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A VIDA ETERNA É PARA AQUELE QUE NÃO A PROCURA: A PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO

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Academic year: 2021

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Marcelo da Silva Carneiro**, Silvio Cezar José Pereira Gomes***

Resumo: o presente artigo tem como tema o debate sobre a vida eterna entre um mestre

da lei e Jesus, que responde de forma surpreendente à questão. O objeto de aná-lise é a narrativa de Lc 10,25-37, que contém a parábola conhecida como o Bom Samaritano. O objetivo do artigo é demonstrar que a escolha dos personagens visa aprofundar o ensinamento sobre a vida eterna, e não apenas reforçar a im-portância do amor ao próximo. Para isso, será feita a análise do texto por meio da narratologia.

Palavras-chave: Samaritano. Vida Eterna. Mestre da Lei. Amor. Parábola.

A

vitória sobre a morte sempre foi assunto das diversas religiões. A mortalidade gera muitas dúvidas e medos. Queiruga (2004, p. 62) afirma ser “evidente que a morte sempre teve suma importância em todas as religiões”. Também é evidente que as religiões, de alguma forma, procuram encontrar uma explicação que produza esperança e torne o fim menos difícil. Queiruga (2004, p. 119) pontua que “toda religião é religião de salvação. A salvação [...] enquanto religiosa, também remete sempre a algum tipo de libertação da miséria da morte”.

Por meio dessa percepção, se analisar-se-á a narrativa do Bom Samaritano, presente em Lc 10,27-37, como uma resposta dada, pelo Jesus lucano, a um homem que tem essa ansiedade. Ele busca encontrar o caminho da vida eterna e

acre-A VIDacre-A ETERNacre-A É Pacre-ARacre-A acre-AQUELE QUE

NÃO A PROCURA: A PARÁBOLA DO BOM

SAMARITANO*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 26.04.2019. Aprovado em: 17.10.2019.

** Doutor em Ciências da Religião (UMESP). Mestre em Teologia (PUC-RJ). Bacharel em Teologia (UniBennett). Pesquisador no Grupo Oracula, com pesquisas sobre o Cristianismo Primitivo. E-mail: professor.carneiro@hotmail.com

*** Mestrando em Ciências da Religião (Faculdade Unida). Especialista em Ciência Política (Universidade Cândido Mendes). Graduado em Teologia (Centro Universitário Metodista- Bennett). E-mail: silviorazec@gmail.com

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dita que o mestre terá a resposta que acalmará seu coração. Compreende que amar ao próximo lhe concederá a vitória sobre a morte. Por isso, deseja saber quem será aquele que ele deve amar. É necessário amar ao próximo. Não se deve perder tempo amando quem não se enquadra nessa classificação.

Espera-se demonstrar que, mais do que oferecer o samaritano como um exemplo a ser seguido, no que diz respeito ao seu amor prático, Lucas se interessa por apresentar o personagem como um exemplo também em seu sentimento: de-monstra amor não para ganhar pontos que o levem a vida eterna, mas porque o outro precisou ser amado.

Para tanto, se investigará a crença na vida eterna, por meio da narratologia, como os personagens da história (Jesus e o Legista) e da narrativa (sacerdote, levita e samaritano) encaram a vida a terna e como o samaritano se torna uma resposta que não acalma o coração do legista e dos leitores de Lucas. Antes, perturba mais. E faz isso ao demonstrar que o mandamento do amor ao próximo é bem mais exigente do que o legista imaginou.

O EVANGELHO LUCANO

Não há consenso sobre a autoria do evangelho de Lucas. Assim ocorre em grande par-te das obras bíblicas. Para que se facilipar-te a comunicação, nespar-te trabalho, se convencionará chamar o autor anônimo, ou autores anônimos, pelo nome já consagrado pela tradição: Lucas, ainda que sua identidade permaneça desco-nhecida. Pode-se descobrir algumas informações sobre ele, a partir da obra. Contudo, não se pode saber quem é1.

Visando comunicar-se com cristãos de fala e cultura helênicas, Lucas, escritor bem elogiado pelos eruditos (KÜMMEL, 1982, p. 170; KOESTER, 2005, p. 331), compõe sua obra em duas partes: “O Evangelho” e “Atos dos Apóstolos”. No primeiro, trata os primórdios da fé. Procura demonstrar como o movimento de seu tempo se coaduna com o que foi iniciado nas tradições que recolheu so-bre Jesus. No segundo, inicia uma “história da igreja” que caminha com a teo-logia apresentada no Evangelho. Paulo tem uma proeminência, demonstrando, provavelmente, ser um personagem que tem importância para a comunidade2.

Segundo Brown (2012), localizar geograficamente a comunidade Lucana não é uma tarefa fácil, mas ele considera ser fora da Palestina. Ele acredita que são di-versas comunidades “com o mesmo pano de fundo” (BROWN, 2012, p. 382). Kümmel (2009, p. 188) lista localizações sugeridas por outros, como Cesa-reia, Acaia e Decápolis, Ásia Menor e Roma. Monasterio e Carmona (2012, p. 336) entendem a comunidade como uma igreja paulina composta por gregos e uma minoria de judeu-cristãos. Carneiro (2016, p. 278) percebe que a comu-nidade de Lucas não é “nem tão gentílica, nem tão judaica”, compreendendo assim como uma comunidade mista, que se encontra “numa pólis helenística na região da Síria ou a leste da Ásia Menor, com forte estrutura política, onde judeus convivem com outros grupos e têm certa harmonia”. Esta posição dá dicas interessantes para o que será visto mais à frente.

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A datação comum do Evangelho não fica antes de 70 e não chega a 100 da nossa era. Kümmel (2009, p. 188) a coloca entre 70 e 90. Para ele, Lucas já conhece os eventos catastróficos de 70 e fez uso do Evangelho de Marcos, normalmen-te datado até 70. Kümmel aceita que o Evangelho foi escrito annormalmen-tes de Atos. Isto permite concluir que o Evangelho não pode estar após 90, que é a data limite em que ele coloca Atos. Brown (2008, p. 382), sem mudar muito os argumentos, busca uma fidelidade à tradição de acordo com a qual o autor foi companheiro de Paulo e, por isso, arrisca entre 75-95, dando preferência a 85. Os leitores e ouvintes do Evangelho não estavam familiarizados com os textos judai-cos e não estavam no campo, ou limitados a ele. Lucas parece, segundo Mos-coni (2007, p. 39), não conhecer a geografia palestina:

Lucas não era da Palestina e nem conhecia bem sua geografia. Pare ele, tudo era Ju-déia. Diz que Jesus pregava nas sinagogas da Judéia (4,44), e que sua fama se espalha-va pela Judéia inteira (7,17), enquanto, na realidade, isso ocorria na Galileia. Lucas é do mundo greco-romano. Por sua capacidade de estudar, pesquisar e escrever (1,4), foi, sem dúvida, uma pessoa culta.

Uma das características do Evangelho, que tem sido comumente aceita pelos pesqui-sadores, é a teologia misericordiosa. Monasterio e Carmona (2012, p. 336) falam em “salvação radical e universal”. Vale citar a posição de Marconcini (2001, p. 159-160) sobre esse ponto:

A universalidade da salvação está presente em todo o evangelho [...]. o dom da salva-ção encontra uma primeira concretizasalva-ção na “misericórdia e bondade para os pecado-res, os excluídos, os pobres. Esse traço característico de Lucas está presente principal-mente nas parábolas que revelam a eudokía (2,14), isto é, o amor complacente do Pai para com o homem, cada homem.

Essa sensibilidade lucana é o ponto de partida e chegada desta nossa pesquisa, na qual se investigará o que se quis dizer com o surgimento e atuação do samaritano, como exemplo que deve ser seguido para se alcançar a vida eterna.

UMA NARRATIVA DE EXEMPLO

A história do homem que caiu na mão de salteadores e foi ajudado por um samaritano (Lc 10,25-37) normalmente é apresentada com a ideia de que o mais despre-zado pela doutrina religiosa é o que se torna exemplo para quem o despreza. Alves (2015, p. 109-11), seguindo essa linha, fez uma atualização dessa nar-rativa com a história chamada de “O travesti e os religiosos”. Nela, o bom samaritano é substituído por um travesti que tinha passado a noite em farras. Tal interpretação não será rejeitada neste trabalho, como se notará. Contudo,

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se observará outro dado: Mais do que responder à pergunta sobre quem seria o próximo, a narrativa torna a busca do legista tão paradoxal que deveria ge-rar aos ouvintes a seguinte questão: “Quem afinal, então, conseguirá herdar a vida eterna?”.

Antes de encontrar e avaliar esse paradoxo, é necessário fazer justiça ao trabalho de Uwe Wegner (2012, p. 254), que ensina que, apesar do nome comumente dado, de “Parábola do Bom Samaritano”, o texto não se trata de uma parábola:

Sua característica é que propõem um caso exemplar em roupagem histórica, dentro da qual uma conduta é destacada positiva ou negativamente. Essas histórias são chama-das de “narrativas de exemplos” justamente por sugerir, através dos personagens-mo-delo, exemplos para aquilo que o ouvinte ou leitor deve e não deve fazer.

Essa definição se diferencia também pelo fato de que o destinatário não precisa tentar decifrar a mensagem que se quer passar. Ela está muito bem montada dentro da própria história e vida dos personagens. Seria uma mensagem direta por meio de uma história fictícia. As condutas dos personagens, particularmente do sacerdote, do levita e do samaritano, foram apresentadas para criar um pa-radoxo que choca e faz o legista refletir sobre suas reais intenções.

Inicialmente, será analisada a doutrina da vida eterna. Começa-se pela vida eterna por-que o legista está em busca dela e é sobre ela por-que trata a narrativa exemplar do Bom Samaritano.

A crença na Vida Eterna

A crença na vida eterna está firmada na esperança apocalíptica e sua doutrina, com todas as suas versões no judaísmo, se desenvolveu a partir daí. Na Bíblia He-braica, é Daniel 12,2-3 quem lança luzes sobre uma ressurreição dos mortos. Aqui, a ressurreição ainda não está ligada à vida eterna de forma exclusiva. Há a possibilidade de ressurreição para o horror eterno que é o oposto da vida eterna.

É com o passar do tempo que a vida eterna e a ressurreição dos mortos ganharam ver-sões e variações. Em algumas delas, a ressurreição dos mortos ganhou o tom de uma esperança já intimamente ligada à vida eterna. Nocke (2012, p. 380-1), nesse sentido, relembra o 2Macabeus e pontua:

Na situação de extrema opressão e perseguição, a fé na fidelidade e no poder de Deus se torna esperança de ressurreição e vida nova, eterna. [...] A fé na ressurreição encerra o restabelecimento do corpo (mutilado na tortura – v. 11 e 23) e das relações familiares (in-terrompidas pelo carrasco – v. 29). Para o criminoso não existe ressurreição, somente juízo.

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mar-ca profundamente o cristianismo e, principalmente, a pregação de Paulo, em Atos. Vale citar aqui a importância da ressurreição, segundo análise que Mou-nt (2002, p. 83) faz da obra lucana (Lucas-Atos), segundo o legado paulino:

A particularidade histórica da ressurreição de Jesus torna-se prova de uma mensa-gem geral de arrependimento e escape do julgamento vindouro. [...] No discurso de despedida de Paulo, essa certeza é mediada ao presente cristão do passado no qual Jesus, os apóstolos e Paulo proclamam o reino de Deus baseado na morte e ressur-reição de Jesus.

A ressurreição se torna não somente a condição de herdar a vida, mas a sua própria realização. O criminoso, ou o infiel, contudo, não terá parte nela, segundo a passagem citada de Nocke.

A relação entre vida eterna e ressurreição é tão forte, que Paulo liga a ressurreição com a incorruptibilidade. Os mortos já “ressurgirão incorruptíveis” (1 Co 15,52). Já ressuscitarão com corpos que não degradarão com o tempo. No Jesus lucano se encontra esse mesmo pensamento quando responde aos saduceus (Lc 20,34-36):

Os filhos deste século casam-se e dão-se em casamento; mas os que forem julgados dignos de ter parte no outro século e na ressurreição dos mortos, nem eles se casam, nem elas se dão em casamento; pois nem mesmo podem morrer: são semelhantes aos anjos e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição. (Versão Ferreira de Almeida Revista e Atualizada)

Essa esperança escatológica marca a crença e o evangelho paulinos. Para ele, não é possível ser cristão e descrer da ressurreição dos mortos: “se os mortos não res-suscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé” (1Co 15,16-17). Cristo é aquele que já participa da vida eterna, herdada pela sua ressurreição. A ressurreição está vinculada à vida eterna (1Co 15,42; Fp 3,7-14).

A pergunta do legista provoca outra pergunta de Jesus sobre os mandamentos que con-duzem à vida eterna (Lc 10,26-27): amar a Deus e ao próximo. Aprovando a resposta do legista, Jesus lhe diz que, se cumprisse tais mandamentos, viveria. A próxima pergunta do legista (Lc 10,29) provoca a narrativa. Mais do que “quem é meu próximo?”, o legista queria saber “quem devo amar para herdar a vida eterna?”. Isto pode ser notado a partir da pergunta inicial. O legista de-seja saber como chegar à vida eterna, e a resposta encontrada, até aqui, com o mestre, não difere da que ele já conhecia: cumprir os mandamentos. A partir disso, ele indaga sobre quem seria seu próximo. Ou seja, quem seria aquele para quem ele deveria dirigir o cumprimento do mandamento. O Deus que deve ser amado, ele conhece. Agora, quem é o próximo?

É de suma importância que se faça essa observação sobre a ressurreição dos mortos como promessa divina pela qual se herda a vida eterna. O motivo dessa

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impor-tância é o fato de que ela está intimamente ligada na escolha dos personagens para compor a narrativa de exemplo. Para que se note o alcance disto, torna-se necessário verificar os demais personagens da narrativa lucana.

O PAPEL DO LEGISTA

Saldarini (2005), em sua pesquisa, buscava descobrir quem historicamente eram os fari-seus, saduceus e escribas, na Palestina. Nele, retirou a imagem comum de que os sacerdotes e a aristocracia seriam os saduceus; e que os fariseus representariam um partido leigo, sem influência, ou presença política. Na verdade, há certo in-tercâmbio dentro desses partidos político-religiosos e há competição política. Também se dedicou a interpretar como Lucas via cada um destes grupos. Encon-trou e interpretou a visão lucana sobre o “legista” – que não se harmoniza com a História. Embora a visão lucana não seja a confirmada pelas ciências históricas, importa, para este trabalho, a sua forma de enxergar esses personagens. Pois, é a partir de sua visão, que compõe sua história. Portanto, mais do que quem era um legista historicamente, importa, aqui, saber quem era o legista para Lucas. Saldarini (2005, p. 194-5) entende o legista como uma variação que Lucas usa para o

escriba e ambos são sempre associados aos fariseus. Nas outras versões desse episódio, se notará que Marcos o chama de “escriba” (12,28-34) e Mateus de “fariseu” (22,34-40). Essa aparente confusão se harmoniza com a visão de Saldarini (2005, p. 194-5), onde, em Lucas, o escriba é um fariseu e o legista nada mais é do que uma outra forma de se dirigir ao escriba:

em suma, os escribas não são um grupo bem distinto em Lucas. Assemelham-se aos fariseus em sua crença na ressurreição e juntam-se aos fariseus, diversas vezes, em oposição a Jesus. Lucas não tem nenhuma ideia clara do papel ou função deles; eles são colocados apenas como um apêndice dos fariseus. [...] Alguns indícios sugerem que Lucas usa legista como uma alternativa para escriba. Lucas não quer dar a en-tender um advogado legal no sistema jurídico. Em Lucas, os juristas são peritos na lei judaica que as pessoas podiam consultar e talvez um grupo zeloso da lei. É provável que, no mundo do autor, os juristas, mais do que os escribas, funcionassem como pe-ritos autorizados nas leis e costumes sociais e religiosos, funcionários guardiães das normas da comunidade.

Se “legista” é uma forma de Lucas se referir a “escriba”, deve-se carregar, junta-mente com ambas as palavras, todo o arcabouço que os fariseus possuem na obra. Porque, necessariamente, eles estão, no Evangelho, ligados. Em 11,37-53, nota-se como todos estão relacionados. Assume-se, então, neste trabalho, que o legista se trata de um fariseu. E aqui se pergunta: o que criam os fariseus?

Para responder a essa questão, pode-se observar a obra completa (Lc-At). O que Lucas diz sobre eles é o que ele deseja que seus leitores aprendam, relembrem ou

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memorizem, para a interpretação de suas participações em debates ou ações. E, segundo a ‘dobradinha’ Lucas-Atos, os fariseus estão alinhados com Jesus e com os cristãos, crendo na ressurreição dos mortos e anjos (Lc 20,27-39; At 23,6-8). Todos eles anseiam pela vida eterna.

Portanto, entende-se o legista, dentro da obra lucana, como um fariseu que crê na res-surreição dos mortos3. Ou seja, trata-se de um crente na vida eterna. O que faz

todo sentido, pois sua pergunta busca entender como herdá-la. Normalmen-te se faz uma inNormalmen-terpretação equivocada sobre as inNormalmen-tenções dele ao inNormalmen-terpelar Jesus. Mesmo Brakemeier (2016), que tem conclusões interessantes que são utilizadas mais a frente, neste trabalho, entende a pergunta como um teste. O interrogador “quer saber como Jesus vai reagir” (BRAKEMEIER, 2016, p. 104). Nisto ele segue uma tendência comum, na história. Schottroff (2005, p. 159) é quem percebe isso e nota que “a desqualificação moral e teológica do intérprete da Torá é corrente em traduções e interpretações da Bíblia”. Para que se livre desse preconceito, Schottroff (2005, p. 159) traz a seguinte informação:

A leitura antijudaica desfigurou injustamente a imagem do intérprete da Torá: como se ele estivesse preparando uma armadilha para Jesus (ekpeirázon, v. 25). Apenas excep-cionalmente foi reconhecido, em relação aos versículos 25 e 29, o caráter de discussão e aprendizado que corresponde à tradição judaica. [...] ele propõe o exame desta per-gunta a Jesus, como mestre escolhido por ele.

Compreendendo isso, deve-se evitar a leitura que parte da ideia de que Jesus está res-pondendo a um inimigo. Sua resposta é dada, para aquele que se achega com o intuito de aprender. E aprender sobre um elemento de fé que tem em comum com Jesus: a vida eterna. Ele quer entender como erguer-se da morte para a vida eterna.

OS PERSONAGENS DA NARRATIVA DE EXEMPLO

O primeiro personagem da história lucana, não da narrativa de exemplo, é um legista-escriba fariseu. No desenhar da história, surgem outros três que são importantes: o sacerdote, o levita e o samaritano. É curioso que, na história arquitetada pelo Jesus de Lucas, não se encontra um personagem com a mesma identidade partidária do legista. Não há um judeu leigo. Jeremias percebe isso ao informar que, “Segundo a divisão tripartida das narrativas populares, os ouvintes esperavam um terceiro e precisamente (depois do sacerdote e do levita) um israelita laico. Supõe-se, consequentemente, que a parábola tenderá a um destaque anticlerical” (JEREMIAS, 1971, p. 149, tradução própria). Entretanto, o que aparece é um samaritano. Essa adição do samaritano e a ausência do judeu fariseu serão discutidas depois de apresentados os personagens.

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O Sacerdote e o Levita

Na história surgem dois personagens que representam a religião do templo de Jeru-salém: um sacerdote e um levita. Ambos tomam a mesma atitude: passam adiante, seguindo seus caminhos. Algumas possibilidades surgiram para essa atitude. A mais conhecida é a que supõe que estão evitando a impureza, que seria causada ao tocar em um morto. Schottroff (2005, p. 164) rejeita essa interpretação e pontua apropriadamente que “[...] o ferido não está morto. Toda essa discussão opera com contraposição antijudaica das concepções ju-daicas hostis à vida de pureza/impureza ao amor cristão pelo ser humano”. É preciso conceber que os personagens sabem o que o contador de história diz que sabem. E, em momento algum, Jesus dá a entender que eles pensam que o violentado está morto, ou supõe alguma ideia de impureza.

Deve-se, porém, fazer uma observação sobre os membros do templo. Ou, mais ainda, é possível ligá-los às autoridades do templo. Os sacerdotes, pelo próprio título, estão ligados a essa forma de culto. Os levitas exercem tanto serviços locais, dentro do templo, como, também, a autoridade policial. Jeremias (2010, p. 284) vai chamá-los de clerus minor:

[os sacerdotes] formavam a classe privilegiada no seio dos descendentes de Levi; por sua vez [..]. Os Levitas, enquanto clerus minor, eram, pois, inferiores aos sacerdotes e, como tais, não participavam do serviço sacrifical; encarregavam-se somente dos servi-ços inferiores do santuário.

Jeremias (2010, p. 287) enumera as funções dos levitas e, dentre elas, menciona a “guar-da do templo” (Lc 22,52): “era composta por essa polícia levítica, reforça“guar-da pela corte do sumo sacerdote em exercício”. Para Lucas, os levitas estão em forte ligação e a serviço dos sacerdotes. Assim, tanto o levita quanto o sacerdote da narrativa, agem da mesma forma porque possuem os mesmos valores. Saldarini (2005) considera que Lucas compreende os saduceus como aqueles que estão

ligados aos sacerdotes. Seria o partido dos sacerdotes, do templo e opositor aos fariseus – lembrando que o legista era um fariseu – para o evangelista, os saduceus estão:

[...] associados à mais alta liderança de Jerusalém. Pedro é preso no Pórtico de Salo-mão, dentro dos recintos do Templo, pelos sacerdotes, pelo capitão (stratēgos) do Templo e pelos saduceus (At 4,1). Os apóstolos são presos pelos sumo sacerdotes e por todos que estão com eles, ‘isto é, a escola (hairesis) dos saduceus’ (SALDARINI, 2005, p. 199).

Assumir que o sacerdote da narrativa era um representante do partido saduceu está bem de acordo com a crença de Lucas, apesar de ser historicamente impreciso (SAL-DARINI, 2005, p. 316). Chama a atenção, assumido isso, a diferença de crença entre saduceus e fariseus. Na continuidade do texto acima, Saldarini (2005, p.

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199) demonstra que os saduceus lucanos tinham divergências que são impor-tantes para a análise, pois na obra “[...] os saduceus são uma parte (ou partido [meros]) do sinédrio que não acredita na ressurreição ou em anjos e espíritos”. É possível confirmar isso em Lc 20,27-39 e At 23,6-8.

Poder-se-ia inferir que o levita era um saduceu? Embora se possa imaginar tal posição, pela proximidade com os sacerdotes, Lucas nada sinaliza sobre isso e, portan-to, não sabemos qual sua posição. É possível ser categórico quanto a legista e escriba serem sempre fariseus, para Lucas. Lucas, por exemplo, menciona Bar-nabé, um levita, como cristão (At 4,36). Logo, crê na ressurreição, se aproxi-mando mais da crença farisaica do que da saduceia. O que poderia se justificar por sua conversão. Outro ponto que justificaria o fato de não seguir conforme a crença ou a posição saduceia, pode estar na observação de Jeremias, ao afirmar que ele é de Chipre (At 4,36) e “seu pai era, evidentemente, um daqueles levi-tas que não exerciam seu serviço em Jerusalém” (JEREMIAS, 2010, p. 291). Tal qual escriba e legista estão para fariseus, sacerdotes e levitas estão para

sadu-ceus, na obra lucana? A primeira assertiva pode ser categórica como já visto. A segunda é segura, no que diz respeito ao sacerdote. Como baixo clero, tal inferência sobre os levitas não seria prejudicial, mas há pouca segurança para ser categórico. Fica a suspeita de tal possibilidade. Contudo, também não é indispensável assumir ou rejeitar essa posição para o objetivo da narrativa. O fato de serem representantes da religião do templo mostra, segundo Jere-mias, a intenção de Jesus de, inicialmente, induzir seu ouvinte a supor uma mensagem, inicialmente, anticlerical.

Por que Jesus personagens que representariam a religião do templo? Schottroff (2005) nega que a rejeição em ajudar o abatido esteja no fato de que ambos não que-rem se contaminar. As críticas, por parte dos fariseus, à religião do templo e à forma como os saduceus viviam, eram bem conhecidas. Protestos contra a concórdia com o opressor romano são bem atestadas (SALDARINI, 2005, p. 311). E a narrativa inicia querendo ter um tom anticlerical (JEREMIAS, 1971, p. 149). Como o ouvinte trata-se de um fariseu, o mestre ganha sua atenção ao narrar uma crítica aos seus adversários religiosos. Pois é lógico supor que o legista condenara as atitudes do sacerdote e do levita.

Tomando por base que a narrativa busca parecer anticlerical e que a posição de Schot-troff, quanto a rejeitar a interpretação de evitar a impureza, estão sendo assu-midas neste trabalho, qual a razão pela qual o sacerdote e o levita não para-ram? A mesma autora possui uma posição a ser citada:

Considero a resposta à pergunta por que o sacerdote e o levita desviaram o olhar estreitamente ligada à exortação de Jesus no final: vai e age – do mesmo modo que o samaritano (v. 37). Não se conta se o intérprete da Torá procedeu assim, porque passa a ser mais importante ver como a história continua na vida dos e das ouvintes (SCHOT-TROFF, 2007, p. 165).

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Não é possível responder as razões que moveram os personagens a não ajudar ao violentado, pois elas não parecem ser o assunto. O que se considera é que a fidelidade ao mandamento não foi suficiente para conduzi-los ao ferido. É possível entender que aquele que pergunta “quem é meu próximo?” corre o risco de “passar adiante”. Escolher quem é o seu próximo, na prática, gera exclusão de outros. Os personagens selecionados têm mais a ver com quem pergunta, do que uma crítica voltada ao clero, como o legista esperou e como a narrativa quis aparentar.

Considerando a observação de Jeremias sobre as narrativas populares com divisões tripartidas, o ouvinte espera que surja um fariseu fiel. Que concluiria a crí-tica à religião do Templo com a presença de um personagem fora do clero que cumprisse o mandamento. Mas Jesus frustra a conclusão esperada pelo legista, pois “É totalmente inesperado e ofensivo que o terceiro, que cumpre o mandamento do amor, seja um samaritano” (JEREMIAS, 1971, p. 149, tra-dução nossa).

O Samaritano

O desejo de herdar a vida eterna é o que faz com que a pergunta “quem é meu próxi-mo?” se manifeste. Essa pergunta não vai aparecer para o saduceu. Ele não espera herdar nada de vida eterna, portanto, pode “passar adiante” e pode decidir quem é seu próximo. Contudo, o amor ao próximo, que se sustenta na busca por herdar a vida eterna, expõe a crítica que Lucas está pretendendo realizar e cria um paradoxo perturbador. Para isso, outro personagem aparece e muda completamente o cenário esperado pelo legista e revela a sensibilida-de do Jesus lucano. O contador sensibilida-de histórias surpreensensibilida-de o ouvinte e lhe dá o que pensar.

Lucas silencia sobre informações dos samaritanos. Exceção está na passagem onde eles não recebem Jesus (9,52) e os discípulos demonstram um forte desprezo pela vida samaritana (9,54). Aparentemente, a comunidade não precisa de explicações sobre quem são os samaritanos. Uma razão está na observação de Carneiro, que a localiza na região da Síria, um território não muito distante de Samaria. Outra justificativa, ainda nas observações de Carneiro, estaria no fato da comunidade ser composta por judeus e gentios. Assim, possuiria algum conhecimento sobre os samaritanos.

O que implica, aqui, buscar informações sobre sua crença fora dos textos lucanos. Pelas dicas encontradas nos rabinos, os samaritanos tinham alguma proximi-dade com a crença saduceia, sendo hostilizados pelos judeus. Diz o Tractate Kutim 2,7-8:

Por que os samaritanos são proibidos de se casar com Israel? Porque eles estão mis-turados com os sacerdotes dos lugares altos. R. Ishmael disse: “Eles eram genuínos convertidos, a princípio. Por que foram proibidos? Por causa de seus bastardos e porque

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não se casam com a viúva do irmão”. Quando devemos aceitá-los de volta? Quando eles renunciarem ao Monte Gerizim e confessarem Jerusalém e a ressurreição dos mortos. A partir deste momento, aquele que roubar um samaritano será como aquele que rouba um israelita (tradução própria).

A necessidade de confessarem a ressureição dos mortos, mostra que eles a rejeitavam. Pummer (2016, p. 71) concorda com isso ao dizer que apenas “nos tempos modernos, isto é, do século XIV até o presente, a crença dos samaritanos na ressurreição dos mortos está bem documentada. No período rabínico, temos vários textos que discutem a sua descrença nela” (tradução própria). O autor também lista escritores da patrística e outros textos judeus que confirmam esse dado. Lourenço (1985, p. 62) compreende que,

[...] na Mishná (Nidah 4,2), as filhas dos samaritanos são comparadas às dos saduceus, isto é, impuras. O mesmo sucede em relação à ‘ressurreição dos mortos’, pois nem os saduceus, nem os samaritanos, ao contrário dos fariseus, aceitam a crença na vida futura (Sanh 90b; Kutin 2,7; Act 23,8-9).

Portanto, o samaritano não crê na vida eterna. O tratado de Kutim demonstra que havia uma rejeição judaica sobre os samaritanos. O texto que narra que os samari-tanos não hospedam Jesus (Lc 9,52-53) demonstra a tensão existente do lado dos samaritanos. Brakemeier (2016, p. 105-6) pontua:

Trata-se de alguém [o samaritano] de fora, um inimigo do povo de Deus. Assim eram vistos os samaritanos. Residiam também eles em território palestinense. [...] A Sama-ria tinha sofrido a imigração de elementos pagãos que teSama-riam desviado os e as fieis da fé autêntica. Foram estigmatizados como hereges e começaram a sofrer hostilidades em suas viagens de peregrinação. [...]. Reinava ódio entre os grupos. E Jesus afirma ter sido um samaritano que socorreu a vítima de um bárbaro assalto, uma descarada afronta a todo bom judeu.

Enquanto o legista aguarda a chegada de um leigo judeu, aparece um inimigo e descrente da vida eterna. Ainda que o samaritano cumpra o mandamento, para ser considerado fiel, precisaria aceitar Jerusalém e a ressurreição: amar não basta.

O ENCONTRO COM A VIDA ETERNA, SEGUNDO A NARRATIVA

Quem sequer é considerado parte do povo judeu, não busca e não crê na vida eterna, se tornou exemplo de como se consegui-la. O questionamento que leva à con-clusão da história inverte o sentido da pergunta original. Brakemeier (2016, p. 107) entende bem isso e afirma: “O próximo já não é mais a pessoa

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neces-sitada, e sim a que lhe presta socorro”. Nessa perspectiva, o legista precisa entender que ser próximo de qualquer um necessitado é mais importante do que indagar quem é o próximo. E o samaritano lhe serve como exemplo. É digno de nota que o legista sequer cita “o samaritano”. A “descarada afronta a todo povo

judeu” (BRAKEMEIER, 2016, p. 106) é percebida neste instante, quando o le-gista evita denominar quem é o personagem que agiu segundo o mandamento. A narrativa toca em um ponto não visto nas interpretações tradicionais: a atitude do

samaritano não visava à vida eterna. Os samaritanos dessa época não criam na ressurreição dos mortos e, em consequência, não esperavam a vida eterna. O que motivou ao samaritano não foi a recompensa final, mas a necessidade do violentado. Sua atitude amorosa não visou garantir-se na ressurreição. Afi-nal, sequer cria nela.

Jesus, assim, procura dizer que se alguém busca saber quem é seu próximo para, assim, passar a amá-lo, visando conseguir a vidar eterna como troca desse amor, não a alcançará. A vida eterna é alcançada por aquele que ama ao próximo sem esperar com isso recebê-la. O paradoxo criado fere a consciên-cia do legista: precisa amar para ter a vida eterna e quer fazê-lo. Mas para conseguir a vida eterna, precisa amar sem interesse por ela. Como saber se o desejo pela vida eterna não está por trás de suas atitudes amorosas, se ele sabe que é por meio delas que alcançará a eternidade?

Este é o ponto forte da narrativa: é necessário ser livre do desejo de ter a vida eterna e amar com essa liberdade. Bonder (2007, p. 102-3) conta que esse paradoxo permeava a mente do rabino Baal Shem Tov:

Conta-se que certa vez o Baal Shem Tov, conhecido como Besht, ficou hospedado na casa de um casal muito generoso. Sabedor de que não tinham filhos, Besht os abençoou afirmando que no ano seguinte teriam a graça de conceber um filho. Assim que ele partiu, uma bat kol, uma voz celestial, se fez ouvir e esbravejou: ‘Acaso você sabia que já estava escrito o destino de que este casal seria estéril para sempre? E agora? Por conta de sua promessa o Criador terá que mudar todo o curso da natu-reza. E como punição por sua presunção você terá confiscado o seu lugar no Mundo Vindouro!’ O Besht, em vez de se desesperar diante da perda de seu quinhão no Mundo Vindouro, ficou radiante. ‘Obrigado’, agradeceu a Deus, ‘até esse momento temia que meu serviço a Ti fosse manchado por pensamentos de recompensa e toda sorte de gratificações, mas agora tenho a oportunidade única de agir sem nenhuma expectativa de retribuição. Se antes podia postergar meus prêmios até para além da vida, agora que até o Mundo Vindouro ficou interditado para mim, posso ser uma pessoa livre’.

O Besht, para se livrar dessa sombra, precisou perder sua vida eterna. No lugar de isto lhe parecer uma derrota, na verdade, tornou-o livre. Legista e rabino estavam aprisionados. Besht, pelo menos, tinha consciência. O Jesus

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luca-no traz essa consciência ao legista, ou aos leitores do evangelho. Cientes de que deveriam amar, Lucas os desafia: o amor precisa ser livre do desejo da recompensa.

O samaritano, mesmo rejeitando Jerusalém e a ressurreição, se tornou exemplo aos que buscam a vida eterna. Seu amor sem barganha eleva a exigência ética do Cristo. Ao mesmo tempo, cria uma perturbadora situação para o legista e, como consequência, para os destinatários de Lucas: quem conseguirá ter a vida eterna? Sabe-se que amando se consegue, mas se deve amar como se não fosse esse seu interesse.

Portanto, Jesus, no lugar de dar ao legista o que ele desejava, que era saber como conseguir a vida eterna, lhe deu a impossibilidade. Sabedor do caminho que conduz à vida eterna, o legista estava distante de trilhá-lo. E depois de ter aprendido, não havia uma forma de trilhar o caminho, sem encarar a força do paradoxo.

Essa didática de Jesus é presente em Lucas: O messias não veio para justos (5,32); não há em Israel quem tenha uma fé como a do centurião (7,9); a mulher pecadora é perdoada (7,36-49); o publicano desce justificado de sua oração, enquanto o fariseu orava apenas para si mesmo (16,9-14); o rico que possui a mesma dúvida do legista e que afirma cumprir os mandamentos, não tem amado ao próximo mais do que suas riquezas (18,18-30). Na narrativa do bom samari-tano, essa marca do Jesus que perturba é reafirmada: esse é o caminho, andai por ele sem desejar chegar ao lugar que ele conduz. Seguindo, porém, dá para trilhar o caminho e chegar até onde ele leva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que apresentar o Samaritano como um exemplo que deve ser imitado, na prá-tica de não se perguntar sobre seu próximo, houve o interesse em colocá-lo como genuíno cumpridor do mandamento de amar ao próximo. Pois não está na expectativa de uma recompensa por conta desse cumprimento.

Diferente dele, o legista não quer saber quem é seu próximo porque está interessado em amá-lo. Seu objetivo é garantir que esteja amando a pessoa certa e, com isso, consiga a vida eterna. Ao mesmo tempo, deseja se sentir desobrigado de amar determinadas pessoas, ou grupo de pessoas, que não se enquadra-riam no grupo dos “próximos” – samaritanos, por exemplo. Neste ponto, a resposta de Jesus, por meio de uma narrativa de exemplo, demonstra que al-guém, por mais discriminado que seja, e ainda que descrente na vida eterna, é capaz de herdá-la. Porque quando essa determinada pessoa devota amor ao outro, faz pela pessoa em si e não pelo que pode ganhar com isso. Seu amor não é fingido e não usa a necessidade do outro para apaziguar sua consciên-cia, ou para que Deus o reconheça como alguém que deva receber alguma recompensa. Por outro lado, aquele que seleciona quem e quando amar (o sacerdote e o levita) não devem ser imitados em suas atitudes. Ali não está o caminho da vida eterna.

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Indo além da proposta do mestre Rubem Alves (2015), este trabalho propõe que a atualização da parábola colocaria um ateu, no lugar do samaritano. Talvez, para manter o “peso polêmico” que o travesti da versão de Rubem Alves co-loca – similar ao que ocorre com o samaritano, para o legista – se diria um travesti ateu. Pois não haveria esperança de ganhar a vida eterna nas atitudes amorosas desse ateu que, além de não crer em recompensa, representa o que a moral religiosa conservadora condena como pecado.

A crise para os destinatários de Lucas permanece: como ajudar ao próximo igno-rando que assim se estaria seguindo o caminho para a vida eterna? Estaria a consciência tão livre ao ponto de amar independente da herança que o amor ao próximo garante, segundo o ensinamento de Jesus? Estaria a consciência do cristão lucano aberta para compreender que aquele que não professava sua fé poderia se tornar um exemplo a ser seguido naquilo que mais importa que é o amar a Deus e ao próximo? Seria possível amar ao próximo sem pensar em ganhar a vida eterna, já sabendo que é por conta desse amor que a alcança? Como o legista, ou o cristão lucano poderiam se livrar dessa eterna “sombra de dúvida”, que é o saber se muitas de suas boas ações para com o outro estariam, ou não, embriagadas da expectativa de uma recompensa, aqui ou no mundo vindouro? Tal paradoxo aprisiona e gera um desconcerto sem tamanho.

A liberdade real está, justamente, em não ter o que aguardar do mundo vindouro. Em não ter que viver sob o sonho e a esperança da promessa individual. Não querer a vida eterna como um bem para si, é a liberdade. A promessa da vida eterna tornou-se uma armadilha para o legista. É sobre isso que trata a narra-tiva de exemplo do bom samaritano.

Há alguma expectativa para os cristãos, leitores de Lucas? Há como sair desse pa-radoxo? Se forem capazes de renunciar à vida eterna, ou de reconhecer que não são dignos dela – por serem movidos a amar por conta da promessa vin-culada ao amor – talvez haja esperança. Contudo, a busca pela esperança de herdá-la não é, justamente, a sombra que prejudica, ou mancha o amor prati-cado? Daí que não resta outro caminho para a vida eterna senão a confiança na misericórdia de Deus. Ou, para se usar um termo caro para a teologia paulina, Graça de Deus. Lucas, praticamente, fecha as portas da vida eterna ao apresentar o caminho que conduz a ela. Pois, após apresentá-lo, diz que não se deve trilhar esse caminho buscando chegar ao destino que ele conduz. Amar de forma desinteressada, mantendo a crença na vida eterna, somente com a experiência do Baal Shem Tov: sendo condenado à morte eterna. Fora isso, os destinatários de Lucas são convidados a viver na inquietante reali-dade do paradoxo.

E então se faz lembrar aquela frase do diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hog-warts, da obra ficcional de J.K. Rowling, citada na introdução deste trabalho, sobre como alcançar a Pedra Filosofal: “só uma pessoa que quisesse encontrar a Pedra, encontrar sem usá-la, poderia obtê-la”. Da mesma forma, Lucas diz aos ouvintes e leitores(as) de sua comunidade: só quem é capaz de amar ao

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próximo, sem a intenção de usá-lo como atalho para a vida eterna, conseguirá alcançar a vida eterna. Do contrário, todos olharão para si mesmos e se acha-rão dignos da vida eterna, sem tê-la alcançado.

THE ETERNAL LIFE IS FOR THOSE WHO DO NOT SEEK IT: THE PARABLE OF THE GOOD SAMARITAN

Abstract: the theme of this article is the debate on Eternal Life between a Master of the

Law and Jesus, which responds amazingly to the question. The object of analy-sis is the narrative of Lc 10,25-37, which contains the parable known as that of the Good Samaritan. The aim of the article is to demonstrate that the choice of the characters aims to deepen the teaching about Eternal Life, and not just to reinforce the importance of Love for others. To do this, the text will be analyzed by the Narratology.

Keywords: Samaritan. Eternal Life. Expert in the Law. Love. Parable. Notas

1 Um exemplo dessa questão pode ser indicado na obra de Werner Kümmel (1982, p. 186) que, mesmo debatendo as diversas hipóteses levantadas sobre a autoria de Lucas, indica que “somente uma coisa se pode afirmar com certeza a respeito do seu autor: trata-se de um cristão proveniente da gentilidade”.

2 Aqui se reproduz uma posição de Monasterio e Carmona (2012), que apresenta a obra como Lucas-Atos, entendendo e defendendo a unidade dos textos. Portanto, a proeminência de Paulo se dá na segunda parte da obra.

3 Há outros pormenores na crença dos fariseus que não interessam para este trabalho, mas, para nível de informação histórica, registra-se a posição de Jeremias (2017, p. 238) que, embora bem resumida, explica de que se tratam os fariseus: “Leigos, mem-bros de comunidades religiosas fechadas, que eram dirigidas por escribas. Ao serem recebidos na comunidade, obrigavam-se à observância rigorosa das prescrições sobre dízimos e pureza cultual [...]. Ao contrário dos SADUCEUS, zelam e observam as tradições orais de doutrinas e leis. Em política, comportam-se neutramente perante os romanos”.

Referências

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