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Fabio dos Santos Morais

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Academic year: 2019

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FLORIANÓPOLISSC 2013

Fabio dos Santos Morais

SITE

SPECIFIC

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DISSERTAÇÃODEMESTRADOELABORADAJUNTO AOPROGRAMADEPÓSGRADUAÇÃO EM ARTESVISUAIS - MESTRADO, CEART/UDESC,

PARAOBTENÇÃODOTÍTULO DEMESTRE EMARTESVISUAIS.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. REGINA MELIM

Fabio dos Santos Morais

FLORIANÓPOLISSC 2013

SITE

SPECIFIC

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FLORIANÓPOLIS, 30 DE JULHO DE 2013. ORIENTADORA: PROFA. DRA. REGINA MELIM

PROFA. DRA. MARIAANGÉLICAMELENDI

PROFA. DRA. RAQUELSTOLF CEART/UDESC

EBA/UFMG

CEART/UDESC

DISSERTAÇÃODEMESTRADOELABORADAJUNTO AOPROGRAMADEPÓS GRADUAÇÃO EM ARTESVISUAIS - MESTRADO, CEART/UDESC,

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RESUMO

O objetivo desta pesquisa de mestrado foi cercar de possíveis definições o termo “literartura” - um termo que, mais que querer cunhar, percebo na leitura de vários textos citados na pesquisa - e, a partir dele, produzir a obra literartística 6LWH6SHFLíFXP 5RPDQFH. Para isso, foram pesquisadas obras que creio serem exemplos de literartura e, através desses exemplos, penso ter se insinuado uma definição. Estas obras formam um diálogo entrecruzado no próprio tecido textual de 6LWH6SHFLíFXP5RPDQFH, texto que funde obra prática e dissertação de mestrado num só corpo.

Sempre desconfiando de que definir seja estranho a qualquer prática no campo da arte, sobretudo para um artista, esta vontade de definir o termo “literartura” me foi satisfeita ao produzir um texto onde pude experimentá-la: é minha crença de que cada obra (re) define em si o(s) gênero(s) a que pertence.

Assim, 6LWH6SHFLíFXP5RPDQFH é minha experimentação e meu único modo possível de expressar o que penso, e sinto, ser literartura.

PALAVRAS CHAVES

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ABSTRACT

The goal of this research has been to encircle the term “literarture” with a number of possible definitions. The idea was less to coin a new term than to apply in writing what I perceived to surface already in various texts cited in this research in order to produce the literartistic piece Site Specific, a Romance. Its production consisted of delving into pieces I believe to be examples of literarture, and from the cross-referential dialogue established between them within the textual tissue of Site Specific, a Romance, I trust to have insinuated a definition to the term. Site Specific, a Romance is a text that fuses art praxis and academic dissertation in one single body.

Always suspicious that the act of defining is foreign to any practice in the field of art – especially to an artist – the will of defining “literarture” was nevertheless satisfied in producing a text where I could experiment with it: it is my belief that every work of art (re) defines in itself the genre(s) to which it belongs.

As such, Site Specific, a Romance is my experimentation and the only possible means I have to express what I think to be, or feel to be, literarture.

KEYWORDS

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SITE

SPECIFIC

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SUICIDE A b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z

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Z Y X W V U T S R Q P O N M L K I H G F E D C B A

Z A (elementar)

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ESPAÇOEXPOSITIVO, 17 PLANTABAIXA, 19 READY-MADE, 21 VÍDEO, 23

NON-SITE, 25 SITE SPECIFIC, 29 HACHURA, 35 INSTALAÇÃO, 43 VELATURA, 46

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a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z

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Ceci n’est pas une littérature.

“This work originated from my fear of losing¹ everything. This work is about controlling my own fear. My work cannot be destroyed. I have destroyed it already, from day one. The feeling is almost like when you are in a relationship with someone and you know it’s not going to work out. From the very beginning you know that you don’t really have to worry about it not working out because you simply know that it won’t. The person then cannot abandon you, because he has already abandoned you from day one - that is how I made this work. That is why I made this work. This work cannot disappear. This work cannot be destroyed the same way other things in my life have disappeared and have left me. I destroyed it myself instead. I had control over it and this is what has empowered me. But it is a very masochistic kind of power. I destroy the work before I make it”, por Feliz Gonzalez-Torres. SPECTOR, Nancy.)HOL[*RQ]DOH]7RUUHV. New York: Guggenheim Museum Publications, 2007, p. 122.

¹BISHOP, Elizabeth. New York: Farrar, Straus & Giroux, Inc, 1983.

1 2

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Em meio á fuga de côres, familiares rejuvenescidos permanecem fixados nas photographias dos annos 1970. Por traz da criança mais velha, o pai de costelletas accende a vela de tres annos. Sua mão está parada no ar emquanto o tom de sua pelle desbota rumo á monochromia magenta. A criança mais nova não está nestas photographias porque o encontro das duas é sómente d’aqui a tres decadas. Além d’isso, o outro garoto nasce seis mezes depois do anniversariante começar a se descolorir n’estas imagens reveladas tres dias apos a festa. Os dois garotos se conhecem na epocha em que as photographias já não são physicas, são códigos: envelhecem por effeitos de photoshop que, artificialmente, antecipam a mesma melancholia magenta dos thios bêbedos que, presos á descoloração analogica, desligam a vitrola laranja e puxam um parabem p’ra você, no anniversario do mais velho. Os dois garotos se conhecem, sessenta annos se passam, e são muitas as imagens dos dois que restam intactas em cantos da internet, HDs, CDs, DVDs, pen drives ou nos depositos onde esse lixo jaz superado. O mais velho está ha dias entubado pela medicina. O mais joven, embora bastante idoso, vai até a distante casa do mais velho para vasculhar albuns antigos, escolhe uma photographia setentista e a leva clandestinamente á UTI. D’esse modo, o môfo vence o codigo e o mais velho consegue morrer.

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iogurte de ameixa queijo minas requeijão light rizzoli quatro queijos gorgonzola

camembert ou brie (+ barato) pão integral de castanha do Pará pão sueco

biscoito de polvilho torrada integral light cookie de granola granola

belisquete pra larica café chocolate amargo papaia pera ameixa morango laranja-pera limão lichia melão (meio) tomate cereja berinjela abobrinha mandioquinha beterraba cenoura abóbora pepino brócolis couve alface rúcula cebola alho alho poró

pimenta (com moedor) coentro (com moedor) noz moscada (com moedor) manjericão

azeite de oliva

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tahine champignon shoyo sal mostarda lentilha

arroz sete grãos arroz cateto farinha pra tabule grão de bico suco de manga água com gás breja

Encuentro (ou espumante) protetor (gel 15 e creme 30) sabonete

xampu (1 cabelo seco e 1 cabelo normal) pasta

barbeador (pacote com 4)

espuma de barbear (1 Nivea e 1 Gillette) cotonete papel higiênico desodorante detergente glicerina amaciante omo desinfetante pilha AAA fósforo vela

candelabro (????) – se o design for bacana sulfite A4

bic preta e azul cadeira de praia

mala pequena com rodinha lâmpada 40w

lâmpada fria chuveiro (ver preço) repelente

detefon

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SITESPECIFIC

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Ouço Fuga N. 1 do Thiago Pethit e você me chega a essa hora, tenta a chave errada no trinco, ruído de tentativa e erro, teu chaveiro de acrílico no metal do trinco, aclílico, tlinco, aliterando chegada a essa hora?, pô, pra que ligar antes, né?, nem telefona, SMS o escambau, bate a porta, entra, lança no sofá O Paraíso É Bem Bacana que eu te pedi de volta, joga e sobe e voa e erra e cai no chão e rasga a capa que já tá chovida, pô, pra que rasgar capa de livro?, pensa que é cena?, a essa hora de 2012 ainda fingindo cinema?, só porque o iTunes DJ pesca a Anna Karina, Jamais je ne t’ai dit que je t’aimerais toujours, oh mon amour é um perigo, esse violãozinho safado de acampamento a essa hora da noite, madrugad’é emoção fácil e escapismo e lama e PT e a areia do teu All Star arranhando meu chão alugado, você me chega a essa hora, assim, arranhado, pô, me pede pizza e LP, pede pr’eu desligar meu iTunes pra tocar o Macalé, a essa hora?, a sala arranhada e tudo riscado e cê sabe que a vitrola laranja tá com a rotação acelerada um nadinha, cê sabe, pô, por isso a Gal fica com a voz ainda mais fina, cê me chega a essa hora e olha foto por foto do cabelo da Gal na capa do Legal, pô, me presenteia teu perfil distraído analítico e dubla baixo Meu amor me agarra e geme e treme e chora e mata e aponta abraço gay no cabelo da Gal na capa do Legal e erra a letra do Macalé, você me chega assim, a essa hora, lota o ar da casa contigo mesmo, liga a luminária, lança a luz pro alto sem dizer lhufas, dubla o Macalé cada vez mais baixo até virar só teu pensamento, pô, tá pensando o quê?, esqueceu qu’eu tô aqui?, hein?, a essa hora?, dublando pra dentro?, diz algo, pô, pel’amor, quem chega diz, combinado?, chegada é palavra, palavra é vício ocidental, todo mundo que se encontra só se encontra pra falar, pô, percebeu não?, te obrigo, pô, te peço, te digo, vai, diz algo, porra, silêncio a essa hora?, teu budismo o escambau que você é ocidental pra caralho, Nirvana se matou e passou o pinto na tela da Globo e engasgou o Roberto Marinho, lembra?, a gente era adolescente e vibrou e quis fazer também e pôs o vestido do Kurt e leu uma porrada de livros e depois envelheceu, fala, já que veio pronuncie, ok?, quem mandou?, pô, para de dublar o Macalé pra dentro, canta pra gente, porra, você me chega assim a essa hora, fala pouco e diz nada e quer pizza e mata num só gole meu malbec no gargalo, pô, pede pr’eu telefonar pr’algum disque-qualquer-porra e me pergunta se tem mais vinho, tem, sempre tem, cê sabe que tem, Encuentro argentino, tá em cima da geladeira, vai lá, saca-rolha?, tá’li, pô, pega você, é, o saca-rolha verde e enfia e machuca e esfarela e saca e serve o vinho e brinda teu copo americano no meu de requeijão, você me chega a essa hora, pô, me pede um pedido pra brindar, pô, pedido?, pedir?, olho no olho?, tem que pedir?, desejo?, utopia, a essa hora?, diz utopia, dis’utopia, distopia?, me chega a essa hora, porra, com joguinho de palavra, pô?, punhetagem de linguagem?, punheta língua?, a terceira sílaba do gole?, ’sa’ora?, só porque linguagem é religião que também dubla errado pra dentro e salva e mente e finge e explica e morde e hipnotiza e encoxa o próprio rabo, porra?, e a gente brinda e engole e pisca e risca o LP da sala, porra, tudo arranhado, tudo esfarelado, cê me

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pel, e no entanto. –Bisbis bisbis – dizia Feuille Morte. desenham uma andorinha. assim, – destruição dos cisnes. –Esperá que termine el pitillo. banco, olhando para o rio com seus olhos tristes. nável aquiescência. do pátio. venientes dessas opções. tudo, que não se fale mais nisso. ou na agressão macia dos teus seios. und zu leben in der Fülle der Zeiten. refrão… mundo, firmando-o em meio à própria natureza. l’assaut de son dieu? interessante… viu uma velhinha chorar. hand uphold and strengthen you in that. das Jahr, das bevorsteht, Sie darin erhalten und bestärken. confermarla in questo. ella. à venir vous y garder et vous y fortifier. inutilement les forces millénaires! Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais! Vil, no sentido mesquinho e infame da vileza. O verso ritmado e rimado é bastardo e ilegítimo.” O amigo enorme que a falar amamos. ninguém pode mais do que deus! que não tem mais fim… ter plena fruição. noite fui feliz. Algures estarei à tua espera. palpitante de alegrias! do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. meu reino a ser conquistado, futuro… a todas as coisas? irredutibilidade.” de sair tiro a luva, deixo aqui no espaldar desta cadeira. deste C.T.I. infame onde sou obrigada a viver. triste, escrevam-me depressa que ele voltou… Amsterdam, July, 1980 surge dos sombrios montes. dia? De hoje? –A transposição de todos os valores!… rer e cresceu meu saber. mem prefere a vontade do nada ao nada da vontade. Tem mais não. Copacabana, 15-4-1946 tropicais. Nunca mais a vejo. Perdeu-se na cidade. –No mundo do sofrimento. 31-5-929 Tenho dito. paz. ziam muito escuro. –A boiada vai sair. Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida. sobre Bouville. Paris, 14 de janeiro de 18**. Das mortes da minha vida. o rosto de meu pai. e rodei de volta a Los Angeles. de neve em forma de estrela… morrido, todas elas, para todo o sempre, perdedoras. lágrimas sólidas do Supermacho. mau eu sabê-lo. Um beijo de língua. Até mais. Cartel: fin de un principio. a janela, há alguns dias aprendi a voar. Sim. E dizem, vão dizer, estão dizendo, já disseram. Rio de Janeiro (Santa Teresa), 1983 Não, isto também não é verdade. dizer hoje, agora, aqui, assim, é isso. Saint-Cloud, mars 1929. Notas de 1929 e de 1930, Roquebrune. poético, uma ideia de algum eu maravilhosamente superior a Mim. Sem título, XXIX, 838.) melancolia. abril-agosto, 1873. Nas horas em que ansiar a morte. e o do sol. Toute Pensée émet un Coup de Dés. veja, sorri. le. Lua nova. Casa do Sol, 1985/1986 uma terra escura, às vezes madrepérola. (domingo, 9 de julho de1995) Guano sobre a tua cara. –Ai de ti, de sonhos exaltados. Casa do Sol, 12/12/1981 a 5/11/1982 Quando não sou líquida. sou e sem reservas, minha solidão conhece a sua.” Agora vá para a cama. Depressa. Depressa e devagar. a sentir saudade de todo mundo. tivesse reverberando entre quatro paredes de ladrilho. manteve imóvel, sorrindo para o teto. Trieste, 1914. 1948 19 de maio de 1960 14-16 de novembro de 1971 gnes de chiens… Ambos o mesmo pedaço azul de uma ideia? gica.” dem andar sozinhos, e para nós há apenas um lugar. teimoso ausente. As ondas quebram na praia. 11 de outubro de Mil Novecentos e Vinte e Oito. de volta aquele enorme feto. tória, na exaltada redenção do esquecimento. nuou inalterado. jovem. Era como se

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O baque do trem de pouso derruba minha Bic. Procuro-a sob a poltrona. Hoje é difícil achar uma. Desço as escadas e na pista sigo o fluxo de passageiros. O aeroporto parece uma rodoviária, lugar onde ônibus paravam. Lembro de ter viajado em alguns na infância. Recupero a bagagem. Procuro um táxi, entrego o endereço ao motorista e pegamos a autopista na saída do aeroporto. Comento qualquer coisa. O taxista responde que não é típico e à noite esfria. Chegamos. É um prédio baixo, sem porteiro. Bato na porta? Falta-me decisão, vim de impulso. Só agora me dou conta de que já estou aqui. Leio o nome dos moradores ao lado de cada campainha. Sem pensar, toco.

−Senhor Fabio? Sou eu.

−Já desço.

Fabio pode destravar a porta automática. Mas prefere vir me receber aqui embaixo. A velhice tem cerimônias. A porta se abre.

−Podemos começar?

Olho o relógio sobre os azulejos amarelos.

−Respondo aqui da cozinha, a água ainda não ferveu.

−Lembro-me do senhor. Da minha infância.

−Poderia me chamar de você?

−Claro. Desculpe. Silêncio.

−Você foi amigo dos meus pais.

Arrependo-me por começar deste modo.

−Você gostava de mim. Fui percebendo isso quando me dei conta de que brincava com minha barba. Aí, cedi, pois eu nunca fui fascinado por crianças.

Fabio se vira de frente para mim. Desvio o olhar do relógio para mirá-lo. Não há dúvida. Sua figura é parte da minha infância.

−Você falou dos seus pais. Estão bem? Silêncio.

−Morreram. Faz tempo.

−Alguém me disse.

Fabio equilibra as xícaras. Aproxima-se e tapa, com o rosto, o relógio sobre os azulejos.

−Você veio falar sobre uma obra minha, não é?

−Sim. Site Specific, um Romance.

−Tem um exemplar?

Fabio me encara. Pela primeira vez, com atenção.

−Não. Minha mãe tinha um, com uma dedicatória sua: pour l’île. Nunca entendi.

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−Não vou explicar. Silêncio.

−Quando ela morreu, vendi sua biblioteca. Para pesquisar seu livro, uso o exemplar que há na universidade. O do seu mestrado.

Não sei de que forma começar. Fabio concordou que eu o entrevistasse. Estou aqui, mas sem nada preparado. Precipitei minha vinda.

−O que lhe interessa nesse meu livro? Fabio dá o primeiro gole. Imito-o.

−Nossa conversa pode se tornar difícil porque eu nunca mais li esse meu livro. Faz décadas que escrevi, já não me lembro. Quer me contar algo sobre o que escrevi? De que fala a estória?

−Você não relê o que escreve?

−Não.

−Por quê? Silêncio.

Fabio volta a xícara no pires e quase a derruba. Imito-o, com equilíbrio.

−Palavras só correspondem ao pensamento que tive na hora de escrevê-las. Depois, elas passam a mentir sob minha autoria. Textos deveriam ter apenas uma edição, para que se deteriorassem com o papel. Ainda se escreve em papel? (Silêncio) Não importa. Mas não compreendo o que alguém da sua idade quer com um velho.

−Não estou aqui por sua velhice.

−Está sim. Se veio conversar sobre algo que escrevi há décadas é porque quer falar com a minha velhice. Só posso dialogar através dela.

−Ainda escreve?

−Não.

−Produz algum trabalho de arte?

−Não.

−Considera-se artista?

−Aposentado.

Não evito o riso. Fabio me devolve um ar cúmplice, mais jovem que seu rosto.

−Queria lhe perguntar muitas coisas. Mas acho que não vim preparado.

Passo dias debruçado sobre Site Specific, um Romance. A universidade não me empresta seu exemplar. Faço anotações na biblioteca e em casa reviro meus arquivos sobre as obras de Fabio. No aeroporto, ele me recebe no desembarque.

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−Vamos a pé para casa. Andar alegra-me.

−Meus pais comentavam que você era um andarilho.

Saímos do saguão e chegamos à via que leva à autopista. É estranho caminhar pela beira da estrada. Elevo o tom de voz.

−Site Specific, um Romance foi seu projeto de pós-graduação. O que o levou ao mestrado? Silêncio.

−Meus amigos começaram a ter filhos e aos poucos me excluí de seus assuntos. Eu não entendia de cocô mole. Fui em busca de assuntos.

Fabio tem um mau humor que, nele, soa autoral. Percebo isso desde nossa primeira conversa.

−Também resolvi tornar-me professor.

−Precisava de mestrado para dar aula?

−Para o ensino superior, sim. Não tinha vontade de ensinar Educação Artística.

−Educação Artística... o que era isso? Algo a ver com 7KH(GXFDWLRQRIWKH8Q$UWLVW"

Fabio espera a ultrapassagem de uma carreta.

−Nada a ver com Kaprow. Educação Artística era o termo que se usava para nomear a disciplina dada em escolas. Educação não pode conviver com arte, em um mesmo termo. Essa arbitrariedade já demonstrava o que vinha a ser Educação Artística, um ensino de técnicas de artesanato.

−Era a formação básica das escolas, em matéria de arte?

−Sim.

−Não lhe interessava contribuir para essa formação?

−Não sabia lidar com a ideia de disciplina. Mal ouço sua resposta abafada pelo tráfego.

−O ensino básico não seria mais ideológico, desafiador?

−Seria, se essa preocupação fosse real para mim. Não era. Preferi seguir o que em mim era natural. Também nunca gostei de adolescentes e muito menos de crianças. Você foi uma exceção.

Fabio vira-se para mim com um sorriso. Um ônibus passa às suas costas.

−Você queria dar aula para iniciados ou em início, era isso?

−Sim.

−Por quê? Silêncio.

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o que era ensinar. Eu preferia pensar no desensinar, deformar, desaprender. Só assim minha prática como professor poderia ser uma extensão natural da minha prática artística. (Silêncio) Site Specific, um Romance partiu do meu desaprender pessoal. Eu sabia escrever, mas queria desaprender o modo como escrevia.

Silêncio.

−Acho que isso está evidente em seu romance. Cada capítulo tem uma escrita construída de forma distinta.

−Sim, me lembro, esse era o desafio. Nenhum dos capítulos de Site Specific, um Romance tinha o meu jeito pessoal de escrever, a minha voz. Até hoje interesso-me por quem sabe um jeito de fazer algo e resolve deixar de saber.

−O outrismo?

Fabio demora a responder. Espera uma ultrapassagem barulhenta.

−Sim, Filliou, o gênio sem talento.

−Você queria lidar com quem se formava em arte para agir na formação, e digo de-formação com hífen separando o prefixo. Era isso? Por isso o leigo definitivamente não lhe interessava?

−A arte que foi vital para mim estava na região que Kaprow chamou de XQDUW, onde se começa a imaginar as coisas pelo que elas, sem o ponto de vista da arte, não mostram tão claramente ou, simplesmente, não são. Não importa o monocromo de Malevich, importa a relação que se terá com todos os brancos a partir dele. Isso passa a ser uma ética.

−Que prescinde da estética, ou seja, umaXQDUW que não precisa se tornar DUW?

−Pode ser. A DUW é o exercício primário para a XQDUW. Silêncio.

Há um carro no acostamento.

−Como professor, eu não queria explicar para ninguém como Malevich chegou ao branco. Queria já partir de Malevich e estudar os brancos de todas as superfícies. Por isso eu não sabia o que dizer ao leigo, estávamos em regiões diferentes.

−E o público leigo?

Separamo-nos para desviar do carro parado no acostamento.

−Não sei, nunca o conheci.

−E o público?

−Nunca pensei no público, admito. Não posso ser demagógico com você. Silêncio.

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intertextualidade não dificultava o acesso desse público ao texto.

−Toda minha atividade artística foi uma escrita intertextual. A apropriação e a citação estão em quase tudo o que fiz.

−Por quê? Era estratégico?

−Não. Era apenas uma homenagem. Eu precisava homenagear os artistas, pois nunca estive à altura deles.

Silêncio.

−Modéstia?

Penso em cinismo. Em frase de efeito. Fabio sabe que transcrevo tudo o que falamos.

−Não. A apropriação para mim sempre teve um aspecto de homenagem. Para que o homenageado me socorresse, me desse a mão, me puxasse para a festa.

Silêncio.

−Pode-se dizer que a apropriação era uma moda, na época?

−Não sei se era questão de moda. Talvez eu tenha atuado como artista no momento em que a arte chegou à idade adulta. Quando foi que a arte nasceu, no sentido em que a compreendemos? No Renascimento? No Iluminismo? Seja em que época foi, ela não tem mais que cinco séculos nos quais a arte usou o mundo como tema, a religião, a natureza, a história, o indivíduo, o subjetivo. No final do século XX, talvez a arte tenha se autopercebido como um universo constituído, tão complexo quanto a religião, a natureza, a história, o indivíduo e o subjetivo, e passou a se usar como tema, a se discutir e se autorreferenciar. Fui da turma da apropriação e da citação. A arte foi meu eu-lírico. Quero gravar nosso diálogo. Mas o barulho do tráfego impede. Da próxima vez, não aceito vir a pé. Não sei se consigo transcrever de memória tudo o que conversamos.

−Mas se o público não conhece a história da arte, não sabe de onde vem a citação, ele não tem acesso à obra. É sobre isso que lhe pergunto.

−Não sei. Como lhe disse, nunca pensei no público. Não fui um autor de novelas. A opinião pública nunca me interessou. Para isso, inventaram a eleição e o plebiscito, que de forma simplista aceitam que a maioria matemática vença. Não fui o tipo de artista que procurava um embate com o público. Sempre fugi, como o capeta da cruz, de artistas catequizadores. Eles funcionavam fetichizando o outro e, no Brasil, geralmente esse outro era da classe C, D ou E, mais fácil de ser persuadido por essa pregação artístico-intelectual. Se eu não quero um evangélico batendo na minha porta e fazendo exorcismos no meu quintal, e nem o McDonalds invadindo minha cozinha para me ensinar os melhores pratos, também não quero artistas-intelectuais entrando em minha casa para fazerem ação situacionista na minha sala. Como artista, eu nunca quis ser dono de um

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esse que avalizou certo tipo de arte brasileira como genial. Eu estava fora disso. Preferia os artistas tímidos, introspectivos, silenciosos, que discretamente duvidavam disso tudo. Para mim, quem realmente duvida não faz alarde, o alarde é uma afirmação, já não é uma dúvida. (Silêncio) Fui artista, não um crente. Detesto quem acredita na arte na mesma medida em que o crente no evangelho, ou o marido gordo no futebol. Detesto crentes.

Fabio é mal-humorado e verborrágico. Um pouco mais do que eu esperava. Deve ser a idade e o isolamento.

−Prefiro as coisas discretas que existem sem alarde. Quem quer contato com elas, vai lá e o estabelece. O artista tem de ir aonde o povo está me causa bocejos. (Silêncio) Não, não pensava no público. Minha relação era com a linguagem e o modo como ela tangenciava as coisas para se transformar em coisa.

Silêncio.

−Esse não pensar no público não seria egocentrismo?

−Como lhe disse, segui o que em mim era natural. Isso foi mais que um lema.

−Não pensar em um público não seria também solitário demais?

−A linguagem é maior que qualquer população.

Fabio fala em um tom professoral. Cheio de verbos de ligação. Artistas velhos são um pouco decepcionantes. Ele está meio passo à minha frente e para. Olha para a estrada. Aguarda alguns veículos passarem.

−Cansei-me. Vamos pegar um táxi.

Embarcamos e permanecemos calados. Fabio está virado para a janela. Ele é tão mal-humorado quanto frágil.

−Quando caminhávamos, você disse que não considerava o público. Enquanto criava, nunca pensou no que fazia como um diálogo entre você e um público?

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−Mas, quando você criava...

−Não gosto do verbo criar. É um verbo que pertence apenas à Bíblia, um livro que não li. O taxista olha-nos pelo retrovisor.

−Quando era artista, você não criava?

−Não.

−Fazia o quê? Silêncio.

−Experiências. Como o cientista que mistura substâncias e elas explodem. Eu procurava a explosão, mínima faísca que fosse. (Silêncio) Eu misturava coisas reagentes entre si. A última frase de Fabio resgata-me de uma distração. Sei que a ideia de reagente é de Flávio de Carvalho. Ele escreve que sua ([SHULÃQFLDQò foi um reagente sobre a população. Fabio não desconfia que conheço quase todas as suas fontes. Eu o estudo para vir aqui.

−E o público não tinha nenhum papel em suas experiências?

−Tentar linchar-me.

Compartilhamos uma de nossas primeiras risadas.

−Artistas não pensam no público?

−Não sei. Só posso falar por mim, o termo “artistas” é amplo demais. Para mim, o público não existia. Meu campo não era o social, mas o da linguagem que, em última instância, possibilita o social.

Silêncio.

−Desculpe, mas confesso que não entendo.

−Os cientistas dizem que procuram a cura de doenças para melhorar a vida humana. Mentira. Pesquisam a cura pelo desafio da pesquisa. Só acredito na potência atlética dos gestos pelos gestos. O outro não é tão desafiador a ponto de estabelecer a pesquisa. Seria uma filantropia barata. O desafio é atingir a substância, o reagente, a linguagem. Quem fará uso social, não importa.

−Insisto que não compreendo.

(55)

construindo mutuamente.

Pela primeira vez, Fabio parece empolgado em falar.

−Quando escrevi Site Specific, um Romance, eu não queria distrair o leitor que toma sol na piscina. Eu queria atingir o que me propus no campo da linguagem, que era escrever um texto que fosse arte visual. Só isso. Se Site Specific, um Romance teve público, faz parte do jogo, o sonho é coletivo. Mas, escrevi para que tivesse leitura, não leitores. A ideia de leitor e público é do campo do diálogo, do cantor que pede que a plateia cante junto, do entretenimento de consumo, é uma ideia epidérmica. Em minha relação com meu trabalho, sempre fui mais visceral que isso. (Silêncio) A ([SHULÃQFLDQò do Flávio, por exemplo, não teve público. Teve o reagente-Flávio sobre a substância-procissão. A procissão não era um público, era parte da experiência. É essa a relação que acho perfeita. Não há artista e nem público. Há as substâncias, os encontros e as explosões. A explosão é o ápice do sonho coletivo.

Sinto-me um YR\HXU que assiste Fabio conversar consigo mesmo. Às vezes, o taxista me encara pelo retrovisor.

−Público é a multidão que ascende o isqueiro e canta o refrão. É a lógica do espetáculo. Ainda existem espetáculos hoje em dia? Sabe-se lá, mal saio dessa cidade, é melhor que eu nem saiba. Aliás, foi num desses livros aqui, que eu lia hoje enquanto aguardava seu desembarque...

Fabio abre a bolsa sobre o banco do táxi, cheia de livros.

...que o Erik Satie fala da música de mobiliário, que não pressupõe um público, mas sim um espaço, ela é tão espacial quanto um armário. Ela cria vibração, do mesmo jeito que a luz, o calor e o conforto atuam sobre a sensação. Dei pulos enquanto lia isso e lhe esperava. É a pré-história da música ambiente, porém com um aspecto bem mais objetual, já que mobiliário. Gosto dessa ideia, ainda que Satie dissesse que essa música satisfazia necessidades úteis, como um mobiliário, e a arte não entrava nesse hall de necessidades. Prefiro deturpar um pouco o pensamento de Satie e considerar que essa música era arte sem necessidade de público, mas sim de espaço onde acontecer, como o minimalismo.

Fabio devolve o livro à bolsa.

(56)

um Romance, como um vidro craquelado caído no chão de sua biblioteca. Fabio vira-se para mim.

−Site Specific, um Romance precisava ser compreendido, afinal era meu texto de mestrado. Mas me esforcei para que o ato de sua leitura fosse também um ato de dança, de gestos alavancados pelo ritmo, pelo choque de sílabas, pela aspereza sintática. O texto esculpia uma forma-leitura, ele era seu molde. Como minha matriz era as artes visuais, cuja tradição de forma é evidente, e era no contexto delas que eu escrevia, Site Specific, um Romance foi escrito seguindo uma obsessão pela forma, por ser físico. (Silêncio) Falei demais. Me perdi. O que você havia me perguntado?

−Não me lembro.

−Então, deixemos tudo isso para lá.

Permanecemos calados. Demoro a reagir. Fabio ainda funciona no início do século XXI. É difícil questioná-lo. Falta-lhe um mecanismo contemporâneo para que entenda o que pergunto. Usamos vocabulários diferentes no tempo. Há um momento em que os conceitos giram e mudam de posição. Pulam de órbita. Parece que Fabio perdeu esse momento. Ele tem razão. Só consegue dialogar através de sua velhice. Já não sei mais o que perguntar.

−Se você não considerava o público, para que fazia exposições? Por que tornava seu trabalho público? Isso não é contraditório?

−Deve ser. A contradição acontece sempre que se juntam palavras para um texto. Silêncio.

Fabio volta a ficar de perfil, sem me olhar. Dialoga com sua confraternização de fantasmas. É melhor que viva nessa cidade minúscula. Outra cidade não caberia nele.

−Mas havia pessoas que iam às suas exposições. Foram elas que deram aval ao seu personagem social, não?

−Não me culpe. Estamos inseridos em um modelo de sociedade, assim como a formiga fadada a ser soldado. Revoltar-se contra o modelo cansa. E revoltar-se é sempre querer tomar o poder pra si. Prefiro conspirar. Em silêncio, como disse há pouco. (Silêncio) Quanto aos que iam às minhas exposições, acontece às vezes de atrairmos quem a gente menos espera. Somos sempre charmosos para alguém.

Fabio diz algumas frases porque pensa que vou publicá-las. É como quem escreve um diário para que um dia o mundo leia. Saltamos do táxi e entramos no prédio. Vamos direto à varanda do apartamento. Apoio-me na grade com todo meu peso, Fabio encosta apenas um dos cotovelos.

−Gostaria de voltar a falar do seu mestrado.

−Você trabalha muito. Não quer falar bobagens?

(57)

Silêncio.

−Estava apenas brincando. Você veio até aqui para isso. Quer falar sobre o meu mestrado. Diga.

Fabio me desconcerta e depois finge inocência. Para velhos, como ele, resta pouco. A não ser esses jogos vazios.

−Site Specific, um Romance foi seu projeto de mestrado. Na época, você tinha trinta e seis anos. Por que tanto tempo entre a graduação e o mestrado?

−Receio da academia.

Espero que Fabio faça uma pausa grande para dramatizar o que acaba de dizer. Mas, apenas arruma a respiração.

−Sempre fiquei muito confuso em meio a todos os sistemas de pensamento. Eu concordava com todos. Também discordava de todos. Para mim, todo mundo tinha razão. Qualquer tese me causava comoção. (Silêncio). Até hoje penso que todo mundo tem razão. Se uma pessoa diz o que diz, é porque acha que tem razão e, se acha que tem razão, é porque tem razão. Filliou dizia ter escolhido ser artista para que não precisasse ter razão. Sempre gostei de pensar em arte nesses termos. Se alguém olha para um armário e diz porta, quem sou eu para contestar? Sou antiquado, respeito mais o desvio do indivíduo do que a convenção coletiva (Silêncio). Acho que me perdi, qual foi mesmo sua pergunta?

−O mestrado. O medo da academia. A confusão com os sistemas de pensamento.

−Sim. Era isso, me lembrei. Os discursos e as ideias sempre me assustaram. Talvez porque eu sentisse que a arte não me parecia um discurso, não era desse universo, ela era um gesto, uma forma, um objeto, no mesmo sentido da batida de carros, que é algo físico, factual, inesperado e que só depois gera a vontade teórica para tentar cicatrizar o acidente. (Silêncio) Sempre me senti incapaz do discurso. Sou um ignoramus autêntico. Minha natureza sempre foi a de apenas bater os carros. (Silêncio) Nunca consegui me alinhar a um pensamento ou ser completamente contra um outro. Sempre fui simpático a todos. Cético em relação a todos. Eu detestava os que eram contra tudo, no momento em que estavam sendo. Abominava os que eram a favor, quando os via sendo. Enfim, eu era essencialmente à deriva. Por isso as batidas. Deixava-me levar por um pensamento, por um filósofo, por uma tese, por um nome porque desconfiava que iam na direção onde, naquele momento, eu também ia. Mas isso não significava aprofundamento ou fidelidade, da minha parte. Se meu desejo mudava de direção, eu retomava a deriva, me afastava, esperava pelo outro pensamento, muitas vezes contraditório em relação ao anterior, e me deixava levar. Pautei a vida pelo desejo à deriva. Paguei nota a nota o preço disso. Nada devo. Dispensei o troco. Estive em todas as batidas e fugi do Resgate da teoria. (Silêncio) Não acreditava que eu poderia continuar sendo assim na academia.

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−Uma puta, com seu amor confuso e passional de puta. Gargalhamos. Quando feliz, Fabio é bonito.

−Você acreditava que na academia sua deriva seria ancorada?

−Havia esse receio. Passei anos me relacionando com arte sem querer saber o que ela era, ou analisar seus mecanismos. Eu temia que, na academia, eu precisasse cercar essa relação com todos os instrumentos da nomenclatura e do entendimento. Eu tinha receio de começar a me encantar mais por conseguir nomear do que por fazer coisas sem nome.

−Então, superou o receio de na academia começar a cicatrizar ao invés de machucar?

−Quem continua puta, aos trinta e seis anos, não pode mais ter receio de nada.

Não sei mais o que perguntar. Nossa conversa, hoje, desvirtua-se. Talvez eu não aproveite nada em minha pesquisa. Surpreende-me o quanto Fabio é antiquado e autoral no que diz. Tenho, à minha frente, um velho sem a menor importância para a arte atual. Alguém que ainda faz questão de fincar-se em um eu, só e autoral.

−Crê que ainda vive à deriva?

−É meu jeito.

Almoçamos. No resto da tarde, falamos de coisas inúteis. É importante estabelecer um passatempo entre nós. Anoitece. Fabio me acompanha até a porta. Digo-lhe que não é necessário descer as escadas e me levar até a rua. Hoje, tive melhor noção da idade avançada que tem. Mas já estamos no fim das escadas.

Nos primeiros encontros com Fabio não consigo conduzir seu devaneio. Esqueço as perguntas que tinha programado e acabamos numa conversa sem sentido. Há muitos silêncios entre nós, que nada acrescentam. Desconfio que Fabio ache isso tudo patético. Um velho falando coisas do passado para um jovem curioso. Talvez ele aceite por não ter o que fazer. Ou por consideração aos meus pais. Por gostar de mim e querer me ajudar. Também por acreditar que de alguma forma ele é importante. Fabio não me pergunta para quê venho aqui. Eu também não lhe digo nada. Hoje é nosso nono encontro. Não sigo as perguntas que anotei na biblioteca. Tenho vontade de estar com Site Specific, um Romance aqui nas mãos. Fabio sabe que estou confuso. Mas não me ajuda. Hipnotiza-me com as contradições de seu maneirismo autoral, e perco o fio condutor do que havia planejado. Agora, Fabio responde a alguma pergunta minha, não me lembro qual. Sem atrair sua atenção, fuço a bolsa. Encontro meu caderno. Tateio sua capa enquanto Fabio diz algo que mostra o quanto está desatualizado. Tiro o caderno da bolsa sem alarde, mas Fabio percebe. Minha ação corta sua resposta. Improviso uma pergunta a partir do que leio sublinhado em minhas anotações:

(59)

tivesse tido uma ideia. Escrever um capítulo onde, décadas depois, o jovem filho de um casal de amigos há bastante tempo mortos lhe entrevistasse sobre este mesmo romance. Com que pergunta o jovem pesquisador começaria essa entrevista?

Silêncio.

−Acho que eu escreveria que o jovem pesquisador teria me perguntado:

−Site Specific, um Romance foi sua tentativa literária?

−Não.

Fecho o caderno e o devolvo à bolsa.

−Eu nunca fiz literatura, é uma arte muito conservadora. Dava-me prazer lê-la, mas não produzi-la. Site Specifc, um Romance foi minha afirmação de que escrever uma ficção era tão arte visual quanto fazer um vídeo ou uma performance. Aliás, considere todo e qualquer trabalho que fiz como a escrita de um artista visual. Ainda se usa esse termo?

−Qual?

−Artista visual.

−Não. Mas, historicamente, sabe-se do que se trata.

−E escritor. Usa-se esse termo ainda?

−Sim.

−Os escritores não se extinguem.

Olho para a biblioteca de Fabio, na parede lateral da sala. Abarrotada de literatura.

−E em Duchamp, ainda se fala nele?

−Pouco. Fala-se mais em Marcelo do Campo. Silêncio.

−Você disse que não há mais o termo “artes visuais”. Há o quê? Ainda existem artes visuais?

−Há algo semelhante. Mas com diferenças em relação ao que era entendido na primeira década deste século.

Temo que Fabio aprofunde essa questão e perceba, pelas minhas respostas, que ele próprio não existe mais. Para meu alívio, ele emenda.

−Deixe isso para lá. Não preciso mais entender essas coisas. Silêncio.

−A literatura foi uma substância reagente sobre mim. Mais que as artes visuais, não posso negar. Sinto o tempo como narrativa e vejo coisas nas palavras. (Silêncio) As palavras também impediram minhas melhores horas de amor.

−Então, não tentou ser escritor?

−Não. A literatura serviu-me de paraquedas na queda livre das artes visuais.

−Aproveitou-se do conservadorismo literário para dar-lhe segurança?

(60)

tia-avó. Silêncio.

−Li em algum lugar de Site Specific, um Romance, acho que quando o jovem pesquisador lhe pergunta sobre sua relação com a literatura, que você via toda a sua obra como a escrita de um artista visual. Você foi um escritor diletante?

−Não, esse é um raciocínio reducionista. Respondo a você com a ideia de Schwitters, de que atuar em diferentes gêneros artísticos era não se especializar em uma arte, mas ser um artista.

Silêncio.

−Merz.

−Sim, claro, é esse o raciocínio. Mais que raciocínio, um sentimento. Schwitters escreveu naquele livro ali...

Fabio aponta, de longe, um livro qualquer na estante.

...que no teatro Merz, ao contrário do teatro ou da ópera, o cenário, a música e a representação não serviam para ilustrar um texto. Texto, representação, música e cenário eram uma só coisa, elementos inseparáveis e indistinguíveis da obra total que era o teatro Merz. Eu sentia isso em relação aos meus trabalhos. Não havia fotografia, instalação, texto, livro, desenho ou o que quer fosse, como elemento isolado e categorizado, produzido segundo suas relações internas e particulares. Tudo fazia parte de uma fusão maior, que era minha prática como um todo. Minha escrita verbal era apenas mais uma das substâncias dessa fusão, desse meu Merz pessoal. Não era literatura.

Silêncio.

−Sim. Fui um escritor, é claro que fui, não tenho dúvida. Mas não de literatura. Nem para a literatura. Nem pensando nela. Fui escritor ao ser artista. É naquele livro ali...

Fabio se vira e aponta outro livro qualquer na estante.

...que Cage diz que para seus textos de cunho literário utilizava essencialmente meios de composição musical. Ou seja, escrevia enquanto músico, não enquanto escritor. Já Carl Andre escreveu, naquele outro livro ali, que não compactuava com o fato da poesia ser subjugada à música, no que se refere à métrica, ao ritmo, à rima. Andre escreveu seus

3RHPV sempre a partir do PRGXVRSHUDQGL e dos procedimentos de sua prática escultórica. Cage e Andre praticaram uma escrita que não derivava da literatura.

Fabio volta a ficar frente a frente comigo.

(61)

saiba até hoje. O modernismo utópico, comportado e formalista realmente adaptou-se muito bem à classe média brasileira, financiadora da arte e feliz com o bibelô Brasília. Quando alguém me dizia que muitos dos meus trabalhos eram narrativos, dizia isso com receio, como se estivesse me xingando. Mal sabia que, para mim, isso era natural.

−Sua obra era uma escrita, mas você não era um escritor.

−Não no sentido literário. Eu escrevia assim como o SHUIRUPHU usava o corpo como suporte e matéria, sem precisar do teatro, e o videoartista trabalhava com o audiovisual, sem precisar do cinema. Escrevi fora da literatura. As artes visuais acolheram todos que eram estranhos aos paradigmas de linguagem de cada modalidade de arte.

−Por isso as ideias de escrita conceitual, algo em voga na época em que você escrevia Site Specific, um Romance, buscavam ligações históricas mais na arte conceitual das décadas de 1960 e 1970 do que na literatura?

−Creio que sim. E isso era saudável. Se a literatura não considerou a escrita sem personagem e sem ação de Lawrence Weiner, era mais lógico que as ideias de escrita conceitual de Kenneth Goldsmith e Craig Dworkin, é deles que você está falando, não?, encontrassem eco na arte conceitual, e não na literatura. Eu preferia essa ponte do que a ponte entre a poesia concreta e a visualidade, que se dava sobre uma relação mais tradicional, mallarmaica e retiniana. Essa ponte era a mais comum no Brasil, por causa da tradição da poesia concreta. Mas eu também não me via nesta turma concreta. Se na época em que escrevi Site Specific, um Romance escritores estavam referenciando a escrita conceitual na arte conceitual de quarenta anos antes, esse era um apagamento de fronteira que me interessava.

−Em Site Specific, um Romance, no capítulo Hachura, o personagem que chega ao apartamento joga um exemplar do livro 23DUDÆVR¢%HP%DFDQD sobre o sofá. Isto mostra que a literatura lhe informava de alguma maneira.

−Sim, claro. Afinal, era com linguagem verbal que eu estava trabalhando em Site Specific, um Romance. E o desafio era, para uma experiência de arte visual no ato da leitura, usar somente texto. Eu não me interessava, em pleno 2012, pelos aspectos mallarmaicos da página como espaço, mas sim pelo texto como espaço expositivo. Para isso, eu precisava ter noção de como construir essa espacialidade textual. Então, escondido, li teorias sobre a narrativa. Mas, para mim, elas desmoronavam quando eu pensava que Sophie Calle era a única escritora contemporânea de língua francesa, e não digo escritora entre aspas, que realmente me interessava. Para que escrever narrativas sobre o amor, se Calle havia escrito, com textos, fotografias, ações, depoimentos e design gráfico, seu livro 'RXOHXU ([TXLVH?

−A escrita além da narrativa verbal, dos artistas visuais, lhe interessava.

(62)

Fabio olha atento para sua biblioteca.

−Quanto mais eu avançava na escrita de Site Specific, um Romance, mais eu sentia não fazer literatura. (Silêncio) Como disse há pouco, eu era um ser estranho a ela, essa senhora conservadora. Não havia futuro para nossa relação. Minha escrita não queria o território que a literatura me daria no exíguo espaço da narrativa verbal. (Silêncio) Nunca fui um contador de estórias e elas me cansam. Sempre detestei narrativas onde acontecem coisas demais. Gosto quando quem acontece é a linguagem.

Silêncio.

−Essa predileção pela linguagem não é valorizar mais o processo construtivo do texto que a fruição da leitura?

−Sim, pode ser. Como escreveu Cage, naquele livro ali... Fabio aponta aleatoriamente outro livro qualquer na estante.

...escrever música não é executá-la e nem escutá-la. São três processos diferentes. Talvez ocorra o mesmo na escrita. Escrevi Site Specific, um Romance com a consciência dessa diferença, manipulando a leitura como quem manipula ferro derretido. Neste sentido, sim, é valorizar mais o processo construtivo, e a leitura do autor é algo importante neste processo, ela é a ferramenta que lapida, burila, dá forma ao texto. Escrever é criar a matéria-prima. Ler, editar, reler, editar, reler e editar e reler e editar é dar-lhe forma. Claro que é tudo um só processo e creio que tanto escrever quanto ler sejam objetuais. Minha matriz sempre foram as artes visuais, onde se vê espaço e forma em tudo, inclusive no texto, e onde processo é obra.

−Por que toda essa necessidade de materializar a linguagem? Silêncio.

−Pelo mesmo motivo que meus trabalhos visuais eram narrativos, eram texto latente. (Silêncio) Sempre quis inverter as coisas. Sou um invertido. É a chave da minha personalidade.

Silêncio.

−Em Site Specific, um Romance, o que o texto narra parece secundário. O importante é o texto desdobrando-se de várias formas.

(63)

metal, papel, texto, tinta, imagem, leitura. (Silêncio) Como artista visual, sempre vi matéria e substância em tudo, inclusive no texto.

−Acho que foi Dworkin que escreveu que a desmaterialização do objeto de arte, entre os 1960-70, se deu às custas da materialização da linguagem verbal.

−Sim, tenho este texto do qual você fala, está ali naquele livro... Fabio aponta a biblioteca.

...é quando o autor cita Smithson em “LANGUAGE to be LOOKED at and/or THINGS to be READ”. É a materialização da linguagem verbal. Sempre fui dessa turma, que via um texto como imagem, coisa, objeto, textura, calor, além de veículo de uma ideia.

−Penso na tradição de separar texto e imagem. Talvez seja essa tradição que não permita ver o texto como um objeto.

−As tradições são burras. Lembro-me que se eu ia a uma palestra e alguém começava a falar da relação entre imagem e texto eu me levantava e ia embora. Para mim, era como estar em uma palestra onde se discutisse a rede de transporte de bondes em São Paulo, em 1920. Só interessava aos saudosistas.

−Eu lhe entendo. Mas insisto. Dizer que texto é objeto e substância não seria uma licença poética, uma fabulação que você usa porque o seu “papel”, e digo papel entre aspas, de artista lhe dá o direito à licença poética e à fabulação?

Silêncio.

−Assita 6R,V7KLV, de Michael Snow. Perceba a escrita, e também a leitura, como uma experiência audiovisual. O texto é imagem, ator, paisagem, edição, drama, lírica, voz, autor em off. Cada palavra é um plano-sequência. Texto-cinema, construído com a sintaxe verbal, mas oferecido à leitura através da sintaxe cinematográfica. Sintaxe verbal fundida à cinematográfica, num textocinematexto. (Silêncio) E você vem me dizer que ver o texto como objeto e substância é apenas uma licença poética minha. Sua última pergunta foi de uma idiotice, estreiteza de pensamento e tradicionalismo que me espantam, me perdoe.

Fabio diz isso com uma doçura e calma que me impedem de perceber seu insulto. Só me dou conta disso agora, ao transcrever sua fala.

−Pare de papagaiar os livros, pelo amor de deus. As teorias não servem para a arte. Elas estão em outro campo. A relação com arte deve ser como a de um maratonista solitário. Quando as teorias chegarem, o maratonista já estará no banho. Se não for assim, arte não será arte, será apenas um artesanato filosófico, sociológico, intelectual. Alegoria e bibelô. Pense a arte através da arte. Primeiro isso. Depois, para confeccionar as franjas, para o rodapé e para o acabamento, procure os teóricos. Eles são o arremate final.

−São a cicatrização.

(64)

Silêncio.

Fabio nasceu no século passado. Realmente, ele ainda é utópico.

−Pense na bola vermelha de Jesús Soto. Ela existe? Não, é ilusão, são fios esticados cuja junção das partes vermelhas faz a retina enxergar uma bola. Mas, a bola existe? É óbvio que existe, a retina vê a bola, se você tocar qualquer um dos fios esticados, na parte vermelha, você toca a bola. Um texto é a mesma coisa. Se a leitura sente a secura e a retidão do texto de Graciliano ou o fluxo caudaloso de um Waly, é o mesmo que sua retina enxergar a bola de Soto. O texto e a bola são táteis.

−Acho que entendo. Essa era sua relação com o texto, a mesma da retina com a bola de Soto: ver uma forma objetual na junção das palavras, na narrativa, como nos fios vermelhos que formam a bola.

−Sim, cada linha de um texto é como aqueles fios de Soto. Forjam uma forma no ato de leitura que, pelo forjar, existe como objeto. Creio nisso.

Silêncio.

−Quando você fala em escrita como matéria, objeto e substância, me lembro quando em Velatura, último capítulo de Site Specific, um Romance, o jovem pesquisador capta, em sua fala, a influência de Flávio de Carvalho.

−Na ideia de reagente? Sim. Li o livro de Flávio assim que saí da faculdade, eu me lembro. A frase era muito simples...

Fabio se levanta e vai à estante, direto ao exemplar de ([SHULÃQFLDQò. Acha a página e lê. ...abre aspas, contemplei por algum tempo este movimento estranho de fé colorida, quando me ocorreu a ideia de fazer uma experiência, desvendar a alma dos crentes por meio de um reagente qualquer que permitisse estudar a reação nas fisionomias e blá blá blá, fecha aspas...

Fabio fecha o livro.

...e o resto é a lenda, Flávio fura a procissão. Não é o máximo? Esse trecho alterou-me a vida. Arte como reagente, era tudo o que eu precisava visualizar. (Silêncio) E você ainda me pergunta se eu quis fazer literatura? Ora, francamente. Flávio escreveu o relato de uma ação que é reperformada no ato de leitura. Eu mesmo nunca me cansei de performá-la. Você acha que isso é literatura? Claro que não. O texto de Flávio é SHUIRUPDQFH. Lendo-o, não sou seu leitor, sou seu SHUIRUPHU. Se você lê meu livro Site Specific, um Romance como um leitor, vai detestá-lo... Não é literatura. Assim como quem lê “A Experiência” de Flávio como SHUIRUPDQFH e vê os fios de Soto como uma bola, leia Site Specific, um Romance como alguém que percorre uma exposição de arte visual. E leia este capítulo Velatura como quem anda em torno de uma escultura percebendo transparências. Silêncio.

(65)

em Velatura, último capítulo de Site Specific, um Romance, em que Fabio diz ao jovem pesquisador que prefere pensar a arte com os instrumentos da arte. Talvez por isso ele junte Soto, Flávio e Schwitters, com Cage e Filliou em torno, em um só discurso, sem cerimônias, para pensar sobre sua prática. Começo a entender melhor sua deriva. Penso em perguntar-lhe se é proposital que ele use os artistas visuais para referenciar sua escrita, e não os teóricos da literatura ou os escritores. Mas Fabio continua divagando. Olho a cozinha, às suas costas. De lá, Fabio sempre traz o café que hoje ainda não fez. O vitrô sobre a pia. Atrás dos vidros, a copa da árvore que fica na região onde sempre atravesso a rua. Fabio vai à estante guardar o ([SHULÃQFLDQò. Seu movimento resgata minha atenção. Para voltar ao diálogo, pergunto o que me vem à cabeça.

−Em algum momento de Velatura, último capítulo de Site Specific, um Romance, você diz ao jovem pesquisador que suas instalações, seus objetos, seus livros de artista, tudo isso era uma escrita.

−Sim. (Silêncio) Comecei a perceber isso ao fazer exposições individuais. A forma como eu distribuía as obras no espaço era tão sintática quanto uma escrita. Era escrever de forma tridimencional no espaço tridimencional. Um desenho era subordinado a um objeto, uma instalação era complemento de uma fotografia, um livro de artista era o verbo de ligação entre o espectador e o espaço expositivo, o modo como eu tentava estabelecer o itinerário do observador, no espaço expositivo, era a pauta. Em toda exposição que eu fazia, pelo menos um trabalho era o vocativo. Claro que essa era uma escrita moldada e ditada pela arquitetura, que era sua página, o que me fez para sempre ter birra de arquitetos. São ditadores.

−Mas a ditadura do arquiteto, para o artista visual, não era a mesma ditadura do livro, da folha A4, da página de livro pouco maior que A5, do texto escrito linearmente e da esquerda para a direita, do texto digitado em Word, da possibilidade do FRS\ SDVWH, da sintaxe, da ortografia e do idioma, para o escritor de literatura?

Silêncio.

−Pode ser. Tem razão. Para fugirmos de uma ditadura, caímos em outra. A liberdade é difícil. E talvez a liberdade total seja monótona, insustentável, um estado de coma vegetativo e de solidão extrema.

Silêncio.

−Você via suas exposições como uma escrita. Algo a ver com Harald Szeemann?

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para o título do livro. (Silêncio) :KHQ$WWLWXGHV%HFRPH)RUP/LYHLQ\RXU+HDG, é preciso ver esta exposição? Não, o título já basta, ainda mais para mim que, como já lhe disse, reajo às palavras. Eu daria um Nobel para Szeemann pelo título :KHQ$WWLWXGHV%HFRPH )RUP/LYHLQ\RXU+HDG. Confesso que, para mim, o que o século XX deixou de interessante na arte foram as atitudes como forma e a linguagem como matéria.

Silêncio.

−Marcel Broodthaers também foi uma influência para você.

−Sim, claro.

−Cite alguma obra dele.

−Não era uma questão de obra. (Silêncio) O museu fictício, claro, quem não gosta? Mas não eram as obras em si que me atraíam em Broodthaers. E sim o fato de que sua escrita não coube na literatura. Seu museu fictício foi um romance que jamais caberia dentro do texto. O0XVÂHGo$UW0RGHUQH'ÂSDUWHPHQWGHV$LJOHVnão se ajusta à sintaxe verbal. Silêncio.

−Você acha que transformar o museu fictício em texto o reduziria?

−Sim. Como assunto para um romance não era o que a literatura elege, ela jamais conseguiu se livrar do humano como personagem. Além disso, a linearidade do texto asfixiaria o fato de Panamarenko ter ganhado a corrida de bicicleta, de volta a Bruxelas, na primeira mudança do museu. Isso viraria apenas uma anedota. Sorte de quem esteve presente na corrida e percebeu que aquilo tudo era a escrita de Broodthaers deslizando entre os corpos. O fato da corrida ter realmente acontecido, para que a comitiva que acompanhava a mudança voltasse para Bruxelas, é um acontecimento tridimencional cheio de simultaneidades e de ar. Textos não têm ar, somente silêncios.

Textos não lidam com o ar. Talvez, por isso, a literartura necessite o além da escrita verbal. Tento, disto, extrair uma pergunta para Fabio. Não consigo. Então, continuo.

−Mas Broodthaers abandonou a literatura para se dar bem e ganhar dinheiro com as artes visuais. Ele mesmo assumiu isso. E com sua visão crítica e cínica, desmascarou a ideologia do museu que oficializou o modernismo.

−Sim, mas isso é folclore. Se Broodthaers tivesse cabido na literatura teria continuado nela. Ele poderia ter desmascarado o sistema de museus escrevendo textos. Mas sua crítica seria anêmica se fosse texto. A literatura o asfixiava. Seus poemas são apertados e presos. Sua escrita como artista visual, seja o próprio museu, seja as cartas abertas redigidas no contexto do museu, é mais ampla.

Enquanto fala, Fabio se levanta e vai à estante. Volta com um livro com a obra completa de Broodthaers. Acha a página que quer.

(67)

fictício de Broodthaers. Esse descarregamento tem a mesma fluência de um texto. É ação fictícia escrita no espaço físico, atitude que toma forma, texto materializado. Ao invés de palavras, objetos físicos e ação ortográfica. É uma escrita. Limite entre a ficção e a não-ficção.

−Teatro?

−Não. Teatro é ficção. Broodthaers estava em outra região. Silêncio.

−Não sei por quê, mas acabo de pensar em Sophie Calle.

−É evidente. Sophie Calle foi a única escritora francesa contemporânea que me interessou, quando escrevi Site Specific, um Romance. E o que acabo de dizer tem a arbitrariedade do gênero, coisa de língua latina. Sophie Calle foi o único escritor francês que me interessou também. Quando ela pede que um detetive a siga, para anotar seus passos e escrever um relatório que será texto, primeiro Sophie Calle escreve seus gestos no espaço físico: passeia por Paris, entra por ruas, vai ao museu e tudo isso é caligráfico. Cada passo seu é o que liga duas serifas. Ela está escrevendo. Seu corpo é verbo. Esse cotidiano que ela forja é uma escrita. Adoraria copiar o que ela fez. Sentar-me num banco de praça sabendo que esse ato é uma escrita. É como se o personagem manipulasse o escritor, uma marionete invertida. O que o detetive fez depois, foi traduzir a escrita de Calle para a linguagem verbal. Quase um retrocesso.

Silêncio.

−Então, os escritores que não cabem no texto deveriam abandoná-lo?

−Quem sou eu para dizer o que alguém deve fazer? Se nem eu soube o que fazer. Apenas tentei. (Silêncio) Joyce não coube no texto, mas ao invés de saltar da literatura, aumentou a possibilidade de texto dentro do próprio texto. Foi um terrorista dinamitando o próprio quintal. Broodthaers foi uma espécie de terrorista internacional, saltou da literatura para o território das artes visuais. Aumentou territórios. Sem dúvida, isto me interessava mais. Monte uma das seções do museu de Broodthaers e dê o nome de “Quando atitudes se tornam forma”. Isto é um exemplo perfeito de uma escrita física e fictícia incompatível com a literatura.

−Eu poderia acrescentar, nesta seção, o texto n$ ([SHULÃQFLDo, de Flávio de Carvalho, uma escultura-texto de Lawrence Weiner, uma instrução de pintura de Yoko Ono e uma música mobília, de Satie?

Rimos juntos.

(68)

a atenção. Ele volta. A água demora a ferver. Atrás dele, os vidros do vitrô embaçam. Já não me lembro do que falávamos.

−É difícil ler seu livro Site Specific, um Romance e pensar que seu autor é atualmente um artista aposentado.

Não disfarço um riso tímido.

−Qual é o problema?

Pela primeira vez, em semanas, Fabio tem uma expressão jovial. Parece que ao ouvir-me falar artista aposentado, se desaposenta.

−Você acredita que arte não tem prazo de validade? Que artista não estraga? Tudo estraga, fica velho. Apodrece. A arte deve ter herdado da religião essa ideia de eternidade, onde os mitos jamais devem ser superados. Essa era digital que vocês vivem introduziu eternidade nas coisas? A mesma eternidade dos códigos matemáticos? (Silêncio) Esqueça, nem me responda, não tenho mais idade para o presente. (Silêncio) É romântico achar que um artista tem o que dizer a vida toda. E mais romântico ainda achar que as obras de arte são eternas. Quando o modelo de indivíduo renascentista for superado, e creio que esta superação está atrasada, a primeira coisa a fazer é doar a Mona Lisa para algum museu de História Natural.

Silêncio.

−Por isso você diz ao jovem pesquisador, no capítulo Velatura, que textos deveriam ter apenas uma edição, para que deteriorassem e sumissem com o papel. Então você não acredita na arte trans-histórica. Você acredita na história?

−Envelheço. Silêncio.

−No capítulo Vídeo, logo no início de Site Specific, um Romance, o mais jovem dos personagens leva uma fotografia mofada ao hospital para que o mais velho seja contaminado e consiga morrer. Você acredita que as coisas precisam morrer.

−Não precisam. Elas morrem. Não me lembro bem, mas acho que em algum lugar de Site Specific, um Romance eu escrevi que cientistas buscam a pesquisa, e não o outro. Escrevi isso, não foi?

−Sim, mais ou menos isso.

(69)

o indivíduo vai a cento e oitenta anos, pelo menos cento e vinte serão de aposentadoria, ócio e conservadorismo. Velhos são sempre conservadores. O que a ciência deveria, era tentar aumentar a adolescência, para que durante quarenta e cinco anos fôssemos rebeldes, inovadores, progressistas, corajosos, libidinosos, irresponsáveis, abertos, ocos, burros e leves. Mas a ciência só consegue aumentar a velhice. (Silêncio) Enfim, falei demais. Só respeito que as coisas acabem. Como artista, meu fôlego acabou.

Os azulejos da cozinha também embaçam. Em alguns, já há uma gota escorrendo. A água ferve. Isso me distrai, não sei por quanto tempo. Volto a prestar atenção em Fabio.

−Quando eu tinha sua idade, lembro que havia lapsos de até um ano inteiro que eu não tinha nada a dizer, não produzia sequer um trabalho de arte. Passava um ano lendo livros, indo ao cinema, ouvindo música. Se isso acontecia naquela época, imagine depois de décadas. Eu respeitava os lapsos, afinal, eu não era um funcionário de mim mesmo e nem corretor na bolsa de valores do meu trabalho. Havia artistas que se adequavam a essa lógica de mercado, de bolsa de valores, de sua obra como uma empresa que não pode falir e nem mesmo entrar em recesso. Não era meu caso. Até tentei, mas não consegui. Eu nem pendia para o industrial, nem para o agricultor. Arte não é indústria. Nem agricultura. É terremoto. Inevitabilidade. Mato que nasce no concreto. Não é cadeia de produção. Eu não era artista vinte e quatro horas por dia. Talvez venha daí eu não ter me tornado um artista de vida inteira. (Silêncio) Não sei se todo artista é assim. Comigo, foi. Mas não se trata de procurar o silêncio. Sou ocidental. Aqui, o silêncio incomoda. Não me silenciei. Apenas apodreci. Mofei. (Silêncio) Entende?

−Acho que sim. Silêncio.

−Logo no início de Velatura, o último capítulo de Site Specific, um Romance, você diz ao jovem pesquisador que as palavras só correspondem ao momento em que foram escritas. Sinto que as palavras, em seu livro, não lhe correspondem pelo fato de você não ser mais artista. Antes, eu não conseguia deixar de pensar em você, ao ler o livro. Mas depois que você me disse que se aposentou, é como se o texto não tivesse mais voz. Acabo de pensar que isso não ocorre quando leio um autor morto. Ele continua falando. Será que é por que ele apenas morreu? Não renunciou à própria voz?

−Mas eu não renunciei à minha voz. Parei de falar, só isso. Acabou. (Silêncio) Voz, ainda tenho, mas sem o que dizer. Falei o que falei, na época em que falei. Só falei aquilo porque era naquela época. Porque algumas pessoas estavam vivas. Porque algumas coisas estavam acontecendo. Porque eu era aquele. Hoje, não falo mais. Aposentei-me. É isso, é simples. (Silêncio) O simples não requer explicação.

−As explicações é que complicam o simples?

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