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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL KAROLINE QUEIROZ E SILVA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

KAROLINE QUEIROZ E SILVA

“VIVA AS ALMAS DA BARRAGEM!”: A CONSTRUÇÃO DA CAMINHADA DA

SECA EM SENADOR POMPEU- CE (1982-1998)

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KAROLINE QUEIROZ E SILVA

“VIVA AS ALMAS DA BARRAGEM!”: A CONSTRUÇÃO DA CAMINHADA DA SECA

EM SENADOR POMPEU- CE (1982-1998).

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História Social.

Orientador: Prof. Dr. Frederico de Castro Neves.

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KAROLINE QUEIROZ E SILVA

“VIVA AS ALMAS DA BARRAGEM!”: A CONSTRUÇÃO DA CAMINHADA DA SECA

EM SENADOR POMPEU- CE (1982-1998)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História Social.

Aprovada em: ____/____/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________ Prof. Dr. Frederico de Castro Neves (Orientador)

Universidade Federal do Ceará – UFC

________________________________________________________ Profª. Dra. Kênia Sousa Rios

Universidade Federal do Ceará – UFC

________________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Torres Montenegro

Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

________________________________________________________ Profª. Dra. Adelaide Maria Gonçalves Pereira

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Aos meus avós,

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente: FORA TEMER. A trajetória do mestrado não foi fácil. Os últimos anos trouxeram perdas que criaram feridas que, ainda hoje, teimam em não cicatrizar. Mas diante das dificuldades, pude contar com familiares e amigos e com aqueles que entraram em minha vida há pouco tempo, mas já ocupam um importante espaço. Em poucas palavras, espero demonstrar meu agradecimento e afeto por todos que, de forma direta ou indireta, fizeram parte desta pesquisa.

Aos meus pais, Paulo César e Tereza, pelo apoio incessante em todos os meus projetos pessoais e profissionais. Vocês são meu maior exemplo de força e determinação, minha definição de amor eterno. Graças ao seu empenho, concluí meus estudos básicos e realizei o sonho de entrar na universidade público para o curso que sempre desejei. Ao meu irmão, Matheus que, recentemente, nos deu o presente mais lindo: a Gabriela. Minha sobrinha tão pequena e tão amada, que conseguiu me encher de ânimo com seu sorriso nos momentos mais difíceis.

Aos meus parentes, em especial tia Cláudia e seu família, pelo apoio e dedicação. Aos meus primos Reinaldo e Katiuscy, que dedicaram parte de seu tempo para me ajudar nos estudos desde minha infância e compartilharam comigo a dor das minhas maiores perdas, meus avós. Ao meu tio Beto, padrinho de formatura, pelo carinho de sempre.

Desde a graduação, fui conquistando amigos que se tornaram parte de mim, de minha vida e alguns que hoje, posso chamar de família. Entre eles, meu muito obrigado à Carolina (BP), minha melhor, sem você essa pesquisa não teria se concretizado, te amo! À Laura, Gabriela e Thaís, pelas conversas a qualquer hora do dia, pelas frases de apoio vindas nas madrugadas, pelas alegrias e tristezas sempre divididas. À Hilde, pelo companheirismo e ajuda nesse projeto. À Aristóteles (Ari) e Rodrigo por tantos momentos felizes e pelos conselhos sempre tão generosos. Aos casais que mais amo, Juliana, Wilson Júnior, Anna Rita e Cícero, que me proporcionaram grandes risadas, deixo aqui junto com meu obrigado, minha imensa saudade.

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Muitos professores foram importantes em minha vida acadêmica, sempre com críticas e sugestões que tornaram essa pesquisa possível. Entre eles, Adelaide Gonçalves e Kênia Rios, que estiveram presentes em minha banca de qualificação e, agora, fazem parte também do momento de defesa. Não consigo expressar o quanto suas sugestões forma fundamentais em minha formação profissional, meu agradecimento se faz carregado de grande admiração. Ao professor Antônio Torres Montenegro pelo aceite tão gentil para o convite de minha banca de defesa. Aos funcionários do curso de História, Paulo Régis, Joana e Luciana pela ajuda. Aos funcionários Gil, Cristiano e Roberto, pela ajuda desde a graduação.

À minha turma de mestrado, em especial Pedro Paulo, Pedro Trigueiro, Raul, Juan e Manu, pelas conversas e contribuições. Aos amigos da Escola Adélia Brasil Feijó que na finalização desse trabalho me dedicaram tanto do seu tempo. Aos amigos de trabalho Loan e Rany, pelas alegrias nas manhãs de planejamento. Aos meus alunos, que me levantaram quando pensei em desistir.

Aos senadorenses que me receberam em sua cidade com tanto carinho, abrindo as portas para meu projeto. Ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro, na figura de Marta Sousa e Antônia, pela atenção e ajuda. À Valdecy Alves, pelo apoio dado durante toda a pesquisa. E meu agradecimento especial a seu Zé Damas e seu Jesuíta (in memorian) que me receberam em sua casa e me adotaram com tanto afeto.

À Margarida, Luiz, Letícia e tia Ana, que me receberam e cuidaram de mim nesses últimos anos. À Leo que esteve ao meu lado desde a descoberta de meu objeto de estudo, sempre escutando, aconselhando, brigando e apoiando. Sem você esse momento não seria possível, pois todos os momentos que compartilhamos, entre alegrias e tristezas, foram os que mais me fizeram crescer.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar o processo de construção da Caminhada da Seca em Senador Pompeu (CE), romaria criada pelo padre italiano Albino Donatti em 1982. A celebração tem como base a santificação dos mortos no Campo de Concentração do Patu em 1932, que pela religiosidade popular se tornaram Almas da Barragem. Na cidade, os relatos de sofrimento dos sobreviventes e a presença das ruínas das instalações contribuíram para criar um campo simbólico propício para o desenvolvimento da crença, que leva milhares de pessoas ao Cemitério da Barragem, monumento erguido no local onde foram enterrados em valas comuns, os falecidos da seca. Seus participantes constroem narrativas que buscam legitimar seus interesses dentro e fora da celebração, tornando-a um espaço de conflitos e negociações entre o sagrado e a política. O recorte temporal foi estabelecido entre o início da Caminhada (1982) e a publicação do livro Migalhas do Sertão (1998), de autoria do padre João Paulo Giovanazzi. Ao estudarmos as relações dos sujeitos dentro da celebração, buscamos suas atuações para além desta, em instituições como sindicatos, centros de defesa, grupos pastorais, dentre outros. Com isso, as principais fontes utilizadas foram produzidas por esses sujeitos, como entrevistas, livros e documentos, que em grande parte compõem o acervo do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antonio Conselheiro (CDDH-AC).

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ABSTRACT

The present work aims to investigate the process of construction of the Dry Walk in Senador Pompeu (CE), pilgrimage created by the italian priest Albino Donatti in 1982. The celebration is based on the sanctification of the dead in the Concentration Camp f Patu (Campo de Concentração do Patu) in 1932, which by popular religiosity have become Souls of the Dam.

In the city, the reports of survivor’s suffering and the presence of the ruins of the facilities

contributed to create a symbolic field conducive to the development of the belief that takes thousands to the Cemetery of the Dam (Cemitério da Barragem), a monument ercted in the place where they were buried in mass graves, the dead of the dry. Its participants construct narratives that seek to legitimize their interests inside and outside the celebration, making it a space of conflicts and negotiations between the sacred and the politics. The temporal cut was established between the beginning of the Walk (1982) and the publication of the book Migalhas do Sertão (1998), authored by priest João Paulo Giovanazzi. When we study the

subject’s relations whithin the celebration, we seek their actions beyond this, in institutions

such as unions, defense centers, pastoral groups, among others. As a result, the main sources used were produced by these subjects, such as interviews, books and documents, which largely composse the collection of the Center for the Defense of Human Right Antônio Conselheiro (CDDH-AC).

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LISTA DE FOTOGRAFIA

Fotografia 1- Distribuição de cestas básicas na sede da CIBRAZÉM. Junho de 1987. Arquivo CDDH-AC...102

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LISTA DE TABELA

TABELA 1- Estado do Ceará. Ocorrências das “invasões” e saques em sedes municipais

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LISTA DE ABREVIATURAS

ACR Ação dos Católicos no Meio Rural

ABRA Associação Brasileira de Reforma Agrária BNH Banco Nacional de Habitação

CDDH-AC Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro CEB Comunidade Eclesial de Base

CELAM Conselho Episcopal Latino-Americano

CEPAC Centro de Estudo e Pesquisa e Assessoria Comunitária CIBRAZÉM Companhia Brasileira de Armazenamento

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil COBAL Companhia Brasileira de Alimentos

COCEPROL Cooperativa Central de Óleos Vegetais e Derivados dos Pequenos Produtores Rurais Limitada

CODEVASF Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

COOGIL Cooperativa Rural de Gestão Inovadora Limitada COSENA Cooperativa Agropecuária de Senador Pompeu CPT Comissão Pastoral da Terra

DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra as Secas FETAG Federação dos Trabalhadores na Agricultura

FETRAECE Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na Agricultura no Estado do Ceará

GAL Grupo de Ação Libertadora

IBASE Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas INCRA Instituto Nacional Colonização e Reforma Agrária MNDH Movimento Nacional de Direitos Humanos

OAB Ordem dos Advogados do Brasil PCB Partido Comunista Brasileiro PCR Partido Comunista Revolucionário PJMP Pastoral da Juventude do Meio Popular PT Partidos dos Trabalhadores

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...14

2. “AS ALMAS DO POVO É O SANTO DO POVO”: A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DA DOR NA CAMINHADA DA SECA...23

2.1 Caminhando ao campo santo...23

2.2 O Campo de Concentração do Patu: a memória da dor...34

2.3 A tragédia vira notícia: o grande drama da seca...47

3. PELA LIBERTAÇÃO DO HOMEM DO CAMPO: OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A IGREJA LIBERTADORA...56

3.1 A multidão ganha as ruas: a seca de 1979-1983 e os saques em Senador Pompeu...56

3.2 Paróquia N. Senhora das Dores: as primeiras experiências de uma igreja para a libertação em Senador Pompeu...69

3.3 Padre Albino Donatti: um profeta para o sertão...83

4 MEMÓRIA DE LUTA...94

4.1 CDDH-AC: a defesa dos direitos humanos...94

4.2 O trabalho nas comunidades rurais...104

4.3 “Saiba sonhar, quem não sonha, não realiza... Não tenha medo, não!”: a narrativa da vida do profeta...110

4.4 A narrativa da seca entre o sagrado e a política...115

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...124

REFERENCIAS...127

FONTES...131

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1 INTRODUÇÃO

Descobri, também, uma fé calorosa no ser humano, um idealismo apaixonante, a suavidade do despojamento, renúncia e martírio- todas as esplêndidas e comoventes qualidades do espírito. Naquele meio, a vida era honesta, nobre e intensa. Naquele meio, a vida se reabilitava, tornava-se maravilhosa. E eu estava alegre por estar vivo. Mantinha contato com grandes almas que punham o corpo e o espírito acima de dólares e centavos, e para quem o gemido fraco de crianças famintas das favelas vale mais do que toda a pompa e circunstância da expansão do comércio e do império mundial. (LONDON, Jack).1

A primeira vez que tive contato com a Caminhada da Seca foi através da reportagem do caderno Regional, no jornal Diário do Nordeste, em 2010. O evento ocupava a

primeira página da edição que destacava a presença de “milhares de romeiros”. A reportagem

falava de uma caminhada que ocorria anualmente em todo segundo domingo de novembro, na cidade de Senador Pompeu, localizada a 255 km de Fortaleza. Nela, milhares de romeiros lembravam os mortos no Campo de Concentração do Patu, que foi construído na região durante a seca de 1932.

O repórter apresentava relatos dos sobreviventes da tragédia, bem como daqueles que foram agraciados com algum milagre das almas santas, que eram chamadas de Almas da Barragem. A partir desse primeiro contato, fui levada a pesquisar sobre os campos de concentração, procurando investigar as ações por trás de sua construção. A história dos campos de concentração não me era inteiramente desconhecida, pois, ainda no ensino médio, fui marcada pela leitura do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, que me proporcionou horas de discussões com meus professores de História à época.

Nesse novo momento, as leituras de Kênia Sousa Rios (2001) e Frederico de Castro Neves (1995) foram fundamentais para entender o contexto de criação dos Campos, que não foram uma simples consequência da seca. O empreendimento do Governo Federal já tinha sido colocado em prática em 1915, em Fortaleza. Em 1932, foram construídos sete Campos de Concentração em todo o estado, colocados em pontos estratégicos de deslocamento dos flagelados para Fortaleza, através da linha férrea. As obras ofereceram, para esta pesquisa, uma base para a compreensão dos vários processos que se desenrolam dentro da emergência da seca, desde a atuação das autoridades governamentais até os mecanismos de vigilância e controle sobre os flagelados.

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Era preciso evitar a chegada dos famintos às ruas da capital, pois estes não carregavam somente a miséria e os pedidos por socorro, mas também doenças, como o cólera, que vitimou grande número de pessoas em Senador Pompeu, em 1932. Com esses estudos iniciais sobre os Campos, fui levada a vivenciar pessoalmente a Caminhada da Seca, em 2011. Chegando à cidade no dia anterior, escutava muitos carros de som anunciado a romaria que se realizaria no dia seguinte.

Em conversas pelas calçadas, ouvi que a celebração era um momento muito importante e que muitas pessoas já tinham recebido sua graça. Fui aconselhada a ir à missa e prestar atenção nas falas iniciais, recomendação que atendi prontamente. Lá, escutei muitos

pedidos e agradecimentos “às Almas da Barragem”. E, assim, caminhei no dia seguinte com a

certeza de que precisava saber quem eram as “almas” e, principalmente, quem eram seus fiéis.

Foi preciso anotar, gravar, fotografar, mas, principalmente, ouvir e ver o que diziam aquelas pessoas, numa multidão que, vista do alto, parecia não ter fim. Neste ponto, a pesquisa se aproximou da Antropologia, para pensar o trabalho do etnógrafo, que, como

coloca Geertz (2014), ao ler um acontecimento, também elabora “uma leitura de”. Desse

modo, seu estudo é sobretudo uma produção, uma interpretação. Não cabe a ele somente

anotar e observar, mas entender “o que está sendo transmitido com a sua ocorrência e através

da sua agência”. (GEERTZ, 2014, p. 8).

Na observação da Caminhada, os pés descalços, os maços de vela, as câmeras, os gravadores, os cartazes, as cabaças, as mãos e os pés de homens e mulheres pareciam dizer de suas intenções naquele dia. Porém, foi preciso ir além. Através da metodologia da História Oral, procuramos ouvir esses sujeitos, suas motivações, suas angústias, suas alegrias, mas, principalmente, pensar o que os conduzia a rezar por mortos da seca todo ano. Muitos percorriam longas distâncias para estar ali, pois não eram da cidade.

O que os unia era o conhecimento da história de 1932; todos aqueles que foram entrevistados contavam o que ouviam sobre a seca, sobre seus sofrimentos. Através da História Oral, fomos traçando um caminho pela vida desses sujeitos e entendendo como eles relacionavam suas vidas, suas experiências, com o que estava sendo vivenciado na romaria em Senador Pompeu.

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o padre Albino também propiciou muitas conversas, muitas que não foram registradas, mas que foram muito importantes para termos uma pequena dimensão das diferentes dimensões da passagem do vigário pela paróquia.

Muitos relatos de milagres também foram escutados em todas as visitas à cidade; porém, não foram colocados nessa pesquisa devido aos pedidos dos próprios depoentes, que não queriam seus nomes divulgados. Com essa garantia, podiam contar com o gravador

desligado o que haviam pedido às “almas” e falar sobre novas promessas.

Dentro da romaria, também identificamos aqueles que se empenhavam no seu registro, através de fotos, filmagens e gravações. Subiam em morros para pegar o melhor ângulo, e com gravadores iam conversando com os romeiros. Desse grupo, foram realizadas entrevistas com Valdecy Alves e Francisco Paulo Ferreira da Silva, o Fram Paulo, que nos falaram sobre suas iniciativas não somente no registro da celebração, mas no empenho no processo de tombamento dos prédios que serviram de instalação para o Campo de Concentração de 1932.

Ambos fizeram parte da Equipe Cultural 19-22, criada nos anos 1990 por jovens da cidade que buscavam um lugar para discutir sobre cultura e política. Pelas falas de Valdecy e Fram Paulo, procuramos entender como se deu esse processo de registro dos depoimentos dos sobreviventes da seca e sua divulgação, pois foi através dessa equipe que partiram as primeiras iniciativas nesse sentido. A isso, somamos a análise da primeira reportagem sobre o Campo de Concentração de Senador Pompeu, da repórter Ariadne Araújo no jornal O Povo, em 03/06/1996, e do filme Serca Seca, de Flávio Alves, irmão de Valdecy.

Os depoimentos dos sobreviventes são compostos não somente por quem pediu abrigo na concentração, mas todos aqueles que presenciaram a situação vivida no Campo, à época. Suas falas de sofrimento, trazido pela fome e pela doença, são a base da romaria e de todos os empreendimentos a partir dela, como reportagens, filmes, documentários, processo de tombamento, dentre outros. Na Caminhada, os depoimentos são lidos em paradas realizadas ao longo do percurso, quando são feitas reflexões que os relacionam às problemáticas atuais. Nesse ponto, a programação da celebração de 1996, escrita por Pedro Raimundo foi fundamental para entendermos como a estrutura da romaria é pensada como um teatro, com atores e falas.

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um novo narrador. Através das fontes, nos propomos a pensar quem são esses sujeitos que assumem a missão de escrever o que será falado, o que será levado ao público na celebração. Em 1996, o percurso era diferente, pois seguia pela estrada principal, o mesmo caminho da linha férrea que levava ao Campo de Concentração do Patu.

Ainda no estudo dos depoimentos dos sobreviventes, utilizamos o livro Migalhas do Sertão, escrito, em 1998, pelo padre João Paulo Giovanazzi. A obra foi a primeira publicação dos depoimentos e das orações do grupo. As entrevistas foram realizadas no mesmo período do pedido do processo de tombamento, da reportagem de Ariadne Araújo e do filme Serca Seca, entre 1996 e 1998. Padre João Paulo Giovanazzi ainda escreveu dois outros livros que foram fontes importantes para esta pesquisa: Paróquia de Nossa Senhora das Dores: 80 anos servindo ao Senhor (1999) e Pe. Albino Donatti: um profeta no Sertão Central (2013).

No primeiro, foi publicado integralmente o Livro de Tombo da paróquia, desde sua criação até a saída do padre José Joaci Cavalcante, em 1980. Além do texto do livro, a obra conta com entrevistas realizadas por Giovanazzi com padres e moradores de Senador Pompeu, através das quais o autor procura pensar as ações realizadas pelos vigários e paroquianos na cidade. A escolha de trabalhar com as obras de 1998 e 1999 ocorreram tanto pela facilidade do acesso quanto pela busca de uma análise da atuação da Igreja, através de seus membros, padres e leigos.

É interessante perceber como João Paulo nomeia seus entrevistados e constrói em seus dois primeiros livros uma narrativa linear da seca de da história da paróquia local. Ambos demonstram ser uma tentativa de construção de uma história da própria cidade, vivida a partir da religião.

Sua última obra, publicada em 2013, foi uma homenagem prestada ao Padre Albino Donatti, seu amigo e idealizador da Caminhada da Seca, após a sua morte. Ela se aproxima das publicações anteriores ao nomear todas as entrevistas, porém, há mais diferenças que semelhanças. As memórias daqueles que conviveram ou fizeram parte das ações de Donatti não seguem uma narrativa linear e, em vários momentos, não é possível determinar a data exata do que está sendo contado.

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obra de Giovanazzi, a visão elaborada sobre as obras de Albino Donatti, após a sua morte, enfim, o quando está sendo lembrado.

Na romaria, entre seus vários participantes, se destacam aqueles ligados ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro (CDDH-AC), criado por inspiração de Pe. Donatti, em 1983. Na Caminhada, seus membros carregam cartazes e instrumentos que simbolizam a luta da instituição em diversos eixos. Desse modo, para entendermos a relação das duas principais criações do padre italiano, pesquisamos no arquivo do CDDH-AC. Entre fotografias, jornais, cartas, atas, dentre outros documentos, não percebemos somente a atuação do centro na romaria, mas também a dimensão de sua participação nos diversos embates políticos travados por Donatti em defesa dos direitos da população da cidade.

Em todas as escolhas de arquivos e fontes, nos orientamos pelo objetivo de entender as relações estabelecidas pelos participantes da romaria com as memórias da seca de 1932, materializadas através dos depoimentos de seus sobreviventes. Assim, pensar a memória, seus significados e seus usos, se tornou peça chave neste estudo. A partir dessas relações, da vivência da Caminhada e da atuação de Albino Donatti, as memórias de 1932 vão sendo reelaboradas e resignificadas, produzindo novas memórias. Portanto:

Dado que a memória social, tal como a memória individual, é seletiva, precisamos de identificar os princípios de seleção e de observar a maneira como variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, bem como a forma como se modificam ao longo do tempo. As recordações são maleáveis e necessitamos compreender a forma como são moldadas e por quem. (BURKE, 1992, p. 238).

A primeira Caminhada da Seca ocorre em 1982, momento em que o Ceará atravessava umas de suas secas mais severas, que durou de 1979 a 1983. Assim, os participantes não só lembravam a seca ocorrida cinquenta anos antes, mas também viam nas ruas da cidade a miséria trazida por uma nova estiagem. Senador Pompeu foi inundada por trabalhadores famintos em busca de auxílio, e, quando não eram atendidos, recorriam aos saques e às ameaças.

A partir dessas ações coletivas, representadas pela multidão de flagelados, nos aproximamos do trabalho de Frederico de Castro Neves (2000), procurando entender essa multidão como um sujeito, que não estava somente reagindo à situação de pobreza, sem nenhuma consciência política de seus atos. Os sofrimentos da seca, nesse período, não eram vivenciados somente dentro da romaria, mas no cotidiano da cidade.

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originados das Conferências Episcopais de Medellín (1969) e Puebla (1979). Padre Albino Donatti, criador da romaria, se insere nesse momento de mudança, como percebemos através dos depoimentos que ressaltam seu empenho na construção de uma Igreja progressista, que buscava atender aos mais necessitados. Sua atuação toda é voltada para a criação de espaços onde os mais pobres teriam seus direitos assegurados.

Esses lugares de discussão e troca de saberes tiveram início com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), fundadas para as celebrações do Dia do Senhor. Os documentos emitidos pelo Vaticano e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foram amplamente utilizados no tocante às reflexões e instruções da Igreja Católica para sua comunidade de fiéis, neste momento.

A dissertação está dividida em três capítulos, com os quais procuramos abordar as relações entre os participantes da Caminhada, representados principalmente, pelos romeiros e pela Igreja, através da figura de padres que tiveram grande inserção social e política dentro da cidade. No primeiro capítulo, “As almas do povo é o santo do povo”: a construção da narrativa da dor na Caminhada da Seca apresentamos uma breve descrição da romaria, dando ênfase aos principais rituais vivenciados em seu trajeto. Se as memórias da seca são a base da celebração, elas se tornam o ponto de partida para a discussão.

O capítulo está dividido em três tópicos. O primeiro, Caminhando ao Campo Santo, apresenta a descrição da 29ª Caminhada da Seca. Nele, pensamos o espaço da romaria a partir dos romeiros e as relações que eles estabelecem com a devoção. De acordo com DaMatta (1985), o centro onde se vivencia o sagrado é o que busca o fiel, ali o sagrado é materializado.

Na romaria, o centro é o Cemitério da Barragem, construção simbólica feita no local, onde, segundo os sobreviventes, foram enterrados os mortos do Campo, em valas comuns. O lugar foi eleito para as peregrinações dos fiéis. No mesmo tópico, procuramos abordar os principais aspectos da memória que, após se tornarem públicas, reforçam umas às outras, contribuindo para a formação de uma identidade para o grupo de romeiros e também para os sobreviventes. Dessa forma, há uma relação entre o individual e o coletivo, através do elo estabelecido com o santo e com as memórias que o sustentam. Entendemos assim que “a

memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo”. (HALBWACHS, 1990, p. 51).

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processo de santificação das almas. Para isso, é necessário aprofundarmos a história do Campo de Concentração através das memórias de seus sobreviventes. Aqui, a morte, ou melhor, as condições das mortes dos flagelados, assim como a vida de miséria no Campo, se unem para a construção de uma narrativa de dor e sofrimento, que concede aos mortos sua santidade.

No terceiro tópico, A tragédia vira notícia: o grande drama da seca, através de jornais, reportagens televisivas e o livro Migalhas do Sertão, investigamos as primeiras divulgações que foram feitas das memórias dos sobreviventes de 1932. A romaria recebe pouca atenção nessas fontes e o padre Albino Donatti não é sequer mencionado. As iniciativas partiram, principalmente, da Equipe Cultural 19-22, fundada na década de 1990 por jovens da cidade que estavam envolvidos também no pedido de tombamento dos prédios onde funcionou o Campo. Procuramos pensar como esses meios não somente materializam as memórias de 1932, mas também as reelaboram, dando novos significados à crença e, consequentemente, à romaria.

O segundo capítulo, Pela libertação do homem do campo: os movimentos sociais e a Igreja Libertadora aborda as ações da multidão em Senador Pompeu durante a seca de 1979-1983 e as novas posturas assumidas pela Igreja Católica a partir de Medellín (1969) e Puebla (1979). No tópico A multidão ganha as ruas: a seca de 1979-1983 e os saques em Senador Pompeu discutimos como os saques que se alastraram pelo interior do Ceará durante o período apareciam na visão dos flagelados, políticos e da mídia.

Em 1982, a Igreja Católica também começa a se posicionar diante do problema,

com o “Seminário Sobre o Homem e a Seca”, que ocorreu em junho de 1982, em Caucaia-CE, e foi um evento articulado entre a regional Nordeste da CNBB e as entidades ligadas às lutas campesinas. O seminário resultou no documento Nordeste: Desafio à missão da Igreja no Brasil (1984), no qual a miséria trazida pela seca agora era vista como um resultado da desigualdade no campo, provocada pela concentração de terras que privilegiava uma pequena elite.

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leigos, como Antonieta Lopes e Manoel Monteiro, notamos a ocorrência dos primeiros cursos voltados para a educação de jovens e adultos, em processo de alfabetização e formação política.

No tópico, também procuramos pensar os conflitos gerados por uma atuação mais politizada da Igreja Católica durante o período da Ditadura Civil-Militar. No último tópico do capítulo, Padre Albino Donatti: um profeta para o Sertão, a atenção se volta para a chegada do padre Albino em Senador Pompeu, além de sua trajetória anterior em Cajazeiras-PB, onde teve sua primeira experiência no Brasil. Lá, o vigário teve seu nome envolvido na explosão de uma bomba no Cineteatro Apollo 11 e, junto a outros padres italianos, foi visto como um problema para a Igreja devido aos seus posicionamentos políticos.

Abordamos as principais iniciativas após sua chegada à Senador Pompeu, como a criação de grupos pastorais para crianças e jovens, bem como o programa de rádio, através do qual fazia uma reflexão diária a partir do Evangelho. O capítulo Memórias de Luta apresenta as ações do padre Albino Donatti junto aos habitantes de Senador Pompeu na defesa de seus direitos e garantias de seu sustento. No encerramento das discussões, é fundamental entendermos a construção da memória através do livro Pe. Albino Donatti: um profeta no Sertão Central, de João Paulo Giovanazzi. Neste sentido, todas essas ações se combinam dentro da romaria, criada pelo padre em 1982.

No tópico CDDH-AC: a defesa dos direitos humanos, tratamos da criação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro, em 1983, que, atualmente, é uma das instituições de maior atuação na romaria. Abordaremos os dois eventos que foram o impulso para sua concepção: a luta das famílias atingidas pela construção da Barragem do Patu e o descumprimento dos direitos trabalhistas dos servidores públicos municipais.

Após esses acontecimentos, o Centro amplia sua atuação, fazendo denúncias de arbitrariedades cometidas por policiais na cidade. A partir disso, ocorrem as primeiras lutas travados pela instituição, que passou a ser perseguida pelas autoridades. No segundo tópico, O trabalho nas comunidades rurais, investigamos a atuação do padre Albino nas comunidades rurais, tendo como o exemplo a comunidade do Entre Rios, onde, junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, são criadas a horta comunitária e a oficina de costura, que contavam com a participação de homens e mulheres.

A horta foi o começo de uma primeira experiência de reforma agrária, pois, posteriormente, as terras foram divididas igualmente entre as famílias de camponeses. Os conflitos não tardaram a surgir e o padre foi acusado pelas autoridades políticas e pelas mídias

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Em “Saiba sonhar, quem não sonha, não realiza... Não tenha medo, não!”: a narrativa da vida do profeta, analisamos a construção da narrativa da passagem de Albino Donatti por Senador Pompeu a partir da obra Pe. Albino Donatti: um profeta no Sertão Central, de João Paulo Giovanazzi. No último tópico, intitulado A narrativa da seca entre o sagrado e a política, pensamos a construção da Caminhada da Seca tendo por base a relação entre os elementos religiosos e políticos. O teatro da romaria se assemelha à Via Sacra, que também era realizada na cidade sob sua tutela.

Desse modo, procuramos entender a Caminhada como uma construção, através das experiências dos sujeitos que a compõem. O recorte temporal vai de 1982 a 1998, data de início da romaria e a primeira publicação das memórias dos sobreviventes através do livro Migalhas do Sertão, de João Paulo Giovanazzi. Se buscarmos compreender as relações estabelecidas com as memórias de 32 e suas constantes reelaborações dentro da romaria, o livro confere uma ampliação da reflexão, dando novos significados para estas lembranças.

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2 “AS ALMAS DO POVO É O SANTO DO POVO: A CONSTRUÇÃO DA

NARRATIVA DA DOR NA CAMINHADA DA SECA”

2.1 Caminhando ao campo santo

A religião dá nomes a todas as coisas e torna, até mesmo o incrível, possível e legítimo. Para os efeitos da vida, ela pretende sempre envolver o repertório mais abrangente das questões e fazer as respostas mais essenciais, de acordo com os interesses políticos, mas também de acordo com os medos e as esperanças das mais diversas categorias de pessoas. (Carlos Rodrigues Brandão)2

Na manhã do dia 13 de novembro, segundo domingo do mês, às 4 e 15 da manhã, alguns já se encontram na Igreja Nossa Senhora das Dores, matriz de Senador Pompeu. Outros estão pelas ruas fechando suas casas para dirigirem-se até o mesmo local. Carros, paus-de-arara, ônibus, muitos grupos vão chegando e se cumprimentando. São pessoas de todas as idades, crianças, jovens, adultos, idosos, todos vestidos de branco, uns ou outros se diferenciam da multidão por suas roupas de outras cores.

Vemos flashes de todos os lados, fotógrafos e cinegrafistas do município e da capital vieram para cobrir a grande celebração. O padre se dirige à calçada para cumprimentar os fiéis. Em certo momento, o padre tira fotos com um grupo de crianças e antes do flash pede que estes lhe respondam “viva as Almas da Barragem!” e, em seguida, todos “viva!”.

Rapidamente o número de pessoas aumenta e o padre se dirige ao altar da igreja para dar início à caminhada.

Percorrendo as ruas da cidade, orações e cânticos são puxados por uma senhora que se encontra no carro. O padre também conduz algumas orações. Pessoas que se encontram na calçada, em sua maioria, vestidas de branco, unem-se a grande procissão. Alguns que apenas observam o movimento cumprimentam quem está no interior da celebração. A expressão “viva as Almas da Barragem” é falada por todos a todo o momento.

À frente, fotógrafos e cinegrafistas correm para cobrir todo o percurso, sobem em muros, calçadas, morros de areia, tudo para ter o melhor ângulo da procissão. Em um determinado instante, posicionada em cima de um morro, paro para observar o povo. A visão é inacreditável, há um grande cinturão de pessoas, a roupa branca é predominante e impressiona como a quantidade de pessoas aumentou em tão pouco tempo.

Nos anos anteriores, algumas paradas eram realizadas além das já existentes, como em alguma casa e na cadeia pública. Nessas paradas, orações eram realizadas em prol

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dos excluídos da sociedade ou que estão em sofrimento. As paradas são realizadas desde a época de padre Albino Donatti, idealizador da caminhada. Nelas, são lidos os depoimentos dos sobreviventes da seca de 1932 e orações que eram realizadas no Campo de Concentração. Além disso, junto às memórias, são colocadas reflexões políticas trazidas pelo narrador. A população se envolve na leitura. Após quatro quilômetros, a procissão chega à Barragem do Patu.

Na descida do morro, passamos pelas ruínas da Usina Gótica que pertencia aos ingleses onde o povo que estava no Campo de Concentração de 1932 realizava seus trabalhos. Atualmente, há uma placa colocada pela prefeitura indicando o local. Em frente ao Cemitério da Barragem, construído em 1980 em memória dos flagelados do Campo de Concentração, há um palco montado para o encerramento da romaria com uma missa campal. O cemitério é tido

como o “marco fundante” da Caminhada da Seca.

À esquerda, há algumas barracas do Centro de Direitos Humanos Antônio Conselheiro (CDDH-AC), distribuindo sementes e panfletos do seu trabalho junto à comunidade. Há também dois carros que distribuem água e chapéus, ambos alegam que estão pagando promessa por uma graça alcançada.

Muitas pessoas se dirigem ao cemitério para fazer orações e acender velas no crucifixo e na capela que se encontram no centro do local. Na capela, há muitas imagens de santos, fotos de pessoas, pedaços de roupa, rosas, tudo trazido pelo povo e muitos ex-votos. Além disso, são muitos os que realizam a caminhada sem calçados, em pleno sol escaldante para pagar suas promessas.

Vendo a intensa movimentação no cemitério, o padre Carlos Roberto pede que fechem seus portões para que todos possam estar presentes na missa e que nada atrapalhe a celebração. Durante a missa, todos estão atentos, alguns com suas mãos erguidas entoando orações. Como antes dito, são pessoas de todas as idades, inclusive crianças de colo. No momento das oferendas, muitas coisas são trazidas ao altar.

Há um jarro com água, uma caçarola com sementes e madeiras cortadas em formato de pés onde estão gravados os nomes de todos os padres que participaram da caminhada, datando os anos em que eles estiveram na condução. Há também banners do CDDH-AC e um em homenagem ao padre Albino Donatti, que iniciou em 1982 a romaria.

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anos, um carro é enviado pela paróquia para a casa de D. Luísa para conduzi-la à caminhada. Ela ainda mora na Barragem do Patu, próximo ao antigo Campo numa casa simples. Todos a

conhecem e a cumprimentam. Seu depoimento na missa se confunde com sua “grande”

história de vida, cheia de sofrimento de alguém que presenciou seca e mortes em 1932. Após alguns minutos, o padre retoma o microfone, percebendo que a sobrevivente se estenderia demasiadamente em sua narração.

No final da celebração, um ritual é proposto pelo padre e prontamente realizado por todos. Quem possui uma garrafa de água em suas mãos deve fazer um pedido e derramar um pouco no chão logo em seguida. Segundo ele, seu pedido feito às Almas da Barragem será

atendido e a água serve para “dar vida” à terra seca. Com o fim, algumas pessoas se dirigem

ao altar para cumprimentar D. Luísa. Os fotógrafos tiram fotos de todos. Nesse momento, o padre autoriza a abertura dos portões do cemitério e uma grande multidão se aglomera.

Há muitas pessoas acendendo velas no cruzeiro de ferro que se localiza a frente do cemitério. No interior do cemitério, o povo também acende suas velas. Outros ainda se conduzirão à barragem, onde há as ruínas do Campo de Concentração de 1932. A movimentação de partida é maior do que a que ocorre em frente à Igreja Matriz. São muitos ônibus enviados pela prefeitura, carros mandados por empresários, paus-de-arara e carros particulares. Muitos ainda escolhem voltar a pé e até mesmo com os pés descalços, pagando suas promessas. Assim, com um aglomerado de carros, ônibus e pessoas, se encerra a 29ª Caminhada da Seca, em 13 de novembro de 2011.

A escolha de apresentar um relato da Caminhada não foi inocente. Narrar o que é observado e vivido mostra ao leitor os detalhes, são os acontecimentos no momento de seu desenrolar. Através de um único olhar, uma perspectiva é apresentada, mas ela é uma vivência em meio à tantas outras. A ingenuidade não tem vez, pois como coloca Certeau o relato não apenas fala do movimento, mas também o elabora. A Caminhada, com seus diversos atores se apresenta desse modo. Crianças, adultos e velhos, construindo a celebração, cada um com seu olhar carregado de suas experiências.

O nome da Caminhada já carrega uma série de dizeres. A seca se torna o principal elemento, mesmo que sua base seja a crença nas Almas da Barragem. A celebração traz, através da referência à história da seca de 1932, elementos políticos e religiosos, que se unem na figura do idealizador, padre Albino Donatti. O sacerdote teve uma vida de grande atuação política junto às comunidades. Pensamos a Caminhada como um espaço que é vivido e, portanto, alterado a cada novo participante, a cada nova ocorrência. Nesse sentido, o espaço

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Além de Caminhada da Seca, a celebração também assume a condição de romaria. Não temos como pensar a romaria fora do espaço religioso ligado à Igreja Católica. Assim, na vivência desse espaço, ele é sentido de forma mística. Há na romaria um ritual muito pessoal, nas falas, nas vestes, nas orações, mas, principalmente, nos pés, desse modo:

A romaria é mística do espaço, transformação da paisagem. Leva-nos do profano ao sagrado por caminhos rotineiros que mudam de figura à medida do percurso. É com os pés, ao que se diz, que se ora nas melhores romarias. Neles, a dor e a leveza. Por eles, o transporte. Ao fim do dia, os romeiros acomodam-se pelo terreno, tiram os sapatos, as meias suadas, e exibem orgulhosamente os pés descalços. É mística propriamente superficial, que pede olhos abertos para que se vejam o caminho, seus obstáculos e perspectivas. (FERNANDES, 1994, p. 14)

Na observação da Caminhada, é possível identificar diversos grupos e motivações. Os elementos religiosos e políticos se misturam nas falas destes que fazem uso da memória para construir sua narrativa. Os romeiros, que estão na celebração pela fé na santidade das almas, intercedendo e pagando suas promessas, possuem diversas experiências, fazendo com que sua relação com as memórias de 1932 e a crença esteja em constante atualização. Portanto:

[...], vale salientar que a experiência religiosa é historicamente constituída. Desse modo, a vivência do devoto se faz por meio de tradições que são reelaboradas, reconstituídas ou transformadas. Não há uma regra para definir as devoções de modo completo ou definitivo, pois a vida de cada fiel sempre guarda alguma peculiaridade e um determinado ritmo de mudanças e permanências. (RAMOS, 1998, p. 30).

A Caminhada é um ritual que tem por base lembrar os mortos na seca de 1932, sendo assim a escolha de sua data não poderia ser outra. O senhor Zé Damas conta que o padre realizava no primeiro domingo de novembro uma celebração voltada para o Dia de Finados. Assim, decidiu que o domingo seguinte seria dedicado aos mortos da seca. O catolicismo estabelece uma relação muito próxima com o outro mundo e já existe hábito de rezar pelas almas, sendo a segunda-feira o dia dedicado para esse fim. Dessa forma, como aponta Roberto Da Matta, dizer que a essa relação tão íntima com o Além é própria da

religiosidade dita “popular” seria um erro. 3

3 Roberto DaMatta aponta que é uma das principais características do Brasil falar mais do morto do que da morte

e isso faz com que a relação com as almas seja mais próxima. O dia das almas do purgatório e o dia de finados são exemplos de momentos em que se estabelecem um contato mais próximo com o outro mundo. Assim,

“Vivemos num universo onde os vivos têm relações permanentes com os mortos e onde as almas voltam

sistematicamente para pedir e ajudar, para dar lições de humildade cristã, mostrando sua assustadora realidade.”

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Durante o percurso, além das rezas e dos cânticos, é interessante observar as conversas entre os participantes. Elas não se restringem à assuntos religiosos, mas falam de futebol, notícias da cidade, até mesmo dos rumores sobre conhecidos. Nesse momento, a Caminhada se assume também como um espaço de encontro, de troca de diferentes saberes. Um espaço onde os grupos se unem, onde se vivencia a relação entre a casa, a rua e o outro mundo. Para os romeiros, sua fé e sua ligação com o sagrado são cheias da vivência de seus lares e da rua. Mesmo que a experiência com o outro mundo seja a mais importante, ela não se faz sem a junção dos três espaços.

As formas de vivência do sagrado na vida dos romeiros são múltiplas. O altar em casa, a vela para os falecidos, o terço nas comunidades, a missa aos domingos. A Caminhada se une a esses momentos, sendo mais um espaço de aproximação do sagrado. Ali, o fiel dedicará seu dia ao santo, todas as suas expectativas estarão voltadas para o encontro, para o pedido e para o pagamento de sua promessa. Essa experiência não pode ser vivida entre os muros de uma instituição, pois é ali, em meio ao sertão, que o romeiro se encontra mais próximo daqueles que compartilham sua fé e junto da morada das Santas Almas.

Em Senador Pompeu, o santo é coletivo e não possui uma representação física através de uma imagem. Além disso, o local onde estão seus restos mortais é incerto, já que as valas comuns foram construídas em toda extensão do Campo. Ao contrário do que acontece em outros locais, como em Juazeiro do Norte, na crença em Padre Cícero, o romeiro não pode

“tocar” ou ver seu santo. O Cemitério da Barragem, construído para lembrar os mortos é uma forma de materialização da crença, porém, sua presença não serviu sozinha para dar suporte à santificação. Ele se torna, junto à Caminhada, um dos espaços vividos após a santificação.

O romeiro caminha com o objetivo da chegada, mesmo que durante o percurso já esteja em oração, pagando sua promessa, o mais importante é cumpri-la. Na Caminhada a quantidade de pessoas pagando promessas salta aos olhos e oferece uma pequena dimensão de seu poder na vida dos fiéis. Adolescentes caminham de pés descalços e afirmam terem recebido sua graça. O ápice da celebração é o momento de abertura dos portões, o encontro. O padre tenta controlar a multidão ao trancar o local para dar atenção à missa, demonstrando nervosismo diante do desvio dos romeiros4.

Em 1996, a Caminhada ainda mantinha o antigo percurso diferente das que são realizadas atualmente. O percurso anterior aproximava os fiéis de forma mais nítida das

4 Segundo Rubem César Fernandes, na romaria católica o mais importante é a chegada do fiel ao centro, pois esse é o momento de encontro com o sagrado. O local não está somente no imaginário do católico, pois “O

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memórias da seca, pois seguia a linha férrea que era o ponto de entrada para o Campo de Concentração. As paradas também eram realizadas em locais estratégicos, como a estação da RFFSA e o açude do Patu. Porém, entendemos que, para os romeiros, o mais importante não seria o caminho, mas os rituais que se realizam e a chegada ao local sagrado, o Cemitério da Barragem. O lugar sempre foi a última parada em todos os anos.

Se a chegada ao centro é fundamental, o local onde o sagrado se realiza, qualquer um que se colocar no meio do caminho terá que usar de forte controle para com o fiel. Na Caminhada, a alternativa encontrada pelo sacerdote foi colocar cadeado nos portões. Diante

disso, o rito eclesiástico seria mais valorizado. Padre Carlos Roberto conta que na romaria “se

o padre não for, o povo vai mesmo assim”, o que dá a entender a celebração como

independente da Igreja. Aqui, o romeiro assume, sobretudo, a posição de um rebelde, aquele que não vê impedimento para vivenciar o sagrado e, principalmente, não aceita a dificuldade.

Uma possível barreira que poderia ser colocada é facilmente ultrapassada. Na Caminhada, em diversos momentos, o padre se dirige ao microfone para pedir que os fiéis

andem mais devagar, pois estão “correndo”. A romaria é aguardada o ano inteiro por cada

romeiro e as horas de espera causam a impaciência. O percurso é ruim pelas condições do terreno e do clima, mas isso não é um empecilho para a visão de milhares de pés descalços. Muitos poderiam estar ali em outras oportunidades, já que o Cemitério se encontra sempre aberto. Porém, a maioria das promessas está ligada à participação na Caminhada. Não interessa somente andar de pés descalços, quando. Percebemos a relação entre a Caminhada e o Cemitério, suas vivências se completam e se complementam.

As almas são um santo coletivo e seu processo de santificação está ligado ao grupo. Porém, a forma como cada fiel se relaciona com o santo é muito pessoal. As promessas sempre apontam para pedidos para o próprio romeiro e a seus familiares. Nas missas que ocorrem na igreja matriz, há sempre agradecimentos por graças alcançadas. Assim se faz o jogo entre o pessoal e o coletivo.

A história do santo é contada durante a Caminhada e com ela os fiéis estabelecem suas relações. No catolicismo:

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A falta de alimento e água, o sofrimento, o abandono, as doenças e a morte, são temas lembrados através dos depoimentos contados na romaria. Todas essas questões foram fundamentais no processo de santificação, porém a força da romaria se mantém porque, a cada ano, desde sua criação, esses temas de sofrimento são atualizados, incorporando questões pessoais da vida de cada participante. Nessa relação entre o acontecimento e a santificação, entre o profano e o sagrado, Senador Pompeu é o local onde as memórias da seca ganharam mais destaque.

A crença não possui um marco, não se pode determinar qual o primeiro milagre. Porém, não interessa nesse estudo entender o surgimento das almas, mas o seu crescimento. Não se pode dar conta dar conta da dimensão do mundo do sagrado, assim os elementos para pensar o processo de santificação, os vestígios dos milagres, o pagamento das promessas, se tornam os principais elementos. Os ex-votos encontrados na capela vão desde a simplicidade de uma roupa até a tecnologia da gravação de um ultrassom. O homem simples de pés descalços caminha ao lado do comerciante que distribui dezenas de garrafas de água.

Os sobreviventes são o elo com o passado e suas memórias são evocadas durante a celebração. Através deles, a história do Campo de Concentração vai sendo construída ao longo do percurso. A presença de D. Luísa Lô no palco da missa e sua fala durante a homília mostram não somente sua importância dentro daquele ritual, mas também o momento onde essas memórias serão partilhadas e reforçadas por outras. Ano após ano esse processo se repete. As palavras podem parecer as repetidas, mas jamais serão absorvidas do mesmo modo. Porém, temos que ressaltar que não somente as memórias dos sobreviventes do Campo são lidas, pois há relatos de pessoas que apenas visitaram a concentração ou fugiram da seca, rumo à Fortaleza. Nesse sentido, mesmo que os concentrados tenham mais notoriedade pela proximidade com os santos, todo relato que apresenta os horrores da seca é importante na construção da narrativa. A Caminhada é o momento onde essas memórias ganham força e espaço junto à crença.

Ali, as memórias servem não somente para contar uma história, mas para fundamentar a construção do sagrado. Nos depoimentos, há diversos pontos de encontro. A menção às péssimas condições do Campo e aos sofrimentos que a seca causou, aparecem em todos eles. As memórias se apoiam umas nas outras, para assim servirem como uma base forte, tanto para a fundamentação do discurso religioso quanto para o político.

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Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (HALBWACHS, 1990, p. 34).

É justamente nesse momento em que as memórias ancoram umas nas outras que a crença, a construção do Cemitério e a ocorrência da Caminhada ganham legitimidade. A memória coletivizada se torna forte e assume uma função. Nesse ponto, cada grupo as utiliza, dando ênfase a este ou aquele elemento, de acordo com sua posição dentro e fora da romaria. É nesse sentido que a divisão entre os grupos fica mais evidente. Não é possível separar os aspectos políticos e religiosos, porém, a forma como as memórias são usadas nessa relação se diferencia.

Assim, partindo da ideia de Pollak (1992) de identidade social como a construção

de uma “imagem de si, para si e para os outros”, os grupos constroem uma relação com as

memórias interna e externa. Para se pensar a identidade é fundamental pensar o processo de pertencimento. Os romeiros estabelecem com aquelas memórias uma relação de proximidade, pois no momento da Caminhada estão juntos às almas no espaço-tempo. Mesmo que não possuam as memórias de quem viveu a seca de 1932, eles partilham da dor. Se “para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta”

(POLLAK, 1992, pg. 4), é isso que os participantes se tornarão, a escuta.

Na ideia de pertencimento aos grupos, pode-se identificar ainda um quarto grupo: os sobreviventes da seca. Se suas memórias são partilhadas, os aproximando e colocando numa posição diante da interpretação do acontecimento de 1932, eles se unem e se apoiam como um todo, criando uma identidade. Eles constroem uma forma de narrativa do passado através de suas memórias de dor e sofrimento. Aos ouvintes, o momento de vivência da romaria proporciona o estabelecimento de uma ligação afetiva com as lembranças. Como veremos no próximo capítulo, os participantes da celebração também possuem experiências com relação à seca que os aproximam da narrativa.

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interrompida somente pelo sacerdote. Após a missa, muitos se dirigem ao palco para lhe oferecer gestos de carinho. As feridas do trauma recebem atenção.

Atrelada ao sofrimento, a memória se torna forte, a partir da ideia de testemunho, deixa uma marca profunda naqueles que a compartilham ou se sentem próximos de alguma forma.5 A memória ligada à morte traz consigo a emoção, que aproxima narrador e ouvinte. Além disso, os sobreviventes ligam suas histórias de vida à uma história mais ampla, já reconhecida hoje pela mídia e pelos estudos acadêmicos. Como aponta Lowenthal:

Damos muito valor a essas conexões com o passado mais abrangente. Satisfeitos de que nossas lembranças nos pertencem, buscamos também ligar nosso passado pessoal à memória coletiva e à história pública. (LOWENTHAL, 1998, p. 82).

Como memórias constituídas e requeridas a todo o momento, elas já se encontram solidificadas. O relato apresenta a mesma estrutura cada vez que é proferido. Nas entrevistas com os participantes da romaria, as palavras se repetem. Pollak (1989) fala que mesmo que a memória seja mutável, ela possui pontos que se repetem, se tornam marcos. Esses pontos são os que conferem legitimidade diante do grupo. No caso dos sobreviventes, a fome, a sede, a doença e as mortes são o ponto comum, pois esses são os elementos que dão sustento à construção dos discursos sobre a seca. A repetição não elimina o testemunho individual na composição da memória coletiva.

Assim se apresenta outra característica da memória, a seleção. Aspectos são esquecidos, enquanto outros são sempre lembrados. Nas memórias de quem morou na concentração, não há menção à atuação médica, que aparece nos relatos de duas senhoras que trabalharam na farmácia e uma delas, afilhada do médico, Dr. Alcides Barreira, trabalhou muito junto aos flagelados, mas não pôde dar conta da multidão.

Notamos que a experiência no Campo faz com que as lembranças sofram alterações e ressaltem determinados elementos. Quem conviveu mais próximo ao médico, terá maior recordação de sua presença. Dessa forma:

O ser humano orientado por seus interesses em agir jamais dispõe por completo da soma de suas lembranças. O acervo de sua recordação só fica acessível em partes; e isso perfaz a limitação fundamental, mas também a versatilidade e capacidade de aprender dos seres humanos. (ASSMANN, 2011, p. 72).

5 Nesse ponto, me aproximo da análise de Joël Candau sobre memórias fortes e fracas. A memória das tragédias é uma memória forte, pois reforça o sentimento de identidade do grupo que “se constrói em boa parte se

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A atenção dada às memórias é fundamental no processo de inclusão e exclusão de determinados aspectos. As entrevistas orientam a lembrança de acordo com os interesses do entrevistador. Portanto, além dos sobreviventes se enquadrarem em um grupo, eles são enquadrados a partir do uso que pretendem fazer de suas memórias. Se a Caminhada vem com a proposta de lembrar os mortos na seca, todos os elementos materiais e simbólicos devem convergir para isso. Assim, as memórias, as narrativas e o Cemitério tendem a fazer referência ao mesmo ponto.

A coleta de entrevistas funciona como um empreendimento de memória, mostra o que não deve ser esquecido. A maior parte dos materiais foi produzida a partir da década de 1990 e a crença, segundo relatos, foi motivada pelas peregrinações que se iniciaram logo após a benção do local onde funciona o Cemitério da Barragem. Além das entrevistas, é importante ressaltar também a instituição da data para a Caminhada. Se a celebração, assim como as memórias, assume uma função, definir um marco que sirva de referência para a recordação é fundamental. Assim, 1932 e 1982 são as datas que mais aparecem como ponto de partida para as lembranças. A data serve como um sustento para a memória coletiva, constituindo marcos de memória.

Para o romeiro, a referência à santidade das almas é a mais importante. O cenário da Caminhada e as memórias criam uma imagem do sertão, voltado para a religiosidade. As árvores secas no caminho lembram muito mais um período distante, do que a atual situação do Nordeste. A promessa traz a recordação das dificuldades, da família, do emprego. Os relatos que falam do dia a dia no Campo também destacam esses elementos. Mesmo que aquela situação não possa ser recriada, a dor de perder um parente diante da doença e da fome pode ser partilhada.

A estrutura da romaria, além do cenário, reforça a ideia de penitência e dor, já evocada nas memórias. A Caminhada, com paradas, lembra o calvário de Jesus Cristo e o fiel ainda faz o percurso de quatro quilômetros castigado pelo sol forte. Mas, como dito, não há obstáculo para o romeiro. O momento é de lembrar a dor daqueles que sofreram no Campo, não importando as dores causadas pelas dificuldades do percurso. Todas as ações do romeiro são sacralizadas, pois se voltam para o santo. As memórias, em sua perspectiva, também são aspectos do sagrado.

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almas, o único é o local que tem como função lembrar a morte. Ao longo dos anos, os sobreviventes foram morrendo e não somente suas memórias são vestígios de 32, mas também o local, assim:

Mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim fazem parte da construção de espaços culturais da recordação muito significativos. E não apenas porque solidificam e validam a recordação, na medida em que ancoram no chão, mas também por corporificarem uma continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve de indivíduos, épocas e também culturas, que está concretizada em artefatos. (ASSMANN, 2011, p. 318).

O Cemitério da Barragem é muito importante para a crença, mesmo que não tenha a força para sozinho, servir de base para a mesma. O local foi escolhido, ele foi feito o centro da peregrinação. Pessoas se dirigiam até lá levando ofertas para as almas e, ao longo dos anos, sua estrutura foi sendo reforçada pela população. É do seu espaço que a crença surge e se potencializa com a Caminhada. A população estabelece um cuidado para com o local, que recebe sempre uma nova pintura.

Podemos observar uma atitude completamente diferente nas relações com os casarões que serviram de abrigo para as instalações do Campo. Os prédios parecem ter pouca atenção diante do Cemitério da Barragem. Mas, ao tratar dos romeiros, melhor seria questionarmos qual a importância dos casarões para a crença. As ruínas dos prédios se encontram maltratadas pelo tempo, sua imagem é de esquecimento, se comparada ao cemitério.

Se, somente a utilidade dos prédios for levada em conta, o Cemitério deveria vir em segundo plano, pois as ruínas remontam ao Campo e seria o principal símbolo da seca. O percurso da Caminhada passa por alguns desses prédios, mas não há oferendas diante deles. A devoção se encontra distante das instalações. Aqui, começam a se estabelecer as diferentes formas de uso das memórias da seca para os participantes. A partir de suas motivações políticas, culturais e/ou místicas, eles se relacionam com os marcos, como as datas e as construções e vivenciam a Caminhada à sua maneira.

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sacerdote, possuindo em seu lar altares e fotografias voltadas para sua devoção. O cemitério é orientado pelo tempo do eterno, o tempo do sagrado. Ele se torna um dos suportes para a experiência mística.

Aqui mais uma vez ressaltamos a ação do fiel, do romeiro. A Caminhada foi instituída pelo padre Albino Donatti, mas não a devoção. As memórias são lidas durante a romaria, mas recebidas de forma diferentes por seus participantes. Como percebemos no

relato inicial, o padre Carlos Roberto tenta conter os fiéis que “correm” durante a celebração

para chegar ao centro.

A chegada simboliza também o cumprimento do Calvário, da promessa. É preciso fechar os portões para dar visibilidade à missa. Se as memórias são selecionadas, mesmo aquelas que tratam de uma história de tragédia, passam pelo processo do esquecimento. A devoção traz a esperança na vida após a morte, na justiça diante dos sofrimentos terrenos.

Nesse sentido, os casarões evocam a memória de tempos difíceis, mas, principalmente, de personagens que não podem fazer parte da narrativa do sagrado. Além disso, eles não remetem somente à seca de 1932. A construção dos prédios data de fins da década de 1910 para que servisse aos operários responsáveis pela Barragem do Patu. Portanto, sua origem não remete somente ao Campo, que foi mais um momento de sua história.

Os casarões são imponentes diante do Cemitério da Barragem e são alvo de constantes disputas entre o poder público e os grupos motivados pelo seu tombamento. Eles são um dos elementos da seca dentro da romaria, porém, não se relacionam com os participantes da mesma forma. A santificação não está ligada simplesmente à história da seca de 1932, pois assim, os sobreviventes e mesmo aqueles que não estiveram no Campo seriam santificados após a sua morte.

O estudo do processo de santificação engloba as características do catolicismo em sua relação com as almas e a experiência de vida daqueles que se tornaram santos. Portanto, entender a crença vai além da investigação sobre o que aconteceu no Campo através das memórias, mas é perceber também como certos elementos dessas lembranças saltam aos ouvidos dos católicos que se tornarão romeiros.

2.2 O Campo de Concentração do Patu: a memória da dor

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um personagem do teatro, com cenários e falas que transportam para um passado comum. Porém, como sugerem as palavras de Peter Burke (1992), não há inocência naquele espaço. O teatro conta com atores que defendem seus papéis e interagem com o cenário e os outros personagens com linguagens próprias. Para entender essa trama é preciso estudar o que motivou sua construção: as Almas da Barragem.

Durante a seca de 1932, sete campos de concentração foram construídos no Ceará. Ao percorremos outros locais, há relatos sobre a seca e suas vítimas, mas não há histórias

sobre a santificação daqueles que morreram nos “currais do governo”. Padre Carlos Roberto,

natural de Senador Pompeu e que esteve à frente da paróquia por cinco anos, conta que cresceu escutando histórias sobre o campo e suas vítimas, mas não compreendia que fator motivava tantos relatos. Porém, ao retornar à cidade para assumir como padre, teve maior contato com os sobreviventes e com a caminhada que se iniciara em 1982. Durante as missas, é comum os agradecimentos e pedidos às Almas da Barragem.

Senador Pompeu não abrigou o maior campo de concentração, porém, a forma como essa experiência foi sentida e interpretada através dos depoimentos dos sobreviventes foi fundamental para construir na cidade um santo, que é coletivo e inominável, e que será a base da futura romaria. Não importa a quantidade de mortos, mas as condições de sua morte. A história do campo de concentração é contada não através dos livros e documentos, mas das falas daqueles que presenciaram e “sentiram na pele” os efeitos da seca.

Os sobreviventes se tornam o elo com esse passado. Suas memórias conferem uma interpretação, seus olhares e suas experiências são singulares. Porém, como nos alerta

Burke “lembrar o passado e escrever sobre ele já não parecem poder ser considerados atividades inocentes” (BURKE, 1992, p. 236) e, nesse sentido, as intenções por trás dessas relações estabelecidas com a história de 1932, dentro e fora da Caminhada, são peças

fundamentais nesse “teatro”.

Antes da década de 1990, a Caminhada e a história dos campos de concentração tinham pouca atenção da mídia. Segundo Valdecy Alves, padre Albino dá início à romaria após ter contato em suas visitas e durante as missas com a devoção pelas Almas da Barragem. Para alguns, o Cemitério da Barragem já era um local de visitação. Sem dúvida, o crescente interesse da mídia e da academia pela história da seca deu maior visibilidade à celebração, porém, a crença tem na oralidade seu principal meio de afirmação e propagação.

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Todo dever de memória passa em primeiro lugar pela restituição de nomes próprios. Apagar o nome de uma pessoa de sua memória é negar sua existência; reencontrar o nome de uma vítima é retirá-la do esquecimento, fazê-la renascer e reconhecê-la conferindo-lhe um rosto, uma identidade. (CANDAU, 2011, p. 68).

O ato de recordar é individual, condicionado pelo presente, o passado é reconstruído de acordo com certas demandas. As memórias dos sobreviventes relacionam todos aqueles que ficaram confinados no campo de concentração com um passado maior, a história das secas. Uma história que é pública, partilhada, mesmo por aqueles que não a viveram diretamente.

A seca continuou a atormentar Senador Pompeu por muitos anos, e os

“flagelados” ocupavam o centro da cidade durante o período de perdas, como abordaremos

nos capítulos seguintes. Se a memória é sempre moldada pelo presente, as perdas que a seca poderia trazer estavam inseridas no cotidiano do local.

As Almas da Barragem não possuem nomes, mas aqueles que sobreviveram ao campo lhe conferem sua identidade. Seus relatos de sofrimento e perdas dão legitimidade à sua santidade e tornam os sobreviventes parte de um grupo. Nas relações que esses indivíduos estabelecem com o passado e no uso de suas memórias, certos elementos ganham visibilidade.

A memória ganha força quando é exteriorizada, contada, pois “à semelhança da linguagem, a

memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas.” (PORTELLI, 1997, p. 16).

Na experiência do Campo de Concentração, todos os concentrados vivenciaram os mesmos sofrimentos, tendo largado suas terras em busca da sobrevivência, à mercê da ação governamental e da caridade. Mas seu destino, após sua vida de provações, cria uma separação entre eles: vivos e mortos. Os sobreviventes possuem nomes e assumem o dever de recordar a experiência da seca de 32. Entretanto, os mortos não possuem nomes, mesmo aqueles que são familiares e parentes dos que sobreviveram não são lembrados dessa forma. Assim, após a sua morte, assumem uma nova identidade: alma da barragem. Muitos sobreviventes já faleceram e é importante salientar que estes não se tornaram almas milagrosas.

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Tabela 1-  Estado do Ceará. Ocorrências das “invasões” e saques em sedes municipais  interioranas.

Referências

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