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Porquê votar NÃO. Argumentário contra o direito ao aborto

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Academic year: 2021

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Porquê votar “NÃO”

Argumentário contra o direito ao aborto

Texto Resumido – Versão 3

(Consultar o texto completo em http://www.espectadores.blogspot.com)

«A vida humana é inviolável.» – Constituição da República Portuguesa1.

1. A pergunta... 2

2. Factos jurídicos... 2

3. Noções fundamentais ... 4

3.1 Sobre o relativismo e as “consciências”... 4

3.2 Sobre a argumentação sólida e a argumentação falaciosa... 5

3.3 Sobre a coerência na argumentação... 5

3.4 Sobre a diferença entre licitude ética e legislativa... 6

4. Má argumentação... 7

4.1 Contra o direito ao aborto ... 7

4.2 Pelo direito ao aborto ... 8

5. A Ética do Aborto ... 11

5.1 Quando é lícito matar uma pessoa?... 11

5.2. O dilema ético do aborto ... 11

5.3 Contestação da formulação ... 12

5.4 Contestação da premissa (1)... 13

5.4.1 A objecção do “especismo” ... 14

5.4.2 A objecção da “potencialidade” ... 16

5.5 Uma solução inovadora ... 18

6. O drama humano e social do aborto ... 20

7. Conclusão... 23

Agradecimentos ... 27

Bibliografia ... 28

(2)

1.

A pergunta

«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»

Esta é a pergunta que será feita a 11 de Fevereiro de 2007 a todos os portugueses votantes. Algumas considerações introdutórias:

o Ilicitude do referendo: a pergunta não deveria ser referendada porque o direito à vida não deve ser referendado; se vencer a resposta “sim” a esta pergunta, este direito fundamental e universal passará a poder ser violado livremente, sob autorização legal, ao ser permitido terminar uma vida humana dentro das suas dez semanas de vida, sem qualquer justificação, apenas por vontade da mulher;

o Legalização e liberalização do aborto: a pergunta submetida a referendo, se respondida “sim”, permite, para além da descriminalização, a legalização e a liberalização do aborto1 até às dez semanas, porque o aborto deixa de ser crime, deixa

de ser uma conduta ilícita e torna-se livre e legal até às dez semanas sem que a mulher tenha que dar qualquer justificação para o seu desejo de abortar;

o Onde está o Projecto-lei? Não se conhece a formulação definitiva da lei penal que subjaz à resposta afirmativa à pergunta do referendo: os votantes não conhecem as alterações que serão introduzidas na lei do aborto, caso vença o “sim”;

o Como vai ser financiado o aborto? Não foi disponibilizada nenhuma informação acerca da forma como serão usados os dinheiros públicos para financiar total ou parcialmente as operações abortivas por vontade da mulher; os contribuintes que não aceitam o aborto livre podem objectar o uso das suas contribuições fiscais para fins cuja legitimidade ética não reconhecem; para além disto, num sistema de saúde com debilidades financeiras e logísticas como o público, é ainda inacreditável que o actual Ministro da Saúde, ao criar na lei o direito a abortar, canalize uma parte dos parcos recursos financeiros do nosso Sistema de Saúde para acabar com vidas humanas com menos de dez semanas por mera opção da mulher, enquanto doentes a sério aguardam meses em filas de espera nos estabelecimentos públicos de saúde.

2.

Factos jurídicos

o Protecção jurídica da vida humana intra-uterina: o Art.º 24.º da Constituição da República Portuguesa afirma que “a vida humana é inviolável”, o que, em teoria, deveria proteger a vida intra-uterina desde a sua concepção e deveria constituir uma barreira contra a introdução legal do aborto a pedido; o Art.º 140.º do Código Penal define claramente o crime de aborto como um “crime contra a vida intra-uterina”; não obstante, o Art.º 66.º do Código Civil diz que a personalidade jurídica tem o seu começo apenas com o nascimento; claramente, a fixação da barreira de personalidade jurídica não está feita com base em pressupostos éticos, e por isso, não faz sentido procurar legitimar eticamente o aborto só pelo facto de que a personalidade jurídica está definida apenas com o nascimento de um ser humano;

(3)

o Inconstitucionalidade: ninguém deve recorrer ao resultado da votação do Acórdão 617/061 do Tribunal Constitucional, datada de 15 de Novembro de 2006, na qual a

pergunta do referendo foi considerada constitucional por sete votos contra seis, para defender que a constitucionalidade da pergunta e do referendo é matéria “óbvia” ou “acima de discussão”, visto que a votação pendeu de modo tangencial para a constitucionalidade, com vantagem de apenas um voto; não será mais razoável admitir que o número de magistrados ideologicamente alinhados a favor do direito ao aborto venceu por um o número de magistrados que procuraram desempenhar o seu papel de forma profissional, tentando garantir e proteger a Constituição sem sucumbir a pressões ideológicas?2

o Moldura penal: o tratamento penal dado ao aborto é já razoável: três anos de pena máxima, a mesma pena máxima usada noutras situações como, por exemplo, a da cópia ilegal de material audiovisual, ou a da agressão física leve; esta pena máxima, como as penas máximas de outros crimes, serve de certo modo para marcar o grau de ilicitude de um acto grave, e apenas é aplicada em último caso;

o Em Portugal, nunca uma mulher foi presa por abortar; para além disto, o número de processos que vão a julgamento pelo crime de aborto é muito reduzido: uma série de circunstâncias já previstas na lei permitem a suspensão do processo, o que evita à mulher que abortou em circunstâncias desculpantes a exposição a um julgamento público; os poucos julgamentos ocorridos no nosso país, todos relativos a abortos efectuados após as dez semanas de gravidez, pareceram ser relevantes apenas pelo facto de que foram mediatizados pela comunicação social e aproveitados por certos fazedores de opinião que defendem o direito ao aborto;

o Suspensão do processo: poderia ser inserida na nossa legislação a aplicação da suspensão do processo, sempre que se verificassem os respectivos pressupostos, no caso do crime de aborto3, o que impediria a maioria dos raros casos de julgamento de

mulheres que abortam; contudo, o objectivo deste referendo é levar os votantes a decidirem-se pelo “sim”, de modo a criar uma novidade legal sem precedentes: a legitimidade de terminar a vida humana dentro das suas dez semanas de vida sem ser necessário apresentar qualquer justificação.

o A nossa lei do aborto é semelhante à espanhola: a legislação portuguesa em matéria de aborto é análoga à espanhola; em Espanha, é relativamente expedito obter autorização para fazer um aborto “legal”: basta que dois médicos assinem uma declaração atestando que a gravidez trará “perigo grave para a saúde psíquica” da mulher; esta expressão, também presente na nossa legislação, é de tal forma vaga que permite variadas justificações legais para o aborto; em Portugal, isto não é usado tantas vezes: não só porque a nossa classe médica, em larga escala, ainda vê correctamente o aborto como um acto eticamente ilícito, mas também porque o negócio das clínicas de aborto é quase inexistente no nosso país, enquanto que prospera em Espanha – as clínicas privadas espanholas que vendem abortos usam a subjectividade da lei para conduzirem abortos “legais”4.

1 Ler o texto conforme saiu em Diário da República: http://www.digesto.gov.pt/pdf1sdip/2006/11/22301/00020029.PDF. Contudo, o site do CNE tem uma versão mais fácil de ler: http://www.cne.pt/dl/apoio_rn2007_acordao.pdf 2 Ver esta questão com mais detalhe no capítulo 3.1 da versão completa deste texto.

3 É o que têm proposto vários grupos de cidadãos, infelizmente sem grande receptividade por parte do hemiciclo. Ver, por exemplo, “Proteger sem Julgar”: http://www.protegersemjulgar.com/projecto.htm

(4)

3.

Noções fundamentais

Antes de abordar a questão ética do aborto, é importante ter presentes algumas noções fundamentais, que quando não estão presentes viciam todo o raciocínio sobre este tema.

3.1 Sobre o relativismo e as “consciências”

Será a resposta a dar a este referendo algo de subjectivo, algo de pessoal, algo a relegar para as "consciências" de cada um?

O relativismo intelectual moderno, que faz com que se use cada vez menos (e a medo) conceitos como o de "verdade" ou "falsidade", "certo" ou "errado", "lícito" ou "ilícito", procura sempre varrer os problemas complexos para debaixo do tapete da subjectividade das consciências. No estado actual do debate sobre o aborto, isto sucede frequentemente em ambos os lados da discussão: é corrente o uso da expressão “matéria de consciência” tanto pelos defensores do direito ao aborto como pelos seus adversários.

Mas a questão ética do aborto, certamente complexa na sua argumentação, possui apenas três tipos de resposta:

a) É ilícito abortar em qualquer fase da gravidez; b) É lícito abortar em qualquer fase da gravidez;

c) É lícito abortar até certa fase da gravidez, sendo ilícito fazê-lo depois. Uma nota importante...

Visto que se trata de uma questão ética que envolve, pelo menos, duas pessoas, a mãe e o filho, é possível que surjam raríssimas situações de decisão médica que constituam um problema ético, mesmo sabendo que o objectivo do médico é sempre o de salvar a vida tanto da mãe como do seu filho1. Contudo, qualquer médico experiente sabe lidar com esses problemas e tomar a decisão que lhe parece acertada, sempre no sentido de maximizar a protecção de todas as vidas envolvidas.

A resposta a) é a resposta ética e coerente com a defesa do direito à vida do ser humano desde o princípio biológico da vida humana, ou seja, desde a concepção2.

A resposta b), aqui dada como possibilidade teórica, será defendida por muito poucos, visto que seria complicado explicar como poderia ser lícito matar alguém um minuto antes do nascimento, mas ilícito fazê-lo um minuto depois, a não ser que os adeptos da resposta b) também não vejam ilicitude no homicídio de crianças nascidas, vulgo “infanticídio”.

Resta, então, a opção entre a resposta a) e a resposta c), sendo que pretendo demonstrar que a última resposta é incoerente, porque não consegue explicar de modo satisfatório, em termos éticos e científicos, a existência de uma barreira ética de licitude/ilicitude num qualquer momento da gravidez.

Acima de tudo, deveria ser consensual de que esta não é uma questão de consciência pessoal. Em questões destas não há a “verdade de cada um”, uma expressão tipicamente relativista,

1 Tais excepções médicas são excluídas deste raciocínio, por várias razões: a) não é rigoroso usar o termo “aborto” nesses casos, porque a eventual morte do filho é acidental e nunca desejada, nem como fim nem como meio; b) não há situações médicas nas quais a morte do filho seja a única forma de salvar a vida da mãe – se a morte do filho ocorre como consequência indesejada e inevitável de uma intervenção cirúrgica para salvar a mãe, isso não é “aborto” em sentido ético, é apenas “aborto” no sentido de “morte natural pré-natal”.

(5)

muito usada hoje em dia. A pergunta do referendo está mal formulada, por várias razões1, mas

é possível vê-la como uma opção nítida entre o reconhecimento do direito ao aborto (resposta “sim”) e o não reconhecimento deste presumido direito (resposta “não”). Deste modo, e em absoluto, como ambas as respostas podem ser vistas como mutuamente exclusivas, haverá apenas uma resposta válida neste referendo. Ou a resposta errada é "sim" e a resposta certa é "não", o que eu defendo, ou sucederá o inverso.

É frequente vermos pessoas reputadas, com responsabilidades sociais e intelectuais, tentarem demitir-se da questão, procurando distinguir a sua opinião pessoal (que por vezes é ocultada da opinião pública) da legitimidade da posição do Estado em legislar sobre estas matérias de ética fundamental. Frases típicas como “eu tenho, cá para mim, as minhas convicções, mas acho que o Estado deve…” são exemplos claros de uma anomalia intelectual, que se está a tornar numa verdadeira “epidemia” da mente: a incoerente coabitação de duas “verdades” incompatíveis dentro do intelecto das pessoas que falam deste modo. Para uma dada premissa, neste caso, a licitude (ou ilicitude) do aborto, não há duas “verdades”, tem que existir apenas uma, senão é toda a lógica discursiva que sofre falência intelectual. Ao assumirmos com coragem a nossa posição (seja ela a favor ou contra o direito ao aborto), damos um sinal claro e confiante de que apoiamos com o nosso intelecto, com a nossa argumentação, aquilo que julgamos ser verdadeiro em absoluto.

3.2 Sobre a argumentação sólida e a argumentação falaciosa

A argumentação sólida é toda a argumentação que, partindo de determinadas premissas (que todavia também podem ser questionadas), constrói sobre elas uma estrutura dedutiva encadeada que permite chegar a uma ou mais conclusões sem que sejam cometidos erros lógicos ou falácias. O erro lógico é cometido sempre que se viola uma ou mais regras de lógica, como por exemplo, quando se toma uma implicação (válida apenas num sentido) como sendo uma equivalência (válida nos dois sentidos).

O termo “falácia” é aplicado quando estamos perante um erro fatal num argumento, seja porque deixámos de parte algum dado fundamental que invalidaria o nosso argumento, seja porque estamos de certo modo a fugir ao assunto usando argumentação evasiva, ou por outras razões. Em suma, uma falácia é um erro na essência do argumento que o invalida. Quando há falácia, o argumento não é válido e as suas conclusões são inválidas ipso facto. Apenas um detalhe terminológico: só existe “falácia”, ou “argumentação falaciosa”, quando se faz uma inferência lógica errada, ou seja, quando maus argumentos são usados por alguém para inferir erradamente uma determinada conclusão. Se as frases ou os argumentos estão isolados, se não há uma inferência nem uma conclusão, então não temos formalmente uma falácia2.

3.3 Sobre a coerência na argumentação

A coerência não é condição suficiente para estarmos certos. Pode-se ser coerentemente a favor do direito ao aborto, mas a coerência, sendo condição necessária, não é suficiente para que as conclusões sejam verdadeiras. Mas ser-se coerente é condição necessária para estarmos certos. Vejamos porquê…

A coerência argumentativa é a ausência de erros lógicos na estrutura de uma argumentação. Quando um argumento, como um todo, é coerente, não tem na sua estrutura sub-argumentos que sejam contraditórios ou mutuamente exclusivos.

1 Consultar, no capítulo A.6 da versão completa, as razões dos magistrados vencidos no Acórdão 617/06 do Tribunal Constitucional.

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Uma argumentação deve ser coerente para ser verdadeira (condição necessária). Contudo, a coerência de um argumento não é suficiente para permitir aferir a validade das conclusões desse argumento, e isto porque toda e qualquer argumentação tem que partir de pressupostos ou de premissas, de algo definido e aceite a priori sem ser questionado e sobre o qual se constrói o raciocínio. Se um argumento válido e coerente é construído sobre premissas falsas, as conclusões saem necessariamente falsas, mesmo que o processo dedutivo e argumentativo esteja construído de forma impecável.

O filósofo australiano Peter Singer, e apenas para sugerir um exemplo, é um pensador contemporâneo coerente nas suas teses a favor do direito ao aborto. Ou seja, partindo das premissas por ele estabelecidas a priori, Peter Singer chega coerentemente à sua conclusão acerca do direito ao aborto. Isso não permite que se deduza que as conclusões de Peter Singer estão certas, ou que o aborto é eticamente lícito, ou que o aborto é um direito da mulher, visto que há que questionar as suas premissas, há que questionar a validade dos seus pontos de partida, bem como a validade da sua visão ética do problema.

3.4 Sobre a diferença entre licitude ética e legislativa

Apenas uma grave distorção do que é o sufrágio democrático levaria alguém a supor que é o sentido do voto popular que confere licitude ou ilicitude em termos absolutos à proposta legislativa em discussão, que trata de uma matéria eminentemente ética, de universais direitos humanos. A aprovação por voto popular não tem o poder de conferir licitude absoluta a todos os actos e em todas as situações da vida em sociedade. O voto popular pode ajudar o legislador a conferir licitude legal a determinados actos, mas se essa licitude legal não está ancorada numa licitude ética (o caso do presumido direito ao aborto por opção da mulher), então a licitude legal não passa de uma farsa, não passa de um castelo erigido sobre nuvens…

Um exemplo chega para o demonstrar: se se referendasse acerca da licitude do homicídio1, e

vencesse o "sim", essa vitória por plebiscito não implicaria a licitude em absoluto do homicídio, mesmo que uma falsa licitude surgisse consequentemente materializada na legislação. Tal acto legislativo seria uma farsa. É por estas razões que me parece que matéria tão fundamental em termos de ética, como é a do aborto, não deveria ser sujeita à subjectividade do juízo popular, em larga medida ignorante nesta matérias, nem tão pouco posta em causa por qualquer governante responsável, do mesmo modo que nenhum governante tem o direito de colocar em causa a ilicitude do homicídio. Deveria ser matéria acima de discussão ou de votação! E aliás, é-o, visto que está plasmado na nossa Constituição o direito do ser humano à vida2. Note-se como a Constituição Portuguesa demonstra, claramente, que o direito está subjacente à “vida humana” e não a uma qualquer subjectiva definição de “pessoa humana”3.

1 Em bom rigor, quem atribui ao feto o direito à vida vê-se forçado, por coerência, a encarar o aborto como um tipo particular de homicídio. Contudo, na frase acima, o termo “homicídio” é, obviamente, usado no sentido de “homicídio de seres humanos já nascidos”.

2 Na revisão de 1997, pode-se ler «Artigo 24.º (Direito à vida). 1. A vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte.». Sobre este tema, consultar o capítulo 3.1 na versão completa do texto.

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4.

Má argumentação

4.1 Contra o direito ao aborto

Argumento Descrição

O uso de argumentação religiosa

Não deve ser usada argumentação religiosa para demonstrar a ilicitude ética do aborto. O aborto está errado porque atenta contra um direito fundamental e universal: o direito do ser humano à vida desde que esta começa biologicamente, ou seja, desde a concepção.

Usar argumentação religiosa reduz a universalidade da questão e desconsidera os ateus ou agnósticos que vêem o aborto como erro ético.

O apelo às emoções É ilícito recorrer a propaganda visual com imagens de crianças nascidas ou fetos na fase final da gravidez com a intenção de retratar a vida humana intra-uterina, no contexto deste referendo. Este referendo incide sobre o aborto a pedido até às dez primeiras semanas de gravidez, ou seja, ao estado de zigoto, de embrião e ao estado fetal inicial.

Também não é legítimo recorrer a imagens que não retratem um aborto nos moldes em que irá ser referendado: imagens, por exemplo, de canibalismo com fetos, ou de fetos abortados sem condições médicas adequadas, seriam ilegítimas porque o referendo incide sobre a realização de abortos em estabelecimentos de saúde autorizados para tal.

A “derrapagem” Não se devem usar argumentos “derrapantes” como este: «o aborto legal levará ao infanticídio legal de crianças nascidas» ou «o aborto legal levará à eutanásia involuntária ou não voluntária». Tais consequências não se podem deduzir directa e universalmente da acção de tornar o aborto legal até às dez semanas.

O apelo à ignorância «É inútil perder tempo com discursos, teorias, intelectualidades e minúcias éticas, porque o importante é afirmar a crueldade de matar um ser humano» «De nada vale debater filosofias e éticas, porque o aborto é um crime» Estas frases, estando certas nas conclusões, estão erradas nas premissas. Sendo contra o direito ao aborto, eu concordo com as conclusões destas duas frases, mas elas não podem ser deduzidas das premissas dadas acerca da suposta “inutilidade” do debate filosófico e ético. Este debate é fundamental e está no cerne da questão. Se aqueles que estão contra o direito ao aborto não conseguem sustentar racionalmente a sua posição, então deveriam abster-se de fazer juízos negativos acerca de tais teses.

O apelo à «dignidade da vida humana»

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4.2 Pelo direito ao aborto

Argumento Descrição

«Quem está contra o direito ao aborto não pensa na mulher»

Muitos defensores do direito ao aborto afirmam que os seus adversários não estão a ver a questão como um todo, porque de tão focados que estão na vida intra-uterina e na defesa dos direitos desta, se esquecem da mulher grávida e dos seus direitos.

Esta argumentação é enganadora e primária, pela simples razão de que o aborto tem, na verdade, duas vítimas: a vida humana que é terminada, e a mãe que muito provavelmente sofrerá toda a vida com o grave peso na consciência de ter tomado uma decisão terrivelmente errada.

Em última análise, quem está contra o direito ao aborto considera que os efeitos psíquicos que a mulher sofre em abortar são sempre piores que os de levar uma gravidez indesejada até ao fim.

A “inevitabilidade” do aborto

O erro defender o direito ao aborto com base neste argumento consiste em dizer que o aborto é inevitável e que, face ao problema real do aborto, a melhor solução seria torná-lo legal, evitando assim o problema de “saúde pública” que é o aborto clandestino. Este argumento, é fácil de verificá-lo com exemplos, está totalmente errado: os crimes de violação são também um flagelo e não se resolvem legalizando a violação.

A “hipocrisia” O facto de existirem pessoas, sem dúvida hipócritas, que abortam às escondidas e ao mesmo tempo se manifestam publicamente contra o aborto não faz do aborto um acto lícito! O carácter absurdo desta argumentação pode ser demonstrado recorrendo, de novo, a um exemplo em contrário: suponhamos que, no meio de uma manifestação pública contra a pedofilia, estão várias pessoas que têm a prática corrente de abusar de menores. Serão, sem dúvida, hipócritas, uma vez que condenam publicamente algo que eles mesmos praticam voluntariamente em segredo. Mas chegará isso para se afirmar que a forma para acabar com a hipocrisia destes pedófilos passaria por legalizar a pedofilia?

Também não se pode afirmar que uma pessoa que está contra o direito ao aborto, mas que já abortou no passado e está hoje arrependida, é uma pessoa hipócrita. A essência de se ser hipócrita está em desejar para os outros uma ética que nós próprios não cumprimos nem queremos cumprir.

O “direito” da mulher ao seu corpo

Quando se tenta concluir acerca da licitude do aborto numa qualquer fase da gravidez, há que tentar construir uma argumentação sólida em termos de direitos do feto versus direitos da mãe. No cerne da complexa questão do aborto está uma discussão de direitos que se sobrepõem e que importa discernir e contrabalançar: o direito do feto à vida e a sobreposição deste direito ao direito que a mulher tem acerca do destino que quer dar ao seu corpo1. Há no problema do direito ao aborto uma situação de colisão de direitos. Eu defendo que estes direitos não são iguais e não têm pesos iguais, sendo que há amplo debate filosófico e ético em torno destes direitos, da sua definição, e da sua ponderação. É por esta razão que pretender que o aborto é lícito porque a mulher tem o direito de dispor do seu corpo é uma argumentação medíocre, primária e inaceitável, e que é usada normalmente por pessoas com pouca formação ética e filosófica.

(9)

O apelo às emoções Um bom exemplo do uso ilícito deste apelo consiste em falar do zigoto, embrião ou mesmo do feto como "amontoados de células", que podem ser destruídos sem preocupações éticas. A grande diferença entre um zigoto, embrião ou feto, e um “amontoado de células” está no facto de que os primeiros, se alimentados e protegidos, irão evoluir até à autonomia biológica. Se for deixado crescer, o zigoto passará a embrião e a feto, e se tudo correr bem, terá uma existência biológica autónoma. Isso nunca aconteceria com um órgão isolado do nosso corpo, com um tumor, ou com outros agregados celulares que deixamos morrer sem receios éticos, como cabelos ou unhas.

O argumento socio-económico

Aqueles que defendem o direito ao aborto indignam-se ao verificar que as mulheres portuguesas de mais elevado estrato socio-económico podem deslocar-se para fora do país (Espanha, na maior parte dos casos) e praticar o aborto em melhores condições de higiene e segurança, enquanto que as mulheres de mais baixa condição se vêem “empurradas” para o aborto clandestino. É falso todo o argumento que procure, com base no recurso a uma pretensa razão de justiça social, legitimar o aborto como forma de providenciar esse “direito” a todas as mulheres, independentemente da sua condição socio-económica. O aborto não é um direito, nem para as mulheres de alta condição socio-económica, nem para as mulheres de baixa condição socio-económica.

O apelo à ignorância «Nunca se saberá quando começa a vida humana, por isso o melhor é proteger as mulheres e deixá-las abortar»

«Nunca se saberá definir “pessoa humana”, e como cada um tem a sua ideia individual do que é uma “pessoa”, o melhor é proteger as mulheres e deixá-las abortar»

Este tipo de argumentação é totalmente evasiva: existe, hoje em dia, amplo debate ético e filosófico acerca da vida humana, acerca da pessoa humana, acerca dos direitos do ser humano, e acerca da licitude ou ilicitude do aborto. Se aqueles que defendem o direito ao aborto não conseguem sustentar racionalmente a sua posição, então deveriam abster-se de fazer juízos negativos de valor acerca de tais teses.

A “tirania dogmática” «Voto “sim” no referendo porque os defensores do “não” não têm o direito de impor as suas convicções religiosas ao resto da população»

«Os defensores do “não” têm que ser travados, porque querem obrigar todos os portugueses a seguir as suas pessoais e subjectivas convicções religiosas» Esta argumentação é falaciosa e isso demonstra-se facilmente com o recurso à lógica. É acertada a dedução desta implicação:

(1) Sou crente ⇒ Sou contra o direito ao aborto

É verdade que a esmagadora maioria das regras de conduta com base religiosa ou metafísica condenam o acto de abortar1. Mas, por outro lado, está errada esta equivalência:

(2) Sou crente ⇔ Sou contra o direito ao aborto E isto pela simples razão de que esta implicação é falsa: (3) Sou contra o direito ao aborto ⇒Sou crente

O uso desta falácia é um desrespeito pelos que vão votar “não” no referendo, mas que não têm crenças religiosas. Há muitas pessoas que, baseando-se em princípios éticos fundamentais e universais (as verdadeiras razões para se estar contra o aborto), se manifestam contra o direito a abortar, e no entanto não partilham de nenhuma crença religiosa.

«A lei actual não evita o aborto»

Poderíamos também afirmar que a lei que criminaliza a violação pouco fez para a evitar, sobretudo no âmbito da violência doméstica, ou que a lei que criminaliza o tráfico de droga pouco fez para o evitar. A solução para combater um crime nunca passa por o legalizar.

(10)

«A mulher sabe decidir sozinha»

A mulher que decide abortar não está a tomar uma decisão apenas acerca da sua vida. Está a decidir também a continuação ou não da vida do seu filho. Está a ponderar matar o seu filho, ou deixar que um cirurgião o mate por si, sem ter em consideração o direito à vida que o seu filho tem.

Todos nós, homens adultos ou mulheres adultas, devemos ser independentes, responsáveis, capazes de tomar decisões sozinhos acerca das nossas vidas. Mas podemos decidir a vida de outra pessoa? É também certo que muitas vezes tomamos decisões más. Matar uma pessoa inocente é uma decisão má. Como vemos, este mau argumento, bem como muitos dos anteriores, nasce da não consideração do aborto como um crime ético: a privação de uma vida inocente que não nos pertence.

Alguns exemplos bastam para vermos o erro desta argumentação. Outros crimes, como o crime de violação, de roubo, de abuso de menores, são crimes cujos autores os podem cometer sozinhos, de forma independente, mesmo consciente. Um criminoso, quando comete um crime, pode saber bem o que está a fazer. Contudo, o que ele faz não deixa de ser um crime por ter sido feito de forma consciente, porque ao cometê-lo viola um direito fundamental de uma pessoa inocente. Os defensores do direito ao aborto, com o uso deste mau argumento, querem convencer-nos de que a melhor coisa que o Estado tem a fazer, perante uma mulher que se prepara para optar por um crime, é apoiá-la nesse crime. Ajudá-la a cometê-lo. Deixá-la cometer esse crime numa clínica autorizada para o efeito, com a ajuda de médicos cooperantes na autoria do crime. Este argumento não colhe.

«Para acabar com a humilhação»

Quando se usa este argumento para legitimar o direito ao aborto, procura-se evocar a “humilhação” dos julgamentos em tribunal. Há, por detrás deste mau argumento, uma grande confusão acerca da Justiça e da sua importância social. A Justiça não é uma instituição criada para humilhar. Afirmá-lo é difamar um dos pilares das sociedades modernas. Os tribunais, os juízes, todo o edifício jurídico, existem para defender a pessoa comum. Existem para garantir uma sociedade justa. O erro está em considerar:

1. Que toda a mulher que aborta é levada a julgamento: tal sucede muito raramente; e quando isso sucedeu, não foi aplicada pena de prisão;

2. Que a Justiça existe para humilhar em vez de proteger;

3. Que a mulher que aborta a sua gravidez não comete um crime objectivo. Poderíamos ainda acrescentar que, naturalmente, o circo mediático que é instalado às portas dos tribunais onde decorrem os raríssimos casos de julgamento por aborto (todos por abortos efectuados após as dez semanas) se deve maioritariamente aos activistas defensores do direito ao aborto, que utilizam os dramas dessas mulheres em prol das suas “guerras culturais”. É caso para perguntar: “Quem humilha quem?”

«Quem sou eu para julgar?» Concordar com o aborto por opção da mulher com base neste argumento é cair num raciocínio desadequado e errado. Este erro tem origem no próprio equívoco de se convocar um referendo popular para ajuizar sobre uma matéria de fundamentais direitos humanos. De facto, não faz sentido nenhum chamar a opinião popular para julgar uma matéria que deveria estar acima de julgamento. O direito à vida não é matéria referendável.

Mas, para além disto, é evidente que este é um péssimo argumento por outra razão importante. Visto que a resposta afirmativa no referendo terá como consequência a revisão da legislação penal em matéria de aborto, tais alterações afectarão a forma como a Justiça tratará o problema do aborto. Nunca está em causa que um votante, escolhendo o “sim” ou o “não”, esteja a julgar ou a deixar de julgar uma mulher que tenha abortado.

Quem deve julgar são os tribunais. É à Justiça que cabe julgar.

(11)

5.

A Ética do Aborto

Neste capítulo, pretende-se expor sinteticamente os dados fundamentais acerca da ética do aborto. A única abordagem séria no sentido de tentar legitimar eticamente o aborto é relativamente recente, e está assente numa tentativa de não reconhecer o direito à vida aos seres humanos nas suas primeiras semanas, ou nos seus primeiros meses, de vida pré-natal, enquanto ainda se encontram dentro do útero materno. Há, então, que questionar se tal argumentação é válida ou não. Se não for válida, não sobra alternativa senão continuar a reconhecer o aborto como um crime, com a mesma gravidade objectiva que qualquer outro atentado contra a vida humana inocente.

5.1 Quando é lícito matar uma pessoa?

É consensual que a ilicitude de matar uma pessoa possui uma excepção. É sempre lícito matar alguém em legítima defesa, ou seja, quando provocamos a morte a alguém, não como objectivo, mas sim como única e derradeira forma de protegermos a nossa própria vida ou a vida daqueles que temos o dever de proteger. Por esta razão, muitos dos Estados actuais não reconhecem a pena de morte como uma pena eticamente legítima, porque não encontram situações reais nas quais tal pena pudesse ser aplicada em legítima defesa.

Na verdade, as actuais sociedades modernas estão organizadas no sentido de possuírem estruturas prisionais que permitam confinar os seus indivíduos mais perigosos e garantir assim a segurança da vida dos restantes, sem ser necessário matar potenciais agressores.

Noutros tempos, ou noutros locais ou contextos, a pena de morte poderia ser considerada, mesmo que apenas teoricamente, se tal fosse a única forma de garantir a protecção do direito à vida de outrem: por outras palavras, a pena de morte só seria ética se fosse aplicada numa situação inequívoca de legítima defesa. Ora, tais situações tornaram-se muito raras hoje em dia, senão mesmo inexistentes.

Mas tenhamos presente esta ideia: apenas é eticamente lícito matar alguém em legítima defesa. Isto não quer dizer que a legítima defesa seja uma excepção do inviolável direito à vida: o agressor potencialmente homicida também tem direito à sua vida, mas se age no sentido de tentar tirar a vida a outra pessoa, esse seu direito entra em colisão com outro direito de igual valor. E quando se dá essa colisão, o agente que se defende tem a primazia.

O direito à vida não pode ser recusado nem violado a uma pessoa inocente que não atenta contra a vida de ninguém. O ser humano, na sua fase de evolução intra-uterina, não pode atentar voluntariamente contra ninguém, nem mesmo contra a vida da sua mãe, mesmo que a sua presença no útero materno possa colocar involuntariamente a vida da mãe em risco. Logo, o aborto nunca se aplica como legítima defesa da vida da mãe. Nas situações de gravidez de risco, quando um médico tem que tomar uma decisão médica correcta, ele não tem que, nem deve, optar entre salvar a vida da mãe ou salvar a vida do seu filho: ele deve tomar a decisão médica adequada para maximizar as possibilidades de salvação de ambos, e seguramente, nunca verá o aborto provocado como único meio para salvar a mãe: tais casos não existem.

5.2. O dilema ético do aborto

Em traços gerais, os que consideram que o aborto é um acto eticamente ilícito usam uma argumentação formulada deste modo:

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(2) Os fetos1 são seres humanos

(3) Logo, os fetos têm direito à vida

Normalmente, poucos contestam a premissa (2), sendo que é consensual, em termos médicos, definir que a vida humana principia na concepção2, altura a partir da qual se está perante um

ser vivo da espécie Homo Sapiens na sua acepção biológica plena.

Se a premissa (1) for verdadeira a par com a premissa (2), a mais elementar lógica valida a conclusão (3). E a partir daqui, ajuizando que o direito à vida é prioritário face ao direito da mulher ao seu corpo, o problema ético do aborto estaria resolvido: abortar é um crime.

O problema está em que a generalidade dos defensores sérios do direito ao aborto consideram que a premissa (1) não é verdadeira. Pretendem que o direito à vida depende da posse de certas e determinadas propriedades biológicas e/ou psicológicas, e nesse sentido procuram estabelecer uma separação entre “pessoa humana” e “ser humano”. A primeira categoria é que seria o garante do direito à vida. De facto, se a premissa (1) não fosse verdadeira, cairia por terra toda esta argumentação contra o direito ao aborto.

5.3 Contestação da formulação

Uma outra abordagem importante a este problema, sugerida por pessoas que defendem o direito ao aborto como Judith Thomson, propõe que, mesmo assumindo a validade das premissas (1) e (2), perante uma colisão de direitos, o direito do ser humano à vida e o direito da mãe relativamente ao destino do seu corpo, este último vence. Assim, uma forma de procurar legitimar o direito ao aborto passa por sublinhar a supremacia do direito da mulher ao seu corpo face ao direito à vida do feto, ignorando, de certo modo, a validade ou não das premissas (1) e (2). Esta abordagem, que pretende que o direito do feto à vida não é condição suficiente para afirmar a ilicitude do aborto, considera que o dilema ético do aborto, conforme esquematizado atrás, está mal colocado.

Judith Thomson afirma que, mesmo reconhecendo ao ser humano o direito à vida desde a concepção, a mãe não deverá ser obrigada, por essa razão, a suportar a sua subsistência. Thomson sugere que se imagine que uma pessoa inocente era raptada apenas para ser ligada à circulação sanguínea de um violinista famoso com uma doença que poderia ser fatal se não recebesse permanentemente sangue saudável. Thomson argumenta que isso seria ilícito e injusto, e estamos de acordo. Só que este mau exemplo não é comparável a uma gravidez: ignora o facto de que a mãe é responsável pelo seu filho e tem deveres para com ele.

É possível então demonstrar, não só que as premissas (1) e (2) estão correctas, mas também que a argumentação contra o direito ao aborto se pode sintetizar na formulação dada atrás, sem prejuízo para a necessária ponderação dos direitos em colisão, tanto da mãe como da vida intra-uterina. Por outras palavras, afirmando que o direito do feto à vida é superior ao direito da mãe sobre o destino do seu corpo, pretendemos que o direito do feto à vida é condição suficiente para se considerar o aborto provocado como sendo sempre ilícito.

Relativamente às situações em que é necessário ponderar direitos de igual natureza e valor antes de tomar uma decisão ética correcta, existe ainda o Princípio do Duplo Efeito3, uma

ferramenta clássica que aponta uma solução para estas situações.

Para uma contestação rigorosa da tese de Judith Thomson, remete-se o leitor para o capítulo 6.5.1, “O contributo de Judith Jarvis Thomson (1971)”, na versão completa deste texto.

1 Por economia verbal, para evitar a repetição dos mesmos termos, usa-se aqui o termo “feto” para designar a vida intra-uterina em qualquer fase do seu desenvolvimento, seja a do zigoto, a do embrião ou a do feto.

2 Por “concepção”, entenda-se o processo bioquímico da fertilização. Ver detalhes médicos e científicos no texto completo, no capítulo 6.2, “A definição médica do início da vida humana”.

(13)

5.4 Contestação da premissa (1)

Esta é a abordagem mais séria, mas mesmo assim incorrecta, à tentativa de não reconhecer ao feto o direito à vida. Antes de mais, deve ser esclarecido, de uma vez por todas, que a vida humana principia na concepção, o que qualquer manual médico atesta. Este facto é reconhecido, inclusive, por quem procura distinguir “vida humana” de “pessoa humana” como forma de tentar adiar a ilicitude do aborto para determinadas semanas de gravidez.

Uma grande parte dos defensores sérios do direito ao aborto tenta basear-se nesta distinção entre “vida” e “pessoa” como forma de, outorgando o direito à vida apenas à “pessoa humana”, deixar de fora o feto, incorrendo assim, porventura de forma inconsciente, num raciocínio circular, partindo de uma intuição acerca da tese que se pretende demonstrar e terminando na conclusão afirmativa da mesma:

1. Intuir ou assumir que o aborto, até que o feto reúna certas e determinadas propriedades, deve ser eticamente lícito;

2. Sugerir propriedades psicológicas ou fisiológicas que poderão diferenciar o feto da criança nascida (consciência, actividade cerebral organizada, vontade, etc.);

3. Atribuir essas propriedades a uma nova definição de “pessoa humana”;

4. Afirmar que o feto não é “pessoa humana” por não reunir as ditas propriedades; 5. Afirmar que apenas a “pessoa humana” assim definida tem direito à vida;

6. Afirmar que o feto, por não ser “pessoa humana”, não tem o direito à vida;

7. Afirmar que o aborto, até que o feto reúna as ditas propriedades, é eticamente lícito. Torna-se claro que a subjectividade desta abordagem está centrada na definição de “pessoa humana” como algo distinto de “vida humana”, sendo o primeiro conceito tão maleável que permite a existência de uma zona eticamente difusa em relação à vida intra-uterina, que pode mesmo transbordar para a vida extra-uterina. O filósofo Peter Singer, por exemplo, é um dos defensores da legitimidade do infanticídio nas primeiras semanas, ou mesmo meses, após o nascimento, tese à qual chegou em coerência com as suas próprias premissas erradas, pelo facto de que a sua definição de “pessoa”, de tão exigente que é em termos das características psicológicas necessárias, deixa de fora as crianças muito novas e que ainda não as possuem. A posição de Peter Singer é partilhada por outros filósofos como Mary Ann Warren, Michael Tooley ou David Boonin. Apesar da subjectividade da definição de “autoconsciência”, e das dificuldades inerentes às tentativas científicas de atestar essa autoconsciência em crianças de poucas semanas, Peter Singer considera essencial para a definição de “pessoa humana” a posse de autoconsciência, uma vez que ele considera que só se tem direito à vida quando se deseja estar vivo. Parece ser indiscutível que uma criança de dois meses tem uma menor autoconsciência do que uma criança de dois anos, por exemplo, mas é perigoso afirmar que a primeira não tem qualquer tipo de autoconsciência, ou pior ainda, assumir como dado adquirido e não demonstrado que tal propriedade é essencial para definir o que é uma “pessoa humana” e para lhe reconhecer direito a viver. Deste modo, e em clara evidência dos perigos deste tipo de raciocínio, Peter Singer conclui que, nas primeiras semanas ou meses após o nascimento, não estamos perante uma “pessoa” visto que, segundo ele, a criança não tem ainda consciência de si nem de estar viva. E por isso, segundo Peter Singer, o infanticídio seria legítimo nessas circunstâncias.

(14)

defender a posse, por parte do feto, da característica (ou conjunto de características) suficiente para que seja reconhecido o direito à vida a esse ser humano.

Esta argumentação pode assumir formas muito complexas, e pode variar bastante de filósofo para filósofo, mas pode-se afirmar que há duas principais objecções que costumam ser apontadas como forma de procurar estabelecer erradamente uma diferença ou uma barreira entre “vida humana” e “pessoa humana”, são elas a objecção do “especismo” e a objecção da “potencialidade”.

Se estas objecções fossem justas, de facto, não haveria razão para considerar que: a) Toda a forma de vida humana (Homo Sapiens) teria direito à vida;

b) Desde a sua concepção, um ser humano seria uma “pessoa”.

5.4.1 A objecção do “especismo”

Um argumento erigido para tentar invalidar a premissa (1), “Todos os seres humanos têm direito à vida”, consiste em questionar o porquê de reconhecer à espécie Homo Sapiens o direito à vida, em detrimento de o reconhecer a outras espécies de seres vivos.

Alguns defensores do direito ao aborto com base na distinção entre “vida humana” e “pessoa humana” procuram apontar à premissa (1) a suposta fraqueza de estar condenada pelo seu “especismo”, ou seja, pelo facto de procurar dar primazia à nossa espécie no que diz respeito ao direito à vida. Dizem que, caso encontrássemos outras formas de vida inteligente análogas à nossa, mesmo que muito diferentes na sua forma, teríamos que também lhes reconhecer o direito à vida. Por outras palavras, consideram que a categoria de “pessoa”, a tal que garante segundo eles o direito à vida, também pode abarcar seres vivos de outras espécies.

Tentar apontar a falácia do “especismo” a quem defende inequivocamente aos seres humanos, e apenas a eles, o direito inalienável à vida, é um fenómeno moderno, mas que está em plena expansão e já goza de grande popularidade, não obstante se tratar de uma falsa falácia, visto que o problema está mal colocado.

Peter Singer é um dos pensadores contemporâneos mais conhecidos em termos de denúncia da falácia de especismo, ideia que ele aplica não só ao problema do aborto, mas também na sua defesa dos direitos dos animais1.

Como podemos constatar, Peter Singer não coloca quaisquer entraves à premissa (2) atrás apresentada, ou seja, Singer não duvida que a vida humana biológica de um ser da espécie Homo Sapiens principia na concepção:

«É possível dar à expressão “ser humano” um significado preciso. Podemos usá-la como equivalente a “membro da espécie Homo Sapiens”. A questão de saber se um ser pertence a determinada espécie pode ser cientificamente determinada por meio de um estudo da natureza dos cromossomas das células dos organismos vivos. Neste sentido, não há dúvida de que, desde os primeiros momentos da sua existência, um embrião concebido a partir de esperma e óvulo humanos é um ser humano; e o mesmo é verdade do ser humano com a mais profunda e irreparável deficiência mental – até mesmo de um bebé anencefálico (literalmente sem cérebro).»2 (sublinhado meu)

É interessante notar, apenas de passagem, que muitos dos defensores do direito ao aborto costumam dizer enormidades como “ainda ninguém está de acordo acerca do início da vida humana”, ou “não é certo que o embrião seja um ser humano”. Claramente, isto sucede porque desconhecem factos médicos elementares acerca da vida humana.

(15)

Não há, de facto quaisquer dúvidas, tanto entre médicos como entre filósofos, de que a vida humana principia na concepção. Vejamos agora Peter Singer a tentar denunciar o suposto especismo de reconhecer a todos os seres humanos um direito inalienável à vida:

«O mal de infligir sofrimento a um ser não pode depender da espécie a que esse ser pertence; nem o mal de o matar. Os factos biológicos que traçam a fronteira da nossa espécie não têm significado moral. Dar preferência à vida de um ser apenas porque esse ser é membro da nossa espécie pôr-nos-ia na mesma posição que os racistas, que dão preferência aos membros da sua própria raça»1

É uma afirmação espantosa, esta a proferida por Peter Singer, reputado filósofo!

Peter Singer terá certamente maturado o seu raciocínio antes de afirmar as suas ideias, pelo que não é razoável supor que a citação acima seja o resultado de um lapso ou de uma precipitação. É pela força deste trecho e pela convicção nele plasmada que a visão que Peter Singer possui acerca da Ética se encontra nele revelada.

No entanto, Peter Singer deveria levar em conta o seguinte: se algum ser necessita de Ética ou de Moral, é o ser humano, e podemos encontrar esta necessidade mesmo no ateu mais convicto, que procurará nesta disciplina da Filosofia a universal necessidade de Justiça. Para o crente, a Justiça é um dos mais importantes atributos divinos, mas não é obrigatório que sejamos crentes para desejarmos a Justiça. Ou seja, desejar a Justiça faz parte da essência do ser humano, e é graças a este desejo profundo e inato que o ser humano desenvolveu o pensar ético-moral. Apetece perguntar a Peter Singer se ele não estaria desempregado, caso a Justiça não fosse um desejo intemporal do ser humano!

E, a seguir a esta, faríamos ainda outra pergunta a Singer: que outro animal deseja a Justiça? Que outro animal precisa de uma ética, de uma moral, de um qualquer código de conduta sob o qual reger a sua vida?

Singer diz que «os factos biológicos que traçam a fronteira da nossa espécie não têm significado moral», mas é a própria moral que só faz sentido quando falamos de seres da nossa espécie, pois que é apenas a nossa conduta humana que pode ser avaliada em termos morais. Singer procura obstinadamente uma artificial igualdade entre nós e os restantes animais, mas enquanto este pensador não hesitará em discutir a moralidade de matar outros animais, o que dirá ele quando um qualquer animal mata um ser humano?

É que não há simetria possível em termos de ética entre um ser humano e um ser vivo de outra espécie!

Podemos certamente discutir a legitimidade ética de matar um ser vivo não humano, e podemos fazê-lo porque, enquanto seres humanos, a justeza de todos os nossos actos pode ser discutida e questionada. Mas quem irá discutir a eticidade da morte de um ser humano provocada por um animal? Se um urso matar um homem, poderemos discutir a ética do acto desse urso? Evidentemente, há algo de diferente entre a conduta de um qualquer ser vivo não humano e a conduta de um ser humano.

A pretensa falácia do especismo cai por terra quando nos damos conta de que a ética só faz sentido para quem aspira à Justiça. Ora, aspirar à Justiça é apenas característica dos seres vivos dotados de pensamento abstracto. E, até prova em contrário, a única espécie de seres vivos capaz de raciocinar de forma abstracta, e capaz de desejar coisas abstractas como Justiça, é o ser humano, é o Homo Sapiens.

(16)

5.4.2 A objecção da “potencialidade”

Uma grande parte da Ética moderna, baseada em raciocínios utilitaristas, procura deduzir os direitos de um indivíduo a partir dos seus desejos. Deste modo, e seguindo o exemplo sugerido por Peter Singer, roubar um automóvel só seria errado se a vontade do respectivo dono fosse violada. Ou seja, o direito a possuir um automóvel só existiria se o seu proprietário não desejasse que lho roubassem.

Esta forma de pensar em termos éticos é relativamente recente, terá pouco mais de dois séculos1, e no entanto está a conquistar terreno e a mudar radicalmente a forma de abordar

problemas éticos fundamentais como o do aborto.

As duas grandes divisões em Ética são, basicamente, a da deontologia e a do utilitarismo. O deontologista, no exemplo dado atrás, diria que é errado roubar o automóvel pela razão de que se trata de violação de propriedade privada, independentemente de considerações acerca dos desejos do proprietário. Por outro lado, um utilitarista apenas consideraria a situação como ilícita se o desejo do proprietário fosse desrespeitado.

O deontologista pensa com base numa mão cheia de axiomas éticos acima de discussão, como o do direito à vida, o do direito à liberdade, o do direito à propriedade privada, entre outros. O utilitarista considera que tais axiomas não são demonstráveis, e por isso, procura estabelecer direitos caso a caso, com base, não só nos desejos dos indivíduos, mas também na decisão que maximiza as vantagens para todos os envolvidos.

O problema está em que a ética utilitarista não possui alicerces sólidos, porque se baseia em realidades subjectivas e individuais como as das volições humanas. Enquanto que a ética de deontologia procura alicerces intelectualmente universais, e por isso, válidos para todos os seres humanos, independentemente do tempo ou do espaço, a ética de utilitarismo faz com que uma mesma acção em concreto possa ser boa ou má dependendo do contexto subjectivo dos desejos e das vantagens/desvantagens para todos os envolvidos.

Deste modo, é com base numa visão utilitarista da Ética que se considera que matar um ser humano apenas é errado se se violar o eventual desejo de viver desse ser humano. Por esta linha de raciocínio, se o feto não desejar estar vivo porque nem sequer sabe que está vivo, ou o que significa deixar de estar vivo, então não haverá mal em matá-lo.

O deontologista não hesita: matar um ser humano é sempre um mal, apenas justificável em legítima defesa, o que não se aplica no caso do aborto. Logo, o deontologista conclui: o aborto é um erro, um crime, um acto ilícito em termos éticos.

O utilitarista, por outro lado, procura dizer que o acto de matar outrem não tem que ser, necessariamente, algo de errado. Abortar pode não ser mau, se o ser humano que matamos não tiver consciência de que está vivo, e consequentemente não tiver desejo de viver.

É, então, típico de um utilitarista argumentar que os que negam a legitimidade ao aborto estão a incorrer numa falácia de “potencialidade”. Dizem que um zigoto, um embrião ou um feto são “pessoas em potência”, ou seja, tendem a se tornarem, num dia futuro, em seres humanos autoconscientes e com o desejo de viver, com projectos de vida.

De uma perspectiva totalmente utilitarista, o direito à vida surgiria com o desejo de a viver, algo que só seria possível em seres dotados de autoconsciência e de consciência do mundo em seu redor. Com consciência da diferença entre a vida e a morte.

É, também, deste modo que Peter Singer, juntamente com Michael Tooley, defende que o infanticídio não é um mal ético, porque as crianças muito novas demoram vários meses, mesmo anos, a se aperceberem da diferença entre a vida e a morte, e consequentemente, a desejarem estar vivas e permanecer vivas.

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Tais defensores do direito ao aborto dizem que o zigoto, o embrião e o feto não são “pessoas”. Que, sendo “pessoas em potencial”, só terão o direito à vida quando a “pessoa em potencial” que trazem dentro de si se desenvolver plenamente.

Infelizmente, muitos dos vêem o aborto como um erro ético, não hesitam em concordar com os seus adversários, afirmando que o zigoto, o embrião e o feto são “pessoas em potência”, o que contribui para o aprofundar do equívoco.

No entanto, é perfeitamente defensável, de uma perspectiva ética deontológica clássica, que ao consideramos um zigoto, um embrião ou um feto estamos perante uma pessoa na acepção plena da palavra desde o início da vida humana, ou seja, desde a concepção. Na tentativa de esclarecer esta afirmação, socorro-me do trabalho do Dr. Stephen Schwarz, cuja impressionante obra de refutação do direito ao aborto está disponível gratuitamente na Internet1. Schwarz diz que o facto de um ser humano demorar a manifestar plenamente todas as funcionalidades que reconhecemos a uma pessoa humana adulta, não permite que se deduza que ele não é uma pessoa humana. Segundo Schwarz, o facto de o feto ainda não “funcionar como pessoa” de forma plena não quer dizer que não seja verdadeiramente uma pessoa na acepção rigorosa do termo.

A questão central é esta: embutida no património genético e totipotente do zigoto está toda a plenitude biológica de qualquer pessoa humana. Está tudo ali, desde a capacidade de conhecer o mundo em redor, até à capacidade de se conhecer a si mesmo. Está ainda a capacidade latente, única no universo dos seres vivos, de pensar de forma abstracta. Mesmo o ateu mais convicto tem que reconhecer que a capacidade intelectual mais abstracta de todas, a de conceber um Ser transcendente como Deus, é característica única dos seres vivos da espécie Homo Sapiens.

É esta a característica única e distintiva dos seres humanos, independentemente da sua raça, do seu género, da sua idade: a da vocação para a abstracção intelectual.

O zigoto, o embrião ou o feto não são “potencialmente pessoas”, são mesmo pessoas!

Nada mudará, na sua estrutura genética, desde o momento da concepção. Nada de novo será adicionado à sua essência humana até à idade em que sejam capazes de pensar em modo abstracto e de desejar viver por si mesmas. O ser humano é, essencialmente, o mesmo tanto na fase de zigoto como quando já criança aprende a discernir a vida da morte.

Tratam-se de faculdades latentes, que estão presentes desde o primeiro dia mas que apenas se manifestam formalmente meses mais tarde. O raciocínio que proponho para a defesa do direito à vida humana desde a sua concepção é, em suma, o seguinte:

1. Considerações éticas só fazem sentido em seres vivos que valorizem a Justiça; 2. Até agora, só se detectou uma espécie capaz de o fazer: a espécie Homo Sapiens;

3. Desde a concepção que qualquer forma de vida humana pertence à espécie Homo Sapiens, mesmo que se trate de um ser humano com deficiências graves ou profundas, incluindo a anencefalia (ausência de cérebro);

4. Nada de novo é adicionado à essência dessa vida humana até à sua morte; quando a criança começa a poder realizar pensamentos abstractos, isso significa que ela apenas desenvolveu naturalmente certas qualidades que possuía embutidas nos seus genes desde a concepção.

A essência do erro de distinguir “potenciais pessoas” de “pessoas” jaz numa visão distorcida da essência do ser humano: quem o faz, fixa erradamente os seus conceitos à inconstância da forma humana, em vez de os fixar na perenidade da essência humana. O ovo humano fecundado, na sua totipotência genética, não possui maior complexidade do que um adulto ou

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um idoso. Não existe mais informação genética num adulto do que num feto! Estamos apenas perante alterações na forma, e não na essência. Se fazemos depender a ética de abortar daquilo que é visível, ou da sofisticação intelectual que o ser humano vai gradualmente, desenvolvendo, estamos a cometer um enorme erro.

Os direitos de qualquer ser humano devem ser reconhecidos pela sua essência humana, por aquilo que ele é, e não por aquilo que ele, numa dada fase do seu desenvolvimento formal, é capaz de fazer.

Uma criança portadora de Trissomia 21 (“Síndroma de Down”), ou recorrendo a um caso mais extremo, uma criança anencefálica, pertencem ambas à espécie Homo Sapiens, e fazem parte de uma categoria biológica única de seres dotados de pensamento abstracto, e consequentemente, de seres capazes de aspirar à Justiça e de reconhecer direitos fundamentais aos elementos da sua espécie. Mesmo que, no caso limite da anencefalia, um determinado ser humano não tenha quaisquer possibilidades de desenvolver as suas capacidades intelectuais. Se uma criança ou um adulto, numa dada fase da sua vida, perdem faculdades periféricas, ou perdem mesmo faculdades fundamentais de forma irremediável, elas não deixam por essa razão de merecer o estatuto mais elevado que se reconhece a qualquer ser vivo: o estatuto de ser humano, que porque é ser humano, tem direito à vida.

Se, um dia, viermos a conhecer eventualmente outra espécie de ser vivo diferente da nossa à qual seja reconhecida a capacidade de pensamento abstracto e o mesmo desejo de Justiça, evidentemente que teremos que alargar a nossa categoria de “pessoa” aos seres dessa outra espécie. Mas até ao momento, sem termos descoberto tal espécie, não faz qualquer sentido discutir o direito à vida de outros seres que não os da espécie Homo Sapiens. Podemos dizê-lo sem qualquer receio de incorrermos em falácia.

Repare-se como não foi necessário recorrer a qualquer argumento transcendente, de tipo religioso. Tais argumentos caracterizam-se por valorizarem o ser humano muito para além das suas meras faculdades biológicas. Qualquer coerente visão transcendente do ser humano não se limita a ver a unicidade de cada ser humano no seu património genético, o que permite, por exemplo, considerar dois gémeos verdadeiros (com exactamente o mesmo património genético) como pessoas únicas e irrepetíveis.

Contudo, para concluir acerca do erro de abortar, não é necessário tornar a discussão mais complicada, envolvendo argumentação religiosa.

Termino deixando esta ideia fundamental: ao longo dos seus nove meses de gestação, e ao longo dos seus primeiros anos de vida, todo o ser humano desenvolve as capacidades que possui desde a concepção. A própria palavra “desenvolvimento” ou “evolução” tem no seu significado esta ideia: partir de características ou faculdades que temos em nós mesmos e tentar levá-las até ao limite, dentro das nossas possibilidades. Quando uma criança aprende a falar, ou quando anos mais tarde aprende a diferença entre a vida e a morte, está apenas a desenvolver capacidades que possuía desde que foi concebida. E parece-me bastante lógico e sensato que se atribuam direitos fundamentais como o direito à vida partindo de realidades objectivas como as capacidades únicas da nossa espécie em termos de pensamento abstracto, e não com base em realidades subjectivas, como seria por exemplo, o grau que cada indivíduo humano atinge em termos do seu desenvolvimento pessoal dessas capacidades que todos temos embutidas na nossa essência.

5.5 Uma solução inovadora

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deontológica clássica, quando em 1989 publicou um importante artigo intitulado Why abortion is immoral1, no qual propõe para propriedade suficiente para se ter direito à vida a posse de “um futuro como o nosso” (“a future like ours”). Marquis procura encontrar a razão fundamental que torna o homicídio de uma pessoa num acto errado, e descobre-a no facto de que o homicídio priva a sua vítima de um futuro com valor, “um futuro como o nosso”, um futuro que essa pessoa teria se a sua vida não tivesse sido interrompida abruptamente e contra a sua vontade.

Claramente, tanto o zigoto, como o embrião e como o feto possuem um futuro com valor, seja ele qual for, independentemente da sua duração temporal ou da quantidade e qualidade de felicidade pessoal que tal futuro venha a possuir.

Na verdade, nós não sabemos o que o futuro reserva a cada um de nós, pelo que não faz sentido fazer juízos a priori acerca do valor que esse futuro terá, seja em absoluto (se tal sequer é possível), seja para a pessoa que o vai viver. Apelar para o aborto como forma de evitar o sofrimento é arriscado e, em última análise, carece de justificação sólida: há vidas com sofrimento que são muito valorizadas pelas pessoas que as vivem.

O erro fundamental em matar um ser humano, em qualquer fase da sua vida biológica, está em privá-lo de um “futuro como o nosso”. Este argumento é difícil de refutar e está isento de argumentação religiosa.

(20)

6.

O drama humano e social do aborto

Um atentado contra a maternidade e contra a mulher

Inúmeros estudos indicam que a maioria das mulheres que descobrem que estão grávidas quando não o desejavam sofre um grande e profundo abalo psicológico, abalo este que é sentido por essas mulheres como uma experiência assustadora e bem real, semelhante a uma “morte”. A vida que tinham antes de descobrirem a sua gravidez parece perdida para sempre. Para muitas dessas mulheres, é como estar à beira de um precipício, quando tantas coisas horrorosas se encontram à sua frente e podem suceder: a) possível perda de namorado, marido, companheiro; b) possível perda de emprego; c) possível ruína de uma carreira profissional; d) possível drama financeiro de sobrevivência, entre tantos outros.

Mas a mulher que concebeu é, de facto, uma nova mulher: é mãe.

A maternidade, mesmo no caso ideal da mulher sem os problemas acima indicados, é certamente sentida pela maioria das mulheres como uma radical mudança de estado. Uma mulher, depois de ficar grávida, nunca mais é a mesma. É por estas razões que a nossa sociedade deve uma especial protecção à mãe, muito maior do que a que poderá ser dada a um pai, visto que a mulher que é mãe está numa situação psicológica particularmente sensível e vulnerável. Se isto sucede mesmo com as mulheres que têm a sorte de não ter os problemas indicados acima, então como será com as mulheres em dificuldades?

Para além disto, as mulheres que optam por não abortar nunca se arrependem depois!

A resposta da nossa sociedade, com a possível vitória do “sim”, a solução que tencionamos dar a estas mulheres, que são mães desde a concepção, é a morte dos seus filhos. É o aborto. Claro que podemos depois apresentar inúmeras boas intenções: aconselhamento psicológico, planeamento familiar, apoio pós aborto, sessões de esclarecimento. Mas antes de lhes darmos isso tudo, damos-lhes a morte do seu filho ou filha como opção. O aborto, mesmo legal, mesmo em “estabelecimento de saúde autorizado”, não é um direito reprodutivo: é um atentado contra a maternidade e contra a essência do ser mulher.

A “morte” da mulher que aborta

Uma das verdades mais negadas pelos que defendem o direito ao aborto diz respeito às terríveis sequelas psicológicas que afligem a esmagadora maioria das mulheres que abortam. Contra este inegável facto negro, costumam invocar as “consultas de apoio psicológico” pós-aborto, pensando que trágica (porque errada) decisão de abortar se resolve com uma ou várias sessões “terapêuticas”. A mulher que aborta também sofre uma espécie de morte, não menos dolorosa do que a experiência de morte que todos sentimos quando morre alguém que nos é muito próximo. Mais dolorosa ainda será esta experiência quando a mulher que abortou se der conta de que contribuiu voluntária e decisivamente para a morte do seu filho. Quem poderá argumentar, para tentar ajudar esta mulher, que “o aborto é um direito seu”, ou que “a saúde reprodutiva moderna tem que incluir o aborto”, se a mesma mulher dorme mal à noite, tem pesadelos que só ela conhece, sofre profundamente por dentro quando olha para outras crianças ou para quaisquer imagens que lhe evoquem infância ou maternidade? A mulher que abortou, ou que foi convencida a abortar, “morre” também com o seu filho, sofre uma morte não física mas sim psicológica.

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