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Rafael de Lazari, “Os Cinco Deveres Fundamentais do Ser Humano” - 1103

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Ano 6 (2020), nº 2, 1103-1124

HUMANO

Rafael de Lazari

1

Resumo: Através dos métodos lógico e histórico, e utilizando-se da doutrina e dos principais documentos internacionais de pro-teção de direitos humanos como fontes de pesquisa, o presente trabalho pretende analisar os direitos humanos pelo prisma dos deveres humanos. Partindo da premissa que os direitos humanos em sentido amplo são o resultado dos direitos humanos em sen-tido estrito, mais deveres humanos, quer-se trabalhar esta se-gunda faceta, como passo fundamental à concepção de pessoas democráticas de direito. Foram elencados cinco deveres: dever de solidariedade recíproca e de respeito aos direitos e deveres alheios, dever de propugnar pela paz, dever de protagonismo so-cial, dever de respeito ao meio ambiente, e dever de contribuição com os gastos e políticas estatais.

Palavras-Chave: Estado democrático de direito. Pessoas demo-cráticas de direito. Declaração Universal de Direitos Humanos. Eficácia horizontal dos direitos humanos.

THE FIVE HUMAN DUTIES

Abstract: Through logical and historical methods, and using doctrine and the main international documents for the protection of human rights as sources of research, this text intends to

1 Advogado e consultor jurídico. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo

Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coim-bra/Portugal. Estágio Pós-Doutoral pelo Centro Universitário “Eurípides Soares da Rocha”, de Marília/SP. Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universi-dade Católica, de São Paulo/SP. Professor da Graduação, do Mestrado e do Doutorado em Direito da Universidade de Marília/SP - UNIMAR. Coordenador da Pós-Gradua-ção em Direito Constitucional da Rede LFG de Ensino.

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analyze human rights through the prism of human duties. Based on the premise that human rights in a broad sense are the result of human rights in the strict sense, plus human duties, we want to work on this second facet as a fundamental step towards the conception of democratic people in the law. Five duties were listed: duty of reciprocal solidarity and respect for the rights and obligations of others, duty to defend peace, duty of social prom-inence, duty to respect the environment, and duty to contribute to state expenditure and policies.

Keywords: Democratic state of law. Democratic people of law. Universal Declaration of Human Rights. Horizontal effective-ness of human rights.

Sumário: Introdução; 2 Por uma teoria de deveres humanos e pessoas democráticas de direito. 3 Dever de solidariedade recí-proca e de respeito aos direitos e deveres alheios; 4 Dever de propugnar pela paz; 5 Dever de protagonismo social; 6 Dever de respeito ao meio ambiente; 7 Dever de contribuição com os gas-tos e políticas estatais; Conclusão; Referências

INTRODUÇÃO

findar da Segunda Grande Guerra representou um marco para a refundação dos direitos humanos. Antes mais intuitivos (e até certo ponto “improvi-sados”), os direitos humanos passam por processo de sistematização que lhes confere sistemas de proteção, códigos próprios de princípios e regras, vetorização ju-rídica, dentre outros. Assim, a depender do ponto de vista que se adota, pode-se dizer que os direitos humanos são ciência nova, passível de um sem-número de necessidades em prol do seu de-senvolvimento.

Uma hermenêutica em sede de direitos humanos? Hoje é

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possível (da mesma forma que a hermenêutica ganhou ramo

pró-prio no direito constitucional). Balizamentos sobre limitações dos direitos humanos? Também possível (basta ver documentos como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que ex-plicitamente tratam de direitos passíveis de suspensão e direitos não passíveis de suspensão). Organismos com atribuições fisca-lizatórias e jurisdicionais mais efetivas? Possível (basta ver, den-tre tantos outros, o Tribunal Penal Internacional, de caráter re-gular e permanente, apto a julgar pessoas).

Deste universo de possibilidades se quer trabalhar um pouco deveres humanos, contudo. Parte-se da premissa que di-reitos humanos em sentido amplo são resultado da somatória de direitos humanos em sentido estrito (os direitos propriamente di-tos), mais deveres humanos. Quer-se analisar as contribuições possíveis do ser humano para assegurar procedimentalmente sua própria existência. Às pessoas democráticas de direito foram elencados cinco deveres, os quais serão desenvolvidos nos tópi-cos a seguir. Antes, se lembrará que uma teoria de deveres hu-manos desde há algum tempo é buscada pelos teóricos da ciência do direito. Em breve síntese conclusiva, se afirmará a observân-cia prática de deveres humanos no cotidiano soobservân-cial ou mesmo nas relações entre indivíduo e Estado.

2 POR UMA TEORIA DE DEVERES HUMANOS E PES-SOAS DEMOCRÁTICAS DE DIREITO

Convém ir direto ao ponto. Não é fácil trabalhar deveres

humanos. Como bem observa Norberto Bobbio, com uma

metá-fora usual, pode-se afirmar que o direito e o dever são como as duas faces de uma moeda. Mas qual é o verso e qual o reverso, indaga o autor? Depende da posição a partir da qual se olha para a moeda, responde. Na história do pensamento moral e jurídico essa moeda foi observada mais pelo lado dos deveres do que pelo dos direitos, e não é difícil entender o motivo. Com efeito, o

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problema do que se deve fazer ou não fazer é um problema, antes de qualquer coisa, da sociedade em seu todo, mais do que do indivíduo isolado. Os códigos morais e jurídicos foram estabe-lecidos originariamente para salvaguardar o grupo social em seu conjunto, e não cada um de seus membros. A função originária do preceito de não matar não é tanto proteger o indivíduo, mas impedir a desagregação do grupo. Para que se pudesse acontecer a passagem do código dos deveres para o código dos direitos, conclui, foi preciso que a moeda se invertesse, isto é, que o pro-blema começasse a ser observado não mais apenas do ponto de vista da sociedade, mas também do ponto de vista do indivíduo2.

Celso Lafer analisa a transição dos direitos de primeira e segunda dimensão, tradicionalmente individualistas, para os de terceira dimensão, relacionados à fraternidade, que implicariam um senso comum de deveres em atenção à coletividade. Para o autor, um dilema suscitado pela contradição entre os direitos de primeira e segunda dimensão e os da terceira dimensão advém da dialética entre os direitos dos indivíduos e os seus correspon-dentes deveres em relação à comunidade. É certo, prossegue o raciocínio, que, em princípio, existe complementaridade nesta dialética, como estabelece a Declaração Universal dos Direitos do Homem no seu artigo 29, item 1, depois de elencar os direitos humanos, ao afirmar que todo homem tem deveres para com a comunidade (na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua per-sonalidade é possível), o mesmo ocorrendo, em ordem inversa, no preâmbulo do Pacto Internacional sobre Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais. Entretanto, pondera o autor, a participa-ção de um indivíduo num grupo coletivo não repousa necessari-amente numa adesão voluntária - numa escolha -, e pode não ser o mais apropriado para o desenvolvimento de sua personalidade. A afirmação do primado da coletividade nacional em relação ao indivíduo na sua singularidade, conclui, pode levar à tese de que

2 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos

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o indivíduo não tem direitos, mas apenas deveres em relação ao todo, pois a sua plenitude só se dá com o desenvolvimento do “Volk”, da “Raça” ou da “Nação”: é o que ocorreu no nazismo, cujo direito propunha-se a ter como centro não a pessoa humana, mas sim o homem enquanto integrado na comunidade do povo - o “Volksgenosse”. A tese de que os indivíduos não têm direitos, mas apenas deveres em relação à coletividade, na medida em que estes deveres são estipulados ex parte principis, sem um controle e uma participação de cunho democrático dos governa-dos, levou ao totalitarismo, à negação do valor da pessoa hu-mana enquanto “valor-fonte” da ordem jurídica3.

Há se reconhecer, em primeira análise, que a história da consagração de direitos - fundamentais e humanos - está relaci-onada a uma necessidade de limitação de poder (do monarca, do soberano, do senhor feudal etc.). Sentido algum faria, neste prumo, se os primeiros documentos históricos viessem para tra-zer mais deveres ainda para os cidadãos. Essa é a lógica que ex-plica o processo de consagração de direitos ao longo dos tempos. Em segunda análise, também se reconhece que o grande sucesso do nacional-socialismo foi tentar aparentar ao mundo a ideia de coesão de uma nação, fazendo parecer que todos estavam abdi-cando de seus interesses pessoais pelo “Reich de mil anos”. Por este ponto de vista, os deveres perante a comunidade foram, re-almente, impostos, e não propriamente assumidos pelos alemães (sobretudo por aqueles que não eram simpatizantes dos delírios de Adolf Hitler). Não se nega, portanto, a contundência dos po-sicionamentos doutrinários acima elencados.

É possível compreender os deveres por outro prisma, contudo, que não o da coercibilidade cotidiana. Isso acontece

quando as obrigações do homem coletivo passam por assegurar a própria existência e a de seu congênere (dever como proteção,

3 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o

pensa-mento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 132-133. Em mesmo

sentido: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da

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e não como obrigação). Pela nova perspectiva de uma teoria dos

deveres humanos, fala-se em promover um equilíbrio no

pro-cesso de escalonamento de direitos, tendo-se em vista o propro-cesso

generalizado - e preocupante - de erosão do senso individual de justiça. Pensar deveres humanos como aporte à formação de

pes-soas democráticas de direito não significa defender que Estados

e organismos internacionais, da noite para o dia, passem a redigir documentos internacionais de deveres humanos (muito embora pareça claro que previsões textuais são também possíveis). Tão menos implica um novo “fardo a carregar” pelo já tão atribulado e sobrecarregado homem contemporâneo. Os deveres humanos decorrem, isso sim, da própria assunção, pelo indivíduo, de

res-ponsabilidades para com o Estado, e, sobretudo, para com ou-tros indivíduos.

Ademais, não se deve pensar mais nos seres humanos como meros destinatários de direitos, atribuindo-lhes, sim, um protagonismo (concomitante àquele já naturalmente desempe-nhado por Estados e instituições) que permita uma irradiação na-tural de direitos humanos em todas as relações, entre todas as pessoas, entre todas as coisas, e entre pessoas e coisas. Os direi-tos humanos, afinal, “são” as pessoas (relação de simbiose), e não “para” as pessoas (relação de complementação). O processo de formação de pessoas democráticas de direito passa por esse protagonismo.

Acredita-se, por esta teoria, que os direitos humanos po-dem ser uma forma de manter coeso um determinado grupo de elementos que primam pela harmonia das relações cotidianas, mesmo quando tudo parece querer desabar com conflitos políti-cos, religiosos e ideológicos.

Para Fábio Konder Comparato, a contrapartida dos direi-tos humanos são deveres da mesma natureza. Até o reconheci-mento dos direitos econômicos, sociais e culturais, os deveres correspondentes aos direitos humanos eram considerados in-cumbidos apenas ao Estado. Hoje, reconhece-se que, além dos

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Poderes Públicos, todos os indivíduos e as pessoas jurídicas de direito privado têm o dever de respeitar os direitos humanos de qualquer espécie4.

Também o posicionamento de José Joaquim Gomes Ca-notilho, para quem os tempos estão, hoje, maduros para uma re-problematização dos deveres como categoria jurídica e política. Para o autor, tais deveres colocam, tal como os direitos, proble-mas de articulação e de relação do indivíduo com a comunidade. Ademais, lembra o autor que a dimensão jurídico-constitucional dos deveres ultrapassa o círculo dos direitos, e passam a ser re-feridos como categorias jurídico-internacionais, na Declaração Internacional dos Direitos do Homem (artigo 29, item 1), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (conforme o preâmbulo), na Convenção Americana dos Direitos do Homem (artigo 32, item 1), e na Carta Africana de Direitos do Homem (artigo 29, item 7)5.

As pessoas democráticas de direito, portanto, represen-tam metodologia nova de estudar a História, não mais apenas pelas instituições (“Estado de direito”, “Estado social”, “Estado democrático de direito”, “Estado transnacional”, dentre tantas outras terminologias), mas pelas pessoas que passaram, passam

e passarão pela Terra (“pessoas de direito”, “pessoas sociais”,

“pessoas democráticas de direito”, “pessoas transnacionais” etc.).

Exemplificando um caso concreto, as discussões sobre universalidade dos direitos humanos e multiculturalismo (e as relações de limitação recíproca que lhes são inerentes) se con-centram, prioritariamente, sobre os direitos humanos em sentido estrito (o qual é compreendido pela consagração de garantias contra atos praticados por todo tipo de instituição, seja ela indi-vidual ou coletiva). Como conciliar uma relação de

4 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed.

São Paulo: Saraiva, 2013, p. 70.

5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da

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equacionamento de direitos, contudo, partindo da premissa que a liberdade de um é o que legitima a liberdade do outro? Diver-sas teorias buscam explicar a questão, de modo que, entre os ex-tremos puramente universalistas (de um lado) e os totalmente relativistas (do outro), há uma ampla gama de teorias intermedi-árias6. Todas elas chegam a uma decisão unânime, entretanto: a de que não há solução perfeita, sempre se fazendo necessário alguma dose de sacrifício (hipótese em que o “sacrificado” vai, naturalmente, se insurgir). Ora, dentro do cardápio de requisitos ou critérios que podem ser adotados para a proposição dessa va-riação de teorias, aposta-se nos deveres humanos como possível elemento “apimentador” e equacionador de conflitos, no sentido de que direitos individuais somente subsistirão, esteja o

indiví-duo em um modelo ortodoxo ou em um modelo heterodoxo, se trouxerem consigo deveres consequentes7. É o que aqui se deno-mina “teoria da reciprocidade”. Em termos metafóricos, “uma Mesquita em Nova Iorque deve pressupor uma Igreja no Cairo e uma Sinagoga no Irã”, caso se possa utilizar a liberdade religiosa como um estudo de caso dentre tantos possíveis.

Pela teoria da reciprocidade, os deveres humanos devem ser igualmente compreendidos como contrapartida aos direitos de que todos usufruem, pois ambos funcionam como uma espé-cie de “yin yang jurídico”. Neste sentido, tradicionalmente fo-ram os direitos humanos (em sentido amplo), notadamente quando transpostos para o prisma dos direitos fundamentais, vis-tos como a relação entre o Estado e o indivíduo: pela ótica

6 Sobre estas teorias, desde já recomendamos: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos

e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, inte-ramericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16-20.

7 José Joaquim Gomes Canotilho não comunga de tal posicionamento, vale frisar,

muito embora restrinja esta não correlação entre direitos e deveres à ordem constitu-cional portuguesa. Apesar de falar em uma não correlação, entretanto, o autor não afasta a possibilidade de existência de deveres conexos com direitos fundamentais, e

deveres fundamentais não autônomos (isto é, deveres fundamentais que somente exis-tem porque correlativos a direitos) (Direito constitucional e teoria da Constituição.

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negativa, o Estado deveria assegurar direitos aos indivíduos,

para que os indivíduos se valessem destes para se proteger contra os históricos desmandos e arbítrios do Estado (para que o Estado os cumprisse, bastaria que não violasse estes direitos assegura-dos); pela ótica positiva, o Estado deveria assegurar direitos aos indivíduos, para que os indivíduos se valessem destes para exigir do Estado uma prestação (para que o Estado os cumprisse, de-veria adotar conduta ativa de efetivamente implementá-los a curto, médio e longo prazos)8.

Como decorrência inerente ao fim da Segunda Guerra Mundial, as relações de direitos humanos (em sentido amplo) passaram a emanar também das relações entre particulares, na-quilo que se convencionou chamar “eficácia horizontal dos

di-reitos humanos”. A ideia, em tese simples e prática, era que às

relações entre indivíduos também incidissem direitos humanos, a fim de que o legalismo puro e simples não transpusesse ele-mentos como a boa-fé ou a função social do contrato, da posse, da propriedade, da empresa, da falência etc.

Aqui, contudo, se entende que as relações de emanação de direitos humanos (seja entre Estado e indivíduo, ou mesmo nas relações entre indivíduos) não são algo simples, notada-mente quando se adota a ordem inversa àquela que foi dissemi-nada ao logo dos tempos: ao invés do Estado respeitando direitos do indivíduo, indaga-se se seria possível pensar no indivíduo respeitando direitos do Estado; ao invés dos indivíduos tendo suas relações recheadas por direitos, indaga-se se seria possível pensar os indivíduos tendo suas relações recheadas por deveres. Em outros termos, deixa-se - provocativamente - no ar a per-gunta se seria possível uma “teoria de deveres humanos”, ou mesmo uma “eficácia horizontal de deveres humanos”.

Além dos argumentos teleológicos, argumentos textuais

8 Também: JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Madrid: Fondo de Cultura

Económica de España, 2012; ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2015.

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também existem. Para que se ilustre a questão menciona-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que curi-osamente começa e praticamente fecha o rol de garantias com

deveres humanos: consoante seu artigo 1º, “todos os seres

hu-manos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dota-dos de razão e consciência, e devem agir uns em relação aos

outros com espírito de fraternidade”; por sua vez, nos termos do

seu artigo 29, item 1, “todo ser humano tem deveres para com a

comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua

per-sonalidade é possível”. Veja-se, pois, que dentro de uma relação de fruição de direitos humanos em sentido amplo, mister que se-jam equilibradas as incidências dos direitos humanos em sentido estrito e dos deveres humanos. Tal concepção do dever parte da necessidade de observar o homem como ser coletivamente

con-siderado, isto é, dentro de um sistema de impossível sustentação

caso cada um peça a cota que lhe cabe de direitos humanos sem, contudo, oferecer em contrapartida uma parcela de deveres hu-manos.

Afinal, está mais que comprovado que as políticas esta-tais são insuficientes para atender a todo tipo de demanda da po-pulação. Não se quer, aqui, falar do custo dos direitos (muito embora o debate seja também possível) e das consequentes ale-gações de insuficiência financeira e orçamentária estatal9, mas do próprio contexto prático de impossibilidade da onipresença estatal em um mundo que lida cada vez com mais novidades, problemas, soluções, desafios, esperanças etc. A única saída para que haja uma cobertura mais ampla de “gentilezas” reside, neste sentido, justamente na relação de entrelaçamento que as políticas públicas (deveres estatais) e as políticas pessoais (rela-ções individuais) podem oferecer.

9 Sobre esta temática ver: LAZARI, Rafael de. Reserva do possível e mínimo

existen-cial: a pretensão de eficácia da norma constitucional em face da realidade. 2. ed.

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A seguir, foram elencados cinco deveres humanos10. Eles

não esgotam o rol. Apenas busca-se trabalhar diferentes áreas de sujeição do indivíduo aos direitos humanos em espécie (direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, bem como direi-tos relacionados à fraternidade). O critério para cinco manifes-tações específicas foi teleológico, portanto.

3 DEVER DE SOLIDARIEDADE RECÍPROCA E DE RES-PEITO AOS DIREITOS E DEVERES ALHEIOS

Uma concepção de deveres humanos não se mostra pos-sível caso não haja um dever de solidariedade recíproca e de res-peito aos direitos e deveres alheios. Condensam-se estes dois mi-crodeveres em apenas um macrodever, por conta do senso de

fraternidade responsável que deve nortear a vida em sociedade.

Os principais documentos de direitos humanos no plano internacional atentam, com absoluta prioridade, ora para direitos relacionados à liberdade, ora para direitos relacionados à igual-dade. Isso tanto é verdade que se fala em dois Pactos Internaci-onais em 1966, sendo um de Direitos Civis e Políticos e outro de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (exemplo marcante da guerra fria e da bipolarização entre Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), mas em mo-mento algum se fala em um Pacto Internacional de Direitos de Solidariedade e de Fraternidade. A superação da concepção in-dividualista de direitos humanos em favor da concepção coletiva também no plano documental é traço marcante para que os di-reitos humanos se consolidem substancialmente.

10 José Joaquim Gomes Canotilho, a título de complemento, divide os deveres

funda-mentais em deveres cívico-políticos e deveres de caráter econômico-social (como o dever de defesa da pátria, o dever de voto, o dever de defender a saúde, e o dever de defesa do patrimônio), e deveres constitucionais formais e deveres constitucionais

materiais (como o dever de registro, o dever de colaborar na administração da justiça,

o dever de observar o segredo de justiça, e o dever de fidelidade à República) (Direito

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Afirma-se, neste diapasão, e sem o temor do equívoco, que cerca de noventa por cento das consagrações que foram fei-tas em sede de direitos humanos e de direitos fundamentais até hoje o foram pensando por uma ótica estritamente individualista. Os direitos humanos e os direitos fundamentais, dentre as tantas definições possíveis, poderiam perfeitamente ser adjetivadas como “as ciências das individualidades”, considerando a unici-dade das relações jurídicas: quando o homem postula uma abs-tenção do Estado o faz buscando atender a uma demanda indivi-dual; quando o homem postula uma atuação do Estado igual-mente o faz buscando atender a uma demanda individual. A grande guinada passa a ser, neste sentido, quando a capacidade de abstrair-se em prol de um interesse coletivo torna-se inerente a este mesmo homem. A capacidade de ceder a um direito pes-soal quando ele conflitar com um interesse coletivo melhor é o que marca a existência das pessoas democráticas de direito.

Num segundo prisma, em que pese o respeito por quem assim o faz, não se demonstra, aqui, uma preocupação metodo-lógica em terminologicamente diferenciar a “solidariedade” da “fraternidade”. O que ambas têm em comum é o fato de que implicam a demarcação de um novo contrato social, pautado não apenas em relações obrigacionais, mas também em relações de ajuda recíproca. Exatamente por isso se fala em

“solidarie-dade recíproca” e “respeito a direitos e deveres alheios” em

mesma frase e em mesmo contexto.

E, em terceiro aspecto para finalizar este dever humano, a constatação de que fraternidade e solidariedade independem da atuação estatal. As relações que se desenvolvem nesta terceira parte do tripé jusfundamental de proteção a direitos humanos ocorrem a mercê do Estado (o Estado pode auxiliar por meio de políticas de incentivo, e não se nega que uma política de assis-tência aos desamparados seja bem vinda, mas esta não é uma condição imperiosa para que a solidariedade exista). Este é, in-clusive, forte argumento para demonstrar que a existência de

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uma eficácia horizontal de deveres humanos é plenamente reali-zável (respondendo à indagação provocativa anteriormente feita), e que o homem pode ser uma fonte emanadora de direitos, ao contrário do que séculos de Teoria do Estado sempre disse-ram a respeito de ser o Estado - e apenas ele - a fonte criadora e o homem mero destinatário. Se quer dizer, com isso, que os di-reitos humanos e os didi-reitos fundamentais também têm uma perspectiva privada, na medida em que surgem do homem e to-mam direcionamento em relação ao Estado, ou, principalmente, em relação a outros homens.

4 DEVER DE PROPUGNAR PELA PAZ

Outro dever de obrigatória observância por pessoas

de-mocráticas de direito é o de propugnar pela paz, o qual deve ser

exercido independentemente ou em concomitância com os agen-tes estatais.

Há um vasto arcabouço normativo regulamentando as re-lações beligerantes. Mesmo os mais sangrentos conflitos devem observar determinadas regras, como a de poupar doentes e feri-dos, a atuação da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho em território de batalha, a de respeitar pessoas no território conquis-tado ou de tratar prisioneiros com urbanidade e respeito (neste sentido uma vertente dos direitos humanos, a saber o direito hu-manitário, mais especificamente pela atuação dos direitos de Ge-nebra, de Haia, e de Nova Iorque, contempla disposições espe-cíficas para questões conflituosas11). Igualmente, não são escas-sas as textualizações que visam impedir um conflito, como a ar-bitragem e a mediação, compromissos de cessação de hostilida-des, dentre outros (neste caso, os direitos humanos são assesso-rados pelo direito internacional em seus aspectos protocolares). Quando se elenca um dever de propugnar pela paz, para

11 Também: LAZARI, Rafael de; GARCIA, Bruna Pinotti. Manual de direitos

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mais que as relações acima mencionadas, se quer conferir à busca pelas relações harmoniosas papel fundamental para que conflitos não continuem ocorrendo. Mais do que isso, parte-se do pressuposto que por vezes se mostra necessário o uso da força para fazer cessar hostilidades. Deste modo, tal compromisso im-plica tanto uma conduta negativa, quanto uma conduta positiva. Será negativa quando justamente da colaboração conciliadora depender o impasse para que seja resolvido, e após sua prática, chegar o problema que se apresenta a uma solução; será positiva quando justamente da não abstenção depender a resolução da questão que afronta.

Neste último caso convém reconhecer que a pessoa

de-mocrática de direito dá lugar aos agentes e instituições

conven-cionais de direito internacional. É quando entram em jogo, ilus-trativamente, as alianças militares, que se comprometem a agir para impedir que cristalinas violações aos direitos humanos con-tinuem ocorrendo. Um bom exemplo aqui foi à atuação da Or-ganização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito ocorrido no que até então era a Iugoslávia e as reiteradas viola-ções aos direitos humanos ocorridas na região do Kosovo: rela-tos de genocídios, bem como conflirela-tos étnicos e raciais rapida-mente chegaram ao conhecimento do mundo, levando as autori-dades competentes a um movimento militar que, ainda que tar-diamente, fizesse cessar as hostilidades.

O dever de propugnar pela paz, portanto, não se limita à expectativa de que as relações humanas se tornem melhores. A humanidade sempre precisará lidar com grupos políticos extre-mistas, psicopatas em potencial com armas (ou canetas) nas mãos, movimentos separatistas com base em questões raciais ou religiosas, ou mesmo empresas e pessoas que encontram na guerra sua principal atividade econômica. Para estes, a paz é um entrave que deve a todo custo ser evitado.

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O dever de protagonismo social, por sua vez, comporta uma série de abordagens. Sua amplitude, proposital, reflete algo que se espera para as pessoas democráticas de direito no pro-cesso de consolidação substancial dos direitos humanos (lem-brando, mais uma vez, da inversão do foco de emanação de di-reitos, tendo no ser humano também um emissor e não apenas um receptor).

Por um primeiro aspecto, o dever de protagonismo social muito se aproxima do dever de solidariedade recíproca, quando o homem assume papel de destaque no enfrentamento das ma-zelas que afloram a sociedade contemporânea. Não se está, sob hipótese alguma, fomentando um dever de heroísmo do ser hu-mano, mas um dever de nobreza que norteie seus atos. Por esta ótica, os pequenos e os grandes atos sociais coexistem em um mesmo contexto, de modo que, se aqui se defende que os direitos humanos têm no homem uma fonte de emanação, dar vazão a esta condição nas relações intersubjetivas é um processo conse-quencial natural (da mesma maneira que o Estado, como natural emanador de direitos fundamentais, tem deveres decorrentes desta emanação).

Noutro aspecto, o dever de protagonismo social implica pensar o homem como aquele que assume as rédeas de suas de-cisões fundamentais, não admitindo passivamente algo que cla-ramente afronte sua dignidade ou mesmo seu direito ao pro-gresso social. Muitas vezes a burocracia paralisante estatal age como entrave a que as pessoas consigam exercer direitos míni-mos, como os direitos de propriedade ou de liberdade; outras ve-zes, e isso ocorre em países pouco apegados aos valores demo-cráticos, o jugo opressor determina que se faça ou deixe de fazer algo por conta da vontade de um grupo político dominante. O homem deve, neste caso, invocar seu direito à autodeterminação para o exercício de um dever de protagonismo da própria histó-ria, a fim de que valores inerentes à sua personalidade sejam

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restabelecidos.

É claro que este dever de protagonismo neste aspecto au-todeterminante não pode ser dar a mercê do respeito pelo pró-ximo. Em verdade, o grande objetivo do dever de protagonismo social é evitar a passividade daqueles que lentamente vão sendo tolhidos em seu exercício de direitos e deveres. Quando ocorrem mudanças abruptas em regimes políticos, estas são facilmente perceptíveis pela população em geral, gerando naturais descon-fortos e atribulações de toda ordem. O problema ocorre quando tais mudanças se dão gradativa e silenciosamente,

“acostu-mando” a população a conviver com cada vez menos liberdade

até que, quando perceba, o processo já tenha sido devidamente finalizado e não haja mais forças para organizar movimento re-ativo. Dentro deste dever de protagonismo, portanto, está o de para sempre zelar para que este processo cultural de degradação acima mencionado não ocorra.

Em suma, o dever de protagonismo social contempla a compreensão prioritária da atenção do ser humano pelos assun-tos que lhe digam respeito, notadamente quando está em jogo o direito/dever de se autodeterminar.

6 DEVER DE RESPEITO AO MEIO AMBIENTE

A preocupação ambiental tardou a acontecer no âmbito sistematizado dos direitos humanos. Se instrumentos protetivos setoriais foram observados de maneira esparsa ao longo dos tem-pos, de forma conglobada a questão somente ganhou luzes com a Declaração de Estocolmo, de 1972, e sua preocupação com a noção de desenvolvimento sustentável. A se lamentar, o fato de que esta atenção repentina tenha se dado por motivos drásticos: o mundo entendeu que não poderia manter sua perspectiva de desenvolvimento econômico e crescimento populacional se não revisasse conceitos que até então apontavam para a inesgotabi-lidade do meio ambiente.

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Mesmo com esta nova perspectiva, o mundo ainda se viu dividido entre desenvolvimentistas e preservacionistas, com acusações recíprocas de ambos os lados: os desenvolvimentistas acusavam os preservacionistas de terem esgotado seus recursos naturais no processo de desenvolvimento; os preservacionistas acusavam os desenvolvimentistas de insistir em um modelo des-tinado ao fracasso das perspectivas de recuperação ambiental.

De todo modo, desde então o que se tem é uma escalada na consciência coletiva de que as questões ambientais merecem atenção prioritária tanto para o progresso social, como para o progresso econômico. Documentos e eventos ajudam a formar essa concepção, como o “Relatório Brundtland” (“Relatório

Nosso Futuro Comum”) de 1987, a Rio/92, a Rio+10, a Rio+20,

e o Protocolo de Kyoto. Junto com a farta documentação prote-tiva, vieram conceitos complementares ao de desenvolvimento sustentável, como a ideia de resiliência ambiental, a proteção

intergeracional, o meio ambiente como bem de uso comum do povo, a compensação por danos ambientais, ou mesmo a natu-reza como sujeito de direitos.

Torna-se impossível, dentro deste contexto, pensar o fenômeno da consolidação substancial dos direitos humanos de forma cindida de um dever de respeito ao meio ambiente. Tal dever representa, afinal de contas, a obrigação de cuidar da pró-pria casa, do próprio habitat, dos elementos que tornam possível a vida, como a água, a fauna e a flora, e o oxigênio. Essa é, in-clusive, a essência constante da Carta Encíclica Laudato Si’ do

Papa Francisco sobre o Cuidado da Casa Comum (2015), na

qual se pergunta em um primeiro momento sobre o que está acontecendo com a “nossa casa” (no que diz respeito à poluição, mudanças climáticas, perda da biodiversidade, desigualdade pla-netária, deterioração da qualidade de vida, degradação ambien-tal, acesso à água, dentre outros); ato contínuo são traçadas al-gumas linhas de orientação e ação (diálogos sobre o meio ambi-ente nas políticas internacionais, nacionais e locais,

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transparência nos processos decisórios, religião dialogando com a ciência etc.); por fim, fala-se na necessidade de uma conversão ecológica, no sentido de que se os desertos exteriores se multi-plicam no mundo porque os desertos interiores se tornaram tão amplos, a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior.

De coadjuvante a protagonista, atualmente o meio ambi-ente representa boa parte das preocupações em sede de direitos humanos. Isso remonta, inclusive, a um conceito interdisciplinar

de direitos humanos, afinal, a mesma disciplina responsável pelo

fomento a Cortes internacionais que fiscalizam e punem Estados e pessoas é também responsável pelos avanços tecnológicos que permitem surgir comida em terreno geográfica e climaticamente hostil.

De se lembrar, ainda, que não apenas ao Estado compete a preservação do meio ambiente. Se aos entes estatais diversos incumbe a obrigação de zelar pela regulamentação da ocupação das reservas ambientais, minerais e animais, ao ser humano com-pete a observância de políticas de preservação em seu âmbito de abrangência.

Por fim, se a dificuldade de individualização dos direitos relacionados ao meio ambiente implica uma percepção ambien-tal ainda carente, sua generalidade contempla a proteção dos di-reitos humanos em um esquema que foge aos binômios de meio e fim ou causa e consequência. Ilustrativamente, aquele que pro-move o desmatamento ou o assoreamento do leito de um curso da água está danificando, para muito além do ecossistema em si, a vida de um sem-número de pessoas que usufruiriam as benes-ses desse leito caso ele seguisse seu curso normal até a foz. Isso serve, portanto, para demonstrar que uma percepção dos deveres humanos independe da capacidade de se saber quem são,

espe-cificamente, aqueles que usufruirão desta relação de deveres.

Eis um processo sistêmico, a ser praticado com a consciência de que os destinatários dos direitos e deveres podem ou não ter uma

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identidade conhecida, mas ainda assim são destinatários. 7 DEVER DE CONTRIBUIÇÃO COM OS GASTOS E POLÍ-TICAS ESTATAIS

A análise do custo dos direitos tornou-se imprescindível em Estados que têm na questão orçamentária seu grande entrave ao processo de implementação dos direitos humanos internaliza-dos na forma de direitos fundamentais. Se é certo que saúde, educação, moradia, transporte, lazer, saneamento básico, segu-rança pública (típicos direitos econômicos, sociais e culturais), ou mesmo a organização e realização de eleições, com a manu-tenção de aparato estrutural eleitoral permanente (típicos direi-tos civis e políticos), são preceidirei-tos de observância obrigatória para qualquer democracia que se preze inclusiva, as contas a pa-gar representam empecilho à compreensão da plena operaciona-lidade de tudo aquilo que se espera dos agentes estatais.

Neste processo, alegações como a reserva do possível ou o mínimo existencial (mínimo vital) são inevitáveis: em um pri-meiro caso, se defende condicionantes financeiras que dosarão o processo de implementação (a curto, médio e longo prazos) dos direitos; já quanto ao mínimo, a alegação de proteção a um núcleo intransponível de direitos se impõe como salvaguarda úl-tima daquele que se viu com uma carga majorada de direitos as-segurados em teoria e terá de se contentar com um volume mi-nimizado de direitos na prática.

Um dever que ajuda a compreender uma teoria de deve-res humanos como passo inerente à compreensão de pessoas

de-mocráticas de direito, neste diapasão, é o de contribuição com

gastos e políticas estatais. Na verdade, quando se adota um mo-delo intermediário (que fica entre o abstencionismo do Estado liberal e os excessos do Estado social), típico do Estado demo-crático de direito, os órgãos estatais assumem papel gerenciador e implementador das políticas públicas sem “aventuras

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orçamentárias”. Qualquer que seja o raciocínio formulado, para que a matemática desempenhe sua função de fornecer resultados satisfatórios sem manipulação de dados, inerente é o fato de que as despesas estatais dependem de receitas (a fórmula é - ou de-veria ser -, em tese, simples: o Estado só pode gastar no limite do que arrecada). Tais receitas podem decorrer do Estado pres-tando um serviço público ou explorando uma atividade econô-mica, ou, como mais comumente ocorre em modelos econômi-cos pautados pela responsabilidade orçamentária, decorrem de contraprestação das pessoas que recebem (ou deveriam receber) direitos com qualidade e eficiência.

Deste modo, o dever de contribuição com os gastos e po-líticas estatais representa o financiamento coletivo dos custos inerentes à vida em uma sociedade repleta de carências. Ao Es-tado competirá captar estes recursos e distribuí-los na educação, na saúde, na previdência e na assistência social, na segurança pública, dentre outros. Este dever contributivo, portanto, ante-cede ao direito de usufruir de parcela das políticas públicas es-tatais: paga-se em parte pelo benefício próprio (ainda que pelo simples fato de tê-lo à disposição sem dele utilizar-se com fre-quência, como é o caso do sistema de saúde), e em parte pelo benefício alheio (notadamente quando se fala da assistência para pessoas que não têm condições de prover a própria subsistência). Em um e outro caso, há em comum o fato de que, quanto mais são previstos direitos em documentos internacionais de direitos humanos e Constituições, maiores serão os gastos para seu for-necimento. Eis a mesma lógica que funciona com um seguro au-tomotivo ou com um plano de saúde, caso se opte por exemplos vindos da iniciativa privada: quanto maior a cobertura de prote-ção, maior será a parcela assumida pelo contratante. Não poderia ser diferente com o âmbito público, com a singela distinção de que, neste, o Estado assume também papel de gerenciador para assegurar que os benefícios sejam gozados em proveito próprio ou alheio.

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É claro que discussões quanto à eficiência deste papel gerencial do Estado são possíveis. A falta de maior controle da destinação de recursos, índices alarmantes de corrupção, neces-sidades ilimitadas das pessoas que se contrapõem aos recursos limitados, defesas pela diminuição da hipertrofia estatal, dentre outros argumentos, são alegações decorrentes deste processo e não podem ser, simplesmente, desconsideradas. De toda forma, não se pode abrir mão da contribuição das pessoas democráticas

de direito para auxiliar a diminuir esta defasagem entre o que

está previsto em documentos oficiais e o que é, efetivamente, vivido no cotidiano prático.

CONCLUSÃO

Ante a análise dos deveres humanos em espécie que ora se faz não se está a afirmar, vale pontuar, que o Estado se deso-briga das questões que lhe são inerentes. O Estado continua

res-ponsável pelo todo. O que se defende é que a noção de

solidari-edade entre estranhos também ganhe um “status” de dever, como medida apta a fomentar uma consciência humanitária co-letiva.

Pensar deveres humanos, pelo prisma da consolidação substancial como aporte à formação de pessoas democráticas de

direito, não é defender que Estados e organismos internacionais

passem a redigir, de modo imediato, documentos internacionais de deveres humanos. Tão menos implica um novo “fardo a car-regar” pelo já tão atribulado e sobrecarregado homem contem-porâneo. Os deveres humanos decorrem da própria assunção,

pelo indivíduo, de responsabilidades para com o Estado, e, so-bretudo, para com outros indivíduos.

Aqui, pretendeu-se trazer alguns deveres humanos espe-cíficos, como o dever de solidariedade recíproca e de respeito aos direitos e deveres alheios, o dever de propugnar pela paz, o dever de protagonismo social, o dever de respeito ao meio

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ambiente, e o dever de contribuição com os gastos e políticas estatais, como forma de propor um entrelaçamento de deveres estatais e relações individuais, para um mundo mais gentil e ob-servador das diretrizes traçadas pelos direitos humanos.



REFERÊNCIAS

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um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006.

Referências

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