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ESCRAVOS E FORROS NAS ARTES DE CURAR: POTENCIALIDADES DE ESTUDOS A PARTIR DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM

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ESCRAVOS E FORROS NAS ARTES DE CURAR: POTENCIALIDADES DE ESTUDOS A PARTIR DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM

Vinícius Paulo Gelape / Graduando em História/UFOP Maria Cristina Rosa / Doutora em Educação/UFOP FAPEMIG

Resumo

As discussões de diversas temáticas sobre a História da Escravidão em Minas Gerais ampliam constantemente o debate sobre a complexidade do sistema escravista no período colonial. Os estudos sobre a atuação de escravos e forros nas Artes de Curar, a partir de documentos manuscritos, nos mostram a importância dessas fontes para a compreensão de uma abordagem deste teor em um espaço e recorte temporal privilegiado. Dessa forma, este trabalho, parte da pesquisa em andamento intitulada ―Levantamento e catalogação de fontes para estudo da história dos corpos na comarca de Vila Rica (1700 -1808)‖, objetiva problematizar a participação dos escravos e forros barbeiros na constituição de uma medicina local. A metodologia corresponde análise de inventários post-mortem e de testamentos trasladados nestes mesmos documentos, produzidos no Termo de Mariana entre o período de 1751 a 1808. Os inventários, pouco privilegiados para um estudo desta perspectiva, caracterizam-se por fontes que apresentam informações preponderantes como, por exemplo, a descrição quanto à idade, etnia e valor desses agentes nos arrolamentos de bens do inventariado; cobranças pelas assistências de cura realizadas e rendimento dos jornais de pecúlio. Assim, essa fonte suscita novas possibilidades de estudar o prestígio social desses agentes, o uso do ofício de barbeiro para compra da liberdade e práticas de cura empregadas no processo de cura a um enfermo.

Palavras-Chaves: escravo; forro; barbeiro; inventário

Abstract:

The discussions about various topics on History of Slavery in Minas Gerais constantly broaden the debate on the complexity of the slavery system in the colonial period. Studies on the role of slaves and freed slaves in the healing arts, from handwritten documents, show us the importance of these sources to understand an approach of this kind in a privileged space and time frame. Thus, this work, part of an ongoing study entitled "Levantamento e catalogação de fontes para o estudo da História dos Corpos na Comarca de Vila Rica (1700 -1808), " aims to discuss the participation of slaves and freed slaves barbers in the constitution of a local medicine. The methodology consists in the analysis of postmortem inventories and wills transferred in these same documents produced in Term of Mariana in the period from 1751 to 1808. Inventories, undervalued for a study from this perspective, are characterized by sources that present preponderant information such as, for example, the description in terms of age, ethnicity and value of these agents in the inventory listing of assets, charges for healing sessions carried and income from journals of annuity. Thus, this source raises new possibilities of studying the social prestige of these agents, the use of the office of barber to purchase the freedom and healing practices employed in the process of healing a sick.

Keywords: slave; freed slave; barber; inventory Introdução

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O processo de colonização portuguesa em diferentes áreas geográficas do mundo foi um momento peculiar da história lusitana e dos povos que estiveram sob o seu domínio. Ao longo do período moderno, verificou-se um intenso fluxo e refluxo humano entre as regiões do imenso império português. Essa dinâmica de mobilidade de corpos nos espaços promoveu trocas culturais entre povos de sociedades multifacetadas.

Na América Portuguesa, a presença constante de escravos, resultante de deslocamentos através do tráfico, proporcionou uma circulação ininterrupta da cultura material e imaterial, especialmente a africana. Os escravos trouxeram consigo, dentre diversas manifestações, concepções variadas de corpo, de saúde, de doença e de cura que, imbricados com saberes e práticas distintos de outros povos, contribuíram para a formação da medicina local.

Entre as pesquisas referenciais para o estudo das ações e intervenções dos escravos e forros nas Artes de Curar é preciso destacar alguns trabalhos. Em análise voltada para o século XIX, particularmente para a província de Minas Gerais, a historiadora Betânia Gonçalves Figueiredo mostra em seu trabalho o papel dos escravos e forros barbeiros na medicina deste período e aponta novos direcionamentos dos ofícios relacionados às Artes de curar. Todavia, houve uma mudança preponderante nos oitocentos que se caracterizou pela redefinição do significado do ofício de barbeiro. Segundo Figueiredo, as atividades informais da tradição desse ofício como, por exemplo, a aplicação de pequenas sangrias na tentativa de realizar cirurgias externas, portanto, menos complexas, tornou-se ―cada vez mais, a se restringir a cortar os cabelos e aparar as barbas‖1.

Também em estudos para o século XIX, porém para a província do Rio de Janeiro, a historiadora Tânia Salgado Pimenta em uma investigação pautada na análise de impressos e em uma vasta gama de documentos produzidos pela Fisicatura-mor também enfatiza a participação de escravos, forros além de livres pobres na medicina popular da primeira metade dos oitocentos2. Essa autora afirma que este grupo social estava mais próximo da população em geral, uma vez que estabeleciam os seus valores de trabalhos mais acessíveis do que os terapeutas acadêmicos. Em um primeiro momento, a Fisicatura-mor (1808-1828) objetivou incluir as práticas populares nos moldes das concepções da medicina acadêmica. Posteriormente, especificamente a partir da década de 1830 o discurso da medicina acadêmica passou a ser de desautorização das práticas populares.

Abrangendo o século XVIII, em especial as Minas Gerais, o trabalho de Almeida (2010) constitui uma referência na historiografia. Ao analisar uma vasta gama de receituários médicos da época, a autora ressalta contribuições africanas na formação do ideário medicinal no contexto de mestiçagem cultural e afirma que as práticas curativas dos africanos como, por exemplo, a sangria foi incorporada desde tempos remotos em suas sociedades de origem, tornando-se um dos principais meios eficazes para restaurar a saúde. Além do conhecimento de drogas, vegetais para os preparados medicinais e recursos terapêuticos essa medicina sofreu influências de superstições e rituais mágicos para a cura dos enfermos3.

Sendo assim, os principais apontamentos deste trabalho, que versam sobre práticas de escravos e forros no campo das Artes de Curar, tem como fundamentação práticas e saberes desenvolvidos especialmente no século XIX. Esta situação não impossibilita, todavia, o diálogo, mas nos leva a pensar em permanências e mudanças bem como na

1

FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. Barbeiros e cirurgiões: a atuação dos práticos ao longo do

século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v I (2), p 277-91, jul.-out.1999, p.8

2

PIMENTA, Tânia Salgado. Barbeiros Sangradores e Curandeiros no Brasil (1808-28). Casa Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 1998.

3

ALMEIDA, Carla Berenice Starling de. Medicina Mestiça: saberes e práticas curativas nas Minas

setecentistas. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade

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necessidade de trabalhos que, ao abranger essa temática, tenham como recorte temporal o século XVIII.

Escravos e Forros nas Artes de Curar

No campo das Artes de Curar, muitos escravos e forros destacaram-se como agentes de cura sendo que, em um quadro geral das profissões, era relegado a eles o ofício de barbeiro4. Eles tinham como função a atividade de higienização e estética do corpo ao fazer barba, cortar cabelo, além de incluir nas suas funções a ―arte de sangrar5, sarjar, lançar sanguessugas e ventosas‖6.

No conjunto da sociedade moderna os oficiais de barbeiros ―eram maculados com o defeito mecânico por ganharem a vida com o esforço manual‖7. Porém, mesmo que o trabalho manual fosse discriminado, característica de uma sociedade estamental, esse fator não os impediram de se apropriar de recursos para apontar, intervir e solucionar problemas de saúde dos corpos enfermos.

Significante enfatizar que no ambiente colonial agentes da cura, como cirurgiões, boticários, parteiras, físicos e barbeiros, contribuíram imensamente na formação de uma ―medicina mestiça‖8 que agregou diversas formas de tratamentos e intervenções no cuidado dos corpos. No contexto das Minas Gerais, particularmente século XVIII, período no qual este trabalho detém sua investigação, Almeida afirma que as Artes de Curar já se:

[...] Mostra[va] igualmente mestiça, forjada pelos conhecimentos migrantes de uma população multifacetada desde muito cedo nas terras portuguesas na América e mesmo antes de sua chegada no Novo Mundo. Essa medicina foi constituída ao longo do tempo e utilizada no enfrentamento das enfermidades do corpo e da mente [...]9.

Envolvidos neste campo de saber e atuação, os ascendentes africanos, em destaque pelos seus conhecimentos sobre a aplicação de sangria, estavam inseridos em uma ambiência histórica marcada pela diversidade de saberes e práticas curativas. Nesse tecido social heterogêneo, as suas intervenções nas condições físicas do corpo, conforme já

4

De acordo com Betânia Gonçalves Figueiredo no quadro hierárquico das profissões envolvidas nas Artes de Curar, os barbeiros ocupavam a posição mais inferior quanto ao prestígio do ofício. Isso não quer dizer que foram menos importantes nos espaços que exerceram os seus trabalhos de práticas curativas, pois detinham a habilidade de intervir com seus instrumentos no corpo.

5

De acordo com dicionário do Padre Raphael Bluteau o significado da prática de sangria consistia em ―[...] hua incisão da vea, pelo qual se evacua o sangue, & os mais humores, que andavão em as veas, misturados com o sangue [...] preservar da enfermidade que poderá vir, & aliviar o enfermo da

doença, que actualmente padece.‖ Cf:BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Coimbra: Colégio das Artes e da Companhia de Jesus, 1712, p.470-471.

6

PIRES, Ana Flávia Cicchelli Piresi. A participação dos sangradores no comércio atlântico de

escravos, 1808-1828. ‗Usos do Passado‘. In: Anais do XII Encontro Regional de História/ ANPUH. Rio

de Janeiro, 2006, p. 02. 7

SILVA, Fabiano Gomes da. Pedra e cal: os construtores de Vila Rica no século XVIII (1730-1800). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007, p.11

8

Em trabalho de suma importância para o atual movimento historiográfico sobre história das ciências e história da saúde e das doenças, o conceito de medicina mestiça, expresso na dissertação de Almeida (2008), refere-se à apropriação e reinterpretação de saberes e práticas de cura de povos oriundos de diversas culturas, que confluíram para a formação de uma medicina peculiar nas Minas setecentistas.

9

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destacado, é um exemplo de contribuições para uma medicina em configuração e desenvolvimento no período.

Em relação aos recursos eficazes para a cura, a prática de sangria, de acordo com Abreu (2011), em estudos voltados para o saber médico luso-brasileiro no século XVIII, não era uma forma de tratamento discriminada pela medicina portuguesa. Pelo contrário, havia esforços de médicos e cirurgiões em regulamentá-la10. Em Lisboa, por exemplo, a sangria era ―prescrita por médicos e executada por barbeiros, [e] impôs-se e manteve-se como a soberana das técnicas de tratamento, nas tendas, nos domicílios, nos cárceres e nos hospitais lisboetas consolidada na medicina portuguesa. durante todo o período moderno‖11. (SANTOS, 2005, p. 05).

Utilizada também pelos diversos agentes da Arte de Curar no tratamento dos enfermos, a ―sangria foi prática recorrente em universos culturais com significados distintos‖12. Como observou Salgado, em leitura de Thomas Ewbank,

[...] a prática de sangria realizada pelos africanos como uma tentativa de sugar os espíritos malignos, e não os humores que havia em excesso segundo a medicina oficial. Por outro lado, alguns podem ter trazido da África a técnica de sangrar com ventosas, pois o termo é encontradiço entre as medicinas Bakongo e Obi, no oeste do continente africano, segundo Karasch (1987, pp. 264-5).13

Ao elucidar particularmente sobre características da medicina nos trópicos, a historiografia recente tem mostrado que é inconcebível pensá-la sem considerar o papel ativo de indivíduos de ascendência africana envolvidos na constituição desses saberes e práticas. Novas fontes e procedimentos analíticos caracterizam essa historiografia que colabora incessantemente para os estudos da História da Ciência, História da Saúde e das Doenças e História da Medicina.

Considerações sobre escravos e forros nas Arte de Curar no Termo de Mariana: estudos de caso

A partir dessa breve descrição de particularidades de ações de escravos e forros nas Artes de Curar, como: atuação no ofício de barbeiro; utilização e significado da sangria além das atuais preocupações e propostas metodológicas da historiografia; um dos objetivos deste trabalho é apresentar possibilidades de estudos sobre a participação de escravos e forros nas Artes de Curar a partir de uma proposta de pesquisa que visa destacar potencialidades dos inventários post-mortem como fonte primordial de investigação.

A pesquisa, em andamento, intitulada ―Levantamento e Catalogação de Fontes para o Estudo da História dos Corpos na Comarca de Vila Rica (1700-1808)‖14

, da qual este trabalho é parte, prioriza, a partir de estudos historiográficos, o estudo dos corpos

10

ABREU, Jean Luiz Neves. Nos Domínios do Corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2011.

11

SANTOS, Georgina Silva dos. A Arte de Sangrar na Lisboa do Antigo Regime. Universidade Federal Fluminense. Revista Tempo, Rio de Janeiro, nº 19, p. 43-60

12

ABREU, Jean Luiz Neves, op.cit., p. 91 13

EWBANK, 1973, apud, SALGADO, 1998, p. 12 14

Financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), essa pesquisa tem por objetivo a produção de um catálogo temático sobre História da Saúde e da Doença. Esse catálogo irá agrupar referências contendo um conjunto de informações sobre instrumentos de higiene, glossário de doenças, relações de dívidas aos oficiais de cura, instrumentos e receitas que remetem à fabricação de remédio ou a arte de curar, livros médicos e práticas de cura.

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setecentistas dando ênfase a temática história da saúde e das doenças, e permite desenvolver uma investigação voltada para a participação dos escravos e libertos na constituição da medicina colonial.

Embora a fonte em privilégio seja um documento fornecedor de apontamentos extremamente objetivos, pois muitas vezes não trazem uma descrição suficiente de determinado assunto, correspondente aos anseios do pesquisador, esse fato implica em limitação, mas também potencializa pensar novas temáticas e metodologias de investigação, problemáticas e objetos de estudo ainda pouco explorados em pesquisas que envolvem a escravidão.

As pesquisas com os inventários post-mortem concentram-se no acervo do 1º e 2º ofício cartorário do Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). Em processo de rastreamento e catalogação de informações pertinentes à pesquisa, identificamos, até o momento, um total de cinqüenta e cinco oficiais de barbeiros, incluindo escravos e forros, no período de 1751 a 1808, num total de total de 918 processos analisados. No entanto, não sabemos quantos destes escravos e forros atuavam na legalidade, ou seja, conforme a exigência da Câmara Municipal que expedia a carta de licença para a atuação. Conforme Almeida ressalta:

Barbeiros, geralmente escravos ou forros, aproveitando a habilidade no manejo de navalhas, e tendo, talvez, seguido o mesmo processo de aprendizado pelo ver e ouvir — contudo sem se submeterem ao exame para legalização do exercício desse conhecimento — praticavam a arte de curar à revelia da lei durante o século XVIII, sangrando, aplicando ventosas e sanguessugas e tirando dentes [...]15.

Embora inexista essa informação na documentação consultada, outros relatos relevantes para a pesquisa merecem destaque. Como exemplo da potencialidade deste tipo documental, destacamos que na disposição das informações encontra-se a descrição de escravos barbeiros nas relações de bens materiais do inventariado. Eles são arrolados como uma mercadoria, tendo, na grande parte das informações coletadas, uma descrição detalhada do seu perfil. Informações como o nome, idade, procedência étnica, estado civil e valor nominal de mercado são as principais atribuições feitas pelos avaliadores.

A partir dessas descrições básicas temos informações suficientes fornecidas pelos inventários para desvelarmos a identidade desses agentes da cura. Além dessas prévias informações, nos inventários os oficiais de barbeiro aparecem como escravos de elevado valor de mercado. Constatamos que geralmente eram avaliados em um valor de duas a três vezes a mais do que um escravo que não possuía uma especialização16.

No inventário de Francisco Barreto Falcão17, de Mariana pode-se observar a diferença de valores entre um escravo de ofício de barbeiro e outro escravo, do mesmo plantel, sendo avaliado pelos louvados por um preço menor. O barbeiro Manuel, nação Mina, de 35 anos, foi avaliado por cento e vinte mil réis diferentemente do escravo Manoel, nação Angola, de 25 anos, avaliado por cinqüenta mil réis. Mesmo que este escravo fosse mais novo, o fato de não deter habilidades em algum tipo de ofício mecânico, entre eles inclui o de barbeiro, o impediu de ser avaliado em alto preço em relação ao primeiro.

Ao mapear as localidades em que os oficiais de barbeiro encontravam-se distribuídos

15

Ibidem, p.65 16

Embora o exemplo destacado não seja um argumento que busque generalizar todas as formas de avaliação dos escravos, ou seja, a determinação de seu preço está intimamente relacionada a diversos fatores, verificamos que em grande parte dos casos encontrados, até o momento, ser detentor de um ofício é um critério importante na avaliação feita pelos louvados.

17

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no Termo de Mariana, os dados quantitativos mostram uma considerável diferença na concentração desses agentes entre o centro e periferia do Termo. Enquanto que mais de quarenta e cinco por cento localizava-se na cidade, o restante encontrava-se nos freguesias e arraiais do Termo18, conforme mostra a Tabela 1, que exemplifica as respectivas localidades e quantidades dos oficiais de barbeiros distribuídos geograficamente no Termo de Mariana.

Tabela 1: Relação entre a localidade/quantidade de escravos e forros barbeiros Sede do Termo: 45,45%

Demais localidades: 55,55%

Fonte: Inventários, 1º e 2º Ofício, 1751-1808

De acordo com a amostragem acima, é provável que a maioria destes oficiais da cura, concentrados no centro urbano, fossem barbeiros ambulantes pelas ruas da cidade no qual prestavam serviços em diferentes pontos estratégicos. Quanto ao número dos barbeiros na área do Termo, verifica-se uma distribuição desigual entre as regiões destacada.

Quanto à distribuição de oficiais barbeiros ao longo da segunda metade do século XVIII ao princípio do XIX, a Tabela 2 mostra um mapeamento que visa mostrar por décadas o período de maior índice de atuação dos oficiais das Artes de Cura em diferentes localidades.

18

É importante ressaltar que embora esses agentes pudessem estar em movimento na região, ou seja, prestando assistência a corpos em diversas localidades, tal fato não implica na impossibilidade de mapeá-los e considerar que os locais a eles associados na documentação seja provavelmente onde residiam. Essas informações permitem direcionar novos olhares para a documentação como, por exemplo, verificar se existe uma correspondência entre o número de casos de doenças e o número de barbeiros para as assistências em cada região do Termo, sendo essa uma perspectiva de trabalho em desenvolvimento nesta pesquisa.

Localidade Quantidade Percentual %

Marina 25 45,45%

Freguesia de Guarapiranga 7 12,72%

Freguesia de São Caetano 2 3,63

Freguesia do Sumidouro 6 10,90%

Catas Altas 1 1,81%

Freguesia do Furquim 4 7,27%

Arraial do Inficcionado 5 9,09%

Distrito de Tapera 1 1,81%

Freguesia de São José da Barra Longa

4 7,27%

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Tabela 2: Relação entre década/quantidade de escravos barbeiros

Fonte: Inventários, 1º e 2º Ofício, 1751-1808

Essa Tabela torna evidente uma progressão ascendente no número de oficiais barbeiros entre as décadas de cinqüenta e a de oitenta do século XVIII, diferentemente do que se verifica a partir da década de noventa em que ocorre uma queda significativa do número destes oficiais no Termo de Mariana19; dados esses que serão analisados futuramente.

Nestas distintas localidades em que atuavam, tê-los em pequenas ou grandes propriedades escravistas significa uma contribuição para a funcionalidade do plantel. A presença desses oficiais em uma escravaria era fundamental ainda mais quando o senhor possuía muitos escravos doentes.

O inventário do Tenente Antônio Gonçalves da Silva, morador da Freguesia do Guarapiranga, é um exemplo a ser considerado. Consta, arrolado na descrição de bens, um total de 193 escravos além de ―terras minerais constantes de títulos com sua fábrica de Roda Rosário e mais pertences aparelhada de ferro com todos os seus pertences e ferramentas de minerais‖20

. Do total de escravos, o documento apresenta detalhadamente onze escravos doentes e incapacitados de trabalhar tendo ainda arrolado dois oficiais de barbeiros.

Este inventário indica-nos, através dessas informações, a necessidade senhorial de agregar no conjunto da escravaria, oficiais capazes de intervir na saúde dos seus escravos doentes. Considere-se que sua função também corresponde à tentativa de manter a saúde dos demais escravos do plantel e gerar, conseqüentemente, lucros econômicos para o senhor.

Outra face de investigação a ser problematizada a partir dos inventários é a possibilidade de estratégia do escravo em apropriar-se do ofício de barbeiro para alcançar a sua liberdade. Consta no inventário de Maria Tavares, moradora do Arraial do Inficcionado, uma lista de relações de contas o recebimento ―[...] de jornais de Manoel Barbeiro de 20 de maio de 1801‖21. Este estudo de caso é um exemplo da utilização desse tipo de fonte documental para estudos sobre a mobilidade social dos escravos em uma sociedade hierarquizada e desigual.

Encontrados também nos inventários, porém em número menor do que os escravos, forros engajados no ofício de barbeiro. A profissão para estes indivíduos, inseridos nessa

19

O objetivo da elaboração dessa tabela baseia-se na tentativa de elaborar um estudo mais detalhado, com recortes temporais menores para identificar índices de escravos barbeiros atuantes ao longo de uma duração mais longa (1751-1808), detectando oscilações para cima e para baixo no número de escravos barbeiros e suas implicações.

20

IPHAN/AHCSM: 2º Ofício, Códice 86, Auto 1848, 1791, p.19 21

Embora tenhamos encontrado, até o momento, apenas um estudo de caso deste teor na documentação consultada na pesquisa que ajuda a sustentar essa hipótese, o próprio fato dessa informação encontrar-se no inventário demonstra o potencial da fonte em fornecer fatos relevantes como este que nos possibilitou levantar questões para o campo historiográfico sobre estratégias de liberdade do escravo. IPHAN/AHCSM: 2º Ofício, Códice 28, Auto 692, 1801

Década Quantidade 1751-1760 1 1761-1770 4 1771-1780 11 1781-1790 17 1791-1800 12 1801-1808 10 Total 55

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nova categoria social, a de homens livre, correspondia um ofício importante para melhorar as suas condições de vida que se encontravam após a liberdade. Segundo Salgado

[...] havia forros que também se empregavam nesse trabalho — forros africanos inclusive. Os africanos deviam ser bastante requisitados para esse serviço, pois havia uma forte probabilidade de que se comunicassem com mais facilidade com os escravos recém-adquiridos. E de sua parte, quando forros, podiam considerar esse trabalho recompensador.22

No dia nove de Janeiro de 1773, o forro e barbeiro sangrador, Manoel da Costa Soares, morador do morro de Santa Ana, aparece como suplicante de uma dívida ao testamenteiro de Brás Moreira de Sampaio por ter lhe servido

[...] pelo dito ofício a Brás Moreira de Sampaio dois anos e meio antes do falecimento do mesmo Sampaio a preço de duas oitavas e meia por ano, que importam no dito tempo, seis oitavas um quarto de ouro [...]23

Antes do falecimento, Sampaio solicitava em seu testamento, no qual o traslado24 encontra-se incorporado ao inventário, o pagamento da dívida ao forro. A descrição completa no inventário sobre o valor da dívida; nome e local de moradia do forro; além do tempo que esse agente da cura prestou serviços ao seu paciente nos chama a atenção. Dois anos e meio intervindo na saúde do enfermo é um período significativo de prestações de serviço ao seu paciente. Evidencia-se, portanto, que o ex-escravo possuía um conhecimento suficiente do funcionamento do corpo para as práticas de cura.

Considerações finais

Mediante essas proposições destacadas, consideramos que os inventários post-mortem são fontes primordiais para se pensar estudos acerca da escravidão na América Portuguesa. Embora seja necessário apontar os limites da fonte, conforme supracitado no decorrer deste artigo, é inegável apresentar o seu potencial para a análise da temática escolhida, pois a abrangência de informações sobre os escravos e forros, como agentes das Artes de Curar permite instigar o desenvolvimento de novos trabalhos no campo da História da Ciência, História da Saúde e da Doença e História da Medicina.

Novas possibilidades de investigação foram suscitadas para proporcionar novos olhares sobre as fontes documentais, aportes teóricos e diferentes recursos metodológicos.

22

PIMENTA, Tânia Salgado. Barbeiros Sangradores e Curandeiros no Brasil (1808-28). Casa Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 1998, p.14

23

IPHAN/AHCSM: 1º Ofício, Códice 135, Auto 2816, 1773 24

A incorporação da cópia do testamento no conjunto de processos do inventário tem sido uma importante fonte de pesquisa. Além de possibilitar estudos de diversas naturezas como, por exemplo, religião, perfil econômico do inventariado, relações sociais do seu cotidiano além de fornecer

informações pertinentes ao seu estado de saúde e muitas vezes solicitações para pagamente de práticas de cura.

Referências

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