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A REBELDIA DE CHINASKI COMO NEGAÇÃO AO SONHO AMERICANO: IDENTIFICANDO CONTRACULTURA ATRAVÉS DO PROTAGONISTA DE CARTAS NA RUA DE CHARLES BUKOWSKI

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A REBELDIA DE CHINASKI COMO NEGAÇÃO AO SONHO AMERICANO: IDENTIFICANDO CONTRACULTURA ATRAVÉS DO PROTAGONISTA DE

CARTAS NA RUA DE CHARLES BUKOWSKI

Filipe Baldin – PPGLit-UFSCar Carla Alexandra Ferreira (Orientadora) RESUMO: Devido ao fervilhamento de produção artístico-cultural nos anos 60 e 70

nos Estados Unidos, é possível com que vejamos o período marcado pelo movimento de contracultura, que depois veio a ser sucedido pelo movimento hippie, como um marco no pensamento e na sociedade americana na época, com reflexos que podem ser visualizados até hoje na sociedade americana e por toda a civilização ocidental. É junto a este período que Charles Bukowski escreve seu primeiro romance, Cartas na Rua, no qual retrata o cotidiano de um funcionário, Henry Chinaski, do sistema postal norte-americano durante quase 15 anos de sua vida. Este trabalho pretende identificar a aparente inexistente relação entre o protagonista do romance e o movimento de contracultura, buscando-a através da historicização daquele período, e o compararemos ao comportamento do personagem com a ideologia do movimento social até hoje lembrado pelo comportamento rebelde e da negação ao Sonho Americano.

PALAVRAS-CHAVE: contracultura; Cartas na Rua; Charles Bukowski; Sonho

Americano.

I – Charles Bukowski e Cartas na Rua

Apesar de não ter nascido nos Estados Unidos, Charles Bukowski é hoje considerado um dos maiores poetas daquele país; devido não apenas a sua vasta produção literária, que incluem contos, romances e poesia, somando cerca de 50 livros. Bukowski, que nasceu na Alemanha pouco tempo após o término da Primeira Grande Guerra, foi criado em território americano desde seus primeiros anos e vivenciou as mudanças sociais ocorridas durante e pós a Segunda Grande Guerra, que está presente em sua obra a qual retrata, em sua maioria, uma visão à sociedade americana sob a ótica das classes menos favorecidas.

Dentre toda sua produção, as obras de poesia e contos formam um conjunto esmagador quando comparado aos romances por ele produzidos, sendo estes apenas seis obras. Nestas, em cinco dos seis romances, podemos encontrar como protagonista Henry Chinaski – o qual também se encontra presente em diversos contos de Bukowski – formando, no decorrer destes romances, uma história da vida pessoal e profissional deste personagem.

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Cartas na Rua, publicado em 1971 pela Black Sparrow Press, pode ser considerado um marco na carreira de escritor de Charles Bukowski. Entre motivos nos levam a dar tal importância a esta obra estão: Cartas na Rua foi o primeiro livro escrito por Bukowski após receber a proposta do seu editor, John Martin, de dedicar-se em tempo integral a escrita, em troca de um pagamento de US$ 100 mensais; é o primeiro romance escrito por Bukowski; foi bem recebido pelo público leitor, sendo traduzido, nos anos seguintes, para quinze idiomas.

É o primeiro, e talvez o melhor, de uma série de cinco romances que rascunha a vida e as fases por que passa Henry Chinaski, em um estilo de prosa inovador mas acessível que, em sua simplicidade, é admiravelmente semelhante à [sua] poesia (SOUNES, 2000, p. 113).

Outra característica que chama atenção ao leitor, e que levaremos em conta nesta análise, é a extensa abordagem realizada por Bukowski sobre o trabalho. Na obra, temos retratada durante grande parte a relação de trabalho de Chinaski com o Serviço Postal dos Estados Unidos, no qual trabalha em dois momentos: primeiramente como carteiro e depois como funcionário interno de agência. As características do trabalho, incluindo as suas condições, a relação supervisor-funcionário e a rotina diária, estão incluídas durante no enredo, que tem como característica própria um ritmo rápido e o uso de linguagem informal.

O enredo do livro pode ser dividido em três partes e resumido da seguinte forma: (1) Inicia com Chinaski aceitando o conselho de um bêbado em procurar emprego em uma agência do serviço postal pois, devido ao período de Natal, estavam contratando novos funcionários temporários, a fim de cumprir a demanda causada pelas entregas de final de ano. Durante esta primeira parte, Chinaski continua a trabalhar nos correios, inicialmente como carteiro em estágio probatório, sendo posteriormente efetivado como carteiro e demitindo-se no mesmo dia.

(2) Sem emprego, Chinaski casa-se e viaja para a cidade da família de sua nova esposa. Passa alguns dias lá e retorna a Los Angeles onde tenta sobreviver sem ter um trabalho, as custas do trabalho de sua nova esposa, a

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qual obriga-o a procurar emprego. Não vendo saída, Chinaski procura empregos de baixa dificuldade, começa a trabalhar mas logo se demite, tendo em vista uma nova oportunidade nos correios onde, procurando uma melhor condição de trabalho, desta vez tentaria a vaga para atendente/serviços internos e não como carteiro. (3) Após ser aprovado nos testes admissionais, Chinaski consegue novamente um emprego em uma agência do Serviço Postal dos Estados Unidos, onde logo detecta que não há facilidades nesse cargo que agora ocupa, mas sim diferentes dificuldades enfrentadas por ele e por outros funcionários. Esta terceira parte do romance conclui, finalizando a obra, com Chinaski demitindo-se novamente de seu trabalho junto ao Serviço Postal, embriagando-se por dias e decidindo escrever sobre suas experiências.

Seguindo com nossa análise, a qual busca identificar características de contracultura no protagonista de Cartas na Rua, iremos agora posicionar o livro no momento histórico em que foi publicado e também quanto ao período em que o enredo abrange, o final dos anos 1950 e toda a década de 1960.

II – A revolução social da contracultura e sua relação com Chinaski

Para melhor nos aprofundarmos em Cartas na Rua e conseguirmos identificar o comportamento característico do movimento de contracultura, crítico e característico daquele período, no personagem de Henry Chinaski, devemos antes realizar um processo de historicização, como utilizado por Fredric Jameson (1992). Em poucas palavras, o processo de historicização é composto da necessidade de compreensão do contexto histórico no qual a obra foi produzida para então ser possível identificar as características críticas presentes, porém muitas vezes ocultas, em seu conteúdo.

O período histórico em que estamos lidando remete ao final da década de 1950 e toda a década de 1960, que compõem ao período de trabalho de Chinaski como funcionário dos correios, chegando até o início dos anos de 1970, mais especificamente 1971, quando a obra foi publicada e teve sua recepção pela crítica e pelo público leitor. Apesar de a obra se tratar de um

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escrito de caráter ficcional, devemos ter em mente que ela foi escrita por um autor que vivenciou as mudanças sociais daquele período, de modo ativo ou não, e que ao posicionar o enredo em um determinado período histórico, carrega-o de características políticas e sociais, sendo então, para o teórico Fredric Jameson, possível de identificar neste, e em qualquer obra literária, sua crítica política, inscrita de modo inconsciente pelo autor. Tal representação da obra, seria para ele o “horizonte absoluto de toda leitura e toda interpretação” (Jameson, 1981: 17), seu último nível de leitura.

A crítica política de Cartas na Rua está abaixo do primeiro nível de leitura, que seria o conteúdo manifesto da obra, onde se encontram diversas estratégias estéticas (estratégias de contenção) que desviam o olhar do leitor com a associação da obra ao segundo nível de leitura, composto de características tais como a representação de um período histórico e as características próprias do modo de composição do autor. É neste nível que encontramos a reprodução de características do movimento de contracultura através do personagem Henry Chinaski.

O movimento de contracultura, apesar de ter-se consolidado ao final da década de 1960, tem suas raízes no início do século XIX, onde o descontentamento de grande parte da população com as ações do governo e os reflexos da Primeira Grande Guerra, geraram para com os cidadãos norte-americanos. Porém, foi apenas nos primórdios da década de 1960 que ganhou atenção da mídia americana:

O termo “contracultura” foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram, não só nos Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa e, embora com menor intensidade e repercussão, na América Latina. Na verdade, é um termo adequado porque uma das características básicas do fenômeno é o fato de se opor, de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficializada pelas principais instituições das sociedades do Ocidente (MACIEL, Luís Carlos apud PEREIRA, Carlos Alberto M. p. 13).

Com o crescimento do mercado interno, gerado graças a atuação econômica dos Estados Unidos durante a Segunda Grande Guerra, o país parecia estar caminhado para uma estabilidade econômica, porém foi um

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período marcado por crescimento e recessão e havia um medo generalizado de uma nova depressão. Com a eleição de Eisenhower como presidente, segurança, ascensão social e sucesso material tornaram-se palavras de ordem numa sociedade de economia fortalecida pela guerra (PAMPLONA, 1996: 67) e que reforçavam os ideais do Sonho Americano; estes constituídos desde a formação da nação, onde acreditava-se no sucesso material e econômico, na constituição familiar e, principalmente, na igualdade de direitos e oportunidades sociais.

Porém, os anos Eisenhower (1952-1960) foram marcados pela consolidação da Guerra Fria que veio a gerar um desconforto generalizado na sociedade americana, que passou a conviver, de um lado, com a constante ameaça de guerra e possíveis ataques bélicos que viriam a abalar a estabilidade social norte-americana e, de outro, com a consolidação dos ideais do Sonho Americano, passados à população através de uma atuação massiva da imprensa e do cinema, divulgando um padrão de vida a ser buscado por toda a nação (principalmente pela classe média) em que consistia basicamente de ter um trabalho fixo, uma família dentro dos moldes tradicionais (heterossexual), a aquisição de casa própria nos bairros que nasciam para abrigar estas novas famílias (subúrbios), um carro na garagem e dinheiro, vindo do trabalho diário na indústria ou comércio, para investir na compra de novos bens materiais, tais como o rádio e a TV. Este estilo de vida que se consolidou ao final dos anos de 1950 ficou conhecido como o American Way of Life.

Enquanto a sociedade americana conformava-se no conforto de seus lares, uma parcela desta sociedade, constituída muitas vezes de filhos dessa nova classe média, os quais tentavam sair desta situação de conformismo e aceitação ao governo, à política e a tradição americana(estreitamente ligada à doutrina cristã), buscando rumos alternativos àquela sociedade, tentando gerar mudanças sociais, combate a repressão das minorias, apoiando o movimento negro e a libertação de amarras criadas pela aceitação ao establishment, a normalização da atual situação social do país.

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teve sua representação em todas as esferas sociais, mas foi na arte em que conseguiu ganhar maior atenção e passar adiante suas bandeiras. Na literatura, houve uma grande proliferação de novos escritores e revistas, as quais eram produzidas de maneira informal e com baixo valor de produção, quebrando com a tradição característica modo de produção deste produto.

As pequenas revistas, ao contrário das '[revistas] quadrimestrais e jornais', encorajaram a experimentação e promoveram novos autores, sendo um terreno fértil apropriado para escritores desconhecidos como Bukowski, com seu trabalho em grande parte não convencional1 (DEBRITTO, 2012, p. 1).

O maior movimento literário desta época é a Literatura Beat, caracterizada por autores que buscavam na experimentação literária, no uso de substâncias psicoativas e levantavam bandeiras buscando o livre amor, a aceitação das diferenças sociais e a liberdade individual através da cultura. Os Beats foram caracterizados por uma literatura de caráter autobiográfico e com protagonistas de traços anti-heroicos, assim como podemos encontrar nos escritos de Bukowski, o qual, apesar de não fazer parte do movimento Beat, vivenciou o mesmo período histórico e teve, muitas vezes, influência dos mesmos autores e sentimento de época que os escritores Beat.

Em Cartas na Rua (Post Office), temos Henry Chinaski como um funcionário de uma agência do serviço postal o qual constantemente está em conflito com aqueles que atuam em posições superiores à sua, revoltando-se a autoridade, as condições de trabalho e a burocratização:

“… assim como o título sugere, Bukowski tem em mente uma crítica institucional, não apenas ao Serviço Postal dos Estudos Unidos da década de 1950 e 1960, mas a instituição do trabalho burocratizado nos Estados Unidos2” (HARRISON, 2001: 131).

É de grande importância salientarmos que o julgamento que o leitor

1 No original: “The little magazines, as opposed to quarterlies and journals, encouraged

experimentation and promoted new authors, hence becoming the most appropriate breeding ground for unknown writers such as Bukowski, whose work was largely unconventional.” (Trad. nossa).

2 No original: “… as its title suggests, Bukowski has in mind an institutional critique, and that institution is not only the U.S. Post Office in the 1950s and 1960s but the institution of bureaucratized work in the United States.” (Trad. Nossa)

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possa a vir ter sobre o personagem de Chinaski seja pré-determinado devido ao Código de Conduta do Serviço Postal, fixado no início do romance, antes de iniciar o primeiro capítulo.

Este Código de Conduta delimita um padrão no qual Chinaski baseia sua atitude de rebeldia no romance, particularmente como o trabalho não é retratado em momento algum como extensão de sua própria identidade. Chinaski descreve o trabalho nas agências como alienante e monólito burocrática a qual ele luta contra buscando manter sua sanidade3 (BRAGA, 2005, p. 57).

A postura de Chinaski durante Cartas na Rua é de negação ao trabalho, assim como o movimento de contracultura já questionava, porém há a necessidade deste mal, o trabalho, que vai aos poucos degradando as condições físicas e psicológicas do trabalhador o qual deve, diariamente, dedicar-se a sua rotina que poderiam passar as 12 horas de trabalho diário (quando funcionário em estágio probatório).

Nunca em nenhum ponto na narrativa Bukowski discute o trabalho como uma atividade social significativa a qual um individuo desempenha a fim de colaborar como um bem maior à sociedade. Ao invés disso, o trabalho simplesmente serve para escravizar e destruir a força de vontade do trabalhador o qual, no caso de Chinaski, se apresenta através de uma contínua degradação física4 (BRAGA, 2005, p. 61).

A negação de Chinaski não está apenas quanto ao trabalho, que poderia lhe trazer a tão sonhada, na época, estabilidade econômica, mas também quanto à constituição da família. No romance, o comportamento de Chinaski transpassa a ideia de indiferença ao relacionamento fixo e a constituição de uma família. Este sentimento é passado durante o livro, em seus relacionamentos e, principalmente, no episódio em que se casa e termina o casamento meses depois, sem dar muita importância ao episódio.

A aquisição de bens materiais também nunca é discutida por Chinaski,

3 No original: “This statement sets a standard by which Chinaski measures his own rebellious

behavior in the novel, particularly as the job itself is never portrayed as an extension of his own identity. Chinaski depicts the post office as an alienating, bureaucratic monolith which he battles against in order no maintain his sanity.” (Trad. Nossa)

4 No original: “Never at any time in the narrative does Bukowski discuss work as a meaningful

social activity which an individual undertakes in order to serve the greater good of society. Rather, work simply server to enslave and destroy the will of the worker, which in Chinaski's case, comes about through an ongoing physical suffering [...]”. (Trad. nossa)

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o qual costumava fazer uso de seu dinheiro apostando em cavalos. Em um episódio, ainda na primeira parte do livro, Chinaski está entregando cartas quando é surpreendido pela revolta da dona de casa às contas por ele trazidas:

Entreguei a correspondência para ela.

— CONTAS! CONTAS! CONTAS! — gritou. — É SÓ O QUE TEM PARA ME ENTREGAR? ESSAS CONTAS?

— Sim, dona, é só o que venho trazer. Dei-lhe as costas e segui meu caminho.

Não era minha culpa se gastavam telefone e gás e luz, se compravam todas as coisas a prazo. No entanto, quando eu lhes trazia as contas, gritavam comigo — como se eu tivesse pedido que instalassem um telefone, ou comprassem um aparelho de televisão de 350 dólares sem ter dinheiro para pagar (BUKOWSKI, 2012, p. 40).

Bukowski está ciente do desgaste que a busca ao trabalho pode causar ao indivíduo; é o que acontece em um episódio onde G.G. (George Green), o mais antigo carteiro do Posto Oakford, não está em condições de trabalhar. G.G. tem um ataque nervoso, deixa o que está fazendo e começa a tremer, a chorar e fica fazendo isso por um tempo sem que ninguém o dê atenção. Bukowski procura ajuda do supervisor, o qual não se importa com o velho funcionário, mas sim em dar continuidade as tarefas do dia e como substituir o buraco que poderia ser causado com um funcionário a menos trabalhando.

— Ei, ei, Stone! Jesus Cristo, Stone! — O que há? — ele perguntou.

— G.G. pifou! E ninguém se importa! Ele está lá em cima chorando! Precisa de ajuda!

— Quem está cuidando da rota dele?

— Quem se importa com essa merda! Estou lhe dizendo, ele está mal! Precisa de ajuda!

— Preciso encontrar alguém para cobrir a rota dele!

O Stone levantou de sua mesa, deu uma olhada nos carteiros, como se pudesse encontrar alguém sem fazer nada. Depois se meteu de novo em sua mesa.

— Olhe, Stone, alguém tem que levar esse homem pra casa. Diga-me onde ele mora e eu mesmo o levo para casa, neste instante! Depois eu me encarrego dessa rota maldita.

O Stone me olhou:

— Quem está cuidando da sua caixa? — Que se foda a caixa!

— VÁ CUIDAR DA SUA CAIXA!

Começou em seguida a falar com outro supervisor no telefone: — Alô, Eddie! Escute, preciso de um homem por aqui…

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(BUKOWSKI, 2012, p. 47).

Chinaski começa a perceber o mal que o trabalho poderia fazer às pessoas e o quão dispensáveis elas eram. O trabalho tinha que continuar com elas ali ou não, indiferente de suas dores ou condição pessoal. Ao final do livro encontramos Chinaski já cansado de sua rotina, afetado pelas más condições de trabalho e tendo que continuar, afim de terminar o dia para conseguir ser pago; o mesmo acontecia com ele e com outros funcionários

Onze anos! Não tinha dez centavos a mais no meu bolso do que quando entrara ali pela primeira vez. Onze anos. Embora cada noite tivesse sido longa, os anos tinham passado rápido. Talvez por se tratar de um serviço noturno. Ou por fazer a mesma coisa vez após vez. […] Onze anos como um tiro na cabeça. Eu tinha visto o emprego devorar os homens. Eles pareciam derreter. Lá estava Jimmy Potts do Posto Dorsey. Da primeira vez que cheguei lá, Jimmy era um cara musculoso em sua camiseta branca. Agora estava liquidado. Colocava seu banco o mais próximo do chão possível, e se agarrava para não cair. Vivia de tal maneira cansado que já nem cortava o cabelo e usava as mesmas calças há três anos. Trocava as camisas duas vezes por semana e caminhava bem devagar. Tinham-no assassinado. Estava com 55 anos. Faltavam sete para ele se aposentar.

— Nunca vou conseguir — ele me disse.

Ou derretiam ou engordavam, enormes, especialmente na bunda e na barriga. Era o banquinho, e os mesmos movimentos e a mesma conversa. E lá estava eu, sofrendo de tonturas e dores nos braços, pescoço, peito, por toda parte. Dormia o dia para conseguir descansar e estar apto ao trabalho. Nos fins de semana, tinha de beber para esquecer a rotina. Eu pesava 83 quilos quando cheguei. Agora estava com 101 quilos. A única coisa que você mexia por ali era o braço direito (BUKOWSKI, 2012, p. 167).

Logo após este último episódio, Bukowski decide demitir-se. Tinha três opções: sair do trabalho enquanto era possível; deixar com que o trabalho o degenerasse a tal ponto de morrer por ele; ou tornar-se um supervisor e dar continuidade à forma com a qual o trabalho era feito. Escolheu a primeira e nunca mais (em nenhum dos outros romances ou contos) voltou atrás dessa decisão.

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Considerações finais

Cartas na Rua, apesar de não ser longo e ter um rápido ritmo de leitura, debruça-se sobre a condição da classe trabalhadora em um período de grandes mudanças sociais e econômicas. A chamada “Era de Ouro” (HOBSBAWM, 1995) do capitalismo, quando o sistema atingiu um novo nível de evolução, permitindo um grande enriquecimento dos Estados Unidos da América, não foi acessível a todos.

Os ideais do Sonho Americano, somado ao American Way of Life, foram criados para alavancar a economia e promover uma situação de bem-estar social através do consumo de mercadorias e da criação de sonhos aos trabalhadores daquele período. Porém fica claro, tanto nas referências históricas quanto em Cartas na Rua, que essa condição de bem-estar social gerada pelo desenvolvimento da economia naquele período não é para todos.

A classe trabalhadora continuava em más condições. O trabalho continuava a explorar os homens e a extrair-lhes sua vitalidade, deixando-os reféns de uma rotina onde era necessário permitir-se a ser explorado visando o pagamento para manter-se vivo.

É contra tais condições que o movimento de contracultura torna-se de vital importância. A conscientização da sociedade americana e de todo o mundo quanto às condições da classe trabalhadora, da exploração do homem pelo trabalho e do resultado de tamanhas diferenças econômicas entre os homens no modo de produção capitalista são abordados pelo movimento e suas vertentes, que esteve em grande discussão na mídia e em toda a sociedade norte americana da década de 1960 e 1970.

Charles Bukowski, ao retratar a vida de um trabalhador explorado pela rotina de uma instituição respeitável, que era o Serviço Postal dos Estados Unidos, está indo em paralelo às reivindicações do movimento de contracultura, apesar de não ser abertamente adepto e/ou militante do movimento. A simples representação daquela classe, quando vista com um olhar crítico às diferenças sociais e econômicas já conferem a obra sua importância como objeto representativo de uma geração, uma época em que o capitalismo crescia, a classe média ganhava poder de compra e os patrões

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enriqueciam-se apoiados nos ombros da classe trabalhadora.

Cartas na Rua foi uma obra de grande ambição, uma denúncia a um sistema de produção que consome aquele que o sustenta, que é a ele de vital importância. É o primeiro romance do autor que seguirá a abordar a condição da classe trabalhadora em Factótum, um tema muito recorrente em sua obra narrativa e poética, mais uma das características que podemos considerar para consagrá-lo um dos maiores escritores norte-americanos.

Referências bibliográficas

BRAGA, Daniel. Life on the Margins: The autobiographical fiction of Charles Bukowski. Australia, University of New South Wales: 2005.

BUKOWSKI, Charles. Cartas na Rua. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012. BUKOWSKI, Charles. Factótum. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010. DEBRITTO, Abel. Writing into a Void: Charles Bukowski and the little magazines. In European Journal of American Studies [online], Vol 7, No 1 | 2012, document 3. Disponível em: http://ejas.revues.org/9823. Acesso em 20/05/2015.

HARRISON, Russell. Against The American Dream: Essays on Charles Bukowski. Edinburg, UK: Rebel Inc, Canongate Books Ltd, 2001.

HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

JAMESON, Fredric. O Inconsciente Político: A narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo, SP: Editora Ática S.A., 1992.

SOURNES, Howard. Charles Bukowski: vida e loucuras de um velho safado. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2000.

PAES, Maria Helena Simões. A Década de 60: Rebeldia, contestação e repressão política. São Paulo: Editora Ática, 2001.

PAMPLONA, Marco A. Revendo o sonho americano: 1890-1972. São Paulo: Atual, 1995.

PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é Contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1992.

Referências

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