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Psicol. cienc. prof. vol.15 número13

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(1)

PSICOLOGIA/ARTE

NO PENSAMENTO

FILOSÓFICO DE

NIETZSCHE*

Psicóloga. P r o f e s s o r a de Filosofia

na F a c u l d a d e Carioca, R.J.

N

ão há dúvidas de que Platão e

Aristóteles representaram o

antigo mundo das idéias a

res-peito do fenômeno estético. O

novo mundo surge no século XVIII,

quando a ortodoxia neoclássica

su-cumbe e o empirismo, o

associa-cionismo e suas variantes o

substi-tuem. No começo do século XIX, o

utilitarismo e o positivismo foram

os herdeiros imediatos seguidos pelo

pragmatismo, e o behaviorismo e o

positivismo lógico que, por sua vez,

não negaram sua ascendência.

Conquanto, a grande tradição

da estética alemã de Kant e Hegel

reafirmam a identificação da arte

com a filosofia. A obra de arte,

como entidade estética, torna-se

dissolvida em favor de um estudo

dos sentimentos, conceitos e

filoso-fias do artista. O ato criador e o

artista passam a ser os centros de

atenção em detrimento da obra de

arte.

Na verdade, a Clínica do Juízo

Estético de Kant dá início ao

movi-mento do Romantismo; se tudo está

contido nos limites da razão, o

Ro-mantismo busca extrapolar esses

limites na exaltação dos

sentimen-tos entendidos como algo caótico,

incontrolável. Na célebre expressão

Sturm und Drang (tempestade e

ímpeto), o movimento filosófico/

literário/artístico abre caminhos para

a valorização dos sentimentos, dos

desejos, da vontade como

elemen-tos fundamentais que dão sentido à

existência do homem, do mundo,

da vida.

É no período do pessimismo

romântico de Nietzsche (1870-1876)

que Wagner e Schopenhauer

sim-bolizarão os grandes espíritos

ro-mânticos anunciadores da

revolu-ção cultural alemã. Por assim dizer,

o sentimento de paixão do filósofo

pelo drama musical wagneriano e o

sentimento de admiração ao

pessi-mismo de Schopenhauer

impulsio-narão Nietzsche a reconhecer a

música de Wagner como expressão

da metafísica de Schopenhauer. A

arte wagneriana será compreendida

como a manifestação do

crescimen-to da grande arte grega.

A concepção nietzscheana

so-bre a arte tem suas raízes na tragédia

grega. O grego arcaico foi quem

mais teve sensibilidade para o

sofri-mento e intuição da tragédia da

existência. No Nascimento da

Tra-gédia (1871), Nietzsche conta a

an-tiga lenda do sábio Sileno,

compa-nheiro de Dionísio, quando este,

prisioneiro e interpelado pelo rei

Midas, revela com desprezo aquilo

que convinha à espécie humana: "O

melhor de tudo é para ti

inteiramen-te inatingível: não inteiramen-ter nascido, não

ser, nada ser. Depois disso, porém,

o melhor para ti é logo morrer".

1

Esta problemática existencial é que

dá origem à arte e à tragédia grega.

A tragédia significa o conflito entre

as pulsões artísticas da natureza; a

arte trágica é que possibilita a união

e o equilíbrio entre os instintos

pulsionais apolíneo e dionisíaco da

natureza.

Isto significa dizer que a tragédia

grega tem como heróis primordiais

Apolo e Dionísio; Dionísio, o deus

da desmesura, do caos, da fúria

sexual, da volúpia da dor,

represen-ta o elemento extático do palco

grego, enquanto que o deus Apolo

é a expressão da luz, da beleza, da

harmonia, da ordem, da liberdade

dos sonhos que possibilita tornar a

vida possível e desejável. A união

de Apolo e Dionísio enquanto

for-ças simbólicas expressam a

essên-cia da natureza. Daí resulta que

Dionísio não possa viver sem os

limites que Apolo lhes oferece ao

transformar o mundo em arte.

Na exaltação da cultura trágica

grega, Nietzsche revela a existência

do duplo princípio gerador das

ar-tes como expressão essencial do

mundo: as pulsões naturais

artísti-cas apolíneo e dionisíaco, as quais

manifestam-se na vida humana

atra-vés dos estados estéticos,

respecti-vamente, do sonho e da embriguez.

Esses estados fisiológicos

opõem-se como condições necessárias para

a arte produzir-se. O sonho

caracte-riza o mundo estético originário do

princípio apolíneo como símbolo

da bela aparência face ao mundo

estético da embriaguez originário

do princípio dionisíaco. A

embria-guez é o estado que despedaça e

elimina o individual. Em outras

palavras, na embriaguez

des-faz-se os laços do principium

individuationis como se o véu de

maia rasgasse para aparecer a

rea-lidade mais fundamental: a união

do homem com a natureza. É, sob a

inspiração da metafísica da arte de

Schopenhauer, que Nietzsche

com-preende a oposição das pulsões a

partir da n o ç ã o de V o n t a d e

schopenhaueriana. No primeiro

ca-pítulo de O Mundo como Vontade e

Representação, Schopenhauer

con-sagra à Vontade, entendida como o

(2)

toda efêmera individualidade. Essa u n i d a d e mais originária e funda-mental (das Ur-Eine), e m incessante e s u p r e m a dor, se dá e t e r n a m e n t e a o m o v i m e n t o de esfacelamento e m direção à individuação. Por assim d i z e r , c o m a d i l a c e r a ç ã o d o principium individuum pela

inten-sificação d a s e m o ç õ e s dionisíacas, t u d o volta à u n i d a d e primeira. O h o m e m reconcilia-se com a nature-za d a n d o nascimento à arte musical e imagística q u e é a tragédia. O artista dionisíaco é aquele q u e joga c o m o s o n h o e a embriaguez. A lucidez é o e l e m e n t o apolíneo d e transfiguração q u e se introduz n o dionisíaco para transformá-lo e m arte. Apolo v e m e m auxílio d o artis-ta salvando-o d o desejo d e perder-se na v o n t a d e e d e dilacerar-perder-se n o devir dionisíaco.

É através d e s s a h i p ó t e s e d a metafísica do artista q u e Nietzsche b u s c a e l u c i d a r o p r o c e s s o transfigurador d o uno primordial q u e a natureza realiza através d o s o n h o para criar a bela aparência.

Contudo, c o m a tendência anti-dionisíaca iniciada p o r Eurípedes ao privilegiar a razão, a consciência c o m o critério pelo qual se d e v e orientar toda a p r o d u ç ã o estética, a relação entre arte e vida c e d e lugar à relação arte e ciência; o espírito racionalista d e Eurípedes desdobra-se no racionalismo socrático-platô¬ nico q u e se estende sobre a poste-ridade.

Este p e q u e n o e s b o ç o d o pensa-m e n t o de Nietzsche sobre a arte vinculada à vida na investigação d o f e n ô m e n o dionisíaco na Grécia ar-caica revela dupla inovação - a cri-ação d e u m a sui generis psicologia e interpretação d o socratismo. A singular psicologia nietzscheana a o operar c o m as pulsões artísticas da natureza manifesta u m inconsciente primordial o qual escapa às p o s -sibilidades d e r e p r e s e n t a ç ã o da consciência. A d i m e n s ã o d o incons-ciente e m e r g e c o m o função de u m princípio ativo, e m b o r a e m seu p e n -s a m e n t o filo-sófico n ã o -seja apre-sentado c o m o u m princípio funda-mental. É preciso dizer q u e a Psico-logia de Nietzsche situa-se n o domí-nio da reflexão filosófica e n ã o se

refere a o c a m p o específico da in-v e s t i g a ç ã o c a r a c t e r i z a d o p e l a valoração positiva da experiência sensível c o m o fonte principal d o c o n h e c i m e n t o . A p s i c o l o g i a nietzscheana está mais próxima d e u m m é t o d o peculiar d e interpreta-ção d o q u e p r o p r i a m e n t e de u m a ciência constituída.

Em sua autobiografia Ecce Homo, o filósofo refere-se à Psicologia c o m o a arte d e "ver além d o s ângulos"2, c o m o u m d o m artístico da visão aprimorada para ver aquilo q u e há d e mais profundo e enigmático na realidade existencial: a d i m e n s ã o pulsional, do s instintos. Essa arte da visão, além d e q u a l q u e r perspecti-va, diz respeito a u m a dupla e talvez a u m a terceira visão ciclópica dos metafísicos, s o b o efeito da interdi-ção, n ã o p o d e contemplar a dimen-são obscura da existência, tal c o m o nos sugere Nietzsche: "Imaginemos a g o r a o g r a n d e e ú n i c o o l h o ciclópico d e Sócrates, voltado para a tragédia, aquele olho e m q u e nunca ardeu o gracioso delírio de entusiasmo artístico - e p e n s e m o s q u ã o interdito lhe estava mirar c o m agrado para os abismos dionisíacos: o q u e devia ele realmente divisar na "sublime e exaltada" arte trágica, c o m o Platão a denomina? Algo ver-d a ver-d e i r a m e n t e irracional, c o m cau-sas sem efeitos e c o m efeitos q u e pareciam n ã o ter causas; e, n o todo, u m c o n j u n t o t ã o v a r i e g a d o e multiforme q u e teria d e r e p u g n a r a u m a índole p o n d e r a d a , constituin-d o , entretanto, para as almas sensí-veis e suscetísensí-veis u m a perigosa isca".3

A citação exposta vale para es-clarecer a posição característica d e Nietzsche em relação a Sócrates e a Platão vistos c o m o representantes d o início da decadência d o espírito grego. Com Sócrates c o m e ç a a ida-de da razão, d o homem teórico e m oposição a o homem trágico, isto é, aquele q u e acredita dar o r d e n a ç ã o ética aos p r o b l e m a s essenciais da existência. Todavia, o olhar sagaz d o filósofo-psicólogo, q u e p r o v é m n ã o a p e n a s de suas possibilidades d e divisão interiorizada, mas tam-b é m da sua sensitam-bilidade artística, alcança os abismos dionisíacos da

existência.

É certo q u e r Nietzsche auto de¬ nomina-se c o m o o primeiro "psicó-logo sem igual"4 p o r q u e n i n g u é m antes dele teve a ousadia de p r o d u -zir tão "complexa arte de estilo".'' U m tipo d e arte q u e comunica "um estado d'alma, u m a tensão interna d o sentimento",6 d o sentimento d o Eterno Retorno...pois, Nietzsche-Zaratustra, "o primeiro psicólogo dos bons"7, afirma a intensidade da

e t e r n i d a d e a o s u p e r a r t o d a s as d i c o t o m i a s da vida, a o desejar atravessá-la "até a u m dionisíaco dizer-sim a o m u n d o , tal c o m o é, sem desconto, exceção e seleção"8. Este é o paradigma s u p r e m o q u e se p o d e alcançar "estar dionisiacamente diante da existência"9 t e n d o c o m o fórmula "amor fati"10 para a grande-za d o h o m e m .

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

NOFFAT NETO, A. O Inconsciente Como

Potência Subversiva. São Paulo: Escuta,

1991.

NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia

ou Helenismo e Pessimismo, trad. , notas

e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

NIETZSCHE, F. Ecce Homo, trad. de Lourival de Queiroz Hentel. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.

NIETZSCHE, F. Os Pensadores. Obras.

Incompletas São Paulo: Abril Cultural, 1993.

MARTON, S. Nietzsche: Consciência e

Inconsciência In: A. L. AUFRANc et al. São

Paulo: Escuta, 1991.

N O T A S

" Ressonância: Comentário ao texto Arte e Modernidade, de Rodrigo A. P. Duarte publicado em Psicologia: Ciência e Profissão, ano 14, n 1,2 e 3, 1994, p.10-13.

" Professora de Filosofia na Faculdade Carioca, Rio de Janeiro.

1

Cf. Nietzsche, F. O Nascimento da Tragédia, § 3.

2

Cf. Nietzsche, F. Ecce Homo, Porque sou tão sábio, § 1.

3

Cf. Nietzsche, F. O nascimento da Tragédia, § 14.

4

Cf. Nietzsche, F. Ecce homo, Por que Escrevo Bons Livros, 5.

5

Idem, 4.

6

Idem.

7

Cf. Nietzsche, F. Ecce Homo, Por que sou Tão Fatalista, 5.

8

Cf. Nietzsche, F. Os pensadores - Obras Incompletas. Eterno Retorno, § 10.

9

Idem.

10

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