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Evolução_livro a Ciência por dentro_ Cap 1_escrito

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Livro: A Ciência por dentro, Newton Freire-Maia, 7ª Edição 2007,

editora Vozes,

264p.

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Newton Freire-Maia Depto. de Genética, UFPR Caixa Postal 19071 81504 Curitiba, PR

I

Que é ciência?

1. Ciência-disciplina e ciência-processo

A ciência pode ser visualizada sob dois aspectos fundamentais: a ciência já feita (tal como é ensinada) e a ciência-processo (que está sendo feita). A primeira é a disciplina (ciência formalizada) que o professor ministra aos seus estudantes e estes devem aprender na linha pela qual é ensinada para que possam fazer exames e ser aprovados. Aliás, os alunos aceitam a disciplina que lhes é ministrada na base da autoridade dos seus professores e dos livros em que estudam.

A ciência-processo (ciência em vias de fazer-se) é a ciência que o cientista realiza e que pode ser dividida em duas fases: a própria pesquisa (isto é, os procedimentos de investigação) e a divulgação de seus resultados (isto é, sua publicação original). Essa tripla distinção é essencial: de um lado, a ciência- disciplina, tal como é ensinada em vários níveis de complexidade e, de outro, a ciência pesquisa (que possui dois estágios). A primeira é um pacote; e a segunda é um processo. Enquanto a ciência-pesquisa claramente representa algo de inacabado, sempre em fase de ampliação e retificação, a ciência-disciplina, com o fim de se facilitar sua didática, é, muitas vezes, ministrada de forma dogmática, isto é, com características opostas às de sua fonte.

Ciência-disciplina: conjunto de descrições, interpretações, leis, teorias, modelos, etc., que visa ao conhecimento de uma parcela da

realidade e que resultou da aplicação de uma metodologia especial (metodologia científica).

Ciência-processo: primeiro estágio - atividade, na base de uma metodologia especial (metodologia científica), que visa à

formulação de descrições e interpretações, leis, teorias, modelos, etc., sobre uma parcela da realidade; segundo estágio - divulgação dos resultados assim obtidos.

A primeira, pelo menos nos graus mais elementares de seu ensino, pode parecer um edifício acabado, irretocável, cheio de verdades (as "verdades científicas"); a segunda, pelo contrário, como já foi dito, revela que se trata de algo em contínua elaboração, ampliação e revisão.

E nível de primeiro grau, há um velho preconceito de que o ensino deva sempre caráter dogmático. O bom professor, no entanto, já iluminará a mente dos jovens estudantes com problemas científicos e mesmo com pequenos projetos de pesquisas, contando-lhes que nem tudo está elucidado, que as explicações não são absolutamente certas, que as teorias se encontram em contínuo processo de renovação e aperfeiçoamento, que mesmo criança e jovens podem realizar investigações capazes de elucidar certos problemas, etc. À medida que o estudante faz sua maravilhosa caminhada ao longo dos cursos, até atingir a pós-graduação, deverá, cada vez mais, ir desenvolvendo seu espírito crítico, preparando-se, em alguns casos, para ser, ele próprio, um cientista. Nunca, dessa forma, o estudante entrará em contato com a ciência como se esta fosse algo definitivo e dogmático.

Essa importante diferença entre ciência formal (disciplina já feita e irretocável) e ciência-processo (em fase de realização e, por isto mesmo, marcada por hipóteses provisórias) aparece de forma precisa na primeira aula (dada a 23 de dezembro de 1854) do curso de fisiologia experimental aplicada à medicina, proferido por Claude Bernard (1813-1878) no College de France, em Paris'. Pela excelência de suas palavras permito-me fazer uma longa citação do grande cientista:

Todo mundo sabe que o ensino no Collège de France é de uma natureza diferente do que caracteriza as faculdades; que ele atende a outras necessidades; que se dirige a outro público; que sua maneira de proceder é essencialmente diferente. / Aqui, o professor, sempre situado no ponto de vista da investigação, deve considerar a ciência, não no que ela possui de adquirido e assegurado, mas nas lacunas que apresenta, para se esforçar por preenchê-las com novas pesquisas. E, pois, às mais árduas e obscuras questões que ele de preferência se acomete, diante de um auditório já preparado, por estudos anteriores, a abordá-las. / Nas faculdades, ao contrário, o professor, situado no ponto de vista dogmático, propõe-se a reunir, numa exposição sintética, o conjunto de noções positivas que a ciência possui, ligando-as por meio desses laços que se chamam teorias, destinadas a dissimular, tanto quanto possível, os pontos obscuros e controvertidos que perturbariam, sem proveito, o espírito do aluno iniciante. / Desta forma, esses dois tipos de ensino são, por assim dizer, diametralmente opostos. O professor da faculdade vê a ciência no seu passado; ela é, para ele, como se fosse perfeita no presente; ele a vulgariza ao expor dogmaticamente o seu estado atual. O professor do Collège de France, ao contrário, deve ter os olhos voltados para o desconhecido, em direção ao futuro. / Longe de estar concluída, a ciência da vida apresentar-se- nos-á com suas imperfeições; preocupar-nos-emos sem cessar, não com o que está feito, mas com que resta a fazer; e essa direção progressiva é tanto mais importante - vós o compreendereis sem dificuldades - quanto a ciência de que aqui nos ocupamos se encontra mais distanciada de seu completo desenvolvimento. / E preciso, Senhores, estabelecer com precisão nosso ponto de vista para bem compreender o tipo de liberdade que há em nossas aulas e a variedade de assuntos que este ensino comporta; aqui, programa algum poderia ser rigorosamente seguido, contrariamente aos cursos das faculdades, necessariamente enquadrados em um programa periodicamente recomeçado e nunca ultrapassando o nível dos conhecimentos adquiridos. Pode-se, aqui, mudar de assunto todos os anos, todos os semestres; e, mesmo no decurso de um semestre, nosso plano poderá modificar-se, atingindo um filão de pesquisas interessantes, houver beneficio para a ciência em prossegui-lo sem demora. / Em uma palavra, escolhemos nossos estudos sob a única condição de realizar esforços incessantes com o fim de cooperar para o progresso da fisiologia c da medicina, procurando realizar esse progresso em todas as questões que possamos atingir e por todos os meios que se encontrem a nosso alcance (p. 10-11).

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2. Ciência e conhecimento vulgar

Há um limite preciso entre ciência (tal como praticada pelos cientistas) e senso comum (que as pessoas sem formação científica usam em suas observações do dia-a-dia). É o que Gaston Bachelard (1884-1962) chamou de “Corte epistemológico"1. Graças a este,

trata-se de esferas cognitivas diferentes, embora se possam referir à mesma realidade. A ciência acrescenta critério metodológico, rigor e maior capacidade preditiva ao conhecimento vulgar, ainda que este, de modo trivial e assistemático, também descubra fatos, formule explicações e desenvolva teorias.

Matallo Júnior2 (p. 15) dá-nos uma excelente definição de senso comum: "[...] é um conjunto de informações não-sistematizadas

que aprendemos por processos formais, informais e, às vezes, inconscientes, e que inclui um conjunto de valorações. Essas informações são, no mais das vezes, fragmentárias e podem incluir fatos históricos verdadeiros, doutrinas religiosas, lendas ou partes delas, princípios ideológicos às vezes conflitantes, informações científicas popularizadas pelos meios de comunicação de massa, bem como experiência pessoal acumulada. Quando emitimos opiniões, lançamos mão desse estoque de coisas da maneira que nos parece mais apropriada para justificar e tornar os argumentos aceitáveis".

Como bem lembra Bertrand (Arthur Willian) Russel (1872-1970)" (p. 11 e 12), o método científico, "apesar de sua simplicidade essencial", só é empregado por uma fração insignificante de pessoas para resolver uma fração insignificante de assuntos. Consulte-se qualquer cientista sobre patriotismo, música, esportes, artes plásticas, amor, guerra, política, cinema, amizade, impostos, teologia, democracia, racismo, etc., e ver-se-á que ele sempre usará o senso comum, talvez impregnado de dogmatismo - que repudiaria se se tratasse dos problemas que aborda cientificamente. Para Russel, a ciência não passa de "senso comum educado" (1872-1970, p. 71).

O senso comum julga-se dono de verdades eternas. Não tendo o refinamento da ciência, guarda as suas "verdades" com zelo e recusa-se a aceitar as teorias científicas que as contradigam. Assim é que o heliocentrismo teve de esperar cerca de dois séculos para se integrar à cultural geral, enquanto a teoria da evolução ainda está muito longe de ser consensualmente aceita.

O senso comum acredita que diferentes pessoas, vendo o mesmo fenômeno, sempre vêem a mesma coisa. Isso é um puro equívoco; há figuras de cubos, pirâmides, escadas, rostos, etc. que, examinadas até pela mesma pessoa, podem se mostrar, depois de alguns segundos, diferentes da forma como se mostravam a princípio. Quando duas pessoas olham umas dessas figuras, pode acontecer que, num mesmo momento, uma esteja vendo algo bem diferente do que vê a outra. A expressão "eu vi com os meus próprios olhos" não oferece garantia alguma de que seja verdade o que se diz.

A ciência não é o senso comum aprofundado, refinado ou "educado". Ele criou as teorias da Terra plana, da Terra centro estático do universo, dos seres vivos criados instantaneamente e imutáveis desde então, do Homem sem ligações de origem com os demais seres vivos, etc. A ciência mudou tudo isso apesar de tudo isto estar alicerçado em "dados". Estes não mudaram; mudou a sua interpretação. Se as coisas fossem como parecem ser, não seria preciso a ciência para tirar, do que está escondido, a interpretação correta dos fatos.

O conhecimento vulgar não gera o conhecimento científico. O cientista pode, através do primeiro, descobrir algo a pesquisar e, aí sim, fazer ciência. Ele realiza, então, um "corte epistemológico", deixando de lado o que Bachelard chamou de "obstáculo epistemológico". Porque o conhecimento vulgar é superficial e ingênuo. Um eminente cientista contou que, certa vez, em conversa com um asiático que vivia em nível de cultura tribal muito atrasada, ouviu deste a informação de que, à noite, o Sol voltava ao seu lugar de origem (o nascente), para reproduzir, no dia seguinte, o seu percurso normal em direção ao poente:

- E por que não o vemos voltar? - É porque está escuro.

Em suma, o Sol seria visto de dia porque está claro; obviamente, não poderia ser visto na escuridão da noite.

Depois de analisar oito postulados da física clássica, elaborados por O.L. Reiser - proposições "evidentes" diante do conhecimento vulgar -, Bachelard diz o seguinte: "São consideradas evidentes porque são simples e familiares; colocam-se justamente na base do conhecimento vulgar porque efetivamente o conhecimento vulgar é todo ele construído sobre estes alicerces. Mas outras construções são possíveis, e as novas construções científicas como a relatividade, a teoria dos quanta, a mecânica ondulatória ou a mecânica de Dirac não continuam o conhecimento vulgar, mas nascem de Uma crítica e de uma reforma dos seus postulados"' (p. 73).

Essa posição descontinuísta não é de aceitação geral. Há quem admita (Russel, como vimos) a existência de uma continuidade entre ciência e senso comum, no sentido de que a primeira flua do segundo, apenas possuindo, em geral, uma maior sofisticação. Karl Popper (1902-) também diz que "toda ciência e toda filosofia são senso comum esclarecido" (p. 42)3. Ele reconhece que o senso

comum é "um ponto de partida vago" e que a construção se erige "sobre alicerces inseguros", mas que, apesar disto, "podemos aprender com os nossos enganos, com a compreensão de que fizemos um erro" (p. 43). Para Popper, pois, "nosso ponto de partida é o senso comum" e "nosso grande instrumento para progredir é a crítica" (p. 43).

Várias parcelas da ciência possuem menor segurança do que outras parcelas do conhecimento vulgar. Isto é facilmente compreensível: a ciência vai mais longe e, por isto, muitos de seus voos não têm o mesmo grau de precisão a que chegou o conhecimento vulgar em várias áreas que aborda. Quando se trata do mesmo ponto, é de se esperar, no entanto, que a ciência seja mais segura, mais exata, mais refinada; não se pode afirmar, porém, que tudo o que seja científico seja mais preciso e mais certo do que tudo o que nos vem do conhecimento vulgar.

A posição descontinuísta, acima mencionada, refere-se à "ciência moderna" (que muitos aceitam como tendo surgido com Galileu -1564-1642) e ao conhecimento vulgar igualmente de hoje. Porque não há dúvida de que a ciência, tal como a conhecemos atualmente, resultou de um longo processo de maturação com início no Homem primitivo, que, de forma tosca, já manifestava preocupações "filosóficas" e "científicas". Assim é que tecnologias rudimentares, formas de escrita, tentativas de classificação,

sii/ici. técnicas de metodologia científica. Papirus: Campinas [CARVALHO, Maria Cecília M (org.)l.

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senvolvimento de terminologias, documentos matemáticos, observações astronômicas, etc. - tudo isso gerou-se aos poucos, lado a lado com a "filosofia" e a religião, dentro de alguns milênios anteriores à nossa era. A filosofia grega (que incluía a ciência de seu tempo) teve início no século VII a.C.; costuma-se, por exemplo, colocar o nascimento da "ciência natural" grega em Tales de Mileto (ca. 640-562), para quem o elemento fundamental de todas as coisas seria a água. A tese da estrita continuidade histórica foi muito bem expressa por Forbes e Dijksterhuis4: "A nossa ciência moderna descende segundo uma linha contínua e ininterrupta dos

pensamentos de Tales e de homens do mesmo quilate de seus contemporâneos5. Temos tanta justificação para iniciarmos a história

das ciências com ele como para começar a biografia de uma pessoa a partir da altura [época] em que era uma criança" (p. 36). Dois pontos merecem ser aqui acentuados. Primeiro: Em suas observações corriqueiras do dia-a-dia e em suas opiniões extracientíficas, os cientistas usam o senso comum e não a metodologia que costumam empregar no seu trabalho profissional. Segundo: Há um fluxo inegável da ciência para o conhecimento vulgar. Através dos meios de comunicação de massa, o conhecimento científico - às vezes, recentíssimo - é difundido entre o público em geral que, desta forma, passa a adotar termos, explicações, teorias e leis (oriundos da ciência e, em geral, mal digeridos), que costuma repetir sem que saiba justificar.

3. Uma definição de ciência

Os filósofos da ciência não costumam propor definições de ciência. Creio que essa precaução se deve a pelo menos três razões: 1) toda definição tende a ser incompleta (sempre limitante, é, por isto mesmo, excludente); 2) o problema é muito complexo, como se poderá ver ao longo deste livro; 3) dificilmente dois filósofos da ciência concordariam sobre como definir - isto é, fazer caber numa formulação reduzida - todo o objeto de seus estudos.

Há diferentes conceitos de ciência. Colocando de lado as preocupações epistemológicas de alto nível e usando os elementos básicos aqui já referidos como característicos da ciência-disciplina e da ciência-processo, podemos apresentar uma tentativa simplificada e tosca de definição: Ciência é um conjunto de descrições, interpretações, teorias, leis, modelos, etc., visando ao conhecimento de uma parcela da realidade, em contínua ampliação e renovação, que resulta da aplicação deliberada de uma metodologia especial (metodologia científica).

4. Ciência pura e ciência aplicada

Antigamente, chamava-se de ciência pura a que não tivesse preocupações e nem possibilidades previsíveis de aplicação (por exemplo, sistemática de abelhas, comportamento sexual de drosófilas, astronomia lunar, etc.). Por outro lado, ciência aplicada era a que diretamente se voltava para a solução de problemas práticos e, como tal, apresentava uma perspectiva próxima de aplicação (por exemplo, a química das sulfas ou dos antibióticos, a física dos meios de propulsão, a tecnologia da extração de minérios radiativos, etc.).

Hoje, a ciência é vista por outro ângulo. Como várias pesquisas da antiga "ciência pura" acabaram tendo aplicação e outras tantas da chamada "ciência aplicada" terminaram não produzindo os frutos esperados, prefere-se, em geral, dizer ciência básica e aplicações da

ciência, isto é, tecnologia. A primeira não visa diretamente ao seu aproveitamento na área da utilização prática, mas pode vir a

encontrá-lo; isto significa que ela se faz com a única preocupação de resolver problemas de conhecimento, sem excluir a possi-bilidade de que possa vir a ter poderosa influência no setor que não foi procurado de início. A tecnologia, por outro lado, visa, de início e durante todo o seu trajeto, à procura de uma aplicação.

A biologia molecular realizou, entre os anos 40 e 60 do século XX, um progresso semelhante ao da química dos fins do século XVIII aos anos 1930. Ela surgiu e se desenvolveu sem preocupações de aplicação, mas, além de continuar a ser uma ciência básica, tornou-se, nos últimos anos, com a engenharia genética e os estudos sobre vírus, uma tecnologia. Além desse aspecto, é importante lembrar que, à medida que evolui a tecnologia, podem igualmente se ampliar as possibilidades de aplicação de uma ciência básica. Por exemplo: a astronomia, cujos conhecimentos foram antigamente usados para fins religiosos (marcar datas de festas e cerimônias), agrícolas (determinar épocas de chuva, de frio, etc.; de plantio e colheita, etc.), astrológicos, etc., hoje é imprescindível ao desenvolvimento da astronáutica.

Não há, pois, dois tipos de ciência - um "puro" e outro "aplicado". O que há é ciência e aplicações da ciência. O que há é a pesquisa básica (que pode gerar aplicações) e a pesquisa tecnológica (que diretamente visa a essas aplicações).

Exemplo típico de pesquisa tecnológica é o que se refere à supercondutividade. Trata-se da capacidade que possuem certos elementos (chumbo, mercúrio, nióbio), quando muitíssimos resfriados (a temperatura da ordem de 270°C negativos), de conduzir a eletricidade com resistência nula, isto é, sem aquecimento e sem perda. Esse fenômeno foi descoberto pelo físico holandês Heike Kamerlingh-Onnes (1853-1926), em 1911, tendo lhe valido o Prêmio Nobel dois anos depois. Por vários motivos, as possibilidades de emprego prático dos supercondutores só surgiram por volta de 1960, sendo que nos anos 1970 e 1980 é que as pesquisas tecnológicas começaram a dar os seus primeiros resultados práticos. A aplicação "natural" dos supercondutores está, obviamente, na feitura de cabos para o transporte, a longas distâncias e sem perda, de energia elétrica - tecnologia especialmente útil em países como o Brasil. Mas há outras. Por exemplo: nos trens projetados para correr a alta velocidade (acima de 300km/h), torna-se inviável o emprego de rodas e trilhos, devendo manter-se o veículo acima de seu suporte. Para isto, usa-se a suspensão por "colchão de ar" ou a suspensão por levitação magnética. Para esta última, os supercondutores podem ser de utilidade. Inúmeras pesquisas estão sendo realizadas em alguns países (por exemplo, no Japão e na Alemanha) para viabilizar e aperfeiçoar a levitação magnética por supercondutores.

4 FORBES, R.J. & DIJKSTERHUIS, EJ. (s.d.). História da ciência e da tecnologia - Vol. I: Da Antigüidade ao século XVII. Lisboa: Ulisséia [Trad. de H. Silva Horta], 5 Anaximandro (ca. 610-547), Anaxímenes (ca. 550-480) e Heráclito (540-475). Outros filósofos gregos viveram mais ou menos na mesma época: Pitágoras (570-497), Parmênides (535-450), Leucipo (500-430), etc. Aristóteles, com quem a ciência grega atingiu o apogeu, é de 384-322.

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Assim como "o microscópio cria a microbiologia" (BACHELARD", p. 117), o desenvolvimento tecnológico vai criando oportunidades não só para o surgimento de novas ciências como para o desenvolvimento, de forma dantes insuspeitada, das ciências já existentes. Referirei um fato: a espaçonave Voyager-2, ao atravessar, no dia 24 de janeiro de 1986, o plano equatorial de Urano (descoberto por Sir Willian Hershel, 1738-1822, em 1781), verificou que esse planeta possui não apenas as cinco luas que, com dificuldade, se vêem da Terra - Oberon, Titânia, Umbriel, Ariel e Miranda (aqui referidas da mais externa à mais interna) -, mas também outras dez, que circundam Urano em órbitas cada vez menores. Oberon, na órbita mais externa, dista 583.400km do centro do planeta (que tem 25.600km de raio), enquanto a menorzinha e mais interna de todas está apenas a cerca de 600km de sua superfície. As cinco grandes luas têm os seguintes diâmetros aproximados (km): Miranda (500), Ariel e Umbriel (1.200), Titânia e Oberon (1.600), enquanto que, nas menores, o diâmetro é de apenas cerca de 40-80km em nove e 160km em uma (a mais externa). Uma minuciosa e fascinante análise da operação Voyager-2 e da situação geológica das luas uranianas (com fotos das seis maiores) pode ser encontrada no artigo do Johnson e cols.6

No final do século XVIII, Luigi Galvani (1737-1798) observou que descargas elétricas provocavam contração em músculos de rã e outros animais. Verificou ainda que, ao pendurar patas de rã, por meio de arames de cobre, em barras de ferro, também ocorria contração muscular sempre que as patas tocassem o ferro, assim fechando o circuito ferro-cobre-pata-ferro. Galvani explicou o fenômeno admitindo que a eletricidade seria gerada pelos tecidos da pata de rã e apenas conduzida pelos metais. O físico Alessandro Volta (1745-1827) não concordou com essa explicação, uma vez que julgava que a eletricidade seria formada pelo arco resultante do contato entre os metais. Essa controvérsia teve importante papel heurístico. Volta construiu um dispositivo gerador de eletricidade que consistia em chapas de dois diferentes metais dispostos alternadamente (por exemplo, cobre e zinco) e separados por pano ou papel umedecido num eletrolito. Estava, assim, descoberta a pilha voltaica, composta de células voltaicas (cada grupo dos dois diferentes metais separados por uma solução salina ou ácida). Note-se que as palavras volt e voltagem, de uso internacional, derivam do nome do grande físico. Por outro lado, Galvani voltou às suas experiências e provou a existência de eletricidade nos tecidos vivos (isto é, mesmo sem o emprego de metais), tendo criado a preparação que hoje se denomina de pata galvanoscópica. Estas e outras palavras, como galvanômetro e galvanizar, têm origem no nome do famoso fisiologista italiano. Como se vê, como diz Lineu Freire-Maia no seu interessante artigo de que tirei esse exemplo (Ciência pura ou aplicada?). Ciênc. Cult., 30 (3), 1979, p. 49-51), da controvérsia entre Volta e Galvani, a ciência obteve duas grandes descobertas: a pilha e o conceito de eletricidade animal. Ambos estavam fazendo ciência básica; uma delas gerou imediatamente um notável avanço tecnológico, enquanto a outra (eletricidade animal), sendo um importantíssimo achado de ciência "pura", possibilitou, mais tarde, o desenvolvimento de uma série de aparelhos que fazem parte da tecnologia médica (por exemplo, os que se usam para investigações sobre o coração, tal como a eletrocardiografia).

O artigo de L. Freire-Maia aborda outros problemas sobre ciência "pura" e ciência aplicada, como a controvérsia entre Lissenko e a genética na ex-URSS e suas repercussões na agricultura soviética, a descoberta e a aplicação da penicilina, o desenvolvimento de linhagens brasileiras de café resistentes à ferrugem (doença causada pelo fungo Hemileia vastatrix) no Brasil (por Alcides Carvalho e L.C. Mônaco) e a descoberta de anti-histamínicos específicos para controle da secreção gástrica e tratamento da úlcera duodenal. O autor do artigo acha que não se devem pôr de lado os programas urgentes para a solução de problemas tais como a desnutrição, a es-quistossomose, a doença de Chagas, o desenvolvimento de formas alternativas de energia (por exemplo, o álcool), em países tais como o Brasil, mas que não se pode esquecer "que o progresso de um país, a longo prazo, depende fundamentalmente da ciência pura, alicerçada na criatividade".

A genética é a ciência que estuda a variação e a hereditariedade, isto é, procura descobrir a origem da multiplicidade de formas dentro de uma mesma espécie e o modo pelo qual se herdam as várias características. As bases dessa ciência foram lançadas em 1865, por um frade agostiniano - o genial abade Gregor Mendel (1822-1884) -, na base de cruzamentos entre variedades de ervilhas. Por mais incrível que possa parecer, as pesquisas do grande frade constituem, atualmente, a base da genética médica (que estuda a herança dos distúrbios hereditários), da eugenia (que procura meios de diminuir a frequência de anomalias genéticas nas populações humanas), da agricultura (que luta por criar novas e melhores variedades de plantas úteis ao homem) e da zootecnia (cuja principal finalidade é a obtenção de raças de animais dotados de maior serventia). Ora, como se vê, de trabalhos aparentemente inúteis, surgiu, mais uma vez, uma vasta messe de realizações dotadas de incalculável importância.

O grande geneticista americano Hermann Joseph Muller (1890-1967) (Prêmio Nobel em 1946), publicou, em 1927, os resultados de suas pesquisas de vários anos: havia descoberto que a ação dos raios X sobre pequenas moscas chamadas drosófilas provocava, em seus descendentes, um aumento da frequência de mutações. Essa descoberta fundamental não tinha aplicações práticas e poderia ser tachada, por algum observador desavisado, como destituída de valor para a humanidade. Baseados, porém, nessa descoberta, outros cientistas fizeram, mais tarde, agir os raios X sobre o cogumelo que produz a penicilina e, de sua descendência, obtiveram linhagens que produziam mais penicilina do que as linhagens naturais conhecidas. Uma descoberta aparentemente sem importância veio produzir, pois, mais tarde, um fato de alta significação prática para a humanidade. Não se esqueça, no entanto, que, desde o início, a descoberta de Muller ampliava o espectro da ação biológica das radiações ionizantes, desta forma revelando o maior perigo de seu uso indiscriminado.

A 15 de outubro de 1776 falecia, em Londres, o mercador John Ellis. Em nossos dias, seu nome é célebre, não porque tenha exercido, com eficiência, a sua atividade comercial, mas porque possuía uma mania: com paciência beneditina, costumava recortar algas de cores variadas e, colando-as sobre tábuas, compunha belos desenhos que causavam grande admiração a todos. Certo dia, um amigo aconselhou-o a realizar alguns "quadros" para as princesas de seu país e, então, John Ellis, na intenção de produzir obras ainda mais valiosas, saiu à cata de material, tendo coletado um grande número de plantas. Passou a examinar, com cuidado, todos os vegetais que havia colhido e, depois de muito observá-los, chegou à espantosa conclusão de que muitas daquelas "plantas" eram, na

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Livro: A Ciência por dentro, Newton Freire-Maia, 7ª Edição 2007,

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realidade, animais... Com isto, John Ellis, um mercador de Londres, alargou o campo da zoologia e, assim, trouxe uma preciosa contribuição ao progresso da ciência. Seus estudos continuaram, ainda, por anos a fio e, perguntado sobre qual a finalidade de tanto esforço, respondeu: "[...] para mim, essas pesquisas abriram novas perspectivas de assombro e maravilha, ao contemplar quão variadamente, quão extensamente a vida está distribuída pelo universo das coisas; por isso, é possível que os fatos aqui relatados, e esses exemplos da natureza animada, num campo até hoje totalmente ignorado, venham a provocar, em outros, idéias igualmente agradáveis". John Ellis fazia ciência pela própria ciência; apenas queria descobrir novos fatos, desejava apenas alargar a visão que a humanidade tem das coisas.

O grande cientista húngaro Albert von Szent-Gyorgyi (1893-1986), Prêmio Nobel em 1937, que realizou importantes estudos sobre processos de combustão biológica e descobriu a vitamina C, também possuía ideias semelhantes: "O homem que se lança ao trabalho com o intuito de descobrir qualquer coisa útil deveria, realmente, ser expulso do laboratório".

Em suma, da ciência básica podem brotar possibilidades insuspeitadas de aplicação, mas há alta frequência de cientistas que não está interessada nessas possibilidades. Eles fazem ciência como John Ellis e Szent-Gyorgyi.

5. Ciências formais e factuais

As ciências são geralmente classificadas em formais e reais (ou fatuais). As primeiras são as lógico-matemáticas; como nelas não se pode demonstrar tudo, parte-se de princípios que devem ser aceitos sem demonstração (axiomas). As várias disciplinas matemáticas constroem-se sobre essas proposições primitivas; são ditas axiomáticas. Também a geometria é uma ciência formal. Para se saber que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois retos não se desenharam triângulos e não se mediram seus ângulos para, depois, em cada caso, se realizar a soma dos três. Certamente que, com tal método, descobrir-se-ia que a relação é apenas aproximada.

As outras ciências (reais) já lidam com fatos. Podem ser classificadas em dois grupos - as naturais (física, química, biologia...) e as

humanas (psicologia, sociologia, economia, etc.) (cf. COSTA, 1977, p. 9 e 59)".

6. Ciência, filosofia e filosofia da ciência

A ciência visa a procura da verossimilhança - isto é, do que nos pareça ser verdadeiro. O cientista acredita que, em geral, parte dos fatos para, em seguida, elaborar a sua "descoberta". A crença popular de que a ciência conduz à verdade deriva de outra crença: a de que são os fatos que geram a descoberta. E como, segundo o refrão popular, contra os fatos não há argumentos, assim se desenvolveu o mito de que a ciência pode tudo explicar e que, por definição, suas explicações são verdadeiras.

Nada disso é correto. A pesquisa mais elementar parte de uma hipótese (teórica) e mesmo a mais simples descoberta não é gerada pelos fatos mas resulta de uma interpretação deles.Como se vê, hipótese na entrada e hipótese na saída. Os fatos da ciência são, pois, fatos selecionados, interpretados, marcados de teoria. Não há, para a nossa apreensão, fatos "brutos", "puros", em estado "natural". É falsa, pois, a doutrina de que os objetos sejam exatamente como parecem ser ("realismo ingênuo" de Bertrand Rus- sel;"[...] nunca vemos o que pensamos que vemos" (RUSSEL, 1949, p. 58).

Não é raro que cientistas formulem ideias diferentes diante dos mesmos dados. É a teoria que cada um aceita que o faz apreender os dados não como realmente são mas como cada teoria diz que devem ser. Essa atribuição de sentido aos fatos pela teoria foi referida, por exemplo, em 1986, pelo paleontologista R. Lande. Ele declarou que, relativamente a gradualismo, estase e mudança rápida (problemas ligados à moderna teoria da evolução), vários eminentes cientistas "com diferentes pontos de vista chegaram a conclusões opostas a respeito das mesmas séries de dados"". Aliás, esse conflito de interpretações é comum nas várias subteorias - além das mencionadas - da teoria geral da evolução (por exemplo, as ligadas à seleção natural, à deriva, ao polimorfismo, à filogênese, etc.).

Há quem distinga entre ciência e filosofia, crendo que aquela nos daria conhecimentos seguros e, às vezes, irretocáveis (leis da física, teoremas matemáticos, algumas teorias biológicas, etc.), enquanto a segunda - com pretensões acima das nossas capacidades - apenas nos ofereceria "visões do mundo" sujeitas, em geral, a sofrer total descrédito. A Teoria da Evolução (na sua formulação mais geral), o teorema de Pitágoras, a lei de Boyle-Mariotte, etc., seriam "fatos" insofismáveis, enquanto os sistemas de Santo Tomás de Aquino e de Karl Marx (para só citar dois exemplos extremos) seriam conjuntos de proposições antagônicas que continuam vivos apenas porque criaram escolas que recebem amplo crédito por parte de seus adeptos. Há, como bem se pode ver, uma descomunal simplificação nesta maneira de pensar. Nem a ciência é uma fornecedora perene de "verdades" e nem as doutrinas filosóficas só têm o valor de composições musicais que podem agradar a uns e não a todos. Ambas pretendem procurar a "verdade", se bem que os cientistas sabem que o que realmente encontram é a verossimilhança. A filosofia não seria a sabedoria, "só digna dos deuses", se-gundo Pitágoras (570-497), mas o "amor da sabedoria" (filosofia): a ciência também o é em grande parte. Ambas se distinguem, no entanto, da fé religiosa que pode ter a certeza com base em critérios que transcendem as da filosofia e da ciência. Mas o que muitas vezes acontece é que os cientistas, também com elementos sabidamente insatisfatórios, afirmam saber o que, na verdade, apenas crêem saber. Há uma fé científica, que obviamente difere da fé religiosa, mas que não deixa de ser também uma fé. Aceitar, por exemplo, que a megaevolução seja produzida pelos mesmos mecanismos (estes, aparentemente bem conhecidos) que promovem a microevolução não deixa de ser um ato de fé.

A ciência não flutua no vácuo. Não há cientista que seja só cientista; ele ( também cidadão de uma cultura, político, filósofo, etc., mesmo que não tenha consciência disso. Quem fala mal da política ou da filosofia está, sem o saber, tomando uma posição política ou filosófica'

Outro ponto a ser assinalado é que a filosofia não pode ser aceita como uma simples "continuação" da ciência, no sentido de que, depois de obtido um conhecimento científico, se possa fazer a "filosofia" desse conhecimento, desta forma construindo-se toda a filosofia. Isto realmente pode (e deve) ser feito, mas, como diz Henri Bergson'1 (1859-1941), ainda é tarefa do próprio cientista.

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Livro: A Ciência por dentro, Newton Freire-Maia, 7ª Edição 2007,

editora Vozes,

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da filosofia à de simples auxiliar e continuadora da ciência, indo, desta forma, mais além que esta, mas pelos mesmos caminhos. Cada ciência pode e deve ser sua filosofia, diz Bergson, mas essa filosofia é ainda ciência e quem a deve fazer é o próprio cientista. A filosofia feita pelos filósofos tem dimensões maiores e alcances mais profundos.

Se a ciência é a busca da verossimilhança através da interpretação de fatos, a filosofia da ciência procura saber como os cientistas atingem sua pretendida meta (se é que a atingem), isto é, como se faz ciência. Em outros termos, é uma reflexão sobre os pressupostos fundamentais e os procedimentos gerais da pesquisa científica. Dessa forma, podemos visualizar três níveis: os fatos, a ciência (que estuda os fatos) e filosofia da ciência (que estuda a ciência).

Para John Losee (1932)1', que propõe a visão acima (a filosofia da ciência como uma criteriologia de segunda classe, sendo a

ciência uma criteriologia de primeira classe), a primeira aborda problemas tais como: 1) Que características diferenciam a indagação científica de outros tipos de indagação? 2) Que procedimentos devem ser seguidos pelos cientistas?

3) Que condições precisam ser satisfeitas para que uma explicação científica possa ser aceita como correta? 4) Qual é o estado cognitivo dos princípios científicos? (leis, teorias, etc.).

A proposição e tentativa de solucionar problemas desse tipo representam a tomada de uma posição que se situa acima da prática da própria ciência, que apenas procura descrever, relacionar, prever, modificai e explicar os fatos

Os cientistas não precisam estudar filosofia da ciência para saber como fazer ciência. Essa atividade é aprendida pelos jovens iniciantes, no trabalho diário, ao lado dos cientistas mais experimentados e estudando trabalhos científicos originais. Assim fazendo, o jovem candidato cientista desenvolverá sua "técnica" de elaborar pesquisas e de redigir comunicações científicas (cf. cap. IX-2).

Mas isto não basta. Se o cientista pretende ser um intelectual de alto gabarito, deve ir mais além. Metido na estreiteza de sua especialidade, corre risco de não ter consciência plena dos pressupostos filosóficos que tacitamente aceita e nem dos procedimentos gerais que sua mente elabora ao longo da investigação. É a filosofia da ciência que poderá armá-lo com esses conhecimentos. Sem eles, o cientista nem mesmo saberá descrever as regras necessárias e suficientes para desenvolver um bom trabalho científico - isto é, nem mesmo saberá contar, com precisão, como é que realiza todos os processos de seu trabalho.

A filosofia da ciência é imprescindível para um julgamento crítico do método científico: para situar, com precisão, o conhecimento científico dentro do contexto global do saber; para ensinar uma terminologia adequada aos inúmeros passos de uma investigação; para explicitar os processos que o cientista muitas vezes emprega sem plena consciência, etc. É o filósofo da ciência que sabe a que meta realmente se dirige a pesquisa científica, que possibilidades há de que essa meta seja atingida, que tipos de erros podem ser cometidos ao longo do caminho, etc.

Como se verá neste livro, a filosofia da ciência não se confunde com a teoria positivista ou neopositivista, para a qual só tem valor o conhecimento científico e o critério da significação de qualquer assertiva se reduz à possibilidade de sua verificação (cf. cap. III-6).

Sendo a filosofia da ciência uma "filosofia" da "ciência", "fica muitas vezes cantonada nas duas extremidades do saber: no estudo, feito pelos filósofos, dos princípios muito gerais, e no estudo, realizado pelos cientistas, dos resultados particulares (BACHELARD7, p. 10). É uma pena. Esforços devem ser empreendidos com o fim de deixar sempre claro que "empirismo" e

"ra-cionalismo" (para empregar os dois termos usados por Bachelard) são como que as duas faces de uma mesma moeda ("estão ligados, no pensamento científico, por um estranho laço"; p. 11); cada uma delas "é o complemento efetivo da outra” (p12). Seria tão absurdo imaginar o cientista como alguém que só faz observações e experiências como quem aceitá-lo como quem apenas imagina e raciocina. Ele é (deve ser) , pelo contrário, o composto harmônico das duas vertentes e, por isto mesmo, a filosofia da ciência deve ser uma disciplina bipolar, isto é, capaz de fazer a síntese dos elementos que a integram e que não se confrontam em antagonismo irreconciliáveis.

A ciência não é um organismo composto de partes igualmente bem entrosadas e bem compreendidas. Os conceitos de mecânica newtoniana, relatividade, onda, elétron, espécie, quark, código genético, gene, mutação, raça, QI, bigbang, carga genética, polimorfismo, dinossauro, buraco negro, estrela anã, megaevolução, Australopithecus afarensis, inflação, mais-valia... não tem o mesmo nível de amadurecimento; surgiram em épocas diferentes e cada um evolui como pode. A filosofia da ciência deve ter a paciência de analisar, de forma diversa, os caminhos tomados por esses conceitos. Erros são postos de lado; concepções se aperfeiçoam; novos métodos surgem; hipóteses antagônicas coexistem lado a lado; problemas não resolvidos são deixados para o futuro; simpatias e antipatias se mesclam com supostos fatos e com hipóteses; a política, a religião e a nacionalidade opinam sobre temas de ciências, etc. A filosofia da ciência deve dar conta de toda essa confusão.

Em resumo - mencionamos nesta seção a filosofia tout court, a filosofia da ciência (que tem como objeto de estudo a ciência principalmente em processo de se fazer) e a filosofia dita científica (que se baseia na ciência e procura estender os seus conceitos). As áreas de estudo e a metodologia das três não permitem que se confundam. A primeira é realizada pelos filósofos, a segunda pelos filósofos da ciência e a terceira em geral pelos próprios cientistas. Exemplos: Bergson, Popper, Darwin.

7. Duas culturas?

Há uma ideia generalizada - mas que, felizmente, vem perdendo terreno - de que existem duas culturas distintas, isto é, duas amplas áreas de trabalho intelectual, facilmente separáveis, da mesma forma que estrutural e fundamentalmente antagônicas: a

artística (incluindo as artes plásticas, a música, a literatura, etc.) e a científica (englobando todas as ciências). A primeira seria

caracterizada por uma criatividade livre e executada por uma determinada metodologia, enquanto a segunda se exerceria por uma

7 BACHELAR, G. (1976). Filosofia do novo espírito científico - A filosofia do nflo. 2. ed. Lisboa/São Paulo: Presença/Martins Fontes [Trad. de Joaquim José Moura Ramos], I li\ uma edição brasileira de trechos desses livros: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1978.

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Livro: A Ciência por dentro, Newton Freire-Maia, 7ª Edição 2007,

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criatividade controlada e por um outro tipo de metodologia. É claro que, em termos gerais, essa distinção pode ser válida, mas observando as diferenças dentro de cada área e as semelhanças entre as duas, verificaremos que há uma unidade maior que intimamente as une e que merece ser ressaltada. Compare-se, por exemplo, o trabalho do romancista com o do compositor e o do pintor. Por outro lado, analisem-se, lado a lado, as teorias cosmogônicas e as modernas teorias da física com o trabalho do sistemata de insetos, do especialista em hibridação somática e do paleontologista interessado em evolução dos dinossauros. Há um mundo de diferenças entre o cosmologista e o físico teórico, de um lado; o sistemata puro, de outro; e o paleontologista, por fim. Finalmente, ciência e arte são "criadoras de forma, de beleza e de verdade" (ROCHA E SILVA, 1972", p. 3), além de que o cientista usa, muitas vezes, processos mentais semelhantes aos dos artistas. "Podemos admitir que, nas suas raízes, o mecanismo da criação é único, diferindo nas suas fases finais" (ROCHA E SILVA, p. 314). Além de que a redação de um trabalho científico é uma tarefa literária, na medida em que o discurso lógico possui algo de literário.

Para Moles (1971)8, a lógica formal é um "modo mais aperfeiçoado do pensamento discursivo", mas não é o único. O cientista

emprega, muitas vezes, outros processos que não são estritamente lógicos. São as infralógicas. "As infralógicas são verdadeiros sistemas de pensamento, bem caracterizados, mas que [...] abandonam a coerência universal, para alargar desmesuradamente as possibilidades de associação dos conceitos em sequencias ordenadas [...] " (p. 267). São "arbitrárias", têm geralmente coerência fraca e "sua falta de rigor é compensada por seu poder" (cf. p. 201 e 268). Elas "esclarecem as origens da lógica universal, como o 'patológico' esclarece o 'normal'" (p. 201).

Segundo Moles (1971), os caracteres fundamentais da criatividade são comuns à área científica e à artística; sob o ponto de vista estritamente heurístico, as diferenças entre os dois campos são superficiais: "No ato criador o cientista não se diferencia do artista" (p. 258); "existe apenas uma criação intelectual" (p. 260).

Há uma analogia entre a emoção criadora do artista e a ideia criadora do cientista. E há também uma inspiração na feitura da ciência; não apenas na composição de um quarteto ou na pintura de um quadro. É possível que não ocorra inspiração alguma no dia-a-dia de muitos cientistas rotineiros, isto é, que fazem exatamente a mesma coisa, variando apenas o material, em todas as suas pesquisas. E, em terreno desse tipo, nem haveria condições para que uma inspiração se manifestasse.

Não se pode mais dizer que a distinção entre "ciência" e "arte" é que a primeira "descobre" enquanto a segunda apenas "inventa". Isso poderia parecer verdade nos velhos tempos, mas está longe de ser uma "verdade atual". A arte também descobre e a ciência também inventa.

Por motivos teóricos (na base dos limites traçados pela própria estrutura da ciência), esta jamais nos poderá fornecer um conhecimento fundamental do mundo, da vida, de nós mesmos. Na realidade, o caos é a ordem não descoberta, mas a ordem também repousa sobre um caos que ainda não foi conhecido. Vivemos, pois, num terrível sanduíche, ora descobrindo ordens superficiais sob as quais existem as "desordens" ainda por descobrir. O poço não tem fim; o túnel não tem saída. A ciência é a arte de ir caminhando na certeza de que jamais chegará às certezas. Quem conheceu a teoria sintética na década de 1950 e a conhece 30-40 anos depois, pode bem perceber o que estava oculto debaixo da ordem antiga e bem sentir que a ordem que está agora emergindo é apenas aparente e provisória (cf. Flusser").

As características "artísticas" da criação científica não podem ser descobertas através da simples leitura de trabalhos científicos. Eles não revelam os segredos que se escondem nos mecanismos profundos do ator criador. Seria preciso colocar, lado a lado, cientistas e artistas e deixar que eles contassem "estórias" sobre suas atividades, para que os leigos pudessem descobrir o íntimo parentesco que os liga. Na "lógica da invenção", ocorrem muitos fatos que fogem totalmente à lógica. Na criação científica, há uma "profunda indeterminação ou incerteza" (ROCHA E SILVA, 1972, p. 306; cf. nota 17).

19. FLUSSER, V. (1988). Caos e ordem: reflexão pós-modema. Boi. Soe. Brasil Hist. da Ciênc., n. 7, p. 8-9.

1. BERNARD, C. (1855). Leçons de physiologic expérimentale appliquéeà la mèdicine Jaites au College de France. Tome 1 (1854-1855). Paris: J.B. Baillière et Fils.

> < :c. JUP1ASSU, H. (1976). Para ler Bachelard. Rio dejanciro: Francisco Alves. Aliás, para Ba- < liclard, todo o progresso da ciência se faz através de "rupturas" e "reorganizações", uma Lese i|iic se aproxima da de Kuhn (cap. IV). O fundamental da história das idéias não é, pois, sua i volução", mas as "revoluções" que nela ocorrem por sucessivos "cortes epistemológicos".

I MATALLO JR-, H. (1988). A problemática do conhecimento. Cap. I de Construindo o 4. KUSSEL, B. (1949). O panorama cientifico. Sâo Paulo: Flama [Trad. dc José Geraldo Vieira],

5. BACHELARD, G. (1978). A filosofia do não - Filosofia do novo espírito científico. São Paulo: Abril [Coleção os Pensadores - Trad. de Joaquim José Moura Ramos]. 9. BACHELARD, G. (1987). O novo espírito cientifico. São Paulo: Abril [Coleção Os pensadores - Trad. de Remberto Francisco Kuhnen]).

11. COSTA, N.C.A. (1977). Introdução aos fundamentos da matemática. São Paulo: Hucitec.

12. Cf. a bibliografia em KELLOGG, D.E. (1988). "And then a miracle occurs" - Weak links in the chain of argument from punctuation to hierarchy. Biol & Philos., 3, p. 3-28.

13. "Se moquer de la philosophie c'est vraiment philosopher" (PASCAL, B. (1962). Pensões. Paris: Seuil, p. 258 IPrefácio de André Dodinl. • Cf. também Pensamentos. Lisboa: Euro- pa-Amériea, 1978, p. 14 ITrad. e notas de Américo de Carvalho].

14. BERGSON, H. (1985). La penste et le mouvant. Paris: Quadrige/PUF. Nas páginas 134s Bergson faz uma notável análise das relações entre filosofia e ciências. Mencionei esse assunto no meu livro Teoria da evolução: do darwinismo de Darwin à teoria sintética. Belo Horizonte/São Paulo: Uatiaia/Edusp, 1988, p. 19-21. (Note-se que Bergson nasceu no ano em que Darwin publicou A origem das espécies, tal como Darwin nasceu no ano (1809) em que La- marck publicou sua Filosofia

zoológica).

15. Introdução histórica ã filosofia da ciência. Belo Horizonte/São Paulo: ltatiaia/Edusp, 1979 ITrad. de Borisas Cimbleris].

17. Cf. ROCHA E SILVA, M. (1965). Lógica da imenção e outros ensaios. Rio de Janeiro: São José. • ID. (1969). Ciência e humanismo. São Paulo: Edart. • 1D. (1972). A evolução do pensamento científico. São Paulo: Hucitec.» ID. (1976). Ciência pura e ciência aplicada. São Paulo: Hucitec. • ID. (1978). O mito cartesiano e outros ensaios. São Paulo: Hucitec. • TEIXEIRA, A. Sr ROCHA E SILVA, M. (1968). Diálogo sobre a lógica do conhecimento. São Paulo: Edart. Ni ".M S livros dc Rocha e Silva (que foi um grande cientista; cf. cap. VII-9) - e especialmente ' i" iwiuhiiuli' 1972-o leitor encontrará uma ampla análise de vários problemas de filosofia <1-11 li IH lii

l*i MIIIIMIH \ MOI I A, A, (1971). A criação científica. São Paulo: Peispectiva/Edusp, p.

Referências

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