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... e a Fera se torna um belo príncipe: O desenrolar do narcisismo infantil no filme A Bela e a Fera. i

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Academic year: 2021

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... e a Fera se torna um belo príncipe:

O desenrolar do narcisismo infantil no filme A Bela e a Fera.

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Eugênia Chaves

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Falar em narcisismo primário implica remeter-se a um tempo mítico originário em que a criança investe toda a sua libido em si mesma. Significa imaginar um tempo de indiferenciação, pensar na pré-história do desejo, quando, frente ao desamparo, o bebê alucina a satisfação e precisa que seu ambiente favoreça a ilusão da onipotência e da invulnerabilidade.

Falar em narcisismo secundário é referir-se a um tempo posterior, de consolidação da desilusão, quando a criança sente seu corpo estruturado como uma unidade e se percebe subtraída à relação dual imaginária com a mãe. Tempo de uma castração operada pela passagem da ilusão à desilusão, do princípio do prazer ao princípio de realidade, do ego ideal ao ideal de ego. Início do caminho a ser percorrido desde a posição de fallus da mãe até a chegada ao reconhecimento da alteridade.

A criança tem pela frente um desafiador percurso, onde terá que elaborar o luto pela perda do objeto primordial – luto pelo “paraíso perdido” – de modo a se tornar apto a investir libidinalmente em outros objetos, mantendo a esperança na relação de amor.

Quais os aspectos facilitadores e quais as possíveis vicissitudes e percalços dessa trajetória?

O musical de animação A Bela e a Fera ilustra bem tal passagem. O belo príncipe, vivendo confortavelmente no castelo de seus pais, rejeita a feiúra, a falta, que percebe numa velha senhora – no diferente, no outro sexo. Como castigo, a feiúra recai sobre seu próprio corpo, e ele é condenado a permanecer aprisionado numa imagem monstruosa, castrada, verdadeira ferida narcísica. Esse castigo perdurará até que a Fera se torne capaz de amar e de conquistar o amor de alguém.

Podemos considerar que esse acontecimento crítico na vida de Fera tem uma forte relação com o estádio do espelho, teorizado por Lacan (1966), como a ação psíquica fundamental estruturante, nos primórdios da constituição do ego. Esse momento em que a criança, através da identificação com a imagem especular, unifica as sensações de fragmentação de uma vivência corporal originária, marcada pela prematuridade. O júbilo pela descoberta de sua própria imagem precisa ser confirmado pelo olhar materno. O reconhecimento da mãe é essencial para o desenvolvimento do sentimento de si mesmo e para a constituição do ideal do ego.

É fundamental o caráter imaginário e alienante do nascimento do ego, a partir de uma identificação com algo que vem de fora – a imagem especular. O ego se confunde com o Outro primordial, numa relação de alienação e de desconhecimento. Assim, o espelho pode ser considerado metáfora do olhar materno.

De acordo com Zeferino Rocha (2008), a relação especular, fundamental para a

estruturação do sujeito, é profundamente ambivalente e marcará todas as futuras

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inteira dependência a este desperta um intenso ódio que se mistura ao amor também intenso.

A figura do espelho é presença constante no filme em questão. É através do espelho que Fera entra em contato com o mundo externo. Existe um grande espelho quebrado na ala do castelo, onde ocorreu o feitiço. É olhando para o espelho, que pessoas da vila se horrorizam com a imagem da Fera... Cabe lembrar que, frente ao espelho, cada um se contempla tentando se perceber de fora, buscando decifrar o impacto de sua própria imagem aos olhos dos outros. O que realça a alienação do desejo ao desejo do outro.

A Fera encarna o luto e a melancolia. Sem esperança e pesaroso, ele debate-se, entre as exigências dos ideais e as verdadeiras possibilidades de realização. Tão envolvido em suas ruminações, não consegue olhar para seu entorno, não consegue se sensibilizar nem se identificar com o sentimento do outro, o que caracteriza o egocentrismo infantil. A frustração é algo intolerável que lhe provoca cólera. Ele terá ainda que aprender a conviver com frustrações e a perceber a diferença entre realidade e ilusão.

Como afirma Kristeva (1989), a possibilidade da linguagem de encadear e transpor o traumatismo depende do luto da Coisa e da adesão a um registro de signos.

Se não é possível perder, não é possível imaginar, nomear, pois o ser falante, imerso no simbólico, exige um abandono, uma ruptura, um mal-estar.

A princípio, a Fera parece tender a sucumbir diante da impossibilidade da plena felicidade. O trabalho de desilusão é um processo doloroso, é a passagem do princípio do prazer ao princípio da realidade. Fera experimenta a perda, mas é no interior dessa vivência que o sujeito pode começar a emergir, pode iniciar sua existência independente. Na travessia desse luto, Fera pode realizar significativas mudanças subjetivas até atingir a capacidade de amar. Pois, para estar com o outro, para reencontrar o objeto metonímico, substituto do objeto primordial perdido, será necessário que o ambiente permita ao sujeito existir, estar vivo.

Em sua trajetória, Fera conta com a companhia dos personagens-utensílios de seu castelo, que podem ser considerados representantes de diferentes instâncias psíquicas do protagonista, importantes para a superação do narcisismo infantil.

A personagem Madame Samovar, figura maternal, encarna a função estruturante fundamental do superego: a função de proteção do ego, de sustento da vida diante do desamparo humano. Pois, para o ego, viver significa o mesmo que ser amado – ser amado pelo superego (Freud, 1923). Essa simpática mãe-bule tem sempre uma palavra de confiança no futuro, apresenta paciência frente aos deslizes de seu filho – a xícara zig – e benevolência com a imaturidade emocional da Fera.

Muito metódico, o personagem Orloge comporta-se de modo totalmente previsível, tal qual o funcionamento de um relógio. Ele pode representar as defesas obsessivas e as contensões que possibilitam o controle dos impulsos e das fortes emoções. Essas defesas relacionam-se com a constância do ambiente – certa repetição e previsibilidade necessárias para a caracterização de um ambiente continente e para a manutenção do sentimento de segurança.

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Representando a razão e a força criativa, temos o personagem Lumière. Sempre aberto ao novo, à caça de oportunidades, ele cria estratégias originais e ousadas para superação dos problemas.

Podemos pensar que o tempo de desilusão e de separação da mãe, vivido com pesar, termina por ser superado com sucesso pela Fera. Ele pôde desenvolver sua potência criativa, encontrando compensações para a frustração e pôde encontrar substitutos para as fontes de gratificação perdidas.

Isso nos faz inferir uma força narcísica interna, provavelmente desenvolvida no período anterior de fusão mãe-bebê. Podemos, então, imaginar uma mãe

“suficientemente boa” que serviu de base para a introjeção de um superego benevolente e um ambiente continente que favoreceu o desenvolvimento de defesas de controle emocional.

A trama do filme oferece um contraponto à situação da Fera. Trata-se do personagem Gaston, morador da vila e dono de um belo, forte e admirado corpo.

Reforçado por aproximar-se do modelo social de perfeição física, Gaston permanece preso ao mundo imaginário da ilusão da unidade, no registro do Ego Ideal.

Para Freud (1914), tornar-se seu próprio ideal, como na infância, isso é o que as pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade. Mas a condição dessa felicidade, conforme Francisco-Hugo Freda (1989), é eliminar o outro sexual, o parceiro sexual. No interior dela, esconde-se uma recusa, uma rejeição fundamental, a não aceitação do outro, enquanto sexualmente diferente, e, desse modo, a recusa das diferenças e dos limites. Exterioridade e diferença ferem o narcisismo.

No registro da recusa, o objeto, por impor uma objeção ao sujeito, será sempre alvo do ódio do narcisismo irredutível presente na vida psíquica. Tanto que o personagem Gaston atua como o vilão da história. Ele mente, manipula as pessoas e trama eliminar qualquer um que se apresente como obstáculo a seus objetivos.

Se utilizamos os aportes da teoria Kleiniana, podemos considerar que, diferentemente de Gaston, a Fera conseguiu entrar na posição depressiva, o que só é possível quando a criança não está mais tão dominada pelas angústias persecutórias e pelos impulsos destrutivos, típicos da posição esquizo-paranóide. Pois, o essencial da posição depressiva é a angústia do bebê para que o objeto amado não seja destruído por seu sadismo. É justamente esse tipo de angústia que predomina no castelo da Fera, com relação à personagem Bela, durante todo o tempo em que esta reside lá, como prisioneira e como convidada.

Sobre essa gradativa mudança do status de Bela, de prisioneira à convidada, podemos considerá-la como metáfora da entrada do terceiro e do simbólico e da construção do reconhecimento da alteridade do outro.

Referências:

FREDA, F.H. Textos sobre toxicomania e alcoolismo. Publicação.do CMT, 1989.

FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma introdução . (1914) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . 2.ed.Standard Brasileira.

Rio de Janeiro: Imago, 1986, vol. 14.

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KRISTEVA, J. Sol Negro: depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu, In Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed, 1998.

ROCHA, Z. Freud: novas aproximações. Recife: Ed. Universitária, 2008.

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i “A Bela e a Fera”, Walt Disney Feature Animation, musical de animação, dirigido por Kirk Wise &

Gary Trousdale, adaptação de Linda Woolverton e canções de Alan Menken & Howard Ashman, 1991.

ii Psicóloga (CRP 17/1103), mestre em Psicologia Clínica/Psicanálise e Psicopatologia Fundamental

pela Universidade Católica de Pernambuco, especialista em Psicopatologia Psicanalítica Contemporânea

pela Universidade Federal da Paraíba, membro do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI –

Espaço Psicanalítico, PB; sócia da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Fone (84) 3202-2088; (84) 9981-

7530; e-mail: eugeniachaves@hotmail.com

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