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GÊNERO E HISTÓRIA: UM BREVE BALANÇO HISTORIOGRÁFICO

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Academic year: 2021

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GÊNERO E HISTÓRIA: UM BREVE BALANÇO HISTORIOGRÁFICO

Clara Cazarini Trotta

1

Átila Augusto Guerra de Freitas

2

Isabela de Oliveira Dornelas

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Resumo: O presente artigo tem por objetivo realizar uma breve reflexão sobre parte da historiografia contemporânea que se dedica às interseções com a temática do gênero elucidadas em outras ciências sociais. Esse trabalho pretende analisar as produções nos domínios da História que moveram o termo “gênero” como utensilagem teórica, no sentido de dar inteligibilidade e compreensão a uma determinada realidade social pretérita vivida, principalmente, pelas mulheres. Destarte, nossa proposta inicial é demonstrar a sedimentação do termo gênero como uma categoria naturalizada pelos(as) historiadores(as) que dizem trazer a discussão de gênero e sexualidade pra dentro dos estudos históricos. Para isso, selecionamos autores(as) de destaque no âmbito nacional e internacional que produziram obras significativas dentro da perspectiva de “história e gênero” para refletirmos como esse termo foi importado de outros campos e reutilizado para tentar revisionar a historiografia dos séculos XX e XXI.

Palavras-chave: Historiografia; Gênero; Feminismos

Dentro do que chamamos hoje de historiografia contemporânea, a vertente francesa ocupa lugar de destaque em matéria de disseminação, alcance e problematização. Foi com a revista Annales d’histoire économique et sociale - fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre nos anos 1920 – que temos um dos grandes revisionismos historiográficos do século XX: a crise da história política tradicional e o desenvolver da história social. Hoje já chegamos a que é chamada quarta geração dos Annales e o que ainda une essa geração aos seus pais fundadores, fazendo deles uma escola, é a abertura às outras ciências sociais, a utilização das mais diversas estratégias de conhecimento permitidas pelo objeto, o alargamento do que é o objeto histórico e a experimentação como recusa de uma dogmatização do saber histórico (REIS, 2006, p.

81).

“A História faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. (...) Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem,

1

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais, claracazarini@gmail.com

2

Graduando, 9º período de História na Universidade Federal de Minas Gerais, atilaaugustofreitas@gmail.com

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Graduanda, 9º período de História na Universidade Federal de Minas Gerais, isadornelas@gmail.com

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serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e a maneira de ser do homem”. (FEBVRE apud LE GOFF, 2003 p. 530).

Com esse excerto, Lucien Febvre dava o tom do seu revisionismo procurando desconstruir a “história dos grandes homens” e fazer uma história do cotidiano, dos excluídos (e das excluídas?), alargando o campo de pesquisa dos(as) historiadores(as).

Dessa forma, pretendemos demonstrar como é sintomático que Febvre tenha usado o verbete “homem” para designar todo o gênero humano. A partir daí procuramos dar visibilidade à lacuna historiográfica sobre a história das mulheres, a história do feminismo e as interseções entre história e teorias de gênero.

Com bases no pensamento ilustrado do século XVIII, chegou à historiografia do século XX as noções universais do pensamento liberal. Nesses termos, igualou-se individualidade e masculinidade. Pois, segundo muitos filósofos do Iluminismo, o indivíduo tinha direitos naturais e universais de liberdade, propriedade e felicidade. Era um indivíduo abstrato que expressava a essência comum a toda espécie humana: a individualidade. Entretanto, esse indivíduo político e histórico era essencialmente masculino. É essa universalidade que questionamos, procurando refletir sobre os limites dessa universalidade através da perspectiva das mulheres que fazem história na sua dupla dimensão: no seu vivido cotidiano, como atrizes da história, e como autoras responsáveis pela escrita da história. Uma escrita que, de maneira geral, procurou e ainda procura individualizar e singularizar as mulheres, tirando-as dessa categoria única, dessa massa disforme como muitas vezes elas são representadas no discurso político e histórico.

Nota-se um significativo movimento no sentido de aumento dos estudos sobre as

mulheres não só em História, mas em outros campos das Ciências Sociais, a partir dos

anos 1970. A efervescência das reivindicações e mobilizações políticas e sociais na

Europa e Estados Unidos onde a pauta feminista coloca na ordem do dia a sexualidade e

o prazer (CAZARINI, 2014, p. 15), de uma maneira mais ampla, a luta por autonomia

não se restringe ao corpo. Essa demanda permeia a academia e na medida que as

mulheres passam a se inserirem mais largamente nesse âmbito a produção intelectual

dedicada à condição feminina multiplica-se. No caso da História em específico, a

Segunda Onda do Feminismo coincide com o despontar da Nouvelle Historie, forte

corrente historiográfica que inaugura a análise dos fenômenos sob a perspectiva da

longa, média e curta duração e por valorizar o uso de fontes para além da documentação

oficial e por seu desfoque na esfera política estabelece um diálogo com a busca por

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fazer história que contemple as mulheres, estas que até então efetivamente não tinham espaço na narrativa histórica.

A Escola dos Annales, de onde se desdobrou a Nova História, impulsiona um importante movimento no sentido de valorizar as representações culturais do passado.

Aos vieses social e econômico atribui-se os pontos principais de análise em detrimento da então perspectiva política tão cara à lógica Positiva. Ainda que para Perrot (SILVA, T. M. G., 2008, p. 231), Bloch e Febvre não estivessem de fato interessados em dar às mulheres destaque na produção historiográfica, o deslocamento do eixo de análise para a cultura que valoriza o cotidiano e a esfera privada, de certa forma contribui para o aumento dos estudos que levam em conta as mulheres. Elas se fazem presente nesses espaços ao passo que a dilatação da concepção de documento também permite detectar vestígios do cotidiano das mulheres, uma vez que as fontes oficiais feita por homens e para homens no geral também dificultam o acesso aos rastros delas. O interesse pelo cotidiano leva ao desgaste da história dos grandes homens e enfraquece a busca desta por um sujeito protagonista. Ainda que isso não signifique a emergência das mulheres como foco, parte das mulheres feministas a escrita da história das mulheres dada a demanda por se colocarem enquanto agentes atuantes da história (SILVA, T. M. G., 2008, p. 225). São as feministas que detectam e se propõe em preencher este vazio historiográfico.

“(...) se os paradigmas estavam em crise, era preciso que se discutissem os pressupostos teóricos para interrogar o mundo. E foi, efetivamente, na década de 1970, que algumas ideias revolucionaram o campo da história, em particular pelas questões epistemológicas que encerravam”. (PESAVENTO, 2008, p. 32)

Durante as décadas de 1970 e 1980 que se desenvolveu a chamada História Cultural. Um dos seus conceitos centrais é o de representação, no que Sandra Pesavento nos esclarece: “representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência. A ideia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença” (PESAVENTO, 2008, p. 40). Muitas autoras, amparadas nessa discussão sobre representação, escreveram – e representaram – sobre os silêncios da história: as mulheres.

No Brasil não foi diferente, multiplicaram-se os estudos sobre história das

mulheres, essa narrativa tem alguns pontos de muita especificidade que nos convém

uma breve análise. A maioria desses trabalhos recorta seu marco temporal no período

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do Brasil Colônia e constroem seu discurso com um certo tom de denúncia ao dar especial destaque para as opressões pelas quais essas mulheres passavam. Uma expoente dessa historiografia é Mary Del Priori que se dedicou em muitos trabalhos em apresentar as tristezas e angustias cotidianas de ser mulher no rústico e perigoso contexto colonial. As produções desse contexto colocam a mulher enquanto protagonista da narrativa e tira do sujeito masculino a hegemonia não só da escrita da historiografia, mas também enquanto agente da história. No entanto, a ressalva que se faz sobre as publicações da década de 80, é que elas produzem uma história da mulher.

Uma mulher quase tão abstrata, e ao mesmo tempo absoluta, quanto o “homem fazedor da história”. Acontece é que, em geral, esses trabalhos apresentam uma história da mulher de maneira pouco interseccional e normalmente produzem dois blocos rígidos de negras escravas/senhoras brancas, sem considerar as mulheres das camadas médias livres ou forras e a complexidade da dinâmica do contexto colonial. Pontua-se também que essa história da mulher em geral é escrita descolada da história dos homens. Isso em alguns casos significou uma história paralela um tanto quanto fechada em si mesma, que pouco dialogava com outras esferas sociais. No fundo isso poderia significar uma espécie de segregação das mulheres da história.

Nos anos 1990 e em diante a preocupação nesse contexto não é somente em

expor as situações de abuso pelas quais as mulheres passavam, mas problematizar a

partir das relações de gênero a construção do papel da mulher. O gênero é mobilizado

enquanto categoria de análise porque se propõe a compreender as relações num âmbito

geral ou para o individual, porque esta menor escala é formada e informada pelo que é

mais amplo. A importância da historiografia que mobiliza as questões de gênero é que

ela historiciza a construção do feminino/masculino para além da dicotomia e seu papel

de desnaturalização de discursos que se apresentam neutros e naturais. Nesse período, a

história oral está em voga e aplicada à história do tempo presente mobiliza ainda mais

tipos de fontes e é ainda mais sensível ao esforço de procurar variadas fontes para

escrever uma história que se preocupa em lançar luz na construção das relações de

gênero. A história que Margareth Rago produz em seu livro A aventura de contar-se é

pensada num viés feminista e se faz para além do binarismo estanque e hierarquizado

entre razão/emoção; publico/privado; masculino/feminino (RAGO, 2013, p. 27). A

trajetória de sete mulheres que se declaram feministas e recortadas a partir da ditadura

militar até os nossos dias é construída a partir da documentação burocrática de

processos, fichas em instituições, produções acadêmicas ou de militância, mas com

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principal enfoque no discurso das interlocutoras no esforço da escrita delas próprias.

Para além das cartas, blogs, entrevistas e depoimentos, Rago não pretende fazer biografias.

“Rago trata de reinvenções, reestruturações, fugas subjetivas e espaços de constituição do eu. Ao abordar essas subjetividades, das vidas dessas mulheres, a autora delicadamente assume não só a postura de narradora, mas de guia na leitura para encontrarmos também traços nossos, fugas e reinvenções nossas de um eu que também busca nos feminismos modos de pensar-se e agir no mundo.” (TAKARA;

LESSA, 2014, p. 2).

Rago enquanto autora feminista e atenta à escrita dos feminismos se coloca no texto, a oitava mulher da narrativa tem uma postura clara ao fazer suas escolhas metodológica, temporal e documental. A perspectiva dessa autora compartilha as mesmas inquietações de Joan Scott de pluralizar mulheres e feminismos em suas narrativas, procurando deixar de lado a ideia de história das mulheres mais uma vez segregada da história como um todo.

Nosso trabalho reside na tensão entre as “teorias e gênero” e as “teorias de gênero”. Nas contribuições das outras ciências sociais para os estudos históricos e na produção de uma teoria e historiografia próprias e amparadas por essa categoria de análise meta-histórica que é o gênero. Agora, nos deteremos em fazer um apanhado dessas teorias de gênero que mais influenciaram o ofício de algumas historiadoras.

Os estudos de gênero vêm tentando desconstruir a forma como certos conceitos constituintes da sociedade ocidental são apropriados e tidos como essencializados. Se tratando de homens e mulheres, as diferenças biológicas são significadas, e se materializam no cotidiano, através de performances, nas relações, e até nas subversões.

A questão não é a diferença em si, mas a forma como ela se constitui de valores hierárquicos, fazendo com que algumas diferenças corpóreas tornem-se reais disparidades.

Surgidos como “women studies” (estudos da mulher), primeiramente estudava- se somente a mulher. Com o amadurecimento dos estudos, repensou-se a posição teórica, percebendo-se que a mulher se produz e é co-produzida na sua relação com o homem, assim como o homem também o é, em sua relação com a mulher.

Um dos grandes marcos teóricos do feminismo dentro da academia está em se

apropriar do termo gênero, o qual já era usado por profissionais da área da saúde. No

texto O Tráfico de Mulheres: Notas sobre a “Economia Política do Sexo”, ensaio que

teve sua primeira publicação no ano de 1975. A importância desse ensaio se dá em um

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grande passo para uma das principais pautas dos estudos de gênero, feministas e para o movimento feminista em si, que se trata da desnaturalização da opressão das mulheres.

Primeiramente nesse ensaio Rubin afirma que qualquer estudo de mulheres, feminista ou não, acaba por tratar da opressão delas, e quando se trata de um projeto feminista é necessário identificar as razões das opressões de gênero para se opor a elas.

Não seria o objetivo desse texto discutir sobre as teorias que apresentam as causas da opressão, mas a partir da leitura e questionamento de alguns autores não feministas, que através de suas teorias criaram ferramentas conceituais que podem ser usadas para se pensar na opressão das mulheres e da sexualidade. E lança o conceito a partir do qual irá usar em seu ensaio, e que se tornará base para toda uma tradição de estudos que será formada a partir de então. Para Rubin, o sistema sexo/gênero seria “um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais são satisfeitas.”

(RUBIN, p. 2, 1993).

Para a antropóloga Gayle Rubin, “sexo é sexo” (RUBIN, p. 5, 1993), contudo o sexo é pensado culturalmente de maneiras diferentes, o que irá criar variações específicas do sistema sexo/gênero. Como esse sistema é algo cultural, então a opressão das mulheres não é algo inato, e a autora defende que, por isso, ela é resultante das relações as quais irão formá-la.

É, então, nos anos 1980, que Joan Scott reivindica gênero como uma categoria meta-histórica de análise. Scott traz o gênero como uma categoria relacional, relações sociais entre os sexos. A cultura se apropria das diferenças dadas e constrói o gênero, assim pode-se passar a se questionar a naturalização de certos valores no corpo, pois ele não é responsável pela apropriação social dele. Aparecem elementos para poder desnaturalizar a opressão, tanto a sociedade constrói o gênero, quanto o gênero constrói o social. As pesquisas de gênero ganham o espaço sobre as de mulheres nesse momento.

Para Scott, os diferentes, homem e mulher, são socialmente vistos como opostos que se complementam, porém de uma forma assimétrica, hierarquizada.

“A esfera privada, feminina (é natural) e a esfera pública, masculina (civil) são

contrárias [e complementares], mas uma adquire significado a partir da outra, e

o sentido de liberdade civil da vida pública é ressaltado quando é contraposto à

sujeição ‘natural’ [a que as mulheres estavam sujeitas] que caracteriza o

domínio privado”. (PATEMAN apud SCOTT, 2005, p. 28)

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A partir das colaborações de Gayle Rubin, desnaturalizando a questão da opressão, e de Joan Scott, reivindicando gênero como uma categoria útil de análise histórica, para os estudos de gênero, se têm cada vez mais elementos para indagar-se sobre como as relações se constroem nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas. Se passa a enxergar gênero como uma construção, e é nesse momento que se tem argumentos para combater o que se é dado como fato, e sabendo que a opressão é construída, devem-se buscar maneiras de desconstruí-la.

Para se pensar no gênero nas sociedades ocidentais, se tornou de suma importância considerar-se o trabalho da filósofa americana Judith Butler. Em sua obra Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade (2003), a autora discorre sobre a matriz do imperativo heterossexual. A matriz é imposta sócio e culturalmente, devendo ser seguida linearmente: sexo, gênero, prática e desejo sexual, devem estar de acordo com o que é idealizado socialmente. A matriz é um modelo, por isso uma abstração. Apesar de presar pela linearidade, quando se chega ao real, essa matriz acaba por sofrer inúmeros cruzamentos. Esses cruzamentos não são fixos, como as performances são construções, eles podem ser fluidos ao logo da vida do indivíduo.

A autora trabalha o gênero em termos sociais, de forma performática e não da perspectiva oposicional - gêneros construídos em oposição ao outro. A performance, feita de acordo com as normas, substancializaria o ideal esperado para aquele gênero, ela seria um exercício regulatório, em que se reforça a materialidade hegemônica. Todas as performances, na verdade, são paródias, pois ou tentam copiar ou resistir ao modelo.

Contudo, essa performance é falha, essa falha demonstra a artificialidade do sistema e constitui uma das várias resistências a ele.

A matriz deve ser seguida para que os gêneros sejam inteligíveis, mantenham coerência linear de acordo com a matriz. A inteligibilidade do gênero depende de como a performance irá conseguir se enquadrar no que é esperada para ela. Uma mulher, feminina, que sente atração apenas por homens e tem práticas sexuais com homens, seria o ideal para uma paródia da matriz, contudo, é impossível seguir esse modelo o tempo todo. E, quando se escapa, sua performance se torna socialmente ininteligível.

Ser diferente do que o imperativo heterossexual espera, acaba por causar uma

melancolia no individuo, e ainda maior na sociedade. Mesmo todos sendo um pouco

subversores da matriz, cada um em seu grau e em seu cruzamento, não é fácil olhar para

outro transgressor e entende-lo. E o que foge da matriz é tentado ser colocado de volta a

ela em um rearranjo. Um exemplo seria uma mulher lésbica, como é uma mulher que

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sente atração sexual por outras mulheres, seu desejo é correspondente ao que se espera de um homem, e por isso tem-se uma expectativa de que ela terá uma performance em que seu gênero apresente vários traços masculinos. Esse exercício de reencaixe na matriz também é feito com transexuais, por terem uma identificação de gênero diferente do sexo, imagina-se que isso está intrinsicamente ligado a sexualidade, sendo que uma mulher transexual só sentiria atração por homens, e um homem transexual apenas por mulheres.

Essas três autoras americanas se tornaram teóricas muito importantes para os estudos feministas e de gênero. A partir do trabalho dessas autoras é possível pensar o gênero em nossa sociedade como um construto sócio-histórico-cultural, o qual é permeado de relações de poder. É importante que os estudos acadêmicos não criem um arcabouço teórico de análise e conhecimento de nossa sociedade, mas também que eles não se delimitem apenas aos muros das instituições universitárias. Essas autoras com suas teorias intelectuais devem ser lidas e apropriadas pelo movimento feminista para se pensar em como as relações de gênero são construídas, e a partir de sua desnaturalização, é possível pensar na maneira como enfrentar as opressões que acontecem via as relações que poder que são constituintes das relações de gênero. E também deve ser feito o questionamento da construção dos saberes acadêmicos.

Joan Scott no Prefácio do livro Gender and Politics of History colocou a necessidade de se radicalizar mais epistemologicamente, para que se construa também uma política feminista mais radical e para isso propõe um diálogo com os filósofos Michel Foucault e Jacques Derrida e o uso da teoria pós-estruturalista para se questionar ou politizar as construções teóricas.

Então, a historiadora não busca a origem das hierarquias de gênero, e sim os processos que as possibilitaram e constituíram, pensando nos múltiplos fatores envolvidos, e nas instituições e estruturas, perpassando por suas relações de poder, e seus significados culturais, como fazem os pós-estruturalistas. Por usar dessa teoria é importante pensar como esses significados não são fixos, devem ser o tempo todo reafirmados e por isso se estabelece um estado permanente de vigilância que faz com que o gênero seja o tempo todo construído, através de discursos e dispositivos de controle, contudo passando uma ideia de ser algo natural, fixo e essencial. (SCOTT, p.

16 e 17, 1994). Pode-se então pensar na teoria de Judith Butler, ao colocar a

necessidade de o tempo todo a prática, o desejo, e a identidade sexuais e de gênero

precisarem ter uma linearidade a qual é responsável pela inteligibilidade dos sujeitos.

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O pós-estruturalismo se torna importante ferramenta, segundo Scott, pois pensa não só no texto, mas na construção desse texto e no que é dito por ele. Se o campo do saber é um campo em disputa de significados, é nesse embate que se deve tentar reverter as hierarquias (SCOTT, p. 21, 1994), ao pensar, questionar, e propor mudanças nesses significados é onde acontece o que Derrida chama de “desconstrução”, e é onde se pode politizar a construção do saber. Assim, o(a) historiador(a) deve negar a ideia de neutralidade, e da história como “completa, universal e objetivamente determinada”

(SCOTT, p. 21, 1994) e reconhecer-se como construtor(a) de saber, um saber histórico.

Através de sua construção do saber, a história, de acordo com Scott, cria e endossa as construções de gênero, por isso é importante politizar esse saber sobre o mundo. A história feminista não busca apenas preencher lacunas da história das mulheres, mas pensar critica e politicamente na construção do saber histórico.

“Meu interesse específico como feminista é com o saber a respeito da diferença sexual, com gênero. Como historiadora, estou particularmente interessada em historicizar gênero, enfatizando os significados variáveis e contraditórios atribuídos à diferença sexual, os processos políticos através dos quais esses significados são criados e criticados, a instabilidade e maleabilidade das categorias “mulheres” e “homens”, e os modos pelos quais essas categorias se articulam uma em termos da outra, embora de maneira não consistente ou da mesma maneira a cada momento.” (SCOTT, p. 25-26, 1993)

Por isso a importância de se pensar na construção do conhecimento e do saber

de maneira a disputar os significados criados por eles. Quando Gayle Rubin fez a

análise da teoria de vários autores, como Karl Marx, Claude Levi-Strauss, Sigmund

Freud, que estudam a sociedade, demonstrando como essas teorias apresentam as

questões das mulheres, contudo de um viés que não busca desconstruir e nem questionar

as opressões. E, assim, criando uma disputa de significados Rubin usa esses conceitos, e

cria seu próprio sistema sexo/gênero para apontar as opressões das mulheres. Assim,

como feito por Rubin, e proposto por Scott, deve haver uma disputa de significados no

campo do saber histórico por parte dos(as) historiadores(as) feministas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ’sexo’. In:

LOURO, Guacira Lopes, org. O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 153-172.

_________. Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Prefácio e Capítulo 1.

CAZARINI, Clara. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Pensando maternidade: diálogos entre Feminismo e Ciências Sociais. 2014. 45 f., enc.:

GOMES, Gisele Ambrósio . História, Mulher e Gênero. Virtú, Juiz de Fora, v.10, p.1- 15, 2010.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

RAGO, Margareth. A Aventura do contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. 341 p. pp. 27.

REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres. Notas sobre a 'Economia Política' do sexo. Tradução de Christine Rufino Dabat. Recife: SOS Corpo, 1993.

SCOTT, Joan W. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem.

Florianópolis: Ed. Mulheres, 2002.

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SCOTT, Joan W. Gênero como uma categoria útil de análise histórica. Educação &

Realidade, vol. 15, nº 2, jul./dez. 1990, pp.71-99.

______________. Prefácio A gender and politics of history. Cadernos Pagu, nº. 3, Campinas/SP 1994.

SILVA, T.M.G. Da, Trajetória da Historiografia das Mulheres no Brasil. Politeia:

História. e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 8, n. 1, p. 223-231, 2008

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