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Responsabilização sancionadora da pessoa jurídica: critérios para aferição da sua ação e culpabilidade no direito administrativo sancionador brasileiro

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GUSTAVO COSTA FERREIRA

RESPONSABILIZAÇÃO SANCIONADORA DA PESSOA JURÍDICA: CRITÉRIOS PARA AFERIÇÃO DA SUA AÇÃO E

CULPABILIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR BRASILEIRO

Dissertação de Mestrado Acadêmico a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, na área de concentração Direito, Estado e Sociedade, na linha de pesquisa Constitucionalismo, Democracia e Organização do Estado.

Orientador: Prof. Dr. José Sérgio da Silva Cristóvam

Florianópolis/SC 2019

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,

através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC. Costa Ferreira, Gustavo

Responsabilidade Sancionadora da Pessoa Jurídica: : critérios para aferição da sua ação e culpabilidade no direito administrativo sancionador / Gustavo Costa Ferreira ; orientador, José Sérgio da Silva Cristóvam, 2019.

294 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2019.

Inclui referências.

1. Direito. 2. Direito Administrativo Sancionador. 3. Responsabilidade Sancionadora da Pessoa Jurídica. 4. Infrações Administrativas. 5. Sanções Administrativas. I. Cristóvam, José Sérgio da Silva . II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Escrever uma dissertação de mestrado é uma missão individual, no sentido de ser uma tarefa que só pode ser executada pelo indivíduo a que ela se propôs, carregada de muito exercício de introspecção, autorreflexão e de um verdadeiro compromisso consigo mesmo.

Está longe de ser, porém, uma missão solitária. Nessa empreitada individual não estive sozinho. Inúmeras pessoas me acompanharam e contribuíram, de uma forma ou de outra, para a conclusão desse projeto. Gostaria de registar, aqui, meu agradecimento a todas e cada uma dessas pessoas.

Assumindo o risco de esquecer de alguém, gostaria de agradecer, especialmente, aos seguintes personagens-chaves neste capítulo da minha história.

À minha esposa, Ana Luiza C. Silveira Mello, parceira da vida, pela leitura das versões do trabalho, pelas sugestões de melhoria e revisão, pela paciência e pelo companheirismo durante todo o tempo em que estive focado neste projeto.

Aos meus pais, Cláudio Alves da Costa e Valquíria Ferreira da Silva, meus eternos professores e fonte de inspiração, pelo suporte, carinho e incentivo providos desde sempre. Um agradecimento especial à minha mãe pela leitura atenta e revisão das versões deste trabalho.

Aos meus irmãos, Raphael Cosfer e Thiago Cosfer, pela parceria de uma vida toda.

Aos meus sogros, Prudente José Silveira Mello e Maria José Hesseine Coelho, pelo incentivo e suporte nessa empreitada.

Ao meu orientador, Prof. Dr. José Sérgio da Silva Cristóvam, por ter me acolhido e guiado nessa empreitada, pelas dicas de melhorias e de aprimoramento do trabalho, pelo tempo precioso que me dispensou, e, ainda, pelo conhecimento compartilhado.

À Profa. Dra. Heloísa Estellita, pelas sugestões que aperfeiçoaram minha pesquisa, pelos insights, pelo tempo precioso que me dispensou, assim como pelo conhecimento compartilhado.

Ao Prof. Dr. Francisco Bissoli Filho, pelo tempo precioso que dispensou na leitura atenta do trabalho, pelas contribuições e sugestões que aprimoraram minha pesquisa e dissertação.

Ao Prof. Dr. Pedro de Menezes Niebuhr, pelo tempo precioso que dispensou na leitura atenta do trabalho, assim como pelas dicas de aprimoramento e aperfeiçoamento do trabalho.

Aos amigos Francisco Hayashi e José Loitey, pela paciente leitura deste trabalho e pelas inúmeras discussões produtivas sobre o tema da

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RESUMO

A punição às pessoas jurídicas pelas infrações a elas imputáveis é questão circundada por grande controvérsia. Por um lado, há aqueles que defendem ser impossível a punição dos entes coletivos (societas delinquere non potest), por não terem eles alma hábil a ser culpada, corpo para ser punido, tampouco mãos para agir. Por outro, há os que defendem a possibilidade de punição sem, no entanto, esclarecer quais critérios de imputação devem ser utilizados nessa tarefa. Como objetivo geral do trabalho, demonstra-se que os critérios de responsabilização das pessoas jurídicas no Direito Administrativo Sancionador brasileiro possuem contornos próprios, semelhantes àqueles existentes no Direito Penal, que não se confundem com os critérios de responsabilização no Direito Civil, no Direito do Consumidor e no próprio Direito Administrativo em relação às obrigações de indenizar. Tais critérios são balizados, sobretudo, pelas garantias da tipicidade e culpabilidade. Ainda, pontua-se que o constituinte brasileiro previu a possibilidade de imposição de punições às pessoas jurídicas em duas ocasiões (art. 175, §3º e art. 225, §3º, CRFB), de modo que, no ordenamento jurídico nacional, incumbem aos estudiosos apenas estudar “como” isso pode ser levado a efeito. O método de abordagem que se utiliza é o hipotético-dedutivo. O método de procedimento de pesquisa é o monográfico. A técnica de pesquisa utilizada é a bibliográfica, a partir de fontes primárias e secundárias. Ao final, chega-se à conclusão de que a responsabilização das pessoas jurídicas no Direito Administrativo Sancionador brasileiro deve dar-se a partir de critérios próprios de imputação, diferente daqueles existentes na responsabilização civil e idênticos àqueles cogitados na responsabilização penal das pessoas jurídicas, o que perpassa, necessariamente, pela construção de conceitos de ação e culpabilidade adequados aos entes coletivos, que são apresentados ao final do trabalho.

PALAVRAS-CHAVES: Direito Administrativo Sancionador. Infrações empresariais. Conduta da pessoa jurídica. Culpabilidade da pessoa jurídica. Responsabilidade sancionadora da pessoa jurídica.

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ABSTRACT

Great controversy surrounds the matter of punishing legal persons for wrongdoings to it attributable. On the one hand, there are those who claim that it is impossible to punish the juristic persons (societas delinquere non potest), because they have no soul to be guilty, no body to be punished and no hands to act. On the other hand, there are those who defend the possibility of corporate punishment without, however, clarifying which criteria should be used in this task. As the main objective of the work, it is shown that the criteria to hold liable legal entities in Brazilian Punitive Administrative Law have their own features, similar to those existing in Criminal Law, which are not to be confused with the existing criteria in Civil Law, Consumer Law and Administrative Law itself when pursuing reparation to the victims of Government wrongdoing. Said criteria are mainly based on the blameworthiness and typicity guarantees. Moreover, it is settled that the Brazilian Constitution prescribe the possibility of imposing punishments on juridical persons on two occasions (article 175, §3 and article 225, §3, of it), that means that, under the national legal system, scholars must examine only “how” it can be done, and no more “if” it can be done. In a procedural perspective, the essay is based in the hypothetical-deductive method, the research procedure method is monographic, and the research technique used is the bibliographical one, from primary and secondary sources. In the end, it is concluded that Corporate liability in Brazilian Punitive Administrative Law should be based on its own criteria, different from those existing in civil liability and identical to those considered in corporate criminal liability, which necessarily demands concepts of conduct (actus reus) and blameworthiness appropriate to juristic persons features, thus presented at the end of the work.

KEYWORDS: Punitive Administrative Law. Corporate wrongdoing. Corporate actus reus. Corporate blameworthiness. Corporate punitive liability.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Quadro comparativo das sanções criminais da Lei 9.605/98 e das sanções administrativas da Lei 12.846/13 ... 87 Quadro 2 – Modelo construtivista de autorreponsabilidade penal empresarial ... 226 Quadro 3 – Quadro comparativo das hipóteses responsabilizadoras das pessoas jurídicas da Lei 9.605/98 e da Lei 12.846/13 ... 247

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 17

1 DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR ... 21

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 21

1.2 PASSADO, PRESENTE E FUTURO DO DIREITO ADMINISTRATIVO ... 21

1.3 BREVE HISTORIOGRAFIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR ... 31

1.3.1 França ... 32

1.3.2 Itália ... 33

1.3.3 Alemanha ... 33

1.3.4 Espanha ... 35

1.3.5 Tribunal Europeu de Direitos Humanos ... 38

1.3.6 Brasil... 40

1.3.6.1 Conclusões extraíveis da breve historiografia da legislação sancionadora brasileira ... 49

1.4 MAPEAMENTO GENÉTICO DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR E SUA AUTONOMIA COMO DISCIPLINA ADMINISTRATIVA ... 52

1.5 ILÍCITOS E SANÇÕES ADMINISTRATIVOS ... 57

1.5.1 Introdução necessária ... 57

1.5.2 Qual o critério diferenciador entre as infrações administrativas e penais? Qual o critério para estremar sanções administrativas das penais? ... 59

1.5.2.1 Critério qualitativo ... 59

1.5.2.2 Critério quantitativo ... 64

1.5.2.3 Critério formal e o critério dogmático ... 67

1.5.3 Qual seria, então, o conceito de ilícito e sanção administrativos? ... 71

1.5.4 Outras medidas gravosas impostas aos particulares pela Administração Pública que não têm conteúdo sancionatório ... 77

1.5.4.1 Medidas ressarcitórias ... 78

1.5.4.2 Medidas de revogação e anulação de atos administrativos ... 80

1.5.4.3 Medidas de polícia ... 82

1.5.4.4 Medidas coercitivas ... 84

1.5.4.5 Medidas rescisórias ... 84

1.5.5 Estrutura das hipóteses normativas sancionadoras ... 85

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CRIMINALIZAÇÃO DE ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS ... 91

1.7 É POSSÍVEL FALAR-SE EM UM DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR BRASILEIRO? ... 94

1.8 CONCLUSÕES PARCIAIS DO CAPÍTULO ... 99

2 GARANTIAS DA LEGALIDADE, NE BIS IN IDEM E CULPABILIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR ... 101

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 101

2.2 LEGALIDADE ... 102

2.2.1 Legalidade no Direito Administrativo Sancionador ... 106

2.2.2 Tipicidade ... 110

2.2.2.1 Lex certa... 113

2.2.2.2 Void for vagueness doctrine e overbreadth doctrine ... 123

2.2.2.3 Lex stricta ... 128

2.2.2.4 Lex scripta ... 129

2.2.2.5 Lex praevia ... 130

2.2.3 Retroatividade favorável ... 132

2.2.4 Estudo comparado. A legalidade, tipicidade, irretroatividade e retroatividade benigna na seara administrativa sancionadora segundo o Direito Positivo alemão, português e espanhol ... 142

2.3 A GARANTIA DO NE BIS IN IDEM ... 147

2.3.1 Critérios para identificação de um bis in idem no caso concreto ... 151

2.3.1.1 Identidade de sujeitos ... 152

2.3.1.2 Identidade de fatos ... 153

2.3.1.3 Identidade de fundamentos ... 154

2.3.2 Critérios de equacionamento do problema do bis in idem ... 155

2.4 CULPABILIDADE E SEUS CONSECTÁRIOS ... 164

2.4.1 Responsabilidade pelo fato próprio ... 173

2.4.2 Pessoalidade ou intranscendência da sanção administrativa 174 2.4.3 Responsabilização subjetiva ou vedação à responsabilização objetiva ... 176

2.4.4 Evitabilidade da conduta típica ... 179

2.5 CAUSAS EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE SANCIONADORA ... 179

2.5.1 Erros passíveis de exclusão ou mitigação da culpabilidade ... 182

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3 CRITÉRIOS DE RESPONSABILIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

... 187

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 187

3.2 INFRACIONALIDADE DE EMPRESA E FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIZAÇÃO SANCIONADORA DAS PESSOAS JURÍDICAS ... 187

3.3 REGIMES DISPONÍVEIS DE ENDEREÇAMENTO DA INFRACIONALIDADE DE EMPRESA, IDENTIDADES E DIFERENÇAS ENTRE ELES ... 195

3.3.1 Existem diferencias substanciais entre responsabilização civil e responsabilização sancionadora ... 196

3.3.2 Não existem diferenças substanciais entre a responsabilização administrativa sancionadora ou criminal da pessoa jurídica ... 198

3.4 DIFICULDADES E PROBLEMAS CENTRAIS INERENTES À RESPONSABILIZAÇÃO SANCIONADORA DAS PESSOAS JURÍDICAS ... 201

3.5 TEORIAS DE RESPONSABILIZAÇÃO SANCIONADORA DA PESSOA JURÍDICA NO ÂMBITO DO DIREITO SANCIONADOR ... 203

3.5.1 Classificação didática das teorias ... 203

3.5.2 Teoria da irreponsabilidade penal das pessoas jurídicas... 205

3.5.3 Teorias Atributivas ou de heterorresponsabilidade ou atomísticas ... 211

3.5.3.1 Respondeat superior doctrine ... 211

3.5.3.2 Teoria da identificação ou do Alter ego ... 216

3.5.3.3 Teoria do conhecimento coletivo (collective knowledge doctrine) ou teoria da agregação (aggregation doctrine) ... 219

3.5.3.4 Teorias por responsabilidade própria ou de autorresponsabilidade ou holísticas ... 220

3.5.3.5 Culpabilidade por defeito de organização ... 221

3.5.3.6 Modelo Construtivista de autorresponsabilidade ... 223

3.5.3.7 Domínio da organização ... 227

3.5.3.8 Política e cultura corporativa ou Corporate ethos doctrine .... 228

3.5.3.9 Abordagem inferencial (Inferential Approach) ... 229

3.5.4 Capacidade infratora ... 231

3.5.5 Uma terceira via: as consequências acessórias ... 232

3.5.6 O Recurso Extraordinário n. 548.181 do STF e a derrocada da teoria da dupla imputação ou da coautoria necessária, anteriormente, prestigiada pelo STJ ... 234

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BRASILEIRO ... 240

3.6.1 A ação das pessoas jurídicas ... 240

3.6.2 A culpabilidade das pessoas jurídicas ... 244

3.6.3 Sobre a inconstitucionalidade da responsabilização sancionadora objetiva das pessoas jurídicas ... 249

3.7 CONCLUSÕES PARCIAIS DO CAPÍTULO ... 252

CONCLUSÃO ... 255

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação de Mestrado em Direito, vinculada à área de concentração “Direito, Estado e Sociedade” e desenvolvida na Linha de Pesquisa “Constitucionalismo, Democracia e Organização do Estado”, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), insere-se nos domínios do Direito Administrativo, Direito Penal e Direito Constitucional, tendo por tema central estudar critérios de responsabilização sancionadora das pessoas jurídicas no Direito Administrativo Sancionador, em especial no que tange às infrações administrativas de maior gravidade, que almejam proteger bens jurídicos de caráter difuso e supraindividual, bastante próximas em conteúdo das infrações penais econômicas.

Para a delimitação do tema, parte-se do que se chamou de “genética comum” do Direito Administrativo Sancionador com o Direito Penal, buscando aproximá-los e, ao mesmo tempo, diferenciar o regime administrativo sancionador de regimes de responsabilidades civil. Com isso, examina-se quais critérios podem/devem ser utilizados para aferir a ação e culpabilidade das pessoas jurídicas no Direito Administrativo Sancionador brasileiro.

O tema é, irrefragavelmente, atual. Afinal, a prática de infrações por e no seio de pessoas jurídicas, sobretudo de sociedade empresariais, é tema central na agenda política e jurídica brasileira. Escândalos de corrupção empresarial endêmica e de tragédias ambientais no seio da atividade econômica ocupam o dia-a-dia dos brasileiros. Daí porque as ferramentas legais que se proponham à punição de ilícitos praticados pelas e no âmbito das pessoas jurídicas devem ser bem compreendidas com a finalidade de serem efetivamente aplicadas, primeiro, viabilizando-se a adoção de comportamentos, pelos entes coletivos, que evitem a sua incursão em práticas infracionais; depois, evitando-se que nulidades prosperem nos processos de responsabilização, o que ameaçaria sua eficácia prática.

O presente trabalho pretende propor critérios mais claros de responsabilização da pessoa jurídica no âmbito do Direito Administrativo Sancionador brasileiro, com o fito de se assegurar mais efetividade à política repressiva às infrações empresariais, o que é aferível pela preservação dos direitos e garantias dos acusados, bem como pela punição dos entes coletivos culpados. Assim, sua teoria de base é a teoria dos direitos e das garantias fundamentais.

O estudo e pesquisa é conduzido em torno do seguinte problema central: existem critérios próprios para a responsabilização das pessoas

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jurídicas no Direito Administrativo Sancionador Brasileiro? Em caso afirmativo, quais critérios são esses?

A seguinte hipótese principal acompanha referido problema central: os critérios de responsabilização das pessoas jurídicas no Direito Administrativo Sancionador não são idênticos àqueles existentes no regime de responsabilidade civil (e.g.: na responsabilidade pelo fato do produto/serviço ou na responsabilidade pelo fato administrativo). Tal responsabilização deve dar-se a partir de critérios próprios de imputação, idênticos àqueles cogitados na responsabilização penal das pessoas jurídicas.

Como objetivo geral da dissertação, pretende-se demonstrar que os critérios de responsabilização das pessoas jurídicas no Direito Administrativo Sancionador brasileiro possuem contornos próprios, semelhantes àqueles existentes no Direito Penal, que não se confundem com os critérios de responsabilização no Direito Civil, no Direito do Consumidor e no próprio Direito Administrativo em relação às obrigações de indenizar.

Citado objetivo geral recebe detalhamento dos seguintes objetivos específicos:

1. historiar a evolução do poder administrativo sancionador nos últimos dois séculos, demonstrando a construção do Direito Administrativo Sancionador como disciplina jurídica autônoma, inclusive no ordenamento jurídico brasileiro; 2. estudar as teorias de diferenciação entre ilícito/sanção

administrativos e penais, conceituando-os e diferenciando a sanção administrativa de outras medidas gravosas impostas aos cidadãos pelo Estado;

3. examinar a formatação que as garantias da tipicidade, do ne bis in idem e da culpabilidade, assim como suas consequências garantísticas, possuem no âmbito do Direito Administrativo Sancionador brasileiro;

4. investigar as dificuldades tradicionais que se atribuem à responsabilização sancionadora das pessoas jurídicas, o tratamento constitucional à matéria da punição das pessoas jurídicas, assim como inventariar as teorias de responsabilização sancionadora das pessoas jurídicas;

5. apresentar, por fim, os critérios de responsabilização que devem nortear a aferição da ação e culpabilidade da pessoa jurídica na atividade sancionadora do Estado, argumentando, ainda, a inconstitucionalidade da responsabilização sancionadora objetiva dos entes coletivos.

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O método de abordagem que se utiliza é o hipotético-dedutivo. O método de procedimento de pesquisa é o monográfico. A técnica de pesquisa utilizada é a bibliográfica, a partir de fontes primárias (basicamente legislação constitucional e infraconstitucional brasileira e comparada) e secundárias (livros sobre temáticas específicas, manuais, artigos de revistas especializadas em suporte físico e digital, teses e dissertações).

O trabalho está estruturado em três capítulos.

No primeiro deles, dedica-se ao estudo do Direito Administrativo Sancionador com o objetivo de demonstrar sua existência como disciplina administrativa autônoma. Para tanto, faz-se uma incursão histórica no próprio Direito Administrativo; delineia-se o contexto histórico do desenvolvimento dos poderes punitivos da Administração Pública; investiga-se a relação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal; apresenta-se os conceitos de infrações e sanções administrativas, essenciais à identificação do âmbito de incidência dessa disciplina e, por fim, exara-se as razões pelas as quais é possível a afirmação da autonomia de tal disciplina como ramo próprio do Direito Administrativo, inclusive, no ordenamento jurídico brasileiro.

No segundo deles, cuida-se dos direitos e garantias fundamentais, subjacentes à disciplina administrativa sancionadora, que se relacionam com o problema desta dissertação. Em vista disso, são analisadas as garantias “guarda-chuva” da legalidade, ne bis in idem e culpabilidade, assim como as respectivas consequências garantística que derivam de cada uma delas. Opta-se por enfocar a questão sob esse prisma, com o fito de se furtar, nesse espaço e na medida do possível, à rica celeuma, bastante recorrente, de diferenciar e conceituar as diferentes naturezas normativas dos princípios, regras e postulados. Preocupa-se, então, em definir o conteúdo mínimo desses direitos e garantias fundamentais, deixando a definição da sua natureza normativa a cargo do intérprete e aplicador do Direito.

No terceiro e último capítulo, aborda-se a problemática da punição das pessoas jurídicas em virtude das infrações cometidas por elas e/ou praticadas no seio. São estudadas as principais ordens de razões que demandam o endereçamento das práticas infracionais dos entes coletivos, quais os regimes de responsabilização disponíveis para tanto, bem como se há um, ou uns, preferíveis em relação a outro, ou outros, e o porquê dessa preferência. São, igualmente, examinados os principais problemas que se enfrenta na tarefa de responsabilização sancionadora das pessoas jurídicas, inventariando-se diversas teorias responsabilizadoras provenientes do Direito Comparado e, também, do ordenamento jurídico

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nacional. Por fim, são propostos critérios para aferição da ação e culpabilidade de pessoas jurídicas válidos para o Direito Administrativo Sancionador brasileiro.

Para arrematar, um disclaimer é necessário: a aprovação da presente dissertação de Mestrado não representa o endosso do Professor Orientador, da Banca Examinadora e do PPGD/UFSC ao conjunto de ideias e considerações sobre as quais se fundamenta ou que nela são expostas.

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1 DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR 1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A primeira parte desta dissertação é dedicada ao estudo do Direito Administrativo Sancionador com o objetivo de demonstrar sua existência como disciplina administrativa autônoma. Para tanto, far-se-á uma incursão histórica no próprio Direito Administrativo; delinear-se-á o contexto histórico do desenvolvimento dos poderes punitivos da Administração Pública; investigar-se-á a relação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal; apresentar-se-á os conceitos de infrações e sanções administrativas, essenciais à identificação do âmbito de incidência dessa disciplina e, por fim, serão exaradas as razões pelas as quais é possível a afirmação da autonomia de tal disciplina como ramo próprio do Direito Administrativo, inclusive, no ordenamento jurídico brasileiro.

1.2 PASSADO, PRESENTE E FUTURO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

O Direito Administrativo é disciplina relativamente recente. Há forte consenso doutrinário de que seu surgimento remonta ao final do século XVIII e início do século XIX, na França pós-revolução de 1789, mais precisamente com a edição Lei do 28 pluvioso do ano VIII (1800)1, que dotou a Administração francesa de “uma organização juridicamente garantida e estável, exteriormente obrigatória a todos os administrados”2 e que simbolizaria a superação da estrutura de poder do Antigo Regime3.

Um acontecimento histórico de bastante relevo ao Direito Administrativo foi o Acórdão do Caso Agnes Blanco4, julgado em 1873

1 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 3. ed. Brasília:

Gazeta Jurídica, 2016, p. 10-11.

2 ARAÚJO, Edmir Netto de. O Direito Administrativo e sua história. Revista da

Faculdade de Direito da U.S.P., São Paulo, v. 95, 2000., p. 152.

3 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos

fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 10.

4 Do Acórdão do Caso Blanco, colhe-se: “La responsabilité, qui peut incomber à

l'Etat pour dommages causés aux particuliers par le fait des personnes qu'il emploie dans le service public, n'est pas régie par les principes établis dans le Code civil pour les rapports entre particuliers : elle n'est ni générale, ni absolue : elle a ses règles spéciales qui varient suivant les besoins du service et la

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pelo Tribunal de Conflitos da França, por meio do qual teria restado assentada, pela primeira vez, a autonomia do Direito Administrativo, segundo boa parte dos administrativistas5. Mas não é só, a relevância do caso repousa ainda no inédito reconhecimento da responsabilidade do Estado por seus atos e/ou por atos de seus prepostos, quando antes prevalecia a irresponsabilidade estatal6. O caso é emblemático, igualmente, por ter sedimentado a existência de regramento especial para definição da responsabilidade da Administração Pública – distinto das regras “comuns” do Direito Civil –, cuja competência para aplicação e julgamento recaia, exclusivamente, sobre a jurisdição administrativa francesa.

Órgãos e instituições administrativos existiram em todas as épocas, editando regras tencionadas a disciplinar seus serviços e funcionários7. Contudo, inexistiam condições de liberdade e democracia que viabilizassem a existência de um ramo do Direito que não apenas disciplinasse e regrasse o funcionamento de tais órgãos e instituições, mas que servisse de instrumento garantidor dos direitos dos cidadãos, inclusive contra o próprio Estado8.

O florescimento da dogmática administrativa é, não raras vezes, associado ao Estado de Direito e ao vicejo da doutrina da separação de poderes9. Não por outro motivo o seu nascimento e evolução é, com frequência, vinculado a um propósito garantista vocacionado a tutelar os direitos e interesses dos cidadãos contra ilegalidades, desmandos e abusos do Estado, de seus serviços e/ou funcionários10. Esse é, sem dúvidas, o

nécessité de concilier les droits de l'Etat avec les droits privés.” FRANÇA. Tribunal des conflits. N° 00012. Publié au recueil Lebon. 8 fev. 1873. Disponível em:

https://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriAdmin.do?idTexte=CETATEXT00000 7605886. Acesso em: 10 jan. 2019.

5 Cf. ARAÚJO, 2000, p. 153; MAFRA FILHO, Francisco de Salles Almeida.

Nascimento e evolução do direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 238, n. 10/12, 2004. p. 168.

6 Esse reconhecimento se deu, posteriormente, pelo Conselho de Estado, após a

definição de competência pelo Tribunal de Conflitos.

7 ARAÚJO, 2000, p. 148. 8 Ibid., p. 151.

9 MAFRA FILHO, 2004, p. 168.

10 José Sérgio da Silva Cristóvam explica essa “versão romantizada” do

florescimento do Direito Administrativo: “O nascimento do Direito Administrativo e do próprio Estado de Direito estariam visceralmente vinculados ao sistema de separação de poderes, tributário das ideais de garantia das

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propósito precípuo do Direito Administrativo presente, mas não era assim no passado.

O estudo acurado das suas origens revela uma versão não tão romantizada ou, avocando lição do jurista português Vasco Pereira da Silva, uma “infância difícil” do Direito Administrativo recém-nascido11. Aliás, Gustavo Binenbojm afirma que “a associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de Direito e do princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária caracteriza erro histórico”12.

Vasco Pereira da Silva aponta dois “traumas” sintomáticos dessa “infância difícil”. O primeiro deles seria a existência de uma jurisdição administrativa própria e exclusiva para julgamento dos atos da Administração, uma espécie de “privilégio de foro” para julgar-se a si própria. O segundo deles seria o já citado caso Agnes Blanco, o qual, não obstante o mérito de reconhecer a possibilidade de responsabilização do Estado, reconhece a autonomia do Direito Administrativo, mas como sendo um “direito especial” que levasse em conta o “estatuto de privilégios” do Estado. Ao comentar o episódio, Vasco pondera se tratar de “um ‘triste começo’ para o Direito Administrativo, cujo nascimento fica associado a uma história de negação dos direitos dos particulares”13,14.

liberdades individuais e de restrição à invasão injustificada do Estado na esfera de direitos dos cidadãos. As arbitrariedades e os abusos do Estado Absolutista, fundado na figura centralizadora do rei legislador, administrador e julgador, restariam substituídos por um sistema de limitações e contenções internas e externas do poder político” (CRISTÓVAM, José Sergio da Silva. Administração pública democrática e supremacia do interesse público: novo regime jurídico-administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes. Curitiba: Juruá, 2015. p. 80).

11 Para um aprofundamento nessa “gênese autoritária” do Direito Administrativo,

Cf. BINENBOJM, 2014; CRISTÓVAM, 2015, p. 78-87; OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007. p. 269-331; e SILVA, Vasco Pereira da. O contencioso administrativo no divã da psicanálise: ensaio sobre as acções no novo processo administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 09-168.

12 BINENBOJM, 2014, p. 11. 13 Ibid., p. 09 a 11.

14 Em sentido contrário, criticando essa “história alternativa” das origens do

Direito Administrativo, Cf. GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do direito administrativo: uma crítica da crítica. In: BACELLAR FILHO, Romeu

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Na mesma senda, leciona José Cristóvam que o Direito Administrativo “tem sua gênese claramente assinalada por um direito de prerrogativas e privilégios especiais da Administração (direito da Administração), derrogatório dos postulados de igualdade informadores do Direito Civil, e não como um direito de garantia dos cidadãos (direito dos administrados)”15. A embrionária natureza especial, com notas autoritárias, da disciplina, inclusive, pode ter sido o motivo pelo qual os ingleses se recusaram a abraçar a ideia de autonomia de um Direito da Administração, tal como se percebia na França. Isso porque, no Reino Unido, a Administração estava submetida a um regime de direito comum, isto é, submetia-se ao controle judicial, ao rule of law e ao due process of law em igualdade de condições com os particulares. Pontua Edmir Netto de Araújo que “o Estado não poderia ter prerrogativas administrativas e processuais, como no Direito francês, não tinha a chamada puissance publique e deveria litigar em igualdade de condições com os particulares.” Diz-se, então, que a relação entre Administração e cidadão, no Direito britânico de antanho, era marcada pela horizontalidade, ao passo que no Direito francês essa relação era, marcadamente, vertical, por meio da qual a Administração se colocava em posição de supremacia nas relações com os cidadãos e mesmo com seus próprios agentes16.

Portanto, o Direito Administrativo não surge de um pacto de submissão do Executivo ao Parlamento, da Administração Pública à Lei, surge de uma decisão autovinculativa do próprio Executivo17. Autovinculativa porque incumbia à Administração Pública julgar-se a si mesma, bem como definir a extensão e conteúdo das normas especiais às quais se submetia, furtando-se às disposições do Direito Civil18.

Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coord.). Direito Administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 155-201.

15 CRISTÓVAM, 2015, p. 84-85.

16 ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 2. ed. rev. e

atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 157-158.

17 BINENBOJM, 2014, p. 11.

18 Vasco Pereira da Silva explica que o “Direito Administrativo é, na sua origem,

um direito de criação jurisprudencial, elaborado pelo Contencioso Administrativo”. Explica o jurista, ainda, que a acepção da separação dos poderes francesa era moldada de modo que “julgar a administração era ainda administrar” e não o tradicional “julgar a administração é ainda julgar”. Haveria, então, certa “promiscuidade” entre o poder administrativo e o judicial. Nas palavras de Vasco: “aquilo que se criou em nome do princípio da separação entre autoridades administrativas e judiciais não foi a separação mas a “confusão” entre o poder

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A dogmática administrativa, pois, origina-se mais como “direito da Administração” do que como “direito dos cidadãos”, razão pela qual é possível afirmar que se havia um propósito garantista nessa recém-nascida disciplina jurídica, tal propósito apontava em favor da Administração, não dos cidadãos19.

A feição mais recente do Direito Administrativo, sem dúvidas, encerra uma finalidade garantística em prol da liberdade individual. Essa finalidade, acreditada como existente nas origens da disciplina administrativa, cuja desmistificação se propôs nas linhas anteriores, é, hoje, de existência real e concreta. Assim, conquanto alheio ao nascimento do Direito Administrativo, o propósito protetivo do cidadão foi paulatinamente germinando e evoluindo com o passar do tempo. A tal desenvolvimento evolutivo, paulatino e gradual, distanciando-se da autoridade e caminhando em direção à liberdade, Vasco Pereira da Silva atribui a qualidade de “milagre”20.

Paulo Otero, administrativista lusitano, denuncia certa contradição no desenvolvimento do Direito Administrativo. Ele explica que se, por um lado, são incrementadas as garantias aos particulares, por outro lado, a Administração tenta “escapar a um grau mais elevado de respeito por essas garantias que se encontram consagradas em normas administrativas, passando a pautar sua atuação em amplos setores por regras e princípios alheios ao Direito Administrativo”21 – o que se identifica, sobretudo, na passagem do Estado Providência para o Estado Regulador, mediante a privatização de suas atividades, transferindo-as a agentes privados com o concomitante desenvolvimento de forte regulação desses setores

administrativo e o judicial, o que se erigiu foi um sistema em que o administrador era juiz e o juiz era administrador” (SILVA, 2009, p. 14).

19 BINENBOJM, 2014, p. 15.

20 SILVA, 2009, p. 55: “O “milagre” do Direito Administrativo não é, pois, o da

“doutrina Blanco”, que constitui antes um momento traumático decorrente das circunstâncias do surgimento do novo ramo jurídico, mas sim o da superação dos traumas desse “início difícil”. [...]só a pouco e pouco é que o Direito Administrativo vai deixando de ser o direito dos “privilégios especiais” da Administração, para se tornar no direito regulador das relações jurídicas”. Milagre mesmo, é essa sua transformação de ‘direito da Administração’ em Direito Administrativo ou, se se preferir, é a comprovação de que “Deus escreve ‘Direito’ (neste caso, Administrativo) por linhas tortas.’”

(26)

transferidos à iniciativa privada22,23.

A evolução da dogmática administrativa é, ainda, predicada de paradoxal. Como visto, o Direito Administrativo, conquanto não seja visceralmente jungido ao Estado de Direito, teve, ao menos, sua existência fertilizada por ele. O paradoxo residiria no fato de que se verificou, no processo evolutivo narrado, que mesmo com a descontinuidade de diversos modelos constitucionais ao longo desse período, as categorias, institutos, princípios e regras da disciplina administrativa mantiveram-se, de certa forma, “alheios às sucessivas mutações constitucionais”. É o que Binenbojm atribuiu o título de processo de descolamento do Direito Constitucional24.

O passado mais recente e o presente do Direito Administrativo é

22 Gustavo Binenbojm identifica esse desenvolvimento contraditório do Direito

Administrativo a partir, por exemplo, da sua fuga para o direito privado, utilizando-se de termo cunhado por Maria João Estorninho. O jurista assevera que “se o regime administrativo se caracteriza por uma combinação de ‘prerrogativas e restrições’, a fuga para o direito privado permite que as administrações centrais (ou diretas) conservem suas prerrogativas, despindo-se das restrições por meio da constituição de entidades administrativas com personalidade de direito privado. [...] Assiste-se, assim, à emergência de ‘filhotes híbridos’ da vetusta dicotomia entre a gestão pública e a gestão privada: a atividade de gestão pública ‘privatizada’ (regime administrativo flexibilizado) e a atividade de gestão privada ‘publicizada ou administrativizada’” (regime privado altamente regulado) (BINENBOJM, 2014, p. 20).

23 A esse respeito, Nuno Brandão comenta a passagem do Estado Providência

para o Estado Regulador mediante um movimento privatizador das atividades materiais do Estado que foi acompanhado do surgimento, em Portugal, das Agências Administrativas Independentes, à semelhança daquelas existentes no Direito Norte-Americano, as quais, a um só tempo, congregam funções legislativas, executivas e jurisdicionais (BRANDÃO, Nuno. O direito contra-ordenacional económico na era da regulação. In: LOUREIRO, Flávia Noversa (Coord.). A Proteção dos direitos humanos face à criminalidade económica globalizada: atas da Conferência Internacional: 9 de dezembro de 2016. Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos: Braga, 2017. p. 92-99).

24 Nessa senda, Binenbojm leciona: “Com efeito, embora trigado sob o signo do

Estado de Direito, para solucionar os conflitos entre autoridade (poder) e liberdade (direitos individuais), o direito administrativo experimentou, ao longo do percurso histórico, um processo de descolamento do direito constitucional. A própria descontinuidade das constituições, em contraste com a continuidade da burocracia, contribuiu para que o direito administrativo se nutrisse de categorias, institutos, princípios e regras próprios, mantendo-se de certa forma alheio às sucessivas mutações constitucionais” (BINENBOJM, 2014, p. 18-19).

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marcado por um processo inverso a este de descolamento da dogmática constitucional. A disciplina administrativa passa a receber forte influxo das normas constitucionais, fenômeno que se dignou intitular de constitucionalização do Direito Administrativo. Referido fenômeno é identificável nas mais variadas searas do Direito, não sendo luxo do Direito Administrativo. Prosperou no período posterior à Segunda Guerra Mundial, sendo repercussão daquilo que Cristóvam designa de Estado Constitucional de Direito, modelo de Estado de Direito estruturado com o fim de “suplantar a ordem de instabilidade política e social” do período. Também de acordo com Cristóvam, dois são os traços caraterísticos e fundantes do Estado Constitucional de Direito, a saber: (i) supremacia da Constituição e (ii) caráter vinculante dos direitos fundamentais25.

Aqui, convém um breve esclarecimento. A expressão constitucionalização do direito é plurissignificativa,26 albergando, pois, mais de um sentido, ideia ou noção. Em vista disso, impõe-se um esclarecimento semântico no sentido de que referida locução será utilizada, neste trabalho, para encerrar a ideia de “um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico”, conforme assinala Luís Roberto Barroso27.

No Brasil, é com a Constituição de 1988 que se passou a verificar, com intensidade visível a olho a nu, a constitucionalização do sistema

25 CRISTÓVAM, 2015, p. 75-79.

26 Luis Roberto Barroso explica que a locução constitucionalização do direito

pode se referir, igualmente, para caracterizar qualquer ordenamento jurídico no qual vigorasse uma Constituição dotada de supremacia. Pode, igualmente, “servir para identificar, ademais, o fato de a Constituição formal incorporar em seu texto inúmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais do direito” (BARROSO, Luís Roberto. A constitucionalização do direito e suas repercussões no âmbito administrativo. In: ARAGÃO, Alexandre dos Santos; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 32).

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jurídico nacional28,29. A partir daí identifica-se “um interessante e sofisticado movimento de substituição da legalidade, como fonte reitora da disciplina jurídico-administrativa, pela própria Constituição, fator de verticalização e direta parametrização normativa da atuação administrativa”30.

Alguns reflexos desse fenômeno devem ser destacados31. O primeiro deles seria a releitura dos institutos das próprias disciplinas jurídicas, agora, pela ótica constitucional32. O segundo, intrinsicamente

28José Sérgio da Silva Cristóvam assevera que: “A constitucionalização do

Direito, que no Brasil somente passa a operar mais firmemente a partir do advento da Constituição Cidadã, acaba por inaugurar um processo de reestruturação não somente das bases da teoria constitucional, mas da própria disciplina jurídica em geral, espraiando renovadas luzes e reflexos normativos em todas as direções e aos mais longínquos e recônditos espaços do universo jurídico nacional” (CRISTÓVAM, 2015, p. 325).

29 À mesma conclusão chega BARROSO, 2008, p. 40-41. 30 CRISTÓVAM, 2015, p. 212.

31 Luís Roberto Barroso elenca mecanismos de atuação prática da

constitucionalização do direito: “Esta realização concreta da supremacia formal e axiológica da Constituição envolve diferentes técnicas e possibilidades interpretativas, que incluem: a) o reconhecimento da revogação das normas infraconstitucionais anteriores à Constituição (ou à emenda constitucional), quando com ela incompatíveis; b) a declaração de inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais posteriores à Constituição, quando com ela incompatíveis; c) a declaração de inconstitucionalidade por omissão, com a consequente convocação à atuação do legislador ou do administrador; d) a interpretação conforme a Constituição, que pode significar (i) a leitura de norma infraconstitucional da forma que melhor realize o sentido e o alcance dos valores e fins constitucionais a ela subjacentes e (ii) a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto, que consiste na exclusão de uma determinada interpretação possível de norma – geralmente a mais óbvia – e a afirmação de uma interpretação alternativa, compatível com a Constituição (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 44).

32 Binenbojm assinala que: “a supremacia da Lei Maior propicia a impregnação

da atividade administrativa pelos princípios e regras naquela previstos, ensejando uma releitura dos institutos e estruturas da disciplina pela ótica constitucional” (BINENBOJM, 2014, p. 70). No mesmo sentido, Marçal Justen Filho explica que “enfoque constitucionalizante acarreta submeter a interpretação jurídica de todas as instituições do Direito Administrativo a uma compreensão fundada concreta e pragmaticamente nos valores constitucionais” (JUSTEN FILHO, Marçal. O direito administrativo de espetáculo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de;

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ligado ao primeiro, é a consagração da técnica da interpretação conforme à constituição, por meio da qual se deve excluir possibilidades interpretativas que não se coadunam com os mandamentos constitucionais33. O terceiro consubstanciar-se-ia não em uma releitura dos tradicionais institutos do Direito Administrativo, mas uma em uma leitura constitucionalizada dos novos institutos e estruturas da disciplina, que passam a sofrer filtragem constitucional, conforme lição de Luís Roberto Barroso34. É dizer, a constitucionalização do Direito milita na conformação dos velhos e novos institutos e estruturas jurídicas com os dispositivos e valores constitucionais.

Como bem apontou José Cristóvam, esse movimento constitucionalizante permite falar em um “novo regime jurídico-administrativo, uma disciplina aberta, dinâmica, dialética e dialógica, fundada lógica, axiológica, metodológica e ideologicamente na trindade estruturante dos princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado democrático de direito e no princípio republicano”35. A doutrina, costumeiramente, tem identificado alguns efeitos diretos da constitucionalização do Direito Administrativo, a dizer: (i) a redefinição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado36; (ii) a vinculação do administrador diretamente à Constituição, com relativa perda de soberania da lei, o que se costuma chamar de princípio da juridicidade37; (iii) a possibilidade de controle judicial do mérito administrativo38, (iv) incremento da consensualidade na Administração

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 65-85).

33 Binenbojm leciona que referida técnica hermenêutica “proclama que, dentre

várias exegeses possíveis de determinado enunciado normativo, deve o intérprete, desde logo, excluir aquela que o torne incompatível com os ditames da Lei Maior” (BINENBOJM, 2014, p. 67).

34 Para Luís Roberto Barroso, na filtragem constitucional, os dispositivos,

institutos e estrutura “devem ser lidos e apreendidos sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados” (BARROSO, 2012, p. 43).

35 CRISTÓVAM. 2015, p. 317.

36 A esse respeito, Cf. BARROSO, 2012, p. 49; BINENBOJM, 2014, p. 83-121;

CRISTÓVAM, 2015, p. 121-201; JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 26, 1999. p. 115-136.

37 Sobre o princípio da juridicidade, Cf.. BARROSO, 2012, p. 50; BINENBOJM,

2014, p. 131-183; CRISTÓVAM, 2015, p. 248-257.

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Pública39 e a esses efeitos não se pode deixar de agregar a construção teórica de um Direito Administrativo Sancionador.

É evidente que esse movimento ainda não se ultimou. Marcará um futuro próximo do Direito e, mais especialmente, do Direito Administrativo40, cuja produção normativa está em pleno funcionamento. São exemplos dessa atividade legiferante ativa, apenas para nominar alguns, a Lei 12.846/1341, chamada Lei Anticorrupção, que criou um microssistema sancionador de responsabilização objetiva de pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração Pública, nacional ou estrangeira; a Lei 13.140/1542, que, dentre outras coisas, criou a categoria dos direitos indisponíveis, mas transigíveis, o que pode ter construído

39 Sobre consensualidade na Administração Pública, Cf. ALMEIDA, Fernando

Dias Menezes de. Mecanismos de consenso no direito administrativo. In: ARAGÃO, Alexandre dos Santos; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 335-349.

40 Não seria ousado cogitar-se, num futuro próximo, da existência de um novo

regime jurídico-administrativo caracterizado por diversos micro regimes jurídico-administrativos ou regimes jurídico-administrativos setorizados. Edmir Netto de Araújo, já nos idos dos anos 2000, apontavam a existência de um Direito Administrativo brasileiro setorizado, inspirado por diversas influências estrangeiras: “Inaugura-se, daí em diante, o que poderíamos chamar de fase atual do Direito Administrativo brasileiro, que alcança nossos dias com uma elaboração doutrinária em grande parte própria e original, pois as influências estrangeiras, cada vez mais setorizadas, passam a servir mais como subsídios para as soluções nitidamente brasileiras, em relação aos grandes temas administrativos: atos e contratos administrativos, Itália e Alemanha; responsabilidade do Estado e dos funcionários, França; Justiça administrativa, Estados Unidos; concessões, França, e assim por diante” (ARAÚJO, 2006, p. 165).

41 BRASIL. Casa Civil. Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a

responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03//_Ato2011-2014/2013/Lei/L12846.htm. Acesso em 10 jan. 2019.

42 BRASIL. Casa Civil. Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a

mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera a Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972;

e revoga o § 2o do art. 6o da Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm. Acesso em 10 jan. 2019.

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os pilares de uma Administração Pública Consensual; a Lei 13.303/1643, que dispôs sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, regulamentando, finalmente, o artigo 173, da Constituição da República, que previa a existência de regime jurídico próprio a tais empresas; Lei 13.506/17, que dispôs sobre o processo administrativo sancionador na esfera de atuação do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários e, por fim, a Lei 13.655/1844, que promoveu alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro incluindo dispositivos sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.

1.3 BREVE HISTORIOGRAFIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

Se o próprio Direito Administrativo possui raízes relativamente recentes, o que dizer do Direito Administrativo Sancionador? Esse subregime-jurídico do Direito Administrativo, na qualidade de dogmática jurídica, só começou a ganhar corpo, na Europa, após meados do século XX45. Não por coincidência, seu florescimento se deu quase que

43 BRASIL. Casa Civil. Lei n. 13.303, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o

estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13303.htm. Acesso em 10 jan. 2019.

44 BRASIL. Casa Civil. Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018. Inclui no

Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Decreto-Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13655.htm. Acesso em 10 jan. 2019.

45 Para uma historiografia aprofundada das origens do Direito Administrativo

Sancionador europeu, Cf. PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. El poder sancionador de la Administracion y la crisis del sistema judicial penal. Revista de Administración Pública, Espanha, n. 67, 1977. p. 41-94; LOZANO CUTANDA, Blanca. Panoramica general de la potestad sancionadora de la administracion em europa: ‘despenalizacion’ y garantia. Revista de Administración Pública, Espanha, n. 121, 1990. p. 393-414; NIETO, Alejandro. Régimen sancionador de las administraciones públicas: últimas novidades. Passos recientes del processo sustantivizador del Derecho Adminisrativo Sancionador. Cuadernos de derecho local, Madrid, n. 14, 2007. p. 7-13; PATIÑO, Omar Albeiro Mejía. Reseña histórica del derecho administrativo

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simultaneamente aos Estados Constitucionais de Direito46, tendo ganhado notável importância nos Estados prossecutores do bem-estar social, em que houve uma expansão das áreas de intervenção estatal e, por consequência, do Direito Administrativo em si. Mas sua consolidação ocorrerá apenas no recente Estado Regulador47. Tal como se aperceberá na breve incursão histórica que se propõe a fazer, a evolução desse ramo do direito sancionador é sempre “uma expressão do paradigma sócio-econômico de cada época e do papel que ao Estado aí foi sendo sucessivamente reservado”48.

O Direito Administrativo Sancionador experimentou caminhos evolutivos distintos em cada um dos países do continente europeu49. 1.3.1 França

Na França, as infrações e sanções administrativas eram apuradas pela e impostas no bojo da jurisdição penal, que contavam com a participação da Administração Pública, seja como parte assistente do parquet – órgão acusador –, seja como auxiliar do juízo na instrução do feito. Ainda, existiam mecanismos processuais para simplificar o processamento e julgamento dos desvios administrativos, seja através da atribuição de uma valoração probatória maior aos elementos de prova e informação produzidos pela Administração, seja mediante a previsão de hipóteses de pagamento de multas, que poderia evitar a deflagração do procedimento criminal. Assim, as infrações administrativas, apesar de

sancionador. Revista Novum Jus, Universidad Católica de Columbia, v. 2, n. 1, 2008. p. 259-284.

46 Sobre um conceito de “Estado Constitucional de direito” Cf. CRISTÓVAM,

2015, p. 75-79.

47 Cf. LOZANO CUTANDA, 1990, p. 397-398; QUINZACARA, Eduardo

Cordero. El Derecho administrativo sancionador y su relación con el Derecho Penal. Revista de Derecho, Barranquilla (Colombia), v. 25, n. 2, 2012. p. 136; e BRANDÃO, 2017, p. 87-92.

48 BRANDÃO, 2017, p. 87.

49 José Suay Rincon explica que, nos demais países europeus, na passagem do

Antigo Regime para o Estado Constituicional, ao contrário do que foi verificado na Espanha, houve uma judicialização (penalização) das infrações, conferindo-se aos juízes penais “el ejercício del poder punitivo, y los jueces vinieron a ejercer este poder, al menos, por algún tempo, si no em régimen de monopólio, casi em exclusiva.” (RINCON, José Suay. La potestade sancionadora de la Administración y sus exigências actuales: un estudio preliminar. Documentación Administrativa, Espanha, n. 280-281, 2008. p. 44-45).

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processadas perante a Justiça criminal, não estavam sujeitas aos mesmos procedimentos de processamento e julgamento dos crimes propriamente ditos50.

1.3.2 Itália

Na Itália, a imposição de sanções administrativas também era monopólio da Justiça penal. De forma semelhante, adotava-se um rito adaptado ao processamento e julgamento de tais infrações, simplificado e com procedimentos mais expeditos. Previa-se hipóteses legais em que o acusado pudesse evitar a instauração da ação penal mediante uma conciliação prévia com o Estado-juiz e/ou mediante o pagamento de multa, mecanismos que almejavam endereçar um potencial congestionamento da Justiça penal51.

1.3.3 Alemanha

Características semelhantes foram observadas na Alemanha, onde, também, incumbia à jurisdição penal a aplicação das sanções administrativas, neste país conhecidos como infrações contra-ordenacionais. É valioso destacar que a Alemanha experimentou uma inflação legislativa criminalizadora durante o período que se inicia com a República de Weimar, continuando-se durante a Segunda Grande Guerra Mundial e que é acentuada no pós-guerra, quando se verifica uma hipertrofia do Direito penal nas mais diversas áreas: econômica, tributária, sanitária, urbanística, para dizer algumas52. Lucía Alarcón Sotomayor assinala que o legislador alemão, durante esse período, utilizou-se do Direito Penal mais como prima ratio do que como ultima ratio, como se exigiria por força do princípio da intervenção mínima do Direito Penal53.

Assim, na França, Itália e Alemanha, a construção paulatina de um Direito Administrativo Sancionador ocorre, incialmente, associada a um processo de despenalização, seja mediante a criação de um processo administrativo fora da justiça penal, seja mediante transformação de

50 PARADA VÁZQUEZ, 1977, p. 48-50. 51 Ibid., p. 60-61.

52 LOZANO CUTANDA, 1990, p. 400.

53 ALARCÓN SOTOMAYOR, Lucía. Los confines de las sanciones: en busca de

la frontera entre Derecho penal y Derecho administrativo sancionador. Revista de Administración Pública, v. 195, Madrid (Espanha), 2014. p. 157.

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crimes em ilícitos administrativos54. A intenção era diminuir a amplitude alcançada pelo Direito penal durante as grandes guerras, assim como aliviar a sobrecarga de trabalho que acometia o Judiciário, o qual, “saturado de procesos penales, muchos de ellos de escasa relevancia social, se encuentra incapacitado para perseguir con eficiencia y rapidez los delitos más graves”55. O mesmo processo é verificado em Portugal56, em que a criação de um direito sancionatório extrapenal se deu em função de um processo de descriminalização, chamado por alguns de “purificação do direito penal”57. Justamente por se tratar de consequência de um processo de descriminalização, o Direito Administrativo Sancionador, nesses países, chamado de Direito das Contra-ordenações, apresentará como traço distintivo a consagração de uma suposta diferenciação qualitativa entre ilícitos contra-ordenacionais e penais, ficando relegados a esse novo ramo sancionador, ainda que inicialmente, os ilícitos bagatelares58.

54 Cf. LOZANO CUTANDA, 1990, p. 400; PATIÑO, 2008, p. 270-27 e

OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Direito de intervenção e direito administrativo sancionador: o pensamento de hassemer e o direito penal brasileiro. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 90.

55 LOZANO CUTANDA, 1990, p. 398.

56 RINCON, 2008, p. 45; NEVES, Ana Fernanda. O Direito disciplinar da

função pública. 2007. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa. 2007, p. 212.

57 Nuno Brandão, jurista português, explica que “quando é introduzido no

ordenamento jurídico português, o direito contra-ordenacional aparece umbilicalmente ligado a um movimento descriminalizador dirigido a uma purificação do direito penal, mas surge também imerso num modelo de Estado marcadamente dirigista e interventor na economia” (BRANDÃO, 2017, p. 88). Em Portugal, essa disciplina sancionatória “extrapenal” receberá semelhante designação daquela adotada na Alemanha: Direito das Contra-ordenações ou de Direito Mera Ordenação Social. Para um aprofundamento, no Direito Contra-Ordenacional Português e na sua possível relação com o Direito Administrativo Sancionador Brasileiro, Cf. PUERARI, Adriano Farias. O Direito de mera ordenação social português como rumo de criação de um espaço próprio ao direito administrativo sancionador brasileiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016.

58 Sobre as origens do Direito de Mera Ordenação Social Português e sua

concepção original como Direito Sancionador das “bagatelas penais”, Cf. BRANDÃO, 2017, p. 99-118.

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1.3.4 Espanha

Na Espanha, o processo evolutivo seguiu outros caminhos. Ao contrário do que se testemunhou no resto do continente europeu, no ordenamento jurídico espanhol não havia qualquer vinculação entre a instância administrativa sancionadora e a justiça penal. A sanção administrativa só poderia ser impugnada perante os tribunais de contencioso-administrativo por meio de recursos que não tinham efeito suspensivo e, em alguns casos, estavam condicionados à regra do solve et repete59. Segundo Parada Vázquez essa evolução sui generis do Direito Administrativo Sancionador espanhol, mediante clara desvinculação do poder sancionador administrativo da justiça penal, pode ser explicada pela inadequação do processo penal espanhol para o fim de tutelar os interesses da Administração, o que ocorreria por três ordens de razão, a saber: (i) a ausência de participação da Administração Pública no processo, nem por seus funcionários, nem por seu órgão de representação judicial – como na França se fazia, por exemplo – e ausência de valoração probatória diferenciada à atividade administrativa de apuração das infrações; (ii) ambiguidade de natureza e caráter do Ministério Público, como titular da ação penal, o qual, sociologicamente, tenderia a se posicionar mais em favor dos interesses da sociedade do que do Estado e interesses administrativos concretos; por fim, (iii) a rigidez da regra do nulla poena sine iudicio, pois, no direito espanhol, não havia, na época, mecanismos de conciliação e/ou resolução judiciais inaudita parte de modo que toda sanção originava um julgamento, ao contrário da França e Itália, o que ensejava uma potencial sobrecarga da justiça penal60.

Portanto, enquanto vigorava, no restante da Europa, o princípio do monopólio da jurisdição penal para fins de aplicação de qualquer reprimenda estatal, inclusive aquelas previstas na legislação administrativa, na Espanha se testemunhou uma inflação do poder sancionatório administrativo61.

A história dessa hipertrofia da potestade administrativa sancionadora em terreno espanhol pode ser dividida em três etapas,

59 PARADA VÁZQUEZ, 1977, p. 67. 60 Ibid., p. 85-86.

61 CEREZO MIR, J. Limites entre el derecho penal y el derecho administrativo.

Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo 28, fas./mes. 2, 1975. p. 161-162; PARADA VÁZQUEZ, 1977, p. 61.

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segundo Patiño62 e Parada Vázquez63. Num primeiro momento, em meados do século XIX, entre a Constituição de Cádiz (1812) até a Ditadura de Primo de Rivera (1923), houve reconhecimento de poderes sancionadores à Administração Pública local (municipal) via legislação ordinária, esses poderes teriam amplitude definida por Lei e, via de regra, estavam limitados quantitativamente, tanto em matéria de valores, como de dias de detenção64.

O curioso é que a Constituição Espanhola de 1812, no seu artigo 172, proibia o rei de impor qualquer pena aos indivíduos, proibição que era extensiva a todo o Executivo, tendo previsto um “monopólio punitivo do Judiciário”65,66. A repressão estava a cargo da função judicial e só ela poderia impor qualquer tipo de medida aflitiva. No entanto, o alcade, espécie de prefeito da época, acumulava com a sua função administrativa, funções jurisdicionais para julgamento de causas civis de baixas quantias e infrações penais de menor potencial ofensivo. Apesar da clara proibição constitucional, os agentes administrativos, sobretudo alcades e gobernadores, passaram a receber competências sancionadoras de índole não judicial da legislação ordinária. O Código Penal Espanhol de 1848, em seu art. 493, buscou limitar essa crescente competência sancionatória ao estabelecer que as legislações municipais e normativas da Administração Pública não poderiam estabelecer penas maiores do que aquelas impostas por ele (Código Penal) às faltas, equivalente ao instituto brasileiro da contravenção penal67. Mas ao buscar tal limitação, ao mesmo tempo em que se estabeleceu uma ordem de gravidade entre sanções administrativas e criminais68, citado dispositivo legal acabou, de certo modo, por admitir a existência dessa competência repressiva da Administração. Mas essa competência sancionadora só acaba reconhecida, definitivamente, pelo Conselho Real Espanhol ao sentenciar (Decreto-sentencia de 31 de outubro de 1849) uma espécie de “incidente de conflito de competência” entre um governador civil e um juiz de

62 PATIÑO, 2008, p. 259-284. 63 PARADA VÁZQUEZ, 1977, 69-74. 64 PATIÑO, 2008, p. 263-264.

65 CABANA, Patrícia. La despenalización de las faltas: entre la agravación de las

penas y el aumento de la represión administrativa. Indret: Revista para el análisis del derecho, Barcelona, v. 3, 2014. p. 12-13.

66 PARADA VÁZQUEZ, 1977, p. 69-74.

67 Sobre a divisão bipartida dos crimes no direito espanhol, Cf. CABANA, 2014,

p. 9-10.

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primeira instância em que se discutia a possibilidade de os alcades imporem sanções outras, diferentes daquelas impostas às faltas no âmbito de sua função jurisdicional. O Conselho Real reconhece, então, o poder sancionatório da Administração, justificando-o como derivado da própria essência do Poder Executivo, poder cuja autoridade seria inimaginável sem a faculdade de “castigar seus súditos”. A partir daí, multiplicam-se as legislações ordinárias atributivas de competências sancionadoras à Administração69. Segundo Patiño, a expansão dos poderes administrativos sancionatórios, nesse período, teria sido movida por uma “desconfianza en el poder judicial para reprimir las sanciones previstas en normas administrativas”70.

O segundo momento foi marcado por uma tendência de consolidação do Direito Administrativo Sancionador e sua expansão às altas esferas do governo, identificando-se seu marco inicial no Estado Intervencionista, com características autoritárias, capitaneado por Primo de Rivera, a partir de 192371, encerrando na II República Espanhola em 193972.

O terceiro momento é, enfim, o de consolidação do Direito Administrativo Sancionador, com sua proliferação a todas as esferas administrativas73, marcada, ainda, por uma expansão às novas áreas de intervenção do Direito Administrativo, como matérias de ordem

69 PARADA VÁZQUEZ, 1977 70 PATIÑO, 2008, p. 266. 71 Ibid., p. 267.

72 Parada Vázquez conta que se engana quem acha que com a caída da ditadura

de Primo e restabelecimento da II República, haveria uma reversão do processo expansionista das competências sancionadoras: “La II Repúbilca fue inconsecuente consus princípios democráticos y no menos dura en diseño de la represión administrativa que lo fue la Dictadura”. Conta o jurista espanhol que o parlamento da República municiou o Executivo de leis sancionadoras repletas de disposições arbitrárias e pouco cuidadosas com os direitos dos acusados. A Ley de La Defensa de La República de 21 de octubre de 1931, por exemplo, albergava tipos demasiadamente abertos, sem previa oportunidade de defesa do acusado e sem a possibilidade revisibilidade judicial da sanção imposta. Narra, ainda, que, depois, sobreveio a Ley de Orden Público del 28 de julio de 1933, cujos prazos para o exercício de oposição à infração eram exíguos (em regra, 48 horas) e a revisibilidade judicial não estava dotada de efeito suspensivo, havendo, ainda, a possibilidade de se determinar a prisão, por um prazo de até 1 mês, daquele que não pagasse a multa imposta pela autoridade administrativa (PARADA VÁZQUEZ, 1977, p. 79-81).

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