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Teoria dos Princípios e efetividade do direito constitucional MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

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Academic year: 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Luiz Felipe da Rocha Azevedo Panelli

Teoria dos Princípios e efetividade do direito constitucional

MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

(2)

Luiz Felipe da Rocha Azevedo Panelli

Teoria dos Princípios e efetividade do direito constitucional

MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

Dissertação apresentada à

Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo como

exigência parcial para

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BANCA EXAMINADORA:

__________________________________

___________________________________

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RESUMO

Esta dissertação analisa o conceito de princípio jurídico para diversos autores, brasileiros e estrangeiros, apontando as principais semelhanças e diferenças entre eles. Analisa também o posicionamento do Poder Judiciário – especialmente do Supremo Tribunal Federal – com relação à definição e aplicação dos princípios jurídicos e a repercussão que isto tem para o desenvolvimento do direito brasileiro. Por fim, faz uma breve análise comparativa com relação à interpretação judicial e doutrinária a respeito de princípios jurídicos no direito brasileiro e estrangeiro.

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ABSTRACT

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“Finally, these decisions give support to a current mistaken view of the Constitution and the constitutional function of this Court. This view, in a nutshell, is that every major social ill in this country can find its cure in some constitutional "principle," and that this Court should "take the lead" in promoting reform when other branches of government fail to act. The Constitution is not a panacea for every blot upon the public welfare, nor should this Court, ordained as a judicial body, be thought of as a general haven for reform movements. The Constitution is an instrument of government, fundamental to which is the premise that in a diffusion of governmental authority lies the greatest promise that this Nation will realize liberty for all its citizens. This Court, limited in function in accordance with that premise, does not serve its high purpose when it exceeds its authority, even to satisfy justified impatience with the slow workings of the political process. For when, in the name of constitutional interpretation, the Court adds something to the Constitution that was deliberately excluded from it, the Court in reality substitutes its view of what should be so for the amending process.”

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Luiz Alberto e Maria Virgínia, pelo imenso e incondicional apoio.

Agradeço à profa. Sílvia Pimentel e ao prof. Roberto Dias, pela preciosa ajuda que me prestaram durante todo o desenvolvimento desta dissertação.

Agradeço também aos amigos Luiz Fernando de Camargo Prudente do Amaral, Nuria López Cabaleiro Suárez, Rafael Rocha Paiva Cruz e Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, pela amizade e pelas profícuas discussões travadas ao longo do desenvolvimento desta dissertação.

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SUMÁRIO

Introdução ... 1

2 - O conceito de princípios jurídicos para diferentes autores ... 5

3 – Análise de autores específicos ... 14

3.1 - O conceito de princípio de Celso Antônio Bandeira de Mello ... 14

3.2 O conceito de princípio de Canaris ... 16

3.3 O conceito de princípio de Dworkin ... 20

3.4 - O conceito de princípio de Alexy... 30

3.5 - O conceito de princípio de Humberto Ávila ... 53

3.6 – A teoria adotada nesta dissertação ... 98

4 - Considerações sobre princípios jurídicos e segurança jurídica ... 102

4.1 - Teoria dos princípios e o chamado “legalismo” ... 115

4.2 – Teoria dos princípios, constitucionalismo e história do direito ... 136

4.3 - Breve exposição das teorias críticas do legalismo e a crítica às teorias alternativas do Direito. ... 149

4.4 - Os princípios jurídicos e a discricionariedade judicial – Para além de uma utopia positivista ... 160

4.5 - Constituição, interpretação e segurança jurídica ... 184

5 - Aplicação dos princípios e segurança jurídica em estados estrangeiros – breves notas ... 208

5.1 - Estados Unidos ... 208

5.2 - França ... 217

5.3 - Alemanha ... 219

6 – Conclusão ... 224

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1

Introdução

A presente dissertação tem como tema os princípios jurídicos e sua aplicação no direito constitucional brasileiro. O ordenamento jurídico atual é algo bastante complexo, sendo formado por um plexo normativo de difícil interpretação. Países de estrutura federativa como o Brasil têm, naturalmente, um ordenamento jurídico que requer um trabalho de interpretação diferenciado por parte do operador do direito, visto que é necessário conciliar espécies normativas advindas de diferentes entes federativos. Soma-se a isso os diversos tratados internacionais – e as discussões sobre a força normativa deles –, a jurisprudência recalcitrante dos Tribunais, a chamada “fúria

legislativa”1 e as recentes teorias que afirmam que no Brasil vige o chamado “bloco de

constitucionalidade” (isto é, que a Constituição é formada por mais de um documento, que deve ser interpretado de maneira harmônica). O resultado é um ordenamento jurídico que pode parecer caótico.

Em tal cenário, os princípios jurídicos têm importância ímpar. Através dos princípios, o operador do direito consegue ter um guia para se orientar no ordenamento jurídico. Torna-se cada vez mais difícil encontrar uma obra doutrinária ou um acórdão que trate de um tema importante em que a expressão “princípio jurídico” não seja citada, quiçá diversas vezes.

Entretanto, cumpre fazer uma indagação: o que é um princípio jurídico? Como ele se relaciona com o resto do ordenamento? Qual é a influência dele no direito constitucional? Se pudermos definir com clareza o que é um princípio jurídico – o que já é uma missão difícil – temos que analisar se os Tribunais aplicam esse conceito corretamente.

No atual estado do direito, diversas questões outrora relegadas apenas ao Poder Legislativo passam pelo crivo do Poder Judiciário. Questões das mais polêmicas – como as que envolvem bioética (aborto, eutanásia, etc...), privacidade e intimidade (união estável entre homossexuais), problemas sociais (construção de moradias populares, recursos para a saúde, orçamento público, políticas públicas) e políticas propriamente ditas (validade de anistia dada a membros da ditadura militar) são analisadas pelo

1 O termo “fúria legislativa” costuma ser empregado pela imprensa para classificar a proliferação de

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2

Supremo Tribunal Federal, o que enseja a crítica de que o Tribunal está se tornando uma “terceira Casa do Congresso Nacional”. Deixando as críticas de lado, fato é que nenhum desses temas polêmicos são analisados sem que os julgadores usem o conceito de princípio jurídico.

Os princípios ganharam uma força maior com o advento de cláusulas abertas inseridas em diversos diplomas normativos, em especial na Constituição de 1988, que é

rica em conteúdo valorativo e abstrato2.

A teoria dos princípios é muito usada na análise dos chamados direitos

fundamentais. Existe uma faceta nos direitos que a doutrina3 acostumou-se a chamar de

fundamentais de segunda e terceira geração: ao exigir uma conduta positiva estatal, eles abrem a possibilidade de o cidadão voltar-se contra o Estado para que o Estado aja, e não simplesmente para que deixe de agir. Ao fazer isso, a lógica da tripartição de poderes clássica é subvertida e ocorre um inevitável choque entre Poderes. A tripartição

de Poderes tal e qual concebida originalmente4 funcionava perfeitamente no liberalismo

econômico (o laissez-faire). Assim, quando se garantia que ninguém seria privado de

seus bens ou liberdade sem o devido processo legal, era possível, por exemplo, voltar-se ao Poder Judiciário para impedir que o Poder Executivo prendesse alguém sem a observância dos requisitos legais, emanados do Poder Legislativo. Um Poder balanceava os atos dos outros, resultando no modelo de Estado-mínimo tão querido ao

2 Sobre esse caráter aberto da Constituição, ensina Tércio Sampaio Ferraz: “Quando se opõem

procedimentos interpretativos de bloqueio e procedimentos de legitimação, o que entra em pauta é o problema de como captar o sentido das constituições no momento em que, concebidas essas como sistema de valores, a hermenêutica se transforma em um instrumento de realização política, com base na qual a legislação procurará concretizar princípios e programas implicitamente agasalhados pelo texto constitucional. Ou seja, a questão hermenêutica deixa de ser um problema de correta subsunção do fato à norma – com sua carga lógica, histórica, sistemática, teleológica e valorativa – para tornar-se um problema de conformação política dos fatos, isto é, de sua transformação conforme um projeto ideológico” FERRAZ JR., Tércio Sampaio, Aplicabilidade e interpretação das normas constitucionais, in Interpretação e estudos da Constituição de 1988, 1ª edição, São Paulo, editora Atlas, 1990, pág. 13.

3 Utilizo, prioritariamente, a concepção doutrinária de Paulo Bonavides, que explica que os direitos

fundamentais de segunda geração trouxeram a consciência de que tão importante quanto a salvaguarda do indivíduo é a salvaguarda do bem estar da comunidade. Da mesma forma, Bonavides afirma que os direitos de terceira geração são direitos que pressupõe a noção de solidariedade e humanismo (BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 24ª edição, São Paulo, Editora Malheiros, 2009, págs. 564-570)

4 Aqui, assumo a posição de que houve, no pensamento liberal clássico (início do constitucionalismo

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3

liberalismo clássico. Não é sem motivo que o esquema de tripartição de Poderes nasceu justamente do trauma do absolutismo.

Situação radicalmente diferente ocorre com os direitos de segunda e terceira gerações. Quando um cidadão aciona o Poder Judiciário para que ele faça valer seu direito à saúde, determinando, por exemplo, que o Estado entregue ao cidadão um medicamento bastante caro ou um tratamento de saúde complexo, está interferindo diretamente no orçamento público. Quando o mesmo Poder Judiciário determina que o orçamento está em dissonância com os mandamentos constitucionais, visto que privilegia muito a publicidade governamental e pouco a educação infantil, está entrando em uma esfera de atuação que foi, tradicionalmente, reservada aos outros dois Poderes. O mesmo ocorre quando o Poder Executivo cria uma porção de agências reguladoras para normatizar diversos aspectos do funcionamento econômico do país, regulamentos esses que, mais das vezes, criarão obrigações ao administrado que só poderiam advir de lei. A constitucionalização de direitos fundamentais de segunda e terceira gerações, em que pese ter sido algo louvável e imprescindível para a construção de uma sociedade realmente justa, criou uma cisão no modo de pensarmos a tripartição de Poderes.

E talvez a solução para tal cisão seja justamente o domínio da teoria dos princípios jurídicos. Sem que haja uma possibilidade real de o cidadão acionar o Poder Judiciário para fazer valer seus direitos, a Constituição permaneceria uma eterna folha de papel, com diversas promessas escritas, mas sem valor normativo. Entretanto, se a Constituição for vista como um elemento normativo que determine uma ação estatal específica, previamente escolhida e apta a ser exigida judicialmente, não restará nada à atividade política, resultando em uma sociedade com déficit democrático e dificuldade de absorver mudanças sociais.

Há, entretanto, um déficit na argumentação jurídica quando se trata de princípios. Muitas vezes, a doutrina e a jurisprudência usam conceitos divergentes,

dubiamente explicados5, que permitem que os princípios sejam invocados por um

operador despreparado apenas para afastar a incidência de uma lei que não convém. Essa prática tornou-se comuníssima no dia a dia forense e, se não for contida, pode

5

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4

resultar na formação de um Poder Judiciário de competências hipertrofiadas, o que desequilibra os Poderes da República e resulta em um regime pouco democrático,

redundando no chamado “ativismo judicial”.6

Para fazer uma análise mais completa, será utilizada a seguinte metodologia ao longo destra dissertação: (I - Introdução) Será feita uma introdução ao tema e à problematização, bem como traçado o corte metodológico que será usado ao longo desta dissertação; (II - O conceito de princípios jurídicos para diferentes autores) será feita uma breve exposição das cinco práticas comuns atinentes à teoria dos princípios que se encontram na doutrina e na jurisprudência; (III – Análise de autores específicos) segue-se um estudo breve sobre as conclusões dos principais doutrinadores a respeito da definição de princípios; (IV) após, serão apresentadas breves notas sobre algumas teorias a respeito da relação entre a lei e o direito e hermenêutica jurídica, bem como história do direito. Tais considerações serão feitas apenas para problematizar o uso atual da teoria dos princípios. (V) Serão feitas considerações breves sobre o direito comparado e o uso da teoria dos princípios de forma “importada”, isto é, da mesma maneira como é feita em outros países, sem que haja a correta adaptação às peculiaridades do direito brasileiro; (VI – Conclusão) por fim, será apresentada conclusão, com observações sobre o uso atual da teoria dos princípios no direito constitucional brasileiro.

Na presente dissertação, os problemas que pretendo abordar – e que tentarei

deixar claro em todos os momentos – são: (I) o que é um princípio? Qual sua

definição? (II) Como o Poder Judiciário e a doutrina usam esta definição na solução de casos concretos? (III) Há alguma relação na correção/incorreção do manejo da teoria dos princípios e a forma atual de interpretação do direito (hermenêutica)? (IV) Quais os reflexos disto no Direito Constitucional?

Não são quatro problemas diferentes, mas um só, que poderia ser resumido na pergunta: qual é o papel dos princípios no direito constitucional? Porém, para um melhor corte metodológico, foi feita a cisão do problema principal nestas quatro

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questões, que ora se tenta sistematizar. Ao longo da dissertação, estas quatro questões

ora expostas serão referência constante7.

2 - O conceito de princípios jurídicos

para diferentes autores

Antes de iniciar a comparação entre os diferentes conceitos de princípios jurídicos encontrados na doutrina, mister fazer algumas considerações gerais sobre as semelhanças básicas usadas na classificação de diferentes autores, bem como sobre o entendimento que geralmente é dispensado ao tema. Algumas dessas concepções comuns comportam objeções; outras são defendidas por autores de renome e, isoladamente, podem ser consideradas corretas, mas devem ser devidamente sopesadas quando confrontadas com outras concepções sobre princípios.

Existem, creio, cinco concepções comuns sobre os princípios jurídicos, que são

facilmente encontradas na prática forense. Tais concepções diferem bastante e têm embasamentos doutrinários diferentes.

A primeira é a de que os princípios jurídicos são, em geral, um mandamento

dotado de alto grau de abstração8. Quando falamos em princípios jurídicos, há a ideia de

algo incompleto, generalizado, uma espécie de mandamento que deve ser observado. Algumas vezes, temos a ideia de que os princípios atuam quase como um lembrete ao intérprete, para que não se esqueça de considerar tais valores no resultado final de sua

7 Entendo que a constante referência às quatro questões propostas é necessária para manter uma linha

argumentativa coerente e propiciar um desenvolvimento adequado do tema.

8 Não é raro ver tal entendimento em periódicos que tratam sobre Direito, ou em acórdãos. Por

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interpretação. Não é sem motivo o fato de que muitos associam princípios jurídicos com a Constituição Federal, ou ao menos tendem a lembrar da Constituição quando se fala em princípios; as regras contidas na Constituição têm, em geral, alto grau de abstração, há muitas das chamadas normas programáticas, boa parte delas não é aplicável sem complementação legal e, em regra, o operador do direito usa a Constituição aliada a um diploma legal de natureza mais técnica na prática forense. Assim, o operador do direito tributário dá grande importância à Constituição, mas também se importa com leis e decretos bastante minudentes. Quando vê a Constituição ao lado de tais decretos, sente que a Carta é bem mais abstrata. Da mesma forma ocorre com o operador do direito penal, ou do direito administrativo.

Isso corrobora a ideia de que o princípio, por ser abstrato, muitas vezes não chega a ser escrito, ou é escrito como um mandamento genérico. Assim, quando falamos no “princípio da oralidade” do processo, sabemos que, em que pese haver vários dispositivos nos diplomas que regem o processo penal e o processo civil que privilegiam a tentativa de convencimento do magistrado por meio do uso da palavra falada, sabemos também que não há uma regra específica que trata de tal princípio. Da mesma forma se dá com o princípio da inércia de jurisdição (aliás, um rábula, lendo e decorando as leis, pode ter a sensação de que ele inexiste, visto que o juiz pode agir de

ofício ao conceder um habeas-corpus, ao determinar a abertura de inventário caso

ninguém o faça no prazo legal ou ao iniciar a execução penal), ou com o “princípio do promotor natural”, ou do “duplo grau de jurisdição”.

Essa concepção, de que o princípio tem um alto grau de abstração, também corrobora com a ideia de que o princípio é algo intangível, distante da lei, sendo que seu uso está mais presente em discussões acadêmicas do que na prática forense efetivamente. Quem comumente usa essa noção tem a impressão de que a lei descreve os direitos e deveres, enquanto os princípios só ordenam o sistema, acreditando que é perfeitamente viável – embora não recomendável – que os operadores do direito ignorem os princípios na prática forense ou simplesmente os desconheçam.

A segunda concepção comum sobre os princípios afirma que eles são antagônicos às regras. Assim, uma regra seria algo emanado da Poder Legislativo para disciplinar uma situação abstrata, enquanto o princípio decorre de uma ordem superior,

muitas vezes moral9, que dá eficácia ao sistema. Neste prisma, o legislador, ao usar sua

9 Eros Grau afirma que tal fato se deve à crise do direito positivo em uma sociedade extremamente

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competência para legislar sobre direito civil, descreveu contratos típicos e regras gerais para os atípicos, mas o princípio da boa-fé nos contratos e de sua função social, em que pese estar expresso no texto de lei, vem muito mais de uma consideração moral e necessária à efetividade do sistema. Assim, a lei prevê de forma cega e dura os contratos, mas é possível que o operador os flexibilize ao antagonizar o princípio à lei. Da mesma forma, a lei penal prevê os tipos penais e suas penas (tipicidade formal), mas o operador pode restringir o alcance da lei penal com base em um princípio, por exemplo, da “tipicidade material”. A lei cria uma situação desfavorável ao réu, mas, com o uso do princípio, afasta-se a lei. Na legislação trabalhista, foi criada obrigação de que os litígios trabalhistas sejam previamente submetidos à junta de conciliação, formada por representantes de sindicatos patronais e de trabalhadores, mas é possível afastar a regra legal antagonizando-a com o princípio do acesso à justiça (que está concretizado na Constituição).

Assim, os princípios seriam mandamentos superiores, morais e antagônicos às regras. Não emanam do Poder Legislativo, mas existem como sendo necessários à existência de um sistema. São consequência do chamado “pós-positivismo”, do

abandono do legalismo10. Sob esse prisma, as regras e sua hierarquia são vistas como

uma obsoleta construção dos positivistas, enquanto os princípios podem ser usados pelo operador atento para afastar a flagrante injustiça que a aplicação das regras traz. Seria preciso superar o estágio legalista da concepção do direito, e a melhor forma de fazer isso é afastar leis e regras. Justifica-se essa repulsa da lei com o uso do princípio, que por sua vez vem imbuído de um mandamento moral. Isso ocorre quando há, por exemplo, uma ação de despejo por falta de pagamento de aluguel e o operador de direito, sem atentar a nenhuma peculiaridade da situação concreta, logo diz que não deve ser feito o despejo, pois, em que pese a lei de locações determinar essa medida, há o direito à moradia, que é um verdadeiro princípio a ser aplicado nos contratos de locação residencial.

Em geral, quem usa esta segunda concepção de princípios argumenta de forma parcial e unilateral: não analisa a situação financeira do locador e do locatário (às vezes

substituída por uma racionalidade ética, mas não fica claro qual é a ética que substitui o sistema positivo. (GRAU, Eros, Por que tenho medo dos juízes, 6ª edição, São Paulo, Editora Malheiros, 2013, pág. 17). No mesmo sentido. Marcelo Neves rejeita a distinção de norma e princípios baseada na valoração moral dos princípios (NEVES, Marcelo, Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais, 1ª edição, São Paulo, editora Martins Fontes, 2013, pág. 35-36)

10 Podemos incluir neste grupo, creio, os que advogam em prol das “teorias alternativas do direito”, por

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o locador precisa da renda do aluguel para pagar suas necessidades mais básicas de sobrevivência, bem como o locatário pode estar de má-fé); o locador pode ter tentado resolver a situação de forma amigável diversas vezes, sem sucesso; a prática reiterada de negar reintegração para casos de inadimplemento pode tornar o aluguel um negócio jurídico desvantajoso, o que encareceria o seu custo, prejudicando as políticas habitacionais e a locação, em especial por pessoas de baixa renda, etc...nada disso parece ser devidamente levado em conta para quem usa tal concepção dos princípios. O que importa é que o operador usou um princípio em contraposição à regra e, por isso, acredita que sua posição deve prevalecer.

A teoria conhecida como “neoconstitucionalismo” trata bastante da questão. Tal teoria usa os princípios jurídicos de forma muito frequente para trazer ao âmbito da indisponibilidade particular os direitos privados, bem como para afastar interpretações baseadas na lei em prol de uma interpretação tida como mais “justa e atinente aos valores constitucionais”11.

A terceira concepção é sobre a forma de resolução do conflito que envolve princípios, seja um conflito que envolve dois princípios, seja entre princípios e regras. Nesse sentido, nota-se duas concepções comuns: há os que acham que entre princípio e

11 Tomemos como exemplo a lição de Max Moller sobre o neoconstitucionalismo: “Outra questão

importante referente aos princípios consiste no alargamento do âmbito do alcance do direito que é possibilitado a partir desse novo modelo normativo. Esta aplicação ocorre sob duas perspectivas distintas. A primeira delas refere-se ao número de matérias que podem ser reguladas pelo direito, reduzindo praticamente a zero as lacunas jurídicas ou os campos antes restritos à autonomia privada. Pelo fato de prescindirem de um suposto fático fechado, que determinava as situações restritas que eram passíveis de julgamentos pelos juízes, os princípios ampliam o alcance do poder jurisdicional às mais diversas áreas.”

“De certa forma, esse novo arranjo das fontes do direito, que não mais está restrito ao sistema fechado e rígido de regras, mitiga, senão termina, com a máxima da legalidade que imperava no Estado liberal, qual seja, a de que ao particular é permitido fazer tudo aquilo que não lhe seja vedado pela lei. Se uma das funções iniciais das estruturas normativas denominadas princípios era a de preencher lacunas presentes no ordenamento, um sistema jurídico que encontra constituições normativas onde abundam princípios ou que utiliza frequentemente o potencial normativo dessas normas poderá ter reduzidos quase que totalmente os campos ausentes de regulação jurídica. Tanto que autores como Barak chegam a afirmar que nada está fora do controle jurisdicional, ou Alexy, no sentido de que, com a interferência dos princípios, nenhum caso concreto pode ser considerado um caso fácil”.

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regra, o princípio sempre deve prevalecer, por ter maior valor, como demonstrado anteriormente, e há quem se utilize do método do doutrinador alemão Alexy para buscar uma solução para esse tipo de conflito, ignorando que, em que pese as lições de Alexy serem de valor inestimável e extremamente importantes para o entendimento do tema,

há juristas que dele discordam12 e cuja teoria é também bastante válida.

Nos casos de conflitos entre regras, parece indiscutível que há métodos bem confiáveis de solucionar a antinomia: regra posterior afasta a anterior, especial afasta a geral, assim por diante. Quando o conflito envolve princípio, é imprescindível agir com moderação e analisar o caso concreto, entendendo suas peculiaridades e as consequências da decisão em um ou em outro sentido. Assim, no já citado caso de despejo por inadimplemento do aluguel, há conflito entre o princípio da propriedade com a sua função social e direito à moradia (arts. 5º, XXII, XXIII e 6º da Constituição). É preciso que o operador se pergunte qual é a causa do inadimplemento, se já houve outro inadimplemento no passado, se a renda que o imóvel gera é vital à sobrevivência do locador, se o comportamento do locatário tem sido escorreito, se há chance de conciliação, se há algum fator econômico externo à lide (especulação imobiliária) que contribui para essa situação, se a idade do locatário permite que ele venha a incrementar sua renda e não mais seja inadimplente, se o locatário tentou saldar a dívida, mesmo diante de adversidades, se o locador demonstrou boa-fé, etc....somente depois de analisar a questão de forma minuciosa é que o operador poderá sopesar os princípios e as regras que incidem sobre a situação e ver qual delas é a justa para ser aplicada.

Esse tipo de análise é mais complexa quando se exerce o controle de

constitucionalidade abstrato, pois não há situação concreta para ser analisada13. Assim,

12 No decorrer desta dissertação, tentarei mostrar a discordância da doutrina sobre o tema. Por ora,

afirmo que a concepção de Humberto Ávila difere da de Alexy. Também a concepção de Celso Antônio Bandeira de Mello é diferente da de Alexy e da de Ávila. Tudo isto será visto oportunamente.

13 Esclareço: em tese, o processo é chamado de “objetivo”, pois não há interesse individual. Quem

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o Tribunal deve analisar a lei por todos os seus prismas, tentando salvá-la de declaração de inconstitucionalidade caso haja alguma solução constitucional. É comum, infelizmente, vermos demandas infundadas que versam sobre a inconstitucionalidade

em abstrato de lei, com base apenas em um princípio genérico14.

A quarta concepção comum é a presunção de que os princípios ocupam uma posição central no sistema, pois exercem um papel estruturante. Essa posição parece ser a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello. Apesar de ser uma posição bastante válida e coerente, há muitas discordâncias acerca de tal teoria. A uma porque os princípios não necessariamente estruturam um sistema; é perfeitamente possível pensarmos em um sistema (bastante simples) estruturado só por meio de regras, desde que sejam regras simples e bem feitas. Basta pensarmos no caso da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro (antiga Lei de introdução ao Código Civil), que é uma série de regras sobre a vigência das leis no tempo e espaço, bem como a relação jurídica de direito internacional privado.

Os defensores desse posicionamento costumam afirmar que o desrespeito a um princípio é mais grave do que a uma regra, pois ao desrespeitar um princípio, rui o pilar que sustenta todo um sistema jurídico. Esse raciocínio é válido se, e somente se, entendermos princípios jurídicos como normas-chave, centrais ao sistema, o que é uma concepção bastante diferente da adotada por Alexy, entre outros. Na verdade, essa posição não parece fazer uma grande diferenciação acerca do conteúdo de regras e princípios; ela chama de princípios uma regra central a qual outras acatam. Assim, a obrigatoriedade de licitar prevista na Constituição seria um princípio, que decorre de outro, qual seja, a impessoalidade, sendo que as diversas disposições da Lei 8.666/1993 e demais leis sobre o assunto seriam regras. Nesse prisma, é uma ofensa ao

Curso Sistematizado de Direito Processual Civil – Direito processual coletivo e direito processual público, Volume II, Tomo III, 1ª edição, São Paulo, editora Saraiva, 2010, pág. 273

14 Aqui, chama a atenção o julgamento da ADI 2925-8/DF, em que o STF reconheceu a possibilidade de

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ordenamento usar, por exemplo, a modalidade de licitação de tomada de preços quando deveria ter sido usada a modalidade concorrência, mas ao não realizar uma licitação para uma compra em que ela deveria ser utilizada, fere-se um princípio e, portanto, há

uma ofensa maior do que a simples troca de modalidade de licitação. Note-se que se

seguirmos esse conceito, não há diferença substancial entre regra e princípio, o que torna desnecessária a formulação de mecanismos de resolução de conflito envolvendo princípios15.

Essa posição parece uma das mais defendidas na doutrina brasileira que não tem como objetivo tratar especificamente da questão dos princípios. Assim, é comum acharmos em manuais de matérias dogmáticas do direito a menção a princípios, com referência implícita de que seria grave a ofensa a um deles (mais grave do que a ofensa

uma norma), sem explicitar mais detalhadamente o porquê disso16.

15 Virgílio Afonso da Silva explica esse posicionamento, que afirma ser equivocado: “(...) o conceito de

princípio usado por Alexy, como espécie de norma contraposta à regra jurídica, é bastante diferente do conceito de princípio tradicionalmente usado na literatura jurídica brasileira. ‘Princípios’ são, tradicionalmente, definidos como ‘mandamentos nucleares’ ou ‘disposições fundamentais’ de um sistema, (na nota de rodapé do texto original, localizada nesta parte do texto, Virgílio afirma que é essa a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello, citando o Curso de Direito Administrativo, pág 408, 4ª edição, 1993, editora Malheiros) ou ainda como ‘núcleos de condensações’. A nomenclatura pode variar um pouco de autor para autor - e são vários os que se dedicaram ao problema dos princípios jurídicos no Brasil - mas a ideia costuma ser a mesma: princípios seriam as normas mais fundamentais do sistema, enquanto que as regras costumam ser definidas como uma concretização desses princípios e teriam, por isso, caráter mais instrumental e menos fundamental. No âmbito dessa distinção, são inúmeras as tentativas de classificação dos princípios constitucionais. Canotilho, por exemplo, fala de princípios jurídicos fundamentais, princípios políticos constitucionalmente conformadores, princípios constitucionais impositivos e princípios-garantia. José Afonso da Silva, por sua vez, fala em princípios constitucionais fundamentais e princípios constitucionais gerais. Jorge Miranda fala, ainda, em princípios axiológicos fundamentais, princípios político-constitucionais e princípios constitucionais instrumentais. Luís Roberto Barroso, por fim, fala em princípios fundamentais, princípios gerais e princípios setoriais” SILVA, Virgílio Afonso da, Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção in Revista Latinoamericana de Estudos Constitucionais, pág. 612.

16 Ainda, interessante analisarmos o RE 510378/MG, em que o STF reafirmou que é inconstitucional a

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12

A quinta concepção comum é a de que as regras advêm da lei, são passageiras,

e os princípios advêm de algo superior, dos valores constitucionais17, sendo perenes.

Essa concepção, em que pese ser bastante comum, torna necessária a reflexão sobre perenidade de qualquer conceito no campo das ciências humanas, no qual o direito está incluído. O direito é uma construção humana e, como tal, está em constante mutação. Mudam os fatos sociais, mudam os valores, por consequência, muda-se a norma. Se a sociedade não mais valoriza determinado fato social da mesma forma que fazia há cinquenta anos, se decidimos que a lei não deve mais regular de forma pormenorizada um determinado fenômeno, teremos uma mudança nas normas que influem nesse fato

social; essa mudança ocorrerá nas regras e nos princípios18.

Um exemplo é o projeto de lei ora em trâmite no Congresso Nacional que visa dar ao Brasil um novo Código de Processo Penal. Tal diploma seria diferente do atual, e radicalmente diferente da redação original do Código de 1941 (que foi muito alterado). Em 1941, não havia, por exemplo, o princípio da presunção da inocência, sendo certo que os motivos do anteprojeto submetidos ao então presidente Vargas, durante o Estado Novo, deixavam claro que um dos pontos altos do Código era a limitação de “pseudo-direitos individuais face ao Estado” e a obrigatoriedade de decretação de prisão preventiva para alguns crimes. Evidentemente, tal diploma mostrou-se incompatível com a atual Constituição que, bastante garantista, trouxe a confirmação da presunção de inocência, em qualquer hipótese. Assim, o princípio constitucional da presunção de inocência – e aqui é indiferente entender princípio como mandamento nuclear ou como

17 Celso Bastos parece diferenciar regra, princípio e valor, porém coloca o valor como tendo carga

normativa. Assim: “Os valores podem vir inseridos dentro da Constituição, como uma autêntica norma jurídica. Pode-se dizer que são verdadeiras meta-normas. Eles também servem como normas de interpretação, é dizer, todas as demais normas devem ser interpretadas em consonância com os valores, bem como elaboradas em harmonia com estes.

(...)

Por fim, cumpre deixar claro que não existe hierarquia normativa entre regras, princípios e valores. É dizer, todos se encontram no mesmo nível normativo, pode-se falar apenas em uma hierarquia valorativa, mas nunca normativa, posto que todas as normas constitucionais encontram-se no mesmo nível. Isso ocorre da mesma forma em que uma norma constitucional aplicável em todo o território nacional não é hierarquicamente superior a uma norma constitucional que cuida de uma pequena gleba rural. Todas encontram-se no mesmo patamar”. BASTOS, Celso Ribeiro, Hermenêutica e aplicação constitucional, 3ª edição, São Paulo, editora Celso Bastos, 2002

18 Ademais, não podemos deixar de notar a lição de Eros Grau, que afirma que há uma mutação natural

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13

dever prima facie – tornou, desde 5 de outubro de 1988, impossível a aplicação de

diversos dispositivos do Código de Processo Penal de 1941. Os valores sociais haviam mudado radicalmente, e o advento de duas ditaduras (1937-1945 e 1964-1988), bem como as lamentáveis práticas autoritárias que elas trouxeram, levou o constituinte a abominar uma forma de processo em que não se presuma, necessariamente, a inocência do réu. O que antes era garantia estatal de ver salvaguardada a ordem pública virou garantia individual de presunção de inocência. Entretanto, o texto que regia as prisões cautelares, em especial os arts. 312 e seguintes do Código de Processo Penal, foi mudando aos poucos, primeiro em 1994 e depois em 2011, sendo que o projeto de novo Código muda a prisão cautelar ainda mais (houve uma mudança também em 1977, mas não foi tão profunda quanto a de 2011). Nesse caso, tivemos uma mudança no princípio antes da mudança da regra. Uma norma de considerável grau de abstração, como a inscrita no art 5º, LVII da Constituição serviu para que uma regra deixasse de ser

aplicada.19 Note-se que a regra vigeu de 1941 até 2011 (com alterações em 1977 e

1994), enquanto o princípio vigeu de 1937 até 1988, ou seja, o princípio mudou antes que a regra. E isso porque não estou considerando o regime democrático do interregno entre as ditaduras, de 1946-1964, o que reforçaria mais esse argumento.

Da mesma forma, argumenta-se com relação a diversos artigos paternalistas do Código Civil de 1916 que colocavam a mulher em uma posição de inferioridade e que deixaram de ser aplicados desde 1988, com o advento da atual Constituição e seu art. 5º, I. A mudança na lei só veio de forma mais aprofundada em 2002, com o Código Civil que entrou em vigor em 2003. Mesmo assim, a interpretação a respeito do princípio da igualdade entre os sexos mudou bem antes de 2002.

Não há perenidade no direito e não há que se falar em fontes atemporais, que emanam princípios intocáveis. O direito é construção humana, advém da organização

19 E, como dito, é indiferente a concepção que se tenha sobre “princípio” para que essa afirmação se

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14

política que é natural aos homens e mudará quantas vezes for necessário para atender seus anseios.

Linhas gerais, essas são as concepções mais comuns encontradas na prática forense, que refletem a posição da doutrina quando trata de princípios. Como todos os subsistemas jurídicos têm seus princípios, a doutrina dogmática, em geral, adere às posições mais comuns ao explicar os princípios de uma matéria. Entretanto, se formos fazer uma análise pormenorizada da teoria dos princípios, torna-se difícil fazer qualquer afirmação sobre a natureza jurídica dos princípios de modo definitivo – ao menos não em abstrato – visto que a doutrina dissente sobre as definições mais básicas da matéria. Em consonância com a metodologia adotada, esclareço que os doutrinadores que serão doravante analisados foram escolhidos por terem destaque nos julgamentos do STF e na doutrina de direito constitucional, tendo influenciado sobremaneira a concepção da teoria dos princípios no direito constitucional no Brasil.

3 – Análise de autores específicos

3.1 - O conceito de princípio de Celso

Antônio Bandeira de Mello

O conceito de princípios trazido por Celso Antônio Bandeira de Mello é um dos mais utilizados na doutrina nacional. Trata-se do conceito de princípio como “conteúdo nuclear”.

Antes de discorrer sobre essa concepção, cumpre fazer uma nota importante: não se pretende, nessa dissertação, fazer uma análise minuciosa da obra de Bandeira de Mello, mas apenas um resumo geral do conceito de princípio, para que a diferença entre essa concepção doutrinária e as demais possa aflorar. Nesta dissertação, serão analisadas apenas trechos das duas obras mais conhecidas do autor, quais seja, o Curso de Direito Administrativo e o Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade.

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15

(é a ideia de núcleo atômico, ao redor do qual outras partículas orbitam). Cada subsistema jurídico traria uma série de princípios que ditariam as normas a serem necessariamente editadas e interpretadas conforme a eles. Assim, o princípio da igualdade e da moralidade administrativas, que constam do art. 37 da Constituição, fazem com que seja necessária e imprescindível a existência de licitação para contratar com o Poder Público, bem como a existência de concurso público para integrar o serviço público. Já a licitação traz uma série de princípios próprios, como o da ampla publicidade, o da igualdade entre os concorrentes, o da vinculação ao edital, etc.

A interpretação apresentada traz uma consequência: é mais grave infringir um princípio do que uma regra, pois, ao infringir um princípio, todo um subsistema jurídico é afetado. Assim, no exemplo já dado, o administrador público que, ao promover uma licitação, não observa os prazos mínimos para interposição de um recurso administrativo, infringe uma regra, incorrendo em conduta reprovável, porém o administrador que simplesmente dispensa a licitação quando isso não é admissível incorre em uma falta muito mais reprovável, não só porque feriu os preceitos legais e constitucionais, mas porque violou o próprio princípio da igualdade previsto na Constituição.

É comum encontrarmos, em trabalhos acadêmicos, a seguinte citação: “Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo”

“Violar um princípio é muito mais grave do que violar uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica uma ofensa não apenas ao específico mandamento obrigatório, mas a todo um sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia

irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”20

20

MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso, Curso de Direito Administrativo, Editora Malheiros, 24ª

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16

Não há, na obra analisada de Bandeira de Mello, explicações aprofundadas sobre o porquê de considerar princípio como um mandamento nuclear do sistema. Talvez a omissão se dê porque a obra, ao contrário da de outros doutrinadores, não tem como objetivo entrar na seara da teoria dos princípios, mas sim ensinar o direito administrativo. O interesse da concepção de princípios tal e qual defendida por Bandeira de Mello se dá, para esta dissertação, exclusivamente pelo fato de que são inúmeros os trabalhos científicos brasileiros que citam essa definição de princípio como sendo a definição-padrão, e desenvolvem uma argumentação a partir deste ensinamento.

Com relação às perguntas propostas na Introdução, creio que seria adequado dar

as seguintes respostas: (I) o que é um princípio? Qual sua definição? Para Bandeira

de Mello, princípio é um mandamento nuclear do sistema (II) Como o Poder

Judiciário e a doutrina usam esta definição na solução de casos concretos? A doutrina e a jurisprudência usam a definição de princípio de Bandeira de Mello para classificar as normas que entendem mais importantes como sendo princípios, e

resguardá-las com mais cuidado em relação às outras (III) Há alguma relação na

correção/incorreção do manejo da teoria dos princípios e a forma atual de interpretação do direito (hermenêutica)? Creio que a relação ocorre quando o intérprete usa a teoria de Bandeira de Mello juntamente com a teoria de Alexy (sendo que as duas se apresentam incompatíveis), ficando livre para classificar as normas que ele (intérprete) considera mais importantes como sendo “princípios”, bem como ficando livre para proceder ao chamado “sopesamento” sem a preocupação científica de Alexy (IV) Quais os reflexos disto no Direito Constitucional? O reflexo deste mau uso da teoria dos princípios (combinação de autores incompatíveis) é a excessiva discricionariedade do intérprete, que pode resultar em um ativismo judicial, além de uma fundamentação problemática para as decisões.

3.2 O conceito de princípio de

Canaris

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17

Evidentemente, princípios jurídicos são mencionados na obra, em geral vinculados a valores, mas não são o cerne da obra.

De todo modo, a obra de Canaris merece uma análise, mesmo que bastante breve, pois traz algumas considerações interessantes. Primeiramente, Canaris rejeita a concepção de uma ciência pura do direito, tal como a preconizada por Kelsen. Rejeita também um positivismo estrito, e uma vinculação do direito com a lógica, pois afirma que vincular a lógica formal ao direito seria reduzir as possibilidades do sistema jurídico21.

A contribuição de Canaris reside no fato de que os princípios – ou valores – são colocados como uma forma de integração do sistema, suprindo lacunas e tornando-o operável. Canaris também levanta a questão, abordada por Alexy, de um sistema formado unicamente por regras (que Canaris chama de “normas”) ser inviável.

Enquanto Alexy afirma que tal sistema seria muito rígido e de impossível operação22,

Canaris afirma que um sistema deve se apoiar nos valores contidos nas normas. Assim (grifei):

“No que respeita, em primeiro lugar, à ausência de contradições, é seguro, como geralmente se reconhece, que se deve negar uma contradição entre duas normas em

todas as circunstâncias, tendo a metodologia jurídica desenvolvido um instrumentarium

que, em caso extremo através da aceitação de uma lacuna de colisão, o possibilite. Contudo, isso só funciona para verdadeiras contradições de normas, enquanto que as contradições de valores e de princípios não se deixam evitar sem exceções; por consequência, o postulado da ausência de contradições só se alcança num sistema de normas, e não, também, num sistema de valores ou de princípios. Esta objeção não deve ser tomada com ligeireza, porque o sistema, devendo exprimir a unidade aglutinadora das normas singulares não pode, pelo que lhe toca, consistir apenas em normas; antes

21 Ver em CANARIS, Claud-Wilhelm, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do

Direito, 4ª edição, Lisboa, Ed. Fundação Calouste-Gulbenkian, 2008, págs. 66-76, Nesse sentido, interessante é a lição de Lourival Vilanova: “A Lógica é uma linguagem sobre essa linguagem legal, sabemos. Como o é uma linguagem sobre a linguagem da ciência dogmática do direito. É uma linguagem formalizada. De sobrenível. Então, temos que as leis lógicas são leis formuladas em nível de metalinguagem. Ocupando nível distinto do nível da linguagem do Direito positivo, das proposições normativas desse direito evidentemente se distinguem” (VILANOVA, Lourival, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, 4ª edição, São Paulo, editora Noeses, 2010). E me parece que assiste razão ao prof. Lourival Vilanova. A lógica não é a linguagem do direito, mas é uma linguagem sobre o direito. Ela ajuda a estruturar a linguagem do direito, daí ser metalinguagem. Por consequência, parece que Canaris tem razão ao dizer que o direito não deve ser reduzido à lógica.

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18

deve apoiar-se nos valores que existam por detrás delas ou que nelas estejam

compreendidos”23.

A obra de Canaris aborda a questão de sistema aberto e sistema fechado, para explicar sistemas formados por análises jurisprudenciais e sistemas codificados. A questão, embora seja bastante interessante, não necessita ser analisada nesta dissertação. Importante salientar, porém, que antes de tratar da distinção entre sistemas abertos e sistemas fechados, Canaris afirma que os princípios gerais do direito têm uma função relevante no pensamento sistemático.

Canaris afirma que existem quatro postulados básicos dos princípios jurídicos na

formação do pensamento sistemático24. O primeiro é que um princípio não vale sem

exceção e pode entrar em contradição. Canaris, assim como Alexy, admite que um princípio não atua de forma ilimitada, sendo limitado por outra disposição normativa e podendo sofrer uma limitação própria. Exemplo maior disso é o valor jurídico da liberdade que, não obstante ser um valor fundamental para o sistema jurídico, sofre diversas limitações, em prol da ordem pública, da segurança, etc... Canaris não faz uma distinção sobre a forma como essa limitação se dá.

O segundo postulado é que os princípios não têm pretensão de exclusividade, ou seja, uma norma jurídica não se baseia necessariamente em só um deles. Tomemos como exemplo a norma que permite que um particular faça um negócio jurídico não expressamente previsto em lei, desde que respeite a lei, a ordem e os costumes. Nesse caso, teríamos a aplicação do princípio da liberdade (limitações estatais ao particular não devem ser impostas, salvo quando necessário e na exata medida do necessário), da limitação do poder público (à lei cabe a tarefa de limitar a atividade administrativa para que não haja embaraço ao particular) e da primazia da atividade econômica privada (a ordem econômica é seara do particular, cabendo ao Estado apenas limitar o seu desenvolvimento quando necessário para salvaguardar um bem constitucionalmente protegido, como o trabalho, o meio ambiente, a segurança nacional, etc.). Os princípios são interligados.

O terceiro postulado é o de que os princípios ostentam o seu sentido próprio apenas numa combinação de complementação e restrição recíprocas. Assim, os princípios se complementam e se limitam, formando um sistema dinâmico e aberto

23

CANARIS, Claus-Wilhelm, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 4ª edição, Lisboa, Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, págs. 40-41

(27)

19

(dinâmico pois as relações jurídicas mudam conforme o caso concreto; os princípios aplicados e o sopesamento a um conflito entre eles muda. Aberto pois elementos axiológicos entram na equação jurídica).

O quarto postulado é o de que os princípios necessitam, para sua realização, da concretização através de subprincípios e de valorações singulares com o conteúdo material próprio. Canaris conclui sua obra colocando os princípios em um patamar elevado. De acordo com o autor, “Uma vez determinado o conceito de sistema com referência às ideias de adequação valorativa e unidade interior do direito, deve-se definir o sistema jurídico como ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais. Também é imaginável uma correspondente ordem de valores, de conceitos

teleológicos ou de institutos jurídicos.”25

Passo às proposições da Introdução: (I) o que é um princípio? Qual sua

definição? Antes de responder tal pergunta, é preciso lembrar que a obra de Canaris não trata de direito constitucional especificamente, mas sim de teoria geral do direito. A maior preocupação de Canaris parece ser a estruturação de uma concepção sistemática do direito. Canaris afirma que os valores são elementos constitutivos essenciais do sistema, mas devemos ter em mente que ele não usa o termo “valores” da mesma forma como os “pós-positivistas”. Ele inclusive distingue “valores” de “princípios gerais”, aqueles são voltados ao sentido teleológico do sistema, estes à unidade interna. Princípio seria, então, um enunciado geral que dá coerência ao sistema e permite que ele se estruture como sistema, o que proporciona um desenvolvimento à ciência do direito. (II) Como o Poder Judiciário e a doutrina usam esta definição na solução de casos concretos? Não me parece que a doutrina de Canaris esteja muito em voga. O principal movimento jurisprudencial presente no Supremo tribunal Federal hoje se relaciona com o chamado “pós-positivismo” (analisarei alguns julgados posteriormente, que comprovam esta afirmação). Há os que refutam o “pós-positivismo” e fazem uma defesa equilibrada do ordenamento jurídico. A tese de Canaris, por ser anterior a tais movimentos, não exerce influência direta. Aliás, um dos problemas apontados

atualmente é justamente a falta de manejo da teoria geral do direito26 .(III) Há alguma

25 CANARIS, pág.280 26

Mesmo assim, a obra de Canaris está presente no STF. O ministro Gilmar Mendes usa o conceito de Canaris de “proibição de proteção insuficiente” para fundamentar uma decisão a respeito de benefício

assistencial (Reclamação 4374, disponível em

(28)

20

relação na correção/incorreção do manejo da teoria dos princípios e a forma atual de interpretação do direito (hermenêutica)? Canaris desenvolve a questão do direito como sistema, que permite um avanço epistemológico na ciência do direito. Critica o positivismo de seu tempo, mas não chega a avançar no que seria uma doutrina

“pós-positivista”. Não me parece que exista uma relação direta (IV) Quais os reflexos disto

no Direito Constitucional? A teoria de Canaris permite a análise do direito constitucional como integrado ao sistema normativo, mas não há reflexo direto na questão do uso – correto ou não – do que atualmente se chama “teoria dos princípios”.

3.3 O conceito de princípio de

Dworkin

A obra de Ronald Dworkin difere das obras dos demais autores pois advém de

uma linhagem de juristas formados no contexto da common law. Como essa tradição

jurídica é fortemente influenciada pela análise da jurisprudência, os autores que tratam

de tal sistema têm uma preocupação bastante forte com a coerência e clareza27.

Dworkin formula sua argumentação a partir de críticas a Hart e da conceituação do que ele, Dworkin, chama de positivismo. Segundo Dworkin, o positivismo é uma corrente que tem como base três postulados: 1) o direito de uma comunidade é um conjunto de regras utilizado para determinar qual comportamento será punido pelo Poder Público 2) Se o cidadão não estiver coberto por uma dessas regras, seu caso deve ser decidido pelo Poder Público, que criará uma nova regra jurídica e 3) a obrigação

jurídica decorre da sujeição a uma norma28. Essa lição de Dworkin tem pontos comuns

com a de Kelsen, mas também difere em alguns pontos.

Linhas gerais, Dworkin rejeita o conceito positivista e entende que o Direito trabalha com a política e com a moral, formando um plexo bastante intrincado de

Mais especificamente, o conceito de sistema de Canaris é utilizado no julgamento da ADI 4414, que trata do julgamento colegiado de crimes perpetrados por organizações criminosas (em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3994214 ver pág. 39 do acórdão)

27

Afinal, a clareza e a coerência são requisitos para analisar a jurisprudência e resolver questões práticas. O sistema jurídico anglo-saxônico confia muito na teoria da argumentação (pois a jurisprudência se forma a partir da análise de argumentos). Não é a toa que Dworkin é um autor extremamente agradável de ler.

28 DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, págs.

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21

relações jurídicas diversas. Para Dworkin, são os chamados hard cases, isto é, os casos

em que as interpretações possíveis divergem, que definem o drama do direito. Dworkin não reafirma o positivismo, tampouco abre espaço para o arbítrio judicial, mas, ao envolver outros elementos nas ponderações judiciais – como moral, ética e política – faz crer que os princípios jurídicos são tão importantes como as regras, pois têm poder de

decidir um determinado caso. Devido à sistemática da common law, Dworkin reanalisa

casos passados, mas o faz ponderando os princípios jurídicos e o peso que a eles foi dado29.

Dworkin, na sua rejeição do positivismo de Hart, considera princípio jurídico algo que é uma exigência de justiça, moralidade e que leva à equidade. É um fator extralegal, que entra no sistema como um imperativo de justiça.

Nessa toada, cumpre fazer uma observação: Dworkin coloca, ao que parece, os princípios como uma razão de argumentação, porém uma razão que difere das razões das regras. Talvez isso ocorra porque, como já foi dito, o sistema jurídico peculiar em que ele trabalha dá grande ênfase à jurisprudência, que se constrói em cima de razões de argumentação.

Dworkin admite30 que as regras seguem um modelo “tudo-ou-nada”. Assim, no

exemplo dado por Dworkin, se um testamento tem como condição de validade ser

29

De acordo com Eduardo Bittar e Guilherme Almeida: “A reflexão de Dworkin, centrada na ideia de que o Direito nunca se pode alhear aos processos de linguagem e que, portanto, é produto do processo hermenêutico, não desconsidera nem menospreza a importância do conservantismo de valores que medra no processo de aplicação de um sistema de regras em um conjunto de casos concretos (hard or easy cases). Mas casos difícies (hard cases) se definem muito mais problemáticos, porque tornam necessários ao juiz proceder a uma escolha, que recorre a critérios de justiça externos à ordem jurídica concreta, abrindo caminho para decisões polêmicas que parecem convidar o jurista a pensar os limites entre direito e política.”

“A resposta de Dworkin a essa perplexidade não reafirma as teses positivistas e muito menos abre campo para um autorizativo indeterminado para que o juiz proceda simplesmente conforme seu arbítrio. Sua reflexão aposta na ideia de que um sistema somente pode ser considerado coerente e completo se avaliados os princípios que a ele pertencem, estes que às vezes estão consagrados em regras, mas que, em sendo coisas separadas delas, continuam a possuir a mesma capacidade de compreender a dinâmica dos precedentes, Dworkin chega à ideia de que o sistema somente funciona porque os princípios informam a completude do sistema, o que por si só é argumento bastante para informar ao juiz que o seu papel crítico não está em reproduzir regras do ordenamento, repetir a lógica dos julgados anteriores, nem mesmo criar como se fosse legislador, mas sim ponderar o peso dos valores que estão em debate, especialmente diante de situações-limite ou de hard cases. Aí está não só a chave para a compreensão do papel do juiz-Hércules em seu pensamento, mas sobretudo a chave para a compreensão da ideia de que o raciocínio que legitima a lógica jurídica não é de pura racionalidade apodítica, mas sim de uma espécie de ação mental que pratica permanente e inexaurivelmente a busca do razoável” BITTAR, Eduardo C. B, ALMEIDA, Guilherme Assis de, Curso de Filosofia do Direito, 9ª edição, São Paulo, editora Atlas, 2011, pág. 487

30 A admissão de Dworkin o aproxima de Alexy nesse sentido (ver a análise da obra de Alexy, em tópico

(30)

22

assinado por três testemunhas, não será válido se não for assinado por essas três testemunhas. Os princípios não funcionam dessa maneira. Mesmo que eles sejam uma razão de decidir, isoladamente, eles não levam o operador do direito a uma direção segura, mas apenas indicam uma razão argumentativa que funcionará em prol da justiça. Além disso, os princípios têm uma dimensão política, sendo dotadas de um conteúdo axiológico que precisa ser valorado, o que difere das regras. Dworkin não diz, mas presume-se que as regras não têm essa carga valorativa pois já foram previamente valoradas pelo legislador, ingressando no ordenamento com seu valor já dado. Os princípios têm uma “força relativa”, mutável em diferentes situações, cuja valoração é inexata.

Dworkin tenta se adiantar às críticas positivistas, afirmando que um positivista poderia se defender dos argumentos apresentados por ele dizendo que as regras prescrevem um determinado resultado, coisa que os princípios não têm o condão de fazer. Essa possibilidade é admitida por Dworkin, que afirma que os princípios nunca ditam uma decisão concreta, mas apenas influenciam a decisão judicial em um ou outro

sentido. Isso não os torna menos importantes. A definição de hard cases é justamente o

caso em que diferentes métodos de interpretação apontam para diferentes resultados. Se há, em um caso como esse, um princípio que milita a favor da pretensão de alguém, tal princípio pode ser a diferença entre uma decisão judicial favorável ou desfavorável.

Dworkin afirma que os positivistas encaram o direito de forma semelhante a um jogo esportivo: há um conjunto de regras claras e definidas, e os árbitros devem aplicá-las. Se as substituem por outras, estão usurpando poder e substituindo algo convencionado pelas suas preferências pessoais, ou seja, agindo de modo arbitrário. Não há maneira de testar validamente os princípios que, portanto, não são regras válidas. Irônico, Dworkin argumenta: “O positivista conclui que esses princípios e políticas não são regras válidas de uma lei acima do direito – o que é verdade – porque certamente não são regras. Ele conclui ainda que são padrões extrajurídicos que cada juiz seleciona de acordo com suas próprias luzes, no exercício de seu poder discricionário – o que é falso. É como se um zoólogo tivesse provado que os peixes não são mamíferos e então

concluído que na verdade eles não passam de plantas”31.

Creio que a doutrina brasileira precisa especificar um diferencial na teoria de Dworkin, que costuma ser ignorado pelos que o citam em obras doutrinárias e

31 DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério, 2ª edição, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2007,

(31)

23

pareceres: a refutação do que Dworkin chama de positivismo não corresponde necessariamente à refutação do positivismo feita nos últimos anos pela doutrina e jurisprudência brasileira, pois o conceito de positivismo de Dworkin é largamente inspirado na doutrina de Hart, enquanto o nosso conceito é mais inspirado em Kelsen. Ademais, muitos críticos brasileiros do positivismo cometem o erro de associar positivismo com legalismo, na concepção ingênua de que o positivismo não requer

interpretação das normas – o que Kelsen nunca defendeu32.

32 Para a presente análise da obra de Dworkin – análise bem mais curta do que a de Alexy ou de Ávila –

considero importante as críticas feitas por Richard Posner a respeito da teoria de Dworkin. Para Posner, Dworkin traz a concepção de que juízes são legisladores não-eleitos, o que o afasta do positivismo de Hart. Daí a ideia de que juízes devem ser filósofos morais; ideia esta que Posner parece rechaçar. O ponto mais interessante é que Posner lembra que Dworkin nunca discute sistemas jurídicos alheios ao sistema americano, sendo que, mesmo quando trata do direito americano, só trata de casos baseados na common law, evitando mencionar que Hart jamais cita a common law (Hart vê a common law como empecilho ao seu positivismo). Da crítica de Posner podemos concluir – se a aceitarmos como verdadeira – que a teoria de Dworkin não pode ser usada como uma crítica geral ao positivismo, pois o positivismo não comporta uma definição genérica. Posner afirma que em alguns momentos, um “positivista moderado” se assemelha a um “jusnaturalista moderado”. (ver em POSNER, Richard, A problemática da teoria moral e jurídica, 1ª edição, São Paulo, editora Martins Fontes, 2012, págs. 144-153). Não parece que a crítica de Dworkin ao positivismo de Hart – bem como as ponderações de Posner a esse respeito – possam ser aplicadas à obra de Kelsen de forma direta. Ainda, parece que Posner traz uma crítica extremamente bem feita, porém pouco lembrada pela doutrina brasileira, o que é uma lástima. Notemos que Nicola Matteucci, sem analisar Dworkin ou Posner, confirma a crítica deste último, conforme analisa o direito inglês e a influência de Coke. Diz Matteucci (tradução minha –texto original em espanhol): “Coke, como Bodino, é um pensador em uma época de transição e de fortes transformações; sua obra tem certamente um êxito menor, enquanto que seu pensamento está contido em tediosos textos jurídicos e não tem a lucidez das acusações ou a coerência das obras sistemáticas. Não obstante, seu pensamento teve uma influência sutil e contínua, possivelmente muito maior que a dos clássicos franceses. Com os reports ou com as institutes que formaram gerações de juristas ingleses; conservando aquele hábito mental próprio que se identifica com o tradicionalismo inglês, com a whig interpretation of history, que terá seu maior clássico em Burkee, como adversários históricos, primeiro os absolutistas (Hobbes) e depois os radicais (embora os de 1647 e aqueles do final dos anos setecentos compartilhem de seu objetivo: a defesa dos direitos do indivíduo mediante a supremacia de uma lei fundamental).

Para compreender esta significativa função de seu pensamento, temos que partir de uma afirmação filosófica sobre o conceito de razão, feita por Coke tanto no ditame sobre as proibições como sobre os institutes, :a contraposição da ‘razão natural’, presente em todos os homens, com a ‘razão artificial’, que requer estudo e experiência. Por isso a common law – um direito, recordemo-nos, elaborado ao longo dos séculos por juízes – é a perfeição da razão, posto que é o fruto de um largo estudo, da observação e da experiência. Por isto a razão legal é a summa ratio: se a razão, diz Coke, que se encontra repartida em tantas cabeças distintas, for reunida em uma só, não deveria dar origem a um direito igual ao da Inglaterra, pois este foi aperfeiçoado através dos séculos, por um número indeterminado de indivíduos doutos e importantes.”

Referências

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