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O SIGNIFICADO POLÍTICO DO HOMO SACER NA FILOSOFIA DE GIORGIO AGAMBEN

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Academic year: 2020

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Nº 1, volume 11, artigo nº 2, Janeiro/Março 2016

D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/v11n1a2

ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 23 de 179

O SIGNIFICADO POLÍTICO DO HOMO SACER NA FILOSOFIA DE

GIORGIO AGAMBEN

THE POLITICAL MEANING OF HOMO SACER IN GIORGIO

AGAMBEN'S PHILOSOPHY

Lucas Moraes Martins1 1

Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura / Professor de Direito, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil,

lucasmoraesmartins@hotmail.com

Resumo

O presente artigo objetiva apresentar, de forma concisa, o significado político da figura do homo sacer, explicada por Giorgio Agamben na obra Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. A partir desse livro, em um primeiro momento, foi abordado o conceito de vida nua, como aquela que se encontra em uma zona cinzenta entre zoé e bíos. Posteriormente, foi pontuado como o homo sacer, o portador da vida nua, aparece de modo obscuro no direito romano arcaico. Estabelecido estes dois pontos, buscou-se explicar o significado político-filosófico, e nem tanto histórico, do homo sacer. Ao final, realizou-se uma reflexão sobre como as formas de vida, as identidades jurídico-sociais, repousam, em última instância, no solo podre da vida nua. Apenas entendendo que a vida nua do homo sacer não é um dado natural, mas um produto de um ato jurídico-político, pode-se fortalecer a nossa luta contra os espaços de exceção.

Palavras-chave: Homo sacer. Vida nua. Estado de exceção. Giorgio Agamben. Filosofia política.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 24 de 179 Abstract

This article explains, in a concise manner, the political significance of the homo sacer, figure presented by Giorgio Agamben in the book Homo sacer: sovereign power and bare life. From this book, at first, was approached the concept of bare life, as one that rests in a gray area between zoé and bíos. Later, it was scored as homo sacer (the bearer of bare life) appears obscurely in archaic Roman law. Established these two points, we attempted to explain the political and philosophical meaning of homo sacer, and not the historic significance. At the end, there was a discussion about forms of life (the social and legal identities) and how these forms lie, ultimately, on the rotting ground of bare life. Only understanding that the bare life of homo sacer is not a natural given, but a product of a legal-political act, we can strengthen our fight against the spaces of exception.

Keywords: Homo sacer. Bare life. State of exception. Giorgio Agamben. Political Philosophy.

INTRODUÇÃO

A propósito dos vinte anos do lançamento da obra Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita de Giorgio Agamben, não seria estranho o questionamento sobre a atualidade política da figura do homo sacer. Imerso em uma névoa histórica, a imagem do homo sacer poderia ser julgada, equivocadamente, como imprópria para descrever a vida nua e a sujeição do vivente ao poder soberano. Entretanto, o trabalho de Agamben não é meramente histórico. Ao retirar o homo sacer dos primórdios de Roma, situando-o como o primeiro paradigma do espaço político ocidental, o gesto de Agamben não pretende ser historicamente neutro, mas sim o de atribuir à figura do portador da vida nua um conteúdo político efetivo.

Alguns romanistas, críticos da ideia de que o homo sacer representaria adequadamente o portador da vida nua, se esquecem que Agamben nunca reivindicou um tratamento exclusivamente histórico desta figura. “Protagonista deste livro é a vida nua, isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar.” (AGAMBEN, 2010, p.16). A busca pela “função política” do homo sacer, portanto, é uma das linhas invisíveis que guiam a investigação de Agamben em Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita.

Se, atualmente, uma grande parte do pensamento jurídico-político não concebe a condição humana fora do âmbito de proteção do direito, talvez, isso ocorra porque não se entendeu que as identidades jurídicas, sociais e políticas, em última instância, dentro do espaço político do Ocidente, convergem no ponto da vida nua e desta dependem. Esta

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 25 de 179 dupla face dos direitos e liberdades adquiridas inscrevem, cada vez mais, a vida na ordem estatal, o que implica uma sujeição crescente ao poder soberano.

A CRIATURA

Em Paris, entre 1974 e 1976, Giorgio Agamben encontrou-se, regularmente, com Ítalo Calvino e Claudio Rugafiori, para planejar a publicação de uma revista. Uma das seções deste periódico seria dedicada às “Categorias italianas”, estas entendidas como estruturas categóricas da cultura italiana, unidas através de uma série de conceitos polares. Agamben propôs explorar uma série de oposições: tragédia/comédia, direito/criatura, biografia/fábula. O projeto da revista nunca foi realizado (AGAMBEN, 1999, p.xi).

Entretanto, no texto Al di là dei diritti dell’uomo, publicado originalmente em francês pelo periódico Libération em 19931, Agamben deixa claro como o horizonte aberto pela dupla categorial direito/criatura, influenciou-o marcadamente. Neste escrito, Agamben afirma que “a vida nua (a criatura humana) que, no Antigo Regime, pertencia a Deus e, no mundo clássico, era claramente distinta (como zoé) da vida política (bíos) aparece, agora, em primeiro plano sob os cuidados do Estado [...].”. (Tradução livre) (AGAMBEN, 1996, p.24).2

. A tradução inglesa do texto não foi fiel ao vocábulo criatura ao traduzi-lo pelo termo “human being” (AGAMBEN, 2000, p.20), que indica criatura, mas também ser humano.

A palavra criatura, derivada do particípio futuro ativo do verbo latino creare, integrada e dirigida pelo sufixo –ura (o que está prestes a ocorrer), indica algo imperfeito em um perpétuo processo de criação, engendrado e comandado por um criador, isto é, uma vida submetida a um processo eterno de criação, sujeita à transformação a mando dos comandos arbitrários do soberano:

O que é uma criatura? Derivada do particípio futuro ativo do verbo latino creare ("criar"), criatura indica uma coisa feita ou uma coisa formada, mas no sentido de continuidade ou processo potencial, de ação ou emergência, construída pela orientação futura da sua forma ativa verbal. Em uma tensão eternamente imperfeita, creatura se assemelha às construções paralelas natura e

figura, em que as determinações conferidas pela natividade e facticidade são, todavia, abertas à

possibilidade de metamorfose posterior frente à unidade do sufixo -ura ("o que está prestes a ocorrer"). A creatura é uma coisa sempre em um processo de sofrer criação; a criatura ativamente

passiva, ou melhor, apaixonada, tornando-se perpetuamente criada, sujeita à transformação a

mando dos comandos arbitrários do Outro. (Tradução livre). (LUPTON, 2000, p.1)3.

1Título original: Au-delà des droits de l‟homme.

2

No original: “Quella nuda vita (la creatura umana) che, nell‟Ancien Régime, apparteneva a Dio e, nel mondo classico, era chiaramente distinta (come zoé) dalla vita politica (bíos), entra ora in primo piano nella cura dello Stato […].”.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 26 de 179 Do mesmo modo que, em nascituro, o sufixo –uro indica a mesma construção verbal latina do particípio futuro ativo (o que está para + verbo), significando o que está para nascer, criatura indica o que está prestes a ser criado, isto é, aquilo que é criado perpetuamente e aberto às metamorfoses. Por causa desta indeterminação, a criatura pode articular uma série de separações, inclusive a entre humano e animal. Neste contexto, a criatura, produzida e controlada, devota e submetida ao criador, está presa em um limbo que transita continuamente entre homem e animal. Este é o preciso sentido de vida nua.

Esta vida nua, vida em permanente exposição à violência soberana, é, no fundo, uma vida abandonada, que se encontra na relação de bando. A palavra bando registra uma ambiguidade semântica: “in bando, a bandono significam originalmente em italiano „à mercê de...‟ quanto „a seu talante, livremente‟” (AGAMBEN, 2010, p.110). Esta incerteza semântica revelada quanto a algo ou alguém que está à mercê (ao arbítrio de alguém) e, ao mesmo tempo, se encontra livremente (ao próprio arbítrio), demonstra como vida nua se encontra em uma zona cinzenta entre zoé e bíos.

Agamben relata que os gregos do mundo clássico não possuíam um termo único para designar a palavra vida como entendida atualmente. Na verdade, os gregos se valiam de dois termos: zoé e bíos. O primeiro termo exprimia o simples fato de viver, comum a todos os seres vivos, sejam eles animais, homens ou deuses; o segundo, a forma de viver própria de um indivíduo ou grupo (AGAMBEN, 2010, p.9). Enquanto zoé designava, portanto, a vida animal ou orgânica, bíos indicava a vida qualificada de cidadão, a vida politicamente qualificada.

A vida na relação de bando, ou seja, a vida abandonada, pressupõe um constante trânsito entre zoé e bíos. A vida abandonada, também denominada de vida nua, se encontra no limiar entre zoé, vida biológica, e bíos, vida politicamente qualificada.

Compreende-se, portanto, que a vida abandonada não é aquela deixada de lado em uma pura exclusão. Pelo contrário, o abandono pressupõe a relação de exclusão inclusiva, ou seja, aquele que tem o poder de abandonar se relaciona soberanamente com o abandonado através da violência da decisão soberana. Relação de bando implica a vida excluída e incluída, dispensada e capturada que, por isso mesmo, se encontra unida e sujeita ao poder soberano (AGAMBEN, 2010, p.109).

indicates a made or fashioned thing but with the sense of continued or potential process, action, or emergence built into the future thrust of its active verbal form. Its tense forever imperfect, creatura resembles those parallel constructions natura and figura, in which the determinations conferred by nativity and facticity are nonetheless opened to the possibility of further metamorphosis by the forward drive of the suffix -ura (“that which is about to occur”). The creatura is a thing always in the process of undergoing creation; the creature actively passive or, better, passionate, perpetually becoming created, subject to transformation at the behest of the arbitrary commands of the Other”.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 27 de 179 O NÓMOS

Carl Schmitt explica que antes da palavra nómos adquirir um sentido genérico indicando regulação ou ordenamento normativo, significava assentamento e ordenação originários do espaço físico, isto é, um ato constitutivo concreto de ordenamento espacial, a primeira partição e divisão da terra (SCHMITT, 1979, p.48).

A palavra nómos, proveniente de nemein – que significava primitivamente tanto dividir como alimentar – denota a forma imediata através da qual se faz visível a ordenação política e social de um povo enquanto localizado em um determinado espaço (SCHMITT, 1979, p.52). O ordenamento do espaço implica, portanto, a tomada ou apropriação da terra com a consequente fixação de uma ordem jurídica e territorial.

Etimologicamente, nómos significa, ainda, cercado, ou melhor, a muralha protetora construída pelo homem para permitir a convivência religiosa e jurídico-política. No vocábulo nómos, a coincidência entre localização territorial e ordenamento jurídico, implicada no cercado, traz consigo a constituição de um lugar sagrado, seja na relação entre o divino e homem ou entre os próprios homens (SCHMITT, 1979, p.57).

Entretanto, já na época clássica com os sofistas, a palavra nómos perdera o significado de “apropriação da terra” adquirindo o significado de uma mera regra, disposição ou preceito convencionalmente estabelecido entre os homens (SCHMITT, 1979, p.58).

Agamben retoma a polêmica referente à contraposição entre physis e nómos para afirmar que esta oposição pode ser considerada “como premissa necessária da oposição entre estado de natureza e commonwealth, que Hobbes coloca à base de sua concepção de soberania” (AGAMBEN, 2010, p.41). Para “Hobbes é precisamente esta mesma identidade de estado de natureza e violência (homo hominis lupus) a justificar o poder absoluto do soberano” (AGAMBEN, 2010, p.41). Neste sentido é que, na fundação do Estado em Hobbes, o soberano conserva o natural ius contra omnes, direito este que não foi dado ao soberano, mas deixado a ele, no momento em que todos os demais homens abandonaram os direitos próprios em prol da preservação do direito de todos (AGAMBEN, 2010, p.106).

Se o soberano conserva este “direito contra todos”, o estado de natureza não é um dado esquecido ou simplesmente excluído no momento da fundação da Cidade, mas o princípio perene interno a ela, isto é, aqueles que a habitam estão submetidos permanentemente à violência soberana. O que a revisitação ao mitologema hobbesiano

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 28 de 179 demonstra, portanto, é a diferença entre um estado de natureza em si (homo hominis lupus, Bellum omnia omnes) e o estado de natureza incorporado na fundação da Cidade como princípio inerente desta e permanentemente presente.

Enquanto homo hominis lupus, tem-se no estado de natureza a vida natural ou a vida do homem como fera, como lobo, uma vez que todos os homens reservam para si o ius contra omnes: bellum omnium contra omnes. Na fundação da Cidade ou do Estado, o que se deseja é justamente excluir este estado da natureza, no qual o homem é o lobo do homem. Contudo, ao fundar a Cidade e deixar exclusivamente ao soberano o ius contra omnes, o estado de natureza é encarnado na figura do soberano e imediatamente incluído na formação da Cidade, no estado civil.

Não se trata, portanto, de uma inclusão da vida natural, mas da vida nua. A vida nua, a vida constantemente ameaçada por um poder de morte, ao ser excluída através da fundação da Cidade, é automaticamente incluída na figura da submissão ao soberano que reservou para si o ius contra omnes (AGAMBEN, 2010, p.105-6).

Assim, a fundação da Cidade é estruturada não no pacto, mas na exclusão inclusiva da violência na qual estava imersa a vida natural. Ao se tentar excluir a vida natural (zoé) com a criação do Estado, ela deu um salto para dentro da Cidade, não mais como vida natural, e sim na forma de vida nua. Isso significa que o estado de natureza ao ser incorporado na Cidade, não pode ser mais denominado de estado de natureza, mas de estado de exceção, o paradigma constitutivo do ordenamento jurídico.

Enquanto no estado de natureza os homens eram feras, lobos, bestas; no estado de exceção, os homens, enquanto portadores da vida nua, não são nem feras (zoé), nem homens politicamente qualificados (bíos), não pertencem a nenhum destes mundos, mas são homens-lobos, lobisomens.

Um exemplo de como a vida nua é disseminada com a fundação da Cidade, pode ser encontrado na chegada ao Brasil da família real portuguesa em 1808. Ocorre que a chegada da família real favoreceu o desenvolvimento urbano da cidade do Rio de Janeiro, pautado sob três aspectos: beleza, higiene e circulação (CARVALHO, 2008, p.85-91).

Antes do período joanino, em meados de 1755, por exemplo, o Rio de Janeiro era marcado pela desordem e, apesar de já contar com edificações e algumas ruas, em sua maioria estreitas, a marca característica da cidade ainda eram os grandes espaços vazios não urbanizados (BICALHO, 2003, 236-48).

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 29 de 179 Com a chegada da família real e a corte portuguesa, a civilização se firmaria na tríade política beleza-higiene-circulação e as mudanças político-sociais seriam realizadas sob esta ótica. Por exemplo, novas ruas começaram a ser demarcadas e alargadas. As edificações tendiam a se tornar uniformes. Cuidou-se, inclusive, para que houvesse uma vasta iluminação da cidade à noite, visando garantir a segurança da população contra os delitos (CARVALHO, 2008, p.95-103).

Para garantir e fiscalizar o cumprimento desta nova política urbana e social, criou-se a Intendência Geral da Polícia do Rio de Janeiro em 10 de maio de 1808. Com fundamento no Traité de la Police de Nicolas de La Mare, a Polícia tinha como objetivo fixar normas de comportamento através de editais e fiscalizar o seu cumprimento pela sociedade. Estas funções eram exercidas por um Intendente, com auxílio dos comissários de polícia, dos juízes de crime de cada bairro e dos comissários de polícia. Algumas das funções mais importantes do Intendente eram: promover a disciplina dos costumes, afiançar o respeito à religião, resguardar a salubridade do ar, promover a segurança e a tranquilidade, coibir reuniões que incitassem à sedição, entre outros (CARVALHO, 2008, p.111).

Por exemplo, havia editais da Polícia que regulamentavam a construção das casas, buscando a beleza da uniformidade. Outros determinavam a vistoria das edificações deterioradas. Proibiu-se também o despejo de lixos nas ruas, sob pena de crime de desobediência. O corte de árvores nas beiras dos rios, as queimadas e a lavagem de roupa nas nascentes foram terminantemente proibidas. Disciplinou-se o horário dos estabelecimentos comerciais, que deveriam fechar às dez horas da noite. Proibiu-se também, com o fim de evitar delitos, a aglomeração de escravos e de vadios (CARVALHO, 2008, p.131-146). Ademais, também cabia à Polícia elaborar as denominadas devassas, procedimentos investigativos.

A Intendência Geral da Polícia tornou-se, portanto, um instrumento do qual se serviu o rei para impor sua autoridade no território (CARVALHO, 2008, p.110).

As implicações da instituição da civilização no Brasil são claras: “Instituir a civilização significava, igualmente, policiar a cidade do Rio de Janeiro, dotando-a de todas as comodidades necessárias para a sobrevivência da corte.” (CARVALHO, 2008, p.103).

Pode-se dizer de outro modo: incluir a civilização significava excluir alguém desta nova ordem. Entretanto, o excluído imediatamente é incluído em virtude da própria exclusão, pois, se não fosse assim, não haveria a necessidade do policiamento. Por outro lado, aquele que é incluído só o é na forma de vida nua, sob o preço de submissão da vida a um poder

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 30 de 179 soberano. Nesta nova Lisboa, a palavra nómos nunca fez tanto sentido...

A vida nua não é, portanto, um fato natural, mas um produto de um ato jurídico-político. O clássico exemplo do portador da vida nua empresta nome ao projeto filosófico de Agamben: o homo sacer.

A FIGURA DO HOMO SACER

A figura do homo sacer foi fruto de muitas dúvidas e de não poucas contradições e perplexidades entre os estudiosos da história e do direito romano.

A ambiguidade do homo sacer foi registrada por Festus: Sacer homo is est, quem populus judicavit ob maleficium, neques fas est eum immolari, sed qui occidit parricidii non damnatur (STRACHAN-DAVIDSON, 1912, p.3-4). O homem sacro era aquele que o povo havia julgado pelo cometimento de um delito, não sendo permitido, portanto, sacrificá-lo, mas tampouco seria condenado por homicídio aquele que o matasse.

O comentário de Strachan-Davidson sobre o registro realizado por Festus em relação ao homo sacer demonstra a incerteza quanto a este “homem sagrado”. A expressão “Sacer homo is est quem populus judicavit ob maleficium” demonstraria que não há incompatibilidade entre a pena de consecratio capitis e um julgamento criminal:

Um sinal adicional da obrigação religiosa sobre a qual o direito criminal se apoiava pode ser encontrado na utilização da famosa palavra sanctio para denotar uma penalidade imposta pela violação do direito; esta está evidentemente conectada com sanctus, sacer e sacratio. As últimas duas palavras, entretanto, sacer e sacratio, nos trazem à vista um problema difícil. Seria de se esperar encontrar estas palavras em íntima conexão com a execução de quase-sacrifício pelo machado. Mas, ao contrário, nós as encontramos diversas vezes nos casos em que não havia execução que lembrasse um sacrifício. [...]. Por um lado, a descrição dele [de Festus], „sacer homo is est quem populus judicavit ob maleficum‟, demonstra que não há inconsistência entre a sacratio capitis e um julgamento criminal adequado. As palavras apontam naturalmente para um criminoso julgado regularmente, condenado e executado, normalmente, através do machado. (Tradução livre) (STRACHAN-DAVIDSON, 1912, p.3-4)4.

4No original: “A further token of the religious obligation on which the criminal law rested may be found in the use of the famous

word sanctio to denote the penalty proposed for breaking a law; this is evidently connected with sanctus, sacer, and sacratio. The last two words, however, sacer and sacratio, bring us within sight of a difficult problem. One would expect to find these words used in the closest connexion with the quasi-sacrificial execution by axe. But, on the contrary, we find them over and over again in cases where there was no execution at all resembling a sacrifice. […]. On the one hand his [Festus] description, „sacer homo is est quem populus judicavit ob maleficum,‟shows that there is no inconsistency between sacratio capitis and a proper criminal trial. As the words stand they would naturally point to criminal regularly tried, condemned, and executed in a normal manner with an axe.”.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 31 de 179 A consecratio capitis era uma sanção sacral aplicada àquele que cometia uma transgressão contra os deuses, cujas iras não poderiam ser aplacadas com a simples expiação religiosa da sanção de expiação (piaculum), que era uma oferta expiatória, como por exemplo, o sacrifício de um animal. A consecratio capitis, aplicada aos casos de ofensas graves às divindades, poderia consistir no abandono do culpado à divindade ofendida ou em sua direta execução pelo pecado cometido (SANTALUCIA, 1998, p.6-7; SANTALUCIA, 2009, p.11-4). A primeira sanção, o abandono, era expressa através da fórmula sacer esto (SANTALUCIA, 1998, p.8).

Entretanto, a segunda parte da frase, “neques fas est eum immolari, sed qui occidit parricidii non damnatur”, indica um sentido contrário à primeira, pois proíbe o sacrifício (immolatio) do homo sacer, mas aquele que eventualmente o matasse, não seria punido. Por isso, Strachan-Davidson comenta com estranheza:

Mas as palavras seguintes, „neques fas est eum immolari, sed qui occidit parricidii non damnatur‟ nos conduzem em outra direção bem diferente. Parece que estamos diante de um homem que não desperta nenhuma preocupação para a lei em si, alguém que era deixado para a vingança púbica casual. (Tradução livre) (STRACHAN-DAVIDSON, 1912, p.4)5.

O homo sacer não era um transgressor ordinário, mas aquele que, pela natureza do fato criminoso, deveria ser colocado para fora da sociedade. Não lhe era permitido sequer expiar a culpa com um castigo, porque a espada da justiça poderia ser manchada com seu sangue a tal ponto que nem mesmo os justiceiros desejavam lidar com o homo sacer (STRACHAN-DAVIDSON, 1912, p.7). O homo sacer era evitado por todos por medo do contágio de sua culpa.

Outro teórico, Fowler, retoma a origem da palavra sacer afirmando que esta pode ter significado simplesmente taboo, isto é, o homo sacer era aquele que havia sido “removido para fora da região do profanum, sem qualquer referência especial a uma divindade, mas a uma 'santa' ou amaldiçoada, de acordo com as circunstâncias.” (FOWLER, 1920, p.23)6. Ao comentar sobre o termo sacer, Fowler afirma que a confusão deste termo com o vocábulo sacrum deve-se ao fato de a palavra sacer ter sido entendida como definida por Aelius Gallus, isto é, “Uma coisa que era sacrum era conhecida por todos como propriedade de uma divindade, e sua violação era nefas, um crime mortal.” (FOWLER, 1920, p.17)7

. Entretanto, acrescenta que, mesmo assim, havia mais um objeto que recebia o adjetivo

5

No original: “But the next words, „neques fas est eum immolari, sed qui occidit parricidii non damnatur‟, lead us in a quite another direction. W e seem to have to do here with a man about whom the law does not trouble itself, whom it leaves to the causal vengeance of the public.”.

6 No original: “[...] removed out of the region of the profanum, without any special reference to a deity, but a „holy‟ or accursed, according to circumstances.”.

7 No original: “A thing that was sacrum was know by all to be the property of a deity, and violate it was

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 32 de 179 sacer: o homo sacer, aquele que podia ser violado sem nefas (violação às divindades), um homem que podia ser morto impunemente (FOWLER, 1920, p.17).

Para Fowler (1920, p.17), sacer esto era uma maldição e homo sacer, o amaldiçoado, o homem banido, interditado, perigoso. Uma coisa “santa” (holy), segundo Fowler seguindo as lições de Robertson Smith, originalmente não implicava uma propriedade de um deus, mas simplesmente algo proibido (tabooed), por qualquer razão, sem referência aos deuses ou espíritos. O homem declarado sacer era, ao mesmo tempo, amaldiçoado e consagrado (FOWLER, 1920, p.17). Todavia, a consagração do homo sacer não podia ser feita tal qual um sacrifício às deidades, porque a morte daquele que fora declarado sacer não realizava a passagem do profanum para o sacrum (FOWLER, 1920, p.18).

Fowler afirma ainda que várias passagens das regras jurídicas antigas relacionam o homo sacer ao sacrifício a deidades. Para manter a coerência, Fowler escreve que a palavra sacer deve ser traduzida, portanto, não como ‟sacred to‟ (sagrado) mas „accursed and devoted to‟ (amaldiçoado e dedicado a), talvez como indicação de que o homo sacer era consagrado a deidades do inferno, em expiação pelo prejuízo que ele havia levado à comunidade. “Estas divindades infernais não tinham altares de sacrifício regularmente ordenados: se alguém desejava apaziguá-los com uma vítima, devia amaldiçoá-la e fazê-la sacer no velho sentido de 'taboo', e deixá-la ao seu destino." (Tradução livre). (FOWLER, 1920, p.21)8. Isso explicaria, enfim, a razão de se considerar o homo sacer um banido, um „sagrado‟ ou perigoso (FOWLER, 1920, p.21)9.

Estas breves notas sobre o homo sacer servem apenas para pontuar a obscuridade do tema, demonstrada com precisão por Agamben (2010, p.76): se o homo sacer era impuro (sacralidade negativa), ou uma propriedade dos deuses (sacralidade positiva) como para alguns autores (SANTALUCIA, 1998, p.11-2), por que se podia matá-lo sem contaminar-se ou cometer sacrilégio? Por outro lado, continua Agamben (2010, p.76), se o homo sacer era vítima de um sacrifício arcaico, por que não era fas (permissão divina) levá-lo à morte através das formas sacrificais prescritas?

O SIGNIFICADO POLÍTICO DO HOMO SACER

8 No original: “These infernal deities had no regular ordered altar sacrifices: if one wished to appease them with a victim one must curse him and make him sacer in the old sense of „taboo‟, and leave

9 No original: “These infernal deities had no regular ordered altar sacrifices: if one wished to appease them with a victim one must curse him and make him sacer in the old sense of „taboo‟, and leave him to his fate.”.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 33 de 179 No direito romano arcaico, a pessoa declarada ou constituída como sacer era excluída da jurisdição humana, sem passar, entretanto, para a esfera divina, acarretando uma dupla exclusão e, consequentemente, uma dupla inclusão. O homo sacer era excluído do ius humanum e do ius divinum e, por isso mesmo, a vida do homo sacer era incluída na forma de insacrificável e matável. A vida consagrada, sagrada, no homo sacer, implicava a possibilidade de matá-lo sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício (AGAMBEN, 2010, p.83-6).

Enquanto membro do ius humanum a morte pode ser considerada criminosa, um homicídio. Enquanto membro do ius divinum, a vida pode ser sacrificada aos deuses. Entretanto, o homo sacer é excluído destes dois âmbitos, visto sua vida ser imediatamente incluída em duas formas: quanto ao ius humanum, a vida do homo sacer é incluída como uma vida que pode ser tirada impunemente. Matá-lo já não é mais crime, porquanto não faz mais parte da sociedade. Quanto ius divinum, a vida do homo sacer é incluída na forma de insacrificável (AGAMBEN, 2010, p.83-6).

Neste sentido é que se pode afirmar que a vida do homo sacer, dentro dessa relação de abandono, estava constantemente exposta a um poder de morte. Abandonada, excluída, da esfera do direito dos homens e do direito dos deuses, esta mesma vida é imediatamente incluída – capturada de fora – na forma de sujeição a um poder soberano, exposta à violência soberana, tornando-se completamente nua.

Se vida nua é interligada ao poder soberano através da relação de bando, pode-se afirmar, portanto, que “soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos” (AGAMBEN, 2010, p.86).

Sacra é a vida exposta constantemente ao poder de morte e sacer esto é a fórmula política que marca a submissão da vida ao poder soberano expondo-a a uma matabilidade virtual (AGAMBEN, 2010, p.86-90). Walter Benjamin já havia expressado que “a ideia de sacralidade do homem dá motivos para uma reflexão na qual, aqui, o que é dito sagrado, segundo o antigo pensamento mítico, é o portador marcado pela culpa: a mera vida.” (Tradução livre) (BENJAMIN, 1996, p.251)10.

Ademais, caberia uma nota adicional: para Agamben, a dimensão da vida nua é “mais original que a oposição sacrificável/insacrificável” (AGAMBEN, 2010, p.112) e isso

10

No original (tradução inglesa): “this idea of man‟s sacredness gives grounds for reflection that what is here pronounced sacred was, according to ancient mythic thought, that marked bearer of guilty: life itself.”.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 34 de 179 significa que a inclusão do homem na pólis não se deu com o desaparecimento do sacrifício, como propõe Jean Luc-Nancy (2003, p.52), mas com a inclusão exclusiva da vida nua.

Esta é a leitura que se faz nas entrelinhas do trecho no qual Agamben afirma que, na modernidade, o princípio da sacralidade da vida se viu “completamente emancipado da ideologia sacrificial, e o significado do termo sacro na nossa cultura dá continuidade à história semântica do homo sacer e não à do sacrifício.” (AGAMBEN, 2010, p.112). O homo sacer é insacrificável não porque o ocidente só conheça simulacros de sacrifícios ou não possa mais conhecer como ocorriam os verdadeiros sacrifícios, como pontua Jean-Luc Nancy (2003, p.55-64), mas porque a mera matabilidade é inerente à condição de vida nua do homo sacer. Esta afirmação pode ser feita porque o olhar de Agamben está voltado para a experiência-limite biopolítica dos campos de concentração. O extermínio dos judeus, no campo, não configurou nem uma execução capital, nem um sacrifício, mas apenas a realização de uma “mera „matabilidade‟ que é inerente à condição de hebreu como tal” (AGAMBEN, 2010, p.113) e, por isso, a violência soberana não pode ser recoberta com véus sacrificiais. “A dimensão na qual o extermínio teve lugar não é nem a religião nem o direito, mas a biopolítica” (AGAMBEN, 2010, p.113).

Afirmar, portanto, que a vida sacra é aquela insacrificável e, todavia, matável, significa ter entendido que “Sacra a vida é apenas na medida em que está presa à exceção soberana” (AGAMBEN, 2010, p.86). Para Agamben, a insacrificável matabilidade do homo sacer é um fenômeno político por excelência e ter tomado este fenômeno jurídico-político “por um fenômeno genuinamente religioso é a raiz dos equívocos que marcam no nosso tempo tanto os estudos sobre o sacro como aqueles sobre a soberania.” (AGAMBEN, 2010, p.86). A vida sacra ou vida nua, e o homo sacer, são produtos de um ato jurídico-político, de uma máquina antropológica.

Alguns romanistas, como pontuou Romandini, questionam que a vida nua não corresponderia adequadamente à figura do homo sacer, mas sim à do hostis rei publicae, pois, enquanto a punição da primeira, historicamente, ocorria no âmbito das relações privadas, a da segunda, representaria um verdadeiro exemplo de punição soberana:

Os romanistas recordarão, então, que o poder soberano no direito romano arcaico castigava por meio do sacrificium, ou seja, uma pena capital de tipo ritual. Nesse sentido, o homo sacer fica excluído dos meios da penalização soberana por se tratar de um assassinato consentido aos privati em forma não ritual, mas somente a esses e não aos magistratus legitimi. Consequentemente, a única figura que realmente representa a exceção soberana seria o hostis rei publicae que é privado de todo direito e assassinato pelo poder soberano, mediante a declaração de um iustitium

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 35 de 179 com seu correspondente senatus consultum ultimum. Com efeito, é possível sinalizar notáveis analogias entre o homo sacer e o hostis rei publicae, entre as quais cabe mencionar o fato de que, se o hostis publicus estava em mãos do senado, comportava sua imediata execução. Contudo, se não era possível ter com o culpado imediatamente, o senatus consultum ultimum consentia, ao menos a partir do ano 88 a.C., que qualquer cidadão pudesse assassiná-lo sem que isso resultasse ser um homicídio. Como corolário dessas características próprias do instituto, a declaração de hostis publicus também podia ser emitida sem que fosse necessária a declaração de um estado de exceção, ainda se a ação pudesse ser concebida como um

bellum iustum. (ROMANDINI, 2013, p.252-3).

Entretanto, buscar um significado puramente historicista de uma figura, o homo sacer, que surge na obra de Agamben com um sentido eminentemente político, significa ter esquecido o alerta, segundo o qual a insacrificável matabilidade do homo sacer é um fenômeno político por excelência. Se não se deve tomar este fenômeno jurídico-político por um genuinamente religioso, tampouco seria válida uma interpretação puramente historicista, porquanto, “pouco importa quem execute o vivente declarado sacer, pois quem o faça, nesse preciso instante, passa a exercer a função soberana de dar à morte.” (ROMANDINI, 2013, p.255).

A fórmula sacer esto, como uma formulação política original da imposição do vínculo de violência soberana, implica uma ligação na qual o homo sacer “é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos.” (AGAMBEN, 2010, p.86). Se, historicamente, a vida nua corresponderia mais adequadamente ao hostis rei publicae, e não ao homo sacer, isso não altera a perspectiva política da obra de Agamben, tampouco a proposta filosófica que emerge do estudo do homo sacer, pois, ao contrário, apenas se enriqueceria a investigação “com o tratamento de duas figuras solidárias a um mesmo paradigma.” (ROMANDINI, 2013, p.254).

Por outro lado, há autores que criticam o estudo do homo sacer, proposto por Agamben, afirmando que aquele homem sacro do direito romano arcaico estaria imerso em uma historicidade fragmentária, isto é, as referências históricas em relação ao homo sacer seriam insuficientes para se alcançar as conclusões pretendidas por Agamben:

Ninguém conhece o homo sacer. Transmitiram-se apenas farrapos da sua existência como criminoso que pode ser morto sem que o assassino seja punido, ou seja, como aquele que pode andar pela cidade e pelo campo como morto-vivo. As fontes não revelam nem um contorno jurídico e nem pessoal do homo sacer, embora se trate, para Agamben, de uma („enigmática‟) „figura do Direito Romano Arcaico‟. Wilhelm Rein, Rudolph von Jhering, Theodor Mommsen, E. Brunnenmeister, Max Weber, Kurt Latte, Max Kaser, Wolfgang Kunkel, Giuliano Crifò, Yan Thomas e –

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 36 de 179 resumindo agora a discussão - Claire Lovisi (entre outros) não avistaram, pesaram, pronunciaram os raros testemunhos da antiga maldição „sacer

esto‟. [...]. Ninguém sabe – exatamente ou nem ao menos mais ou menos –

qual o significado de sacer na antiga Roma. A ideia de que nesta época existiria um imaginário diferenciado religiosamente, juridicamente ou politicamente, que produzia vida nua no estado de exceção, deve ser antes ancorada no âmbito da fantasia histórica. As condições eram ásperas, não se pode falar de uma cidade no sentido romano clássico. (Tradução livre) (KIESOW, 2002, p.62-3)11.

Essa corrente interpretativa mecânica da história se esquece que o método de investigação de Agamben, se bem próximo à arqueologia de Foucault, se alinha, também, às ideias de Walter Benjamin. Agamben não se preocupa com a gênese, mas sim com a origem – no sentido benjaminiano do termo (Der Ursprung) –, o ponto de insurgência do fenômeno (BENJAMIN, 2009, p.45), rompendo, assim, com uma interpretação linear da história. No curso das investigações, Agamben analisou certas figuras – como, por exemplo, o Homo sacer, o Muçulmano, o estado de exceção e o campo de concentração – e estas, mesmo possuindo um conteúdo histórico, foram tratadas como paradigmas, cuja tarefa era a de constituir e tornar inteligível um conjunto problemático mais abrangente (AGAMBEN, 2008, p.11). A partir destas figuras epistemológicas, como o homo sacer, Agamben tenta romper com a antinomia entre particular e universal, cristalizando-as como exemplos, singularidades.

Trabalhando com paradigmas ou exemplos, Agamben isola-os dos respectivos contextos para exibir as singularidades que lhes são próprias. O resgate histórico de um determinado fenômeno particular pressupõe, portanto, a desativação de seu uso normal, para apresentar, de modo mais inteligível, a regra ou o cânone deste uso, o qual não poderia ser apresentado de outra forma. (AGAMBEN, 2008, p.20). Com este gesto, Agamben pode dotar determinada figura histórica de um conteúdo político efetivo para a compreensão e constituição de um contexto histórico-problemático mais abrangente, algo bem próximo ao trabalho do anti-jornalista de Benjamin. A citação do anti-jornalista, sempre fragmentária, ao retirar do contexto, produz um estranhamento em relação à autoridade que se atribui a um certo texto, o que permite surgir a singularidade de um determinado trecho citado. A citação, portanto, não revive o passado, mas, ao contrário, tem a dupla função de

11 No original: “Niemand kennt den homo sacer. Nur einige Fetzen seiner Existenz als ein Straftäter, der ungestraft getötet

werden kann, der also als lebender Toter durch Stadt und Land läuft, sind überliefert. Für Agamben handelt es sich zwar um eine (immerhin „rätselhafte‟) „Figur des archaischen römischen Rechts‟, doch geben die Quellen weder eine figürliche noch eine juristische Kontur des homo sacer preis. Wilhelm Rein, Rudolph von Jhering, Theodor Mommsen, E. Brunnenmeister, Max Weber, Kurt Latte, Max Kaser, Wolfgang Kunkel, Giuliano Crifò, Yan Thomas und – nun die Diskussion zusammenfassend – Claire Lovisi haben (neben anderen) die raren Zeugnisse vom alten Fluch „sacer esto‟ gesichtet, gewichtet, gerichtet. [...] Niemand weiß – genau, oder auch nur ungefähr –, was sacer im frühen Rom bedeutet hat. Die Vorstellung, dass zu dieser Zeit eine religiös, juristisch, politisch differenzierte Vorstellungswelt existiert habe, die im Ausnahmezustand bloßes Leben produziert, ist eher im Bereich der historischen Phantasie anzusiedeln. Die Verhältnisse waren rau, von einer Stadt im klassischen römischen Sinne kann keine Rede sein.“.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 37 de 179 destruir e construir. Destrói na medida em que arranca a palavra ou frase citada de seu contexto histórico original e constrói porque, ao situá-la em um novo texto, cristaliza-a como singularidade (BENJAMIN, 2005, p.454-5; AGAMBEN, 2005, p.167-8).

Coletando e entrelaçando referências formadas por conceitos, ideias, fatos e fenômenos históricos (NASCIMENTO, 2012, p.22-3), Agamben pode formar constelações de singularidades, para as quais a interpretação histórica deixa de ter o caráter pretensamente neutro, adquirindo uma atualidade explosiva, capaz de romper com o continuum temporal, tão caro à tradição dos vencedores, aumentando, assim, as nossas chances na luta contra os espaços de exceção.

O presente artigo não propõe uma defesa irrestrita da obra de Giorgio Agamben, que, obviamente, está sujeita a críticas, muitas delas, inclusive, bem pertinentes. Entretanto, não se pode negar que o aporte político-filosófico do estudo sobre o homo sacer ainda permanece relevante, notadamente no momento em que o estado de exceção – que, antigamente, fora concebido como uma medida essencialmente temporal – converteu-se em regra, nos dias atuais, como técnica usual de governo (AGAMBEN, 2014, p.3).

A vida nua do homo sacer não é um dado natural, mas um produto de um ato jurídico-político. Esta frase sintetizaria uma parte relevante do significado político-filosófico da figura do homo sacer. Este representaria “a figura originária da vida presa no bando soberano e conservaria a memória da exclusão originária através da qual se constituiu a dimensão política” (AGAMBEN, 2010, p.84). Isso deve levar à reflexão que uma vida nua não seria aquela desprovida de direitos, mas, ao contrário, a nudez da vida oculta-se em uma vida plena de direitos e garantias jurídico-políticas institucionalizadas.

O resultado desta fabricação jurídico-política do homem é a vida nua em suas mais variadas roupagens adotadas pela política ocidental: as formas de vida. As formas de vida (forma de viver) podem ser encontradas em todas as identidades jurídico-sociais (AGAMBEN, 2000, p.5-6), tais como o indígena, o brasileiro, o homossexual, o trabalhador, o cidadão, e em outros nomes. Ocorre que ao predicar ou qualificar a vida, como, por exemplo, “vida de estudante”, abre-se a possibilidade de retirar o qualificativo (“estudante”) e isolar a palavra “vida”. Ao predicar ou qualificar a vida, ao dar formas de vida (bíos) a um singular ou a um grupo, procurou-se excluir a zoé. Entretanto, o que está sendo constantemente capturado nestas formas de vida é justamente a vida nua, pois o qualificativo ou atributo dado pode, a qualquer momento, ser retirado, restando somente uma vida exposta ao poder soberano. Ao se falar, portanto, em “vida de estudante”, na

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 38 de 179 verdade, fala-se em “vida (nua) de estudante”, pois o atributo não acompanha simplesmente a vida orgânica (zoé), mas a vida nua. O que a figura do homo sacer, portador da vida nua, vem demonstrar é que o “ser” da política ocidental atual nada mais é do que um produto de um poder político que outorga vida nua com vestes variáveis (formas de vida) ao vivente, ou melhor, produz formas de vida sob o preço da total submissão à violência soberana do próprio vivente.

Não se trata de um mero jogo com as palavras. No estado de exceção, no qual direito (e as formas de vida politicamente qualificadas) e violência, norma e fato, se colocam em um patamar de indiscernibilidade (AGAMBEN, 2007, p.131-3), o que se tem não é mais uma forma de vida, pois esta forma de viver qualificada estaria totalmente imersa em uma zona de anomia, em um vácuo jurídico. No estado de exceção, no qual a vida pode ser isolada de sua forma, tem-se apenas vida nua, aquela permanentemente exposta à violência soberana. Esta situação-limite demonstra como as formas de vida, as identidades jurídico-sociais, repousam, em última análise, na figura da vida nua: todos os homens são virtualmente homines sacri, notadamente no momento atual, em que o estado de exceção tem se convertido em regra.

Os campos de concentração do Terceiro Reich demonstraram com clareza como a vida nua é o fundamento oculto das formas de vida. Neste estado de exceção (Ausnahmezustand), a vida dos prisioneiros (Häftling) perdera qualquer qualificativo jurídico, pois na zona cinzenta criada nos campos, na qual fato e norma, exceção e regra, violência e direito, tornavam-se indiscerníveis, conceitos como o de direito subjetivo e de proteção jurídica careciam de qualquer sentido (AGAMBEN, 2010, p.166). A vida dos prisioneiros no campo não se encontrava na esfera da bíos e tampouco na dimensão da zoé, mas deixava transparecer a vida nua sem nenhum tipo de vestimenta. A forma de vida, em última instância, indica uma cesura radical entre a vida (ser/ontologia) e as formas qualificadas de viver (política) e, este ponto, é justamente o que torna possível isolar uma vida nua das formas de vida, possibilitando a incidência do poder soberano e a experiência biopolítica.

O estado de exceção, enquanto fundamento oculto do direito e da política moderna, utilizado crescentemente como técnica de governo nos dias atuais (AGAMBEN, 2011, p.64; AGAMBEN, 2014, p.3), é o espaço que possibilita regular cesuras jurídico-políticas precisas, separando e articulando a humanidade e a animalidade, criando a vida nua. A decisão soberana decide sobre (über) a exceção (SCHMITT, 2004, p.13), mas também decidirá, enfim, sobre o valor e o desvalor da vida.

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CONCLUSÃO

A figura do homo sacer, portador da vida nua, contém um significado político atual. Se, historicamente, a vida nua corresponderia mais adequadamente ao hostis rei publicae, e não ao homo sacer, e se esta figura está imersa em uma historicidade fragmentária, nem por isso a proposta filosófica que emerge do estudo do homo sacer seria obliterada. Ao contrário, a imagem do hostis rei publicae apenas enriquece investigação. Homo sacer e hostis rei publicae são solidários a um mesmo paradigma que busca descrever, ao menos, a relação entre vida nua e poder soberano. Por outro lado, a névoa que paira sobre os registros históricos do homo sacer tampouco deve ser motivo para se abandonar as investigações ou subestimar as conclusões alcançadas por Agamben, notadamente no livro Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Interpretar a figura do homo sacer exclusivamente através do linear histórico, significa não ter entendido que Agamben trabalha com constelações de singularidades – formadas por conceitos, ideias, fatos e fenômenos históricos – para chegar às conclusões. Não se trata, portanto, de seguir o continuum temporal, mas de montar a origem – no sentido benjaminiano do termo –, o salto original de uma determinada figura ou fenômeno, para fortalecer a nossa luta contra os espaços de exceção. Um gesto político, afinal.

Passados quase vinte anos do lançamento de Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita, a lição sobre o homos sacer continua atual: a vida nua do homo sacer não é um dado natural, mas um produto de um ato jurídico-político. A política ocidental produz e outorga vida nua com vestes variáveis (formas de vida) ao vivente, sob o preço da completa submissão à violência soberana. A situação-limite do estado de exceção, que atualmente tem se convertido em regra, demonstra como a vida pode ser isolada de sua forma. Se o estado de exceção é o paradigma constitutivo da ordem jurídica e, além disso, tem se erigido como uma técnica de governo, todos os homens são, portanto, potencialmente homines sacri.

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Sobre autores:

Lucas Moraes Martins é doutor em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor nos cursos de graduação em direito da universidade FUMEC, Centro Universitário UNA e da Faculdade Santo Agostinho (MG). E-mail:

lucasmoraesmartins@hotmail.com.

Data de submissão: 29/06/2015

Data de aceite: 27/02/2016

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