; b) o Conselho Executivo, que integra Ministros dos Negócios Estrangeiros ou ou- tros, designados pelos Governos dos Estados-membros; na prática, trata-se do Conse- lho de Ministros da União;
c) o Parlamento Pan-Africano, que nos primeiros cinco anos da vida da União será constituído por representantes dos Parlamentos dos Estados-membros; mais tarde, haverá lugar à eleição de deputados para o Parlamento Pan-Africano, sendo cada Estado-membro um círculo eleitoral;
d) o Tribunal de Justiça, cujos estatutos, composição e funções são definidos em Protocolo próprio;
e) a Comissão, que é o Secretariado da União;
f) o Comité dos Representantes Permanentes, que integrará os Representantes Per- manentes dos Estados-membros junto à União e outros Plenipotenciários;
g) os Comités Técnicos Especializados, que serão responsáveis perante o Conselho Executivo pelas seguintes áreas:
(i) Economia Rural e Agricultura; (ii) Questões Monetárias e Financeiras; (iii) Comércio, Alfândegas e Imigração;
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12 (iv) Indústria, Ciência e Tecnologia, Energia, Recursos Naturais e Ambiente; (v) Transportes, Comunicações e Turismo;
(vi) Saúde, Trabalho e Assuntos Sociais; (vii) Educação, Cultura e Recursos Humanos.
Estes Comités serão constituídos por Ministros ou Altos Funcionários;
h) o Conselho Económico, Social e Cultural, que é um órgão Consultivo, composto por grupos profissionais dos Estados-membros;
i) as Instituições Financeiras serão: – o Banco Central Africano; – o Fundo Monetário Africano; – o Banco de Investimento Africano.
A análise dos objectivos e princípios adoptados pela União mostra a preocu- pação dos países africanos em criar uma instituição moderna, que toma em conta os resultados dos debates que têm tido lugar nos fora internacionais, a experiência africana no esforço de modernização dos seus Estados e práticas políticas, incluin- do mudanças inconstitucionais de Governos e prevenção de conflitos.
A participação popular nas actividades da União e dos próprios Estados-mem- bros é um forte instrumento de prevenção de conflitos, na medida em que vai evi- tar frustrações resultantes de sentimentos de exclusão. Esta participação é uma con- dição necessária, mas não suficiente. As questões económicas e sociais, tais como a dívida externa, o acesso à saúde, educação, água potável e nutrição, jogam igual- mente um papel de relevo, se queremos ver os conflitos erradicados do continente. O combate à pobreza é uma questão inadiável.
Assim, as estruturas previstas na União, inspiradas na União Europeia, vão asse- gurar a sustentabilidade e continuidade de acções programadas, o que já não acon- tecia com a OUA: aqui havia órgãos decisórios, sim, mas não faltaram eficazes ins- trumentos de implementação.
A experiência europeia, depois da II Guerra Mundial, sugere que o combate à pobreza e exclusão, através da integração e interdependência das economias dos países da então Comunidade Económica Europeia, foi um instrumento potente na prevenção de conflitos naquele continente. Esta experiência é útil para África.
Como ficou dito mais acima, o con- tinente africano não ficou alheio aos grandes debates do pós-Guerra Fria, que afinal ainda hoje ocorrem. Assim, chegaram à conclusão de que, no essencial, a libertação
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A nova parceria para o desenvolvimento de África
do continente havia sido alcançada (com excepção do Sahara Ocidental), pelo que 13 o tempo havia chegado para que outros grandes desafios fossem enfrentados, tais como:
– a pobreza extrema que grassa em África;
– o atraso social, na saúde, educação, abastecimento de água, nutrição e habitação condigna;
– a falta de infra-estruturas, tais como estradas, linhas de caminho-de-ferro, energia, transportes e comunicações.
Na África do Sul, o Presidente Thabo Mbeki produziu o Programa Milenar para a Recuperação de África (conhecido pela sigla inglesa MAP), que procura ser uma tradução programática do conceito e Renascimento Africano (African Renaissance). A versão final deste programa contou com a participação de vários países africanos, tais como, Argélia, Egipto, Líbia, Mali, Moçambique, Nigéria, Sudão, Tanzânia, Ugan- da e Quénia. Paralelamente, o Presidente senegalês, Abdulaye Wade, produzia o Plano Omega, com idêntico objectivo que o MAP, embora com uma abordagem algo diferente.
A Cimeira da OUA, realizada em Lusaca, Zâmbia, de 9 a 11 de Julho de 2001, decidiu fundir as duas iniciativas numa única, tendo ainda criado um Comité de Implementação de quinze Estado-membros, entre os quais se inclui Moçambique.
Tendo feito a fusão decidida pela Cimeira, o Comité de Implementação designou o novo programa por Nova Parceria para o Desenvolvimento de África, abrevia- damente conhecido por NEPAD.
Os objectivos do NEPAD são os seguintes: a) erradicação da pobreza;
b) prossecução do desenvolvimento sustentável; c) redução do fosso entre ricos e pobres;
d) criação de condições apropriadas para o bem-estar dos povos africanos.
As principais áreas de intervenção foram definidas como sendo: a) a paz, a segurança e a governação política;
b) a governação económica; c) o desenvolvimento humano; d) a agricultura e o ambiente;
e) a diversificação de produtos de exportação;
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14 f) o comércio e acesso aos mercados; e g) o fluxo de capitais.
É entendimento dos países africanos que o NEPAD dará substância à União Africana, cujas estruturas estão em processo de criação.
Entretanto, um intenso trabalho de marketing do NEPAD está em curso, junto aos parceiros internos e externos dos Governos africanos, com vista ao seu engajamento e comprometimento na implementação desta iniciativa.
O NEPAD é algo inovador em África, porque os africanos passam de um estádio de aprovação de resoluções e de declarações, e até de uma atitude reactiva em relação aos acontecimentos mundiais que os afectam, para assumirem uma postura de lide- rança e produção de um programa de desenvolvimento. A liderança africana deverá manifestar-se também na mobilização dos recursos endógenos do continente para a sua execução, cabendo aos parceiros externos um papel complementar. As Comuni- dades Económicas Regionais, tais como a SADC e a CEDEAO, são vitais para o su- cesso do NEPAD.
Existe a consciência de que os detractores de África não deixarão de realizar a sua acção desencorajadora, contudo, os africanos estão decididos a iniciar uma nova época histórica, tendo a União Africana e o NEPAD como instrumentos que os le- varão ao desenvolvimento económico e social, que firmemente acreditam ser pos- sível.NE
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