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O discurso do manezinho: o que antes era xingamento virou elogio

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Academic year: 2021

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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

GEORGIE ALVES DE BARROS

O DISCURSO DO MANEZINHO: O QUE ANTES ERA XINGAMENTO VIROU ELOGIO

FLORIANÓPOLIS, 2017

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O Discurso do Manezinho: o que antes era xingamento virou elogio

Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do título de bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Orientador: Henrique Luiz Pereira Oliveira

Florianópolis 2017

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A jornada foi longa, e se não fossem estas pessoas e instituições, com certeza teria sido mais difícil e menos gratificante. É a vocês que dedico este afetuoso agradecimento.

Aos meus pais Lourdes Antônio Alves e Julmar de Barros, que desde a infância incentivaram tanto as minhas irmãs quanto eu a sempre adquirir conhecimento, nos dispensando recursos que por vezes não possuíam, para a nossa educação. E por falar irmãs, não poderia deixar de menciona-las, Najara Alves de Barros e Nalubia Alves de Barros, parceiras de uma vida toda, e que nos últimos meses ficaram me cobrando mais que todos a finalização do trabalho para poderem ir a formatura.

A Janaína da Silva, companheira para todas as situações. Esteve ao meu lado desde o início da graduação, me incentivando e principalmente na época de elaboração deste trabalho, me cobrando de maneira delicada e suportando minhas alterações de humor.

Aos amigos sinceros que sempre de uma forma ou outra me estimularam. Alguns se entusiasmando com as histórias que conto, e me encorajando a seguir a carreira docente, outros apenas suportando e torcendo para que eu termine logo de falar.

Aos amigos que levo da UFSC para o restante da vida, Marcelo Trindade também conhecido como Nono, Mariane da Silva que é a nossa mestranda, e Paulo Henrique do Nascimento o popular Paulinho, Próximinho e mais 43 apelidos que possui. As várias noites que debatemos a conjuntura historiográfica no Bar Iega, mediante acompanhamento etílico, ficarão sempre na memória.

Aos colegas de sala de aula Alan Cristhian Michelmann e Rodrigo Pereira Rothbarth, a monografia de vocês por vezes foi incentivadora, apesar de tratarmos o assunto por viés diferenciado, queremos no final demonstrar ao leitor algo semelhante.

A empresa que trabalho há dez anos, Besttech, e aos seus gestores. Se não fosse a facilidade de horários que possuo, seria ainda mais difícil a conclusão deste curso.

A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ao Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) e ao Departamento de História e aos diversos professores que em outras Faculdades, seus textos são utilizados como referência nas aulas, e nós tivemos a oportunidade e o prazer de ouvi-los e debater com eles pessoalmente.

Aos professores da adolescência, Sonia e Hudson Pires, o popular “Chiquinho”, que me demonstraram que é possível ministrar aula de História de forma diferenciada e possuir boa relação com os alunos.

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mais animado que eu, e em meus momentos de desanimo, me incentivava enviando materiais para a leitura. A serenidade que sempre manteve após meus sumiços.

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Este trabalho tem por objetivo analisar o processo de ressignificação que o termo ‘manezinho da ilha’ sofreu nos anos 1980. Definimos três acontecimentos que ocorreram em Florianópolis, que vão nos ajudar a assimilar este processo: asreformas urbanas ocorridas em Florianópolis no início do século XX, o Primeiro Congresso de História Catarinense ocorrido em 1948 e as transformações na recepção da obra de Franklin Cascaes. Para nos auxiliar a perceber a atuação da mídia no debate sobre a cidade de Florianópolis nos anos 1980, vamos utilizar algumas colunas do jornal O Estado escritas por Aldírio Simões, Paulo Clovis Schmitz e Raquel Wandelli. A partir dessas matérias poderemos perceber relações entre a especulação imobiliária, a indústria do turismo e a ressignificação do ‘manezinho da ilha’.

Palavras-chave: Manezinho da ilha. Florianópolis – ressignificação. Especulação imobiliária. Indústria do turismo.

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Este trabajo tiene como objetivo analizar el proceso de reformulación que Manezinho isla término sufrido en la década de 1980 define tres acontecimientos que tuvieron lugar en Florianópolis, que nos ayudarán a asimilar este proceso: las reformas que tuvieron lugar en Florianópolis a principios del siglo XX urbano, primer Congreso de Historia de Santa Catarina llevó a cabo en 1948 y los cambios en la recepción de la obra de Franklin Cascaes. Para ayudarnos a entender el rendimiento de los medios en el debate sobre la ciudad de Florianópolis, en la década de 1980, utilizamos algunas columnas en los periódicos escritos por Aldírio ESTADO Simões, Paul y Rachel Schmitz Clovis Wandelli. A partir de estos materiales que percibimos las relaciones entre la especulación de bienes raíces, la industria del turismo y la reformulación Manezinho isla.

Palabras clave: Manezinho la isla. Florianópolis - reformular. Especulación inmobiliaria. la industria del turismo.

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ARS – Aderbal Ramos da Silva

BESC – Banco do Estado de Santa Catarina

BPSC – Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina CELESC – Centrais Elétricas do Estado de Santa Catarina DAE – Departamento Autônomo de Edificações

DC – Diário Catarinense

EJA – Ensino de Jovens e Adultos GAPLAN – Gabinete de Planejamento IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano

IPUF – Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis MERCOSUL – Mercado Comum do Sul

MPB – Música Popular Brasileira

MTG – Movimento Tradicionalista Gaúcho PMDB – Partido da Mobilização Nacional PSD – Partido Social Democrata

RBS – Rede Brasil Sul

RIC – Rede Independência de Comunicação SBT – Sistema Brasileiro de Comunicação SCC – Sistema Catarinense de Comunicação STES – Sociedade Itajaiense de Estudos Superiores TC – Trabalho de Conclusão de Curso

UDESC – Universidade de Santa Catarina UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina

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INTRODUÇÃO ... 8

CAPÍTULO 1 – A FLORIANÓPOLIS DO INICIO DO SÉCULO XX ... 12

1.1 A PERSONIFICAÇÃO DO HOMEM DO LITORAL ... 14

1.2 O CONGRESSO DE 1948 E RESGATE DA CULTURA AÇORIANA ... 16

1.3 FRANKLIN CASCAES E A TRANSFORMAÇÃO DA CIDADE ... 21

CAPÍTULO 2 – MOBILIZAÇÃO PELAS COLUNAS SOCIAIS ... 27

2.1 ENTENDENDO O JORNAL O ESTADO ... 27

2.2 A QUESTÃO DO MANEZINHO NAS CRÔNICAS DO JORNAL O ESTADO ... 29

2.3 AS CRÍTICAS AO QUE É LOCAL ... 35

CAPÍTULO 3 – A EDIFICAÇÃO DO TERMO MANEZINHO E A ESPECULAÇÃO IMOBILIARIA E TURISTICA ... 47

3.1 O FUTURO NEGRO: O DEBATE ACERCA DO CRESCIMENTO URBANO E DO TURISMO EM FLORIANÓPOLIS ... 48

3.2 TURISMO VERSUS ECOLOGIA NA ILHA DA MAGIA ... 54

3.3 COMUNICAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO NA CAPITAL DO MERCOSUL ... 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 67

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INTRODUÇÃO

A ideia para o tema deste trabalho de conclusão de curso veio ao fazer a disciplina de estágio obrigatório onde tive a oportunidade de ter contato com a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e de participar de algumas atividades desenvolvidas naquele núcleo1. Durante essa experiência docente2, pude observar diferentes realidades que contribuíram para a evasão escolar dessas pessoas, como a necessidade de trabalhar desde cedo para contribuir com a renda familiar, mudanças de cidade, gravidez precoce, entre outros motivos. Além de terem nascido em Florianópolis, percebemos que a turma era composta por mulheres e homens migrantes que vieram em busca de melhores condições de vida e que sentiram a necessidade de retornar à sala de aula como esperança de futuro melhor.

Diante de uma turma tão heterogênea, conjuntamente a minha dupla de estágio, resolvemos trabalhar a questão do manezinho da ilha e o conceito de identidade e cultura local por meio de um Cine Debate. Ao colocar em prática o plano de aula, as discussões suscitadas e o interesse dos alunos sobre o tema, fizeram-me compreender a necessidade de historicizar a construção e ressignificação do termo ‘manezinho da ilha’.

Durante a revisão bibliográfica percebeu-se que ao longo do século XX ocorreu uma personificação dos habitantes do litoral por setores da elite local que administram a cidade e o Estado. Fator que sofreu mudanças nas formas de caracterização desses habitantes com o passar dos anos. O termo ‘manezinho da ilha’ foi utilizado por diversas décadas no decorrer do século XX com um sentido pejorativo. Os hábitos dos habitantes do interior da Ilha eram malvistos por parte dos cidadãos do centro que os consideravam atrasados culturalmente. Durante as décadas de 1960 e 1970 Florianópolis passou por transformações urbanas visando tirá-la, do que era considerado pelos administradores públicos como atraso, pretendendo consolidar a hegemonia da capital do Estado, diminuindo a influência das cidades de Curitiba e Porto Alegre perante os demais municípios catarinenses. Neste período houve uma grande migração para a grande Florianópolis de duas formas de mão de obra: a qualificada, vinda de outros estados, assumindo cargos públicos de relativa importância, e do interior do Estado, sem qualificação

1 Realizamos as disciplinas de estágio I, II e III entre 2013 e 2014 no Núcleo EJA CENTRO II – em

funcionamento na Escola Básica Municipal Donícia Maria da Costa localizada no bairro João Paulo. Joana Vieira Borges e Débora Daniel foram nossas professoras responsáveis tendo como coordenador de núcleo o professor José Maria Rosa Trindade

2 A disciplina de Estágio Supervisionado I, II e III foi cursada com o colega de classe Oséias Oliveira Terra,

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em busca de melhores condições, trabalhando no que tivesse disponível3. No final dos anos 1980 o termo ‘manezinho da ilha’ ganha um novo sentido, a cultura e maneira de ser do habitante do interior de Florianópolis passam a ser valorizados pelos mesmos cidadãos que anteriormente não nutriam simpatia por essas pessoas e hábitos. Aldírio Simões, por meio de sua coluna no jornal O Estado passa a tratar o tema quase que semanalmente, criando inclusive o Troféu Manezinho da Ilha, que começou a premiar a partir de julho de 1987 os que eram considerados manezinhos para o colunista.

Pesquisar o processo de criação do conceito de ‘manezinho da ilha’ me levou a temas como identidade, cultura, turismo e especulação imobiliária, o que me possibilitou ter acesso a diversas fontes. Harmonizar diferentes documentos tornou-se algo trabalhoso. Para este trabalho, foram utilizadas diversas fontes. Algumas edições do jornal O Estado de 1987, onde colunistas e jornalistas apresentavam em seus escritos, um panorama da cidade e os contrapontos do que significava ser um Manezinho. Também recorremos a depoimentos orais como o do taxista Julmar de Barros, que relatou histórias de sua infância na qual convivia com o termo ‘manezinho da ilha’. Consultamos diversos trabalhos acadêmicos além de buscas à internet por outros trabalhos que tratassem sobre o tema ou algo relacionado a ele. Em meio a esse universo de fontes de informações, a que me chamou mais a atenção foram as informações explicitada em jornais. Ter acesso as edições antigas do jornal O Estado, disponíveis na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, na qual despendi horas, foi algo muito prazeroso e surpreendente, pois fui em busca de um determinado material (coluna Aldírio Simões) e me deparei com outros jornalistas que, de maneira direta ou indireta, estavam discutindo questões relacionadas às transformações urbanas e à figura do manezinho.

Minha intenção inicial era a de pesquisar Aldírio Simões também no jornal Diário Catarinense, onde atuou em 1988, porém, os exemplares disponíveis na Biblioteca Pública do Estado não continham o caderno com as suas colunas. Ao perguntar aos responsáveis pela seção, fui informado que a alguns anos ocorreu um vazamento de água que causou avarias aos materiais. Ao buscar essas edições na sede do grupo RBS as margens da SC 401, comunicaram-me que não possuíam arquivo com os jornais antigos.

Delimitando minhas buscas ao jornal O Estado de março de 1984 a fevereiro de 1988, encontrei considerável material sobre o tema nos meses de junho e julho de 1987, onde o assunto em torno do Manezinho apresentou demanda crescente com o passar das semanas na

3 FONSECA, Jefferson Rafael da. “Longe demais das capitais”: lutas de representação em Florianópolis, SC

(1970-1980). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23. 2005, Londrina. Anais... Simpósio Nacional de História – História: guerra e paz. 23., Londrina: ANPUH, 2005. CD-ROM.

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coluna Domingueiras do Aldírio. Ao ler as colunas, a impressão que tive é que ao iniciar o assunto, Aldírio retornou às ruas, repartições públicas e bares que frequentava, fazendo com que semana a semana o tópico ganhasse mais espaço no jornal, chegando a ganhar matéria de capa. Simultaneamente, outros jornalistas e colunistas do Jornal O Estado, como Paulo Covis Schmitz e Raquel Wandelli, abordaram o tema criando ainda mais polêmica sobre o que era ser um Manezinho e, quem, na cidade era Manezinho. Para a minha surpresa e deleite, nesta mesma época Raquel publicou uma matéria de duas páginas no Jornal O Estado sobre o Futuro de Florianópolis, na qual a jornalista apontava o contraste entre a falta de infraestrutura e saneamento básico e a expansão da exploração turística e dos empreendimentos imobiliários.

No decorrer da pesquisa para a elaboração do TCC procuraremos analisar como o conceito de Manezinho e a sua ressignificação se relaciona com os interesses da exploração turística e imobiliária na cidade de Florianópolis. Para tal análise, dividiu-se o trabalho em três capítulos.

Para que possamos ter maior compreensão sobre o tema que abordaremos neste trabalho, vamos debater alguns aspectos sobre Desterro, atual Florianópolis e sua conjuntura política, social e cultural. Vamos utilizar monografias, teses de mestrado e doutorado, que nos auxiliarão a entender como o morador da ilha de Santa Catarina, que era considerado inapto, matuto e franzino no início do século XX, surge como o manezinho da ilha, carismático e amigo nos anos 1980.

No primeiro capitulo será dado um panorama do centro de Florianópolis no início do Século XX, e sobre como era caracterizado o “homem do litoral”. Para a contextualização acerca das reformas urbanas, utilizaremos a dissertação de mestrado de Hermetes Reis de Araújo, A invenção do litoral. Também abordaremos o 1º Congresso Catarinense de História com base na obra de Maria Bernardete Ramos Flores, A Farra Do Boi. Por fim, abordaremos Franklin Cascaes e as transformações que Florianópolis passou ao longo dos anos 1960 e 1970, utilizando dissertações sobre o tema.

No segundo capítulo discutiremos a abordagem das colunas sociais de Aldírio Simões, Paulo Clovis Schmitz e Raquel Wandelli relacionada ao conceito de manezinho e as críticas aos costumes da população. Buscaremos evidenciar que as disputas por espaço e memória na esfera pública e intelectual se mostram perceptíveis nas opiniões das pessoas entrevistadas pelos colunistas.

No terceiro capítulo daremos ênfase na exploração turística e imobiliária de Florianópolis buscando evidenciar comoa construção do conceito de manezinho da ilha se articula com este processo. Para isto discutiremos a matéria de Raquel Wandelli “Futuro Negro”

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que dialoga com pessoas de vários setores da esfera pública e intelectual de Florianópolis sobre o futuro da capital do Estado, bem como utilizaremos como referencial a obra de Márcia Fantin “Cidade Dividida” quede maneira instigante discute as questões suscitas nessa matéria.

O objetivo da monografia é ponderar e expor aos leitores de que forma a cultura da Ilha, a especulação imobiliária, o turismo e a questão do manezinho foram tratados e moldados, conferindo à década de 1980 uma importância crucial neste processo.

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CAPÍTULO 1 – A FLORIANÓPOLIS DO INICIO DO SÉCULO XX

Nos dois primeiros decênios do século XX, os administradores de Florianópolis, por meio de diversas obras públicas, buscavam alterar a aparência e infraestrutura sanitária da cidade. Consideravam que o centro do município possuía características de uma pequena vila, e planejavam que a cidade se transformasse num local higienizado e apresentável esteticamente, como julgavam, deveria se aparentar a Capital de Estado. Tendo como referência as grandes capitais brasileiras e europeias, como Rio de Janeiro e Paris, a política de salubridade tinha objetivos definidos. Podemos destacar: a redução de várias epidemias existentes na época e a busca pelo distanciamento dos bairros populares que eram muito próximos ao centro da cidade. Esses bairros, na visão da elite dominante, eram classificados como sujos e eram neles onde ocorriam todo o tipo de prevaricação da moral e bons costumes, algo inaceitável para essas classes. Tentando compreender o que os administradores públicos implementavam em Florianópolis, vamos analisar as transformações urbanas e sanitárias que ocorriam em nível de Brasil e de mundo naquela época.

Na Europa do final do século XIX, se desenvolveram de forma rápida diversas áreas das ciências, entre elas a microbiologia. Hermetes Reis de Araújo na sua tese de Mestrado, A

invenção do litoral (1989), aborda esse tema e nos explica que dentro dessa produção de saber

se concebe a intima ligação entre o saneamento e as causas de doenças, juntamente com os avanços tecnológicos que permitiram novos conhecimentos referentes à saúde.4 Aliado a esses saberes, Araújo defende que foram colocadas em prática novas técnicas de controle de massas, censos e estatísticas, que procuraramcompreender a origem das enfermidades nas populações.5 Todo esse processo seria importado anos mais tarde para os grandes centros do Brasil, e posteriormente para Florianópolis, visando afastar a população de baixa renda dos locais valorizados, próximos ao centro da cidade.

O Rio de Janeiro, então capital federal no início do século XX, ainda possuía características do século XIX. Araújo informa que os gestores públicos, buscando alterar os aspectos que consideravam negativos para a capital, iniciaram mudanças em diversas áreas, visando transformar o Brasil em um Estado-Nação moderno.6

4 ARAÚJO, Hermetes Reis de. A invenção do litoral: reformas urbanas e reajustamento social em Florianópolis

na Primeira República. 1989. 215 f. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1989, p. 134.

5 ARAÚJO, 1989, p. 135. 6 Ibid., p. 170.

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As medidas que mais impactaram a população consistiam nas remodelações das vias públicas e combate às causas das epidemias. Nesse ímpeto, implantou-se na cidade do Rio de Janeiro grandes avenidas, parques, praças e outros espaços coletivos. Araújo esclarece que foram demolidas infinidades de construções coloniais que os administradores públicos julgavam em estado precário, e que eram moradia das populações de baixa renda, deixando famílias sem domicilio, fazendo com que tivessem que procurar locais mais distantes para morar.7 Assim, nessa disputa por espaços, localidades até então ocupadas por bairros pobres próximos ao centro, deram lugar a novos espaços coletivos que buscavam atender novos padrões estéticos e sanitários.

Este conjunto de medidas adotadas pelo Governo Federal foi tratado por Sevcenko, na obra A Revolta da Vacina, como processo de regeneração, “tratava-se de livrar a cidade desse entulho humano, como uma extensão da política de saneamento e profilaxia, definida pelo projeto de reurbanização”.8 Ocorreu neste mesmo período forte campanha sanitária a fim de se

combater os surtos das várias doenças que se proliferavam na cidade devido à falta de higiene, água potável, destino correto aos dejetos e o grande porto existente, que gerava circulação de pessoas de todas as partes do mundo, trazendo e levando todos os tipos de doenças.

Em certo momento, os moradores mediante lei, foram obrigados a ser vacinados, mesmo a força, o que resultou por iniciar a revolta da vacina9. Esta revolta confrontou dois lados distintos, os que comandavam o poder e, de outro lado, comunidades organizadas e o povo anônimo que estava sendo continuamente enxotado do centro da cidade pela reestruturação urbana. Neste caso, já podemos efetuar um comparativo com Florianópolis, que utilizou os mesmos mecanismos ao criar a avenida do saneamento (futura Avenida Hercílio Luz) e o aterramento de diversas áreas que findou por afastar a população de locais próximo ao centro da cidade.

É importante entendermos que a própria falta de higiene corresponde a um determinado modo de perceber o mundo, os valores. O que está em disputa são maneiras de conceber a cidade, e também formas de utilizar o seu espaço. Um sujeito sem-terra e sem dinheiro poderia achar normal criar os seus animais soltos pelas ruas. Mas, alguém que tinha uma casa de comércio, que atendia uma clientela mais refinada, podia achar muito inconveniente os bichos soltos pela rua e julgar isto como uma prática anti-higiênica. O que está em jogo são valores, e também questões práticas sobre o uso do espaço da cidade. De maneira, mesmo que indireta,

7 ARAÚJO, 1989, p. 171.

8 SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo: Scipione, 1993. p. 70. 9 SEVCENKO, 1993, p. 13.

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este fato também se relaciona com a questão do manezinho e as disputas sobre a gestão da cidade. Não se trata em dizer que medidas higiênicas e modernizadoras são condições populacionais de infraestrutura equivocadas, mas elas correspondem a visões de mundo e implicam relações de poder na medida em que alguns grupos ganham espaços e outros perdem. É interessante compreendermos que juntamente com estas questões relacionadas a gestão das cidades, ocorreram fatos históricos que acabaram tendo íntima relação e contribuindo com tudo que ocorreu no Rio de Janeiro e, em escala menor, no município de Florianópolis. A abolição da escravatura acarretou na migração de milhares de libertos para os grandes centros, ao passo que o crescimento da produção e exportação dos produtos agrícolas, em especial o café, consolidou a entrada de grande capital estrangeiro no país, visando o remodelamento da paisagem urbana.

Os escritores no início do século XX passam a tratar em suas obras os acontecimentos recorrentes ao momento vivenciado no Brasil. Nesse sentido, o jornal passou a ser o veículo de comunicação mais utilizado pela população, tendo alcançado patamares altíssimos no Rio de Janeiro, e posteriormente se espalhado pelo país. Apesar de no início do século XX grande parte da população ainda ser analfabeta, a parte da população que era letrada passou a utilizar este veículo de comunicação para chegar a locais até aquele momento não explorados. Araújo salienta que nesse período os escritores e jornalistas iniciam as atividades de colunista social, ditam normas de conduta em público condenando atos que julgam ser contra a moral e bons costumes das pessoas de bem, evidenciam as atividades culturais e locais de badalação da elite, repassam ao público a moda nos grandes centros e cobram atitudes do poder público, todos estes princípios fundamentados nos valores idealizados como correto pela elite dominante.10

1.1 A PERSONIFICAÇÃO DO HOMEM DO LITORAL

Nas primeiras décadas do século XX, momento em que a imprensa ganha destaque, percebemos uma certa coalizão de jornalistas, escritores, burguesia e poder público em Florianópolis. Esta unidade visava traçar os problemas da cidade e quais soluções deveriam ser tomadas para que se solucionasse o antigo problema da capital, que não se destacava no cenário estadual, em comparação com alguns municípios que se sobressaiam no desenvolvimento econômico e populacional, não dependendo da sede administrativa para se manterem. Entre esses municípios podemos destacar Joinville, no Norte, com algumas indústrias e com a ferrovia

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que ligava São Paulo a Rio Grande, passando por São Francisco do Sul, além do porto na mesma localidade.11 Criciúma, no Sul, que explorava o carvão e possuía a linha de trem que o ligava até o Porto de Imbituba.12 Blumenau que se destacava com as indústrias têxteis e Itajaí, no Vale, que tinha o porto que movimentava a região e escoava os produtos fabricados em Blumenau. E Lages na serra com a estrada que servia de ligação entre São Paulo e Rio Grande do Sul.13 Todas estas circunstancias associadas ao fato de Florianópolis ser uma ilha, contribuíam para fazê-la ficar fora destas rotas comercias, além da difícil travessia em dias de fortes ventos entre ilha-continente e vice-versa. Para completar, até então as localidades que a cercavam, São José e Palhoça, que num passado próximo tinham relativa expressão no comércio, no final do século XIX apresentavam apenas transações regionais.

Araújo aponta que em decorrência dessa diferença de desenvolvimento entre Florianópolis e as demais regiões do estado, por várias vezes a imprensa e escritores do nível de Virgílio Várzea14, cobravam pela mudança de localidade da capital do Estado para outra

região, alegando que somente desta forma Santa Catarina teria condições de prosperar. A ideia chegou a virar projeto de lei aprovado no Congresso Legislativo, (atual Assembleia Legislativa) visando a mudança da capital para Lages, e posteriormente para o meio oeste, mas foi refutada pelo Executivo alegando os altos custos para a troca de localidade, devido às obras de prédios públicos e estradas15.

No início do século XX se destacam em Florianópolis políticos e intelectuais da estirpe de Othon Gama d´Éça, José Arthur Boiteux, Altino Flores, Barreiros Filho, entre outros, que vieram a formar a Academia Catarinense de Letras e ter grande influência na imprensa e espaços culturais. Estando em sintonia com os governos da primeira república, atribuíram a tarefa de gerir o meio intelectual da cidade. Hermetes refere-se a esses intelectuais como geração da

academia, grupo que na época defendia a tese sobre o atraso econômico, populacional e

intelectual do povo ilhéu e do litoral.16

11 FICKER, Carlos. História de Joinville. Joinville: Ipiranga, 1965, p. 78.

12 BELOLLI, Mário; QUADROS, Joice; GUIDI, Ayser. História do Carvão de Santa Catarina. Santa

Catarina: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002. p. 35. Disponível em:

<http://www.siecesc.com.br/pdf/livro_carvao/a_historia_do_carvao_de_santa_catarina.pdf>. Acesso em: 16 set. 2015.

13 SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução econômica de São

Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, Ed. da Universidade, 1968. 377 p. (Biblioteca universitária. Série 2: Ciências Sociais).

14 Virgílio Várzea 1862-1941), considerado o maior expoente da ficção catarinense do século 19 e início do 20.

Foi precursor da literatura marinhista (relacionada ao mar) na América do Sul. Amigo do poeta Cruz e Sousa, foi seu parceiro no livro Tropos e Fantasias (1885).

15 ARAÚJO, 1989, p. 124-125. 16 Ibid., p. 150-151.

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Segundo este grupo de intelectuais, os imigrantes procedentes do arquipélago das ilhas dos Açores que vieram povoar o litoral catarinense, deram origem a descendentes que possuíam características que os diferenciavam dos demais povos. Estes “habitantes do litoral” foram classificados como pessoas enfermas, vagarosas, acomodadas, sendo considerados como um tipo de “sub-raça”.17 Percebemos que as diferenças culturais, construídas em partes pela

intelectualidade da capital, foram utilizadas por parte do governo municipal e estadual para justificar as obras que visavam o afastamento dos moradores de baixa renda das proximidades do centro. Pretendendo utilizar estas regiões centrais para especulação imobiliária, criou se a personificação de um povo desacreditado moral e fisicamente, fundamentando a necessidade de prover e administrar as necessidades desses habitantes pelos cidadãos capacitados18.

1.2 O CONGRESSO DE 1948 E RESGATE DA CULTURA AÇORIANA

Para compreendermos o contexto em torno da construção do Manezinho nos anos 1980, é interessante analisarmos um importante evento, o Primeiro Congresso de História Catarinense realizado em 1948, momento em que se comemorava o Segundo Centenário da Colonização Açoriana em Santa Catarina. Neste mesmo período percebemos que os autores Oswaldo Rodrigues Cabral e Henrique Silva Fontes entre outros, iniciam a utilização do termo açoriano e/ou descendente de açoriano para definir os habitantes do litoral de Santa Catarina.

Carlos Humberto Corrêa, em sua obra Diálogo com Clio, esclarece que o Congresso realizou-se devido ao patrocínio do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina na figura de seu presidente Henrique Silva Fontes, caracterizando uma grande transformação em Santa Catarina na maneira de ver e escrever sua História; no seu modo de sentir e procurar reconstruir o seu próprio passado.19 O Congresso foi o embrião para a criação, anos depois, do primeiro curso superior de História com o surgimento da Faculdade Catarinense de Filosofia.

O Congresso de 1948 permitiu, aos historiadores da terra, sentirem a necessidade de casarem a literatura e o diletantismo, até então bases para a produção e justificativa para o conhecimento histórico, com os modernos processos firmemente científicos da produção do conhecimento histórico.20

A autora Maria Bernardete Ramos Flores em seu livro A Farra do boi, informa que o planejamento do Congresso incluía extensa programação, abrangendo exposições folclóricas,

17 ARAÚJO, 1989, p. 157. 18 Ibid., p. 158.

19 CORRÊA, Carlos Humberto P. Dialogo com Clio: Ensaios de história política e cultural. Florianópolis:

Insular, 2003, p.176.

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geográfica e histórica, com atividades acadêmicas como palestras, conferências e apresentações de teses que tinham a intenção de demonstrar a cultura dos habitantes de origem açoriana no litoral do estado. O Congresso reuniu intelectuais e historiadores brasileiros como Dante de Laytano, Walter Spalding, Hélio Viana, Manuel Diégues Júnior e o português Manuel de Paiva Boléo da Universidade de Coimbra, e grande número de estudiosos catarinenses.21 Houve mobilização das autoridades municipais, estaduais e até federal, na figura do vice-presidente da República, Nereu Ramos.

O Congresso objetivava evidenciar a colonização portuguesa no litoral catarinense resgatando a sua origem lusitana e o seu legado cultural. Essa busca visava conferir ao litoral a referência a uma memória luso-açoriana catarinense.22 Flores defende que ocorria “Uma concepção que possibilitasse a esta região definir-se como portadora da história de Santa Catarina, papel que vinha perdendo para outros núcleos de povoamento do Estado”.23 Santa Catarina era lembrada até então em todo o Brasil pela colonização alemã em função do desenvolvimento econômico dos municípios de Blumenau, Brusque e Joinville.24

Devido a campanha de nacionalização iniciada por Getúlio Vargas nos anos 1930 e aprofundada com os desfechos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), podemos compreender pelas informações defendidas por Corrêa e Flores, que em Santa Catarina no período dos anos 1940, havia uma forte mobilização tanto política quanto intelectual. Mobilização essa que ao que parece, visava mudar a maneira como o habitante do litoral era lembrado até então. Podemos entender que o Congresso surge como uma forma de reunir os pensadores da época, para que a história desses habitantes fosse pesquisada, debatida e publicada.

O professor da Universidade de Coimbra, Manuel de Paiva Boléo, foi convidado para o Congresso de 1948 para que contribuísse com suas pesquisas, conferindo maior prestigio ao evento. Boléo destacou que somente após estar em Florianópolis, é que entendeu a importância do Congresso e o esforço das autoridades brasileiras para que houvesse a participação de um português. Segundo Boléo o Congresso “constituiu uma necessidade no Estado de Santa Catarina, onde a cultura luso-brasileira, perigosamente enfrentou a cultura alemã. A finalidade suprema, embora não expressada, era de mostrar para os outros Estados da União, a brasilidade

21 FLORES, Maria Bernardete Ramos. A Farra do boi. Florianópolis: Editora da UFSC, 1997, p. 113. 22 FLORES, 1997, p. 124.

23 Ibid. 24 Ibid.

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de Santa Catarina”.25 No congresso, Boléo citou a obra de Dante de Laytamo intitulada

Açorianos e alemães no desenvolvimento da colonização e agricultura do Rio Grande do Sul

(1948) que demonstrava a propensão das colônias alemãs existentes no Rio Grande do Sul, e que estas se ‘fecharam’ em torno de si mesmas, as quais o pesquisador relatava como exemplo os registros de casamento e os comunicados das comunidades evangélicas, todos feitos em alemão.26 Percebemos que esta declaração de Boléo tem o sentido de afirmar que foi graças aos luso-brasileiros que se constituiu uma unidade do estado de Santa Catarina, pois os colonos alemães não tiveram este papel unificador.

Um dos temas abordados no Congresso foi a construção da historiografia sobre os açorianos no litoral de Santa Catarina. Flores defende que:

diante do fracasso no progresso material, em comparação ao desenvolvimento da região colonizada pelos alemães, optou-se pela abordagem que destacasse o caráter de brasilidade de Santa Catarina. Procurou-se resgatar da memória guardada nos arquivos, o papel daqueles habitantes na história da configuração geográfica, proveniente do domínio português no sul do Brasil. Houve empenho em resgatar as tradições que legitimassem esta mesma história: a língua, as árvores genealógicas, as festas, os objetos artesanais, os ofícios.27

Podemos entender que a intenção dessa nova historiografia era destacar os feitos dos colonizadores açorianos, desde a imigração, a defesa do território, a superação das dificuldades agrícolas, adaptação a nova localidade, intencionando provar que esses habitantes também eram trabalhadores e não acomodados, como era comum no imaginário social da época, em que somente os imigrantes alemães eram percebidos como produtivos/trabalhares. Desta forma, houve empenho para ratificar essa trajetória histórica.

Procurando justificar e expor os motivos do que eram considerados como os responsáveis para o baixo desenvolvimento econômico da região litorânea, Cabral expõe no texto Os açorianos, as dificuldades enfrentadas pelos açorianos. Podemos destacar as principais, iniciando pelas arbitrariedades nas divisões de terra e a não efetivação do que o reino de Portugal se prontificou a fazer, a falta de produtividade do solo que forçou os açorianos a trocar a cultura do trigo pela mandioca, as seguidas vezes que eram convocados para suprir as tropas de passagem ou alojadas em Desterro.28 Sucederam-se a estes fatores a tomada da região pelos espanhóis, as frequentes convocações militares forçadas, e após, a ausência e/ou

25 BOLÉO, Manuel de Paiva. O congresso de Florianópolis, comemorativo do bicentenário da colonização

açoriana. Coimbra: Coimbra, 1950, p. 47. Boléo era um professor catedrático da Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra. Esteve presente ao Congresso em 1948 e de volta a Portugal, publicou o relatório do evento e outras observações sobre a região. APUD FLORES, p.115.

26 BOLÉO, p. 19, apud, FLORES, 1997, p. 130. 27 FLORES, 1997, p. 130-131.

28 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os açorianos (Separata do volume II dos Anais do I Congresso de

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morosidade no ressarcimento dos honorários.29 Segundo Cabral a vocação do açoriano era o trabalho com o mar, e não lhe faltava vontade de trabalhar, mas os que tentaram viver do plantio em suas pequenas propriedades permaneceram pobres.30

O Congresso homenageava os duzentos anos da colonização açoriana, e buscava, nas palavras de Boléo, “resgatar o importantíssimo papel do açoriano na colonização de Santa Catarina”31, porém, é necessária cautela quando se tem a intenção de fazer uma conexão com

os costumes, memórias e práticas do momento em que acontecia o evento com os fatos ocorridos 200 anos antes. Devido ao tempo, é possível que os pesquisadores contemporâneos a Cabral, tivessem dificuldades para relacionar os acontecimentos dos últimos dois séculos com a busca do legado cultural açoriano. Flores demonstra como o tempo modifica a visão que os habitantes podem ter de sua própria cultura.32 Utilizando como exemplo as entrevistas que a autora efetuou no interior da Ilha, entre os anos 1988 e 1990, que, em função da elaboração da obra A Farra Do Boi, analisou o processo de semelhança cultural referente a questão da açorianidade na grande Florianópolis e a sua compreensão do passado. Quando os moradores eram indagados pela autora sobre a origem dos seus antepassados, as respostas se assemelhavam dos que diziam que nasceram em Florianópolis, e sempre viveram no local, se identificavam como brasileiros; não sabiam de onde tinham vindo; e acreditavam não possuírem ascendência estrangeira. A autora constatou que parte dos entrevistados, que eram de origem açoriana ou que traziam consigo a cultura açoriana, não conservavam consigo suas raízes e nem se viam nesse meio.33 No entanto, na atualidade, quando os meios de comunicação dispensam ampla grade, para debater acerca das origens da cultura açoriana, é comum perceber-se a defesa da açorianidade nos que são entrevistados, os quais se identificam como emissários dos costumes também praticados nos Açores.

O desenvolvimento e restabelecimento de uma lembrança perdida da cultura luso-portuguesa no litoral catarinense no final dos anos 1940 tiveram pouco alcance junto à sociedade. Temos que ter em mente que a TV não existia no Brasil neste período, e mesmo o rádio era artigo de luxo nas residências e os jornais tinham circulação limitada. A informação tinha muito pouco poder de circulação neste período, o que nos leva a acreditar que as ações resultantes do Congresso não chegaram a grande parte da população. Flores revela que foi confiada apenas a um seleto grupo de homens de destaque e erudição a missão de desenvolver

29 CABRAL, 1950, p. 76. 30 Ibid., p. 80.

31 BOLÉO, 1950, p. 18 apud FLORES, 1997, p. 114. 32 FLORES, 1997, p. 120.

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a identidade histórica cultural. Para a construção desta história, foi fundamental um processo de recuperação dos fragmentos do passado. Cabral convocava intelectuais na tentativa de pesquisarem sobre o tema, vasculhassem os arquivos quase intocados do Estado sobre o assunto.34

Segundo Flores a

história da colonização açoriana até o momento do “Congresso” havia entrado para as páginas das “Memórias” de forma esporádica e dimensionada de duas maneiras: como um capítulo na diversidade dos acontecimentos político-administrativos da capitania e outras questões; e como um acontecimento descrito em seus números e meandros burocráticos, dentro do universo do povoamento situado num ponto remoto do passado.35

Muito pouco material havia sido produzido até a época do Congresso sobre a colonização açoriana no litoral catarinense. Flores entende que no decorrer do Congresso, busca-se mudar a concepção negativa do morador do litoral, que era visto como pessoa preguiçosa e incapacitada, passando ao tratamento de pessoas que lutaram com garra e dignidade na defesa da terra e edificação do litoral catarinense.36 Flores conclui que:

Foi no bojo desta discussão, portanto como se vê, que a “açorianidade” foi inventada. Sem desmerecer os trabalhos de pesquisa histórica efetuados na construção desta açorianidade, quis enfatizar tão-somente o caráter político da cultura. Foi num momento de luta pela hegemonia cultural em Santa Catarina, que o tema “açoriano” ganhou importância para os intelectuais, e lugares de memória como arquivos foram abertos e remexidos.37

Acreditamos que no período do Congresso, buscava-se uma percepção diferenciada do legado açoriano no litoral catarinense, diante de toda a conjuntura política e cultural vivenciada no período, e que tivemos a oportunidade de analisar neste item. Entretanto, compreendemos que o termo açorianidade ainda não estava em discussão nos anos 1940, utilizando como referência a obra de Corrêa já citada no trabalho, a revista Atualidades de 194838 e o jornal o Estado que cobriu o evento com várias matérias. Somente viria a ser empregada a expressão açorianidade, muito difundida nos anos 1980, pelos motivos que analisaremos nos capítulos 2 e 3 deste trabalho.

34 FLORES, 1997, p. 120.

35 BRITO, Paulo José de. Em Memória política sobre a Capitania de Santa Catarina, escrita em 1816, insere

uma descrição política da Villa de Nossa Senhora do Desterro e das freguesias do interior da Ilha. p.38-45. Esta obra tem sido básica para a posterior historiografia catarinense, apud FLORES, 1997, p. 123.

36 FLORES, 1997, p. 133. 37 Ibid., p. 133.

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1.3 FRANKLIN CASCAES E A TRANSFORMAÇÃO DA CIDADE

Na época do Congresso o professor Franklin Cascaes, que já coletava materiais para estudo, não foi convidado a partilhar suas pesquisas com os participantes do referido Congresso. Possivelmente esteve presente como um espectador curioso e interessado aos debates, mesmo sem o reconhecimento de suas pesquisas por parte dos congressistas.39

A partir da década de 1940, percebendo as transformações pelas quais a cidade de Florianópolis estava passando, o professor de desenho na então Escola de Aprendizes e Artífices – atual IFSC40 Franklin Cascaes41 começou a produzir imagens que remetiam a aspectos da cultura popular, em gravuras, esculturas e nanquins sobre papel.42 Estas práticas da cultura popular apareciam com uma frequência cada vez menor, principalmente nos moradores que residiam no centro e áreas mais urbanizadas da cidade. Contudo, é interessante assimilarmos teoricamente o que seria cultura e identidade. Renato Ortiz já tratava o tema cultura brasileira e identidade nacional nos anos 1980 e dizia ser um antigo debate que se travava no Brasil, no entanto permanecendo atual.43 Tema permanente perante os intelectuais

brasileiros, e que ainda gera empenho no intuito de compreendê-lo.

Ortiz destaca o caráter incorreto da ideia de “cultura brasileira” visto que, como representação simbólica percorre entre relações de poder, não tendo como admitir-se uma identidade indiscutível, como expressão que reflete a cultura brasileira. Consequentemente,

39 SOUZA, 2004, p. 41, apud MICHELMANN, Alan Cristhian. Franklin Cascaes, A divulgação turística de

Florianópolis e a invenção da “Ilha da Magia”. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) –

Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Florianópolis, 2015, p. 22.

40Inaugurada em 01 de setembro de 1910 com o nome de Escola de Aprendizes e Artífices, mudou seu nome,

mediante decreto presidencial em 1940, para Escola Industrial de Florianópolis, sendo em 1941 o início da carreira de professor de Franklin Cascaes. Com a reforma educacional implementada pelo Governo militar em 1970, as escolas industriais passaram a atender pela nomenclatura “Escolas Técnicas”, ficando assim a antiga Escola de Aprendizes e Artífices sendo chamada de Escola Técnica Federal de Santa Catarina. Em princípios dos anos 2000, outra alteração na nomenclatura, passando agora a se chamar Centro Federal de Educação

Tecnológica de Santa Catarina (CEFET). Por fim, em meados dos anos 2000, visando adequar essas instituições as novas realidades política, educacional e profissional, os “centros” passaram para a categoria de Institutos Federais, assim sendo, atualmente, atende pelo nome de Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). MICHELMANN, 2015, p. 17.

41 Franklin Joaquim Cascaes segundo Alan Michelmann, nasceu na Praia de Itaguaçu no ano de 1908, e faleceu

em março de 1983 em Florianópolis. De família proprietária de terras naquela região, cresceu, conviveu e apreendeu sobre o modo de vida daqueles que trabalhavam na propriedade de seus pais. Muito disso serviu de base para desenvolver o seu interesse em manter vivo aspectos que este identificava estarem em rápido processo de desaparecimento, ou seja, a cultura popular dos habitantes de Desterro, mais especificamente as comunidades rurais e pesqueiras. MICHELMANN, 2015, p. 17.

42 KRÜGER, Aline Carmes Fragmentos de uma coleção: as obras de arte em papel de Franklin Joaquim Cascaes.

Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Florianópolis, 2011, p. 18.

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toda intenção de definir um suposto entendimento de cultura nacional, abrange desse modo, uma influência política.

A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional.44

Disposto dessa maneira, não há possibilidade de se definir a autenticidade ou adulteração, visto que as próprias metodologias de definição do que é cultura e identidade, modificam-se perante a perspectiva de mundo e as ambições dos que a analisam considerando o tempo. Resultando dessa discussão, a ideia de uma história da identidade e da cultura brasileira, que apenas serve aos interesses dos diversos grupos sociais em suas relações com o Estado. Desta forma, a intenção não é questionar a legitimidade, ou não, de uma imaginada identidade brasileira, mas questionar-se com relação a quais princípios e benefícios estão direcionadas esta construção representativa, quais grupos e finalidades compõem sua concepção.

Ao analisar as pesquisas do sociólogo Octávio Ianni, Ortiz destaca que o projeto das políticas governamentais ultrapassava o plano econômico e administrativo, prolongando-se ao cultural, possivelmente perante a sensação da expansão do mercado de patrimônios culturais, da década de 1970 em diante. As inovações tecnológicas na área de comunicação, o aumento da classe média e o “milagre econômico”, do final dos anos 1960 ao início dos anos 1970, contribuíram para a expansão do mercado cultural, com o impressionante desenvolvimento da produção, disseminação e consumo de bens culturais.45

Não resta dúvida que a política estatal pós-64 tem um impacto efetivo sobre o mercado cultural, ela atua, no entanto de diferentes maneiras e através de uma pluralidade de formas. Por exemplo, a política de turismo tem um impacto importante no processo de mercantilização da cultura popular.46

A ideia de Integração Nacional, concebida levando-se em consideração a ideologia de Segurança Nacional, idealizou a cultura numa interpretação funcional, durkheimiana47, como

44 ORTIZ, 2006, p. 41. 45 Ibid., p. 87.

46 Ibid.

47O método funcionalista de análise da sociedade, traz como referência à visão da sociedade como um

organismo, isto é "semelhante a um organismo vivo, um todo integrado, onde cada parte desempenha uma função necessária ao equilíbrio do todo". O corpo e suas características passam a ser visto como um modelo para a sociedade, a harmonia de suas diversas funções passa a ser um "espelho" para o conhecimento da

sociedade capitalista, que "como um corpo biológico, que precisa ser bem observado, para em seguida, conhecer sua anatomia e aí descobrir as causas e as curas de suas doenças". SOCIOLOGIA de Émile Durkheim.

Sociologia na sala de aula. 20 jun. 2010. Disponível em:

<http://sociologianasaladeaula.blogspot.com.br/2010/07/o-metodo-funcionalista-de-analise-da.html>. Acesso em 30 ago. 2016.

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alicerce cultural da cooperação orgânica da nação. Desta forma, o Estado dedica-se no desenvolvimento da cultura de massas, fomentando a participação do capital privado. Restava ao governo definir as normas e fornecer as conveniências.

Cascaes compreendeu que o processo de mercantilização da cultura popular brasileira não se dava apenas nas grandes capitais, mas havia chegado também a Florianópolis. Desta forma, a partir de suas pesquisas e realizações conforme Aline Kruger analisa em sua dissertação “Fragmentos de uma coleção: as obras de arte em papel de Franklin Joaquim Cascaes”, mantinha suas transcrições visando expor o cotidiano do povo, a qual nas próprias

percepções da população seria comum e frequente, fatores tidos como sem nenhuma importância, desmerecedor de se mencionar ou se preservar, tendo em vista que seriam tarefas rotineiras. No que se refere as esculturas, Cascaes simbolizava engenhos de farinha em movimento com tração animal. Por meio de suas ilustrações revelava o registro da cidade que se perdia, a representação de uma mudança na experiência de vida que se transmitia.48 Podemos

notar a consciência em idealizar a arte visando a compreensão de todos, inclusive das pessoas desprovidas de instrução, desta forma percebemos amplo destaque na elaboração das esculturas e desenhos, como o artista mesmo se fazia compreender. Cascaes se atentou em representar singularmente, hábitos do oficio como os artesões, trabalhadores na roça, o pescador, a mulher que pila o café, trabalho doméstico e vendedores ambulantes49. Esse cotidiano nos idos dos anos 1960 era encontrado apenas nas localidades mais rurais de Florianópolis.

A Florianópolis descrita acima, e que Franklin Cascaes tinha grande identificação e a intenção de resguardar, em meados da década de 1950 já sofria um processo de mudança que ia à direção oposta. Cascaes tinha grande receio que os costumes da ilha estivessem sucumbindo. Segundo Michelmann em sua monografia “Franklin Cascaes, A divulgação

turística de Florianópolis e a invenção da ‘Ilha da Magia’”, para elite intelectual de

Florianópolis, Cascaes não seguia o “padrão acadêmico” e o modo como seus estudos eram feitos e a metodologia utilizada na pesquisa de campo era questionada.50 Michelmann nos informa que na segunda metade dos anos 1950 Cascaes começa a publicar alguns artigos no jornal A Gazeta sobre os hábitos e práticas dos antigos moradores da Ilha de Santa Catarina. A partir deste momento Cascaes passa a ter algum reconhecimento de seu trabalho, como aparece em matérias do jornal O Estado, que chega a classificá-lo como o abnegado do folclore.51

48 KRÜGER, 2011, p. 95-109. 49 Ibid., p. 95-109.

50 MICHELMANN, 2015, p. 22.

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Porém, Cascaes teve dificuldades em conseguir apoio oficial, ao mesmo tempo em que os habitantes do interior da Ilha reconheciam o esforço do professor, e a imprensa concedia espaço para as matérias e artigos que enfatizavam o trabalho de Cascaes, perante as autoridades públicas locais e estadual não obteve auxilio em suas pesquisas.

Esta situação de falta de reconhecimento das obras de Cascaes por parte do governo municipal, estadual e da elite intelectual de Florianópolis, vai sofrendo alterações com o passar dos anos 1970 segundo Michelmann. A partir da parceria de Cascaes com Gelci José Coelho, mais conhecido como Peninha, que possuía ligações no meio cultural da cidade, os trabalhos do professor começam a ser expostos na UFSC e Assembleia Legislativa.52 Em 1975 ocorre a primeira exposição individual do professor no Estúdio A/2.53 Deste período em diante Cascaes participa de várias exposições e viagens de estudos até seu falecimento, em março de 1983.

Percebemos que entre os anos 1970 e 1980 há o processo de ressignificação na obra de Cascaes. O componente mitológico da obra, que primeiramente não despertou o mesmo interesse que esculturas e os desenhos a nanquim e a bico de pena que retratavam os aspectos da religiosidade, com o passar do tempo foram justamente essas representações mitológicas que passaram a qualificar Cascaes como artista e a torná-lo uma personalidade de destaque no meio cultural local. Michelmann defende que foram utilizadas estratégias para este legado ser utilizado:

Mantendo vivo o “bruxo da Ilha” onde diversos setores estariam articulados, entre eles, o do turismo, o qual viria ser um dos trunfos da gestão de Esperidião Amin que durante o seu período de mandato, buscou incrementar o viés turístico por intermédio de aspectos da cultura catarinense, mais precisamente, a construção de uma identidade multicultural. Com o legado deixado por Cascaes, Florianópolis teria um aspecto cultural que o identificasse e servisse aos interesses mercadológicos do turismo.54

Podemos compreender que o poder público conjuntamente com grupos empresariais, procuravam desenvolver o turismo na cidade, e uma das estratégias era utilizar a cultura do litoral para este fim. Valendo-se de uma parte especifica das produções de Cascaes, direcionaram-na da forma que convinha, para tornar a cidade atrativa na área turística e imobiliária. Estas questões serão melhor analisadas no capítulo 3 deste trabalho.

Visando assimilar melhor a cidade que Cascaes estava vivenciando em sua idade mais avançada e quando suas obras são descobertas, vamos utilizar a monografia de Carla Acordi

52 MICHELMANN, 2015, p. 27.

53 A cidade de Florianópolis passa a contar com um espaço para a divulgação das artes produzidas em Santa

Catarina, por iniciativa de Beto Stodieck, que inaugura em 1973 o Studio A/2.

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“Dos desterrados aos motorizados: os "milagres" da ditadura em Florianópolis”55 que aborda

parte do período militar em Florianópolis. O Brasil passava pelo momento que se intitulava ‘O milagre econômico’ ocasionando a vinda para a cidade de diversos investimentos governamentais e a consequente chegada de uma nova classe média para preencher as vagas de emprego que necessitavam de formação específica. Conjuntamente, ocorria a vinda de diversas famílias do interior do estado, em busca de melhores condições de trabalho. Acordi descreve que esse salto quantitativo da classe média se desmembrou em duas partes de grande relevância para o futuro da Capital. Uma já consolidada na ilha, de famílias mais tradicionais vinculadas a burguesia que estavam prosperando durante o século XX. Estas famílias faziam parte do grupo político que dominava Florianópolis e deram início ao projeto turístico e imobiliário que transformou a cidade e culminou por agravar os diversos problemas de infraestrutura já existentes no período. Apesar do caráter progressista que tinham na área política e atividades empresariais, esses grupos eram essencialmente constituídos por pessoas de religião católica, conservadoras, e demasiadamente vinculadas aos princípios morais e os bons costumes. Em contrapartida, a nova classe média recém-chegada, estava em consonância como crescimento da cidade, sendo esta composta pelos novos funcionários públicos, professores universitários, e outros profissionais graduados vindos a partir dos anos 1960 e 1970.56

Acordi informa que nessas décadas os investimentos efetuados pelo governo ditatorial foram significativos no que se refere a edificação da fisionomia da nova cidade. Em um período de 10 anos ocorre a fundação das Centrais Elétricas de Santa Catarina (CELESC) em 1955, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 1960, do Banco do Estado de Santa Catarina (BESC) em 1962, e da Universidade do Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina (UDESC) em 1965. Com a criação destas novas empresas públicas, veio conjuntamente todo um corpo de trabalhadores qualificados com renumerações salariais extremamente superiores ao qual a cidade encontrava-se habituada, originando um período de modernização na vida dos habitantes, de transformações tecnológicas e de introdução de modelos de consumo contemporâneo.57

Compreendemos que o grau de cidade serena que os florianopolitanos se encontravam habituados, passou por uma alternância, com a vinda da UFSC e outras estatais, sendo que novos postos de trabalho foram introduzidos na cidade e os honorários modificariam o

55 ACORDI, Carla. Dos desterrados aos motorizados: os “milagres” da ditadura em Florianópolis (1968/1978).

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), UDESC, 2011.

56 ACORDI, 2011, p. 47. 57 Ibid.

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semblante da capital permanentemente. Distintas categorias com poderio de compra apareceram, uma classe média diferente dos padrões que a população estava adaptada trouxe consigo uma nova óptica para a pacata cidade. A classe política dominante, conjuntamente com a camada social abastada já existente, idealizava um novo modelo de gestão para a cidade em que a característica marcante seria o desenvolvimento turístico e imobiliário. Aproveitou-se da chegada da nova classe média, que trazia consigo automaticamente novo poder aquisitivo derivado de novas fontes de renda.

Imaginemos Florianópolis no dia 1 de julho de 1972, às sete e meia da manhã. Imaginemos também um engenheiro, funcionário público há pouco mais de cinco anos, que receba no conforto – ou quase isso – de seu lar, mais um exemplar do Jornal O Estado, um dos maiores de Santa Catarina. Entre o editorial e as notícias internacionais, ele vai se deparar com o anúncio de um novo empreendimento imobiliário que diz o seguinte: “Em outubro será entregue o conjunto residencial Alves de Brito. Com você dentro”. Tal publicidade interessa, e muito o leitor, pois desde que ingressou na carreira pública tem contato com colegas de trabalho que mudaram de casas localizadas em bairros periféricos da cidade para edifícios de apartamento próximos ao centro da cidade ou no próprio centro.58

Acordi entende que a facilidade de obtenção de eletrodomésticos e eletroeletrônicos como geladeiras, aparelhos de TV, automóveis e apartamento próprio, próximo ou no centro, foi a condição em que essa nova classe média, recém-chegada à Florianópolis encontrou para se distinguir dos demais trabalhadores existentes na cidade.59

Diante de todas estas transformações que a cidade passava, estava o habitante local que vivia nos bairros mais afastados da cidade, acostumado à sua vida simples, tentava compreender o que se passava com seu bairro, sua rua, seus novos vizinhos. Aos poucos as diferenças de costumes, que num primeiro momento apenas geravam estranheza, tanto para o novo morador quanto para o antigo, em muitos casos transformaram-se em rixas e desavenças. Com o passar dos anos, essas disputas locais, cresceram de tal forma que passou a abranger toda a cidade, e o que, no começo era apenas uma disputa pelo local correto da cerca que dividia o terreno, elevou-se a disputas por espaços nas áreas culturais, acadêmicas e políticas. As mídias, entre elas o jornal, passaram a abordar no seu dia a dia estes conflitos, muitas vezes chegando a incentivar essas disputas. Estas questões serão problematizadas no capítulo a seguir.

58 Jornal O Estado. 1 jul. 1972, p. 12, apud ACORDI, 2011, p. 48. 59 Ibid., p. 46.

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CAPÍTULO 2 – MOBILIZAÇÃO PELAS COLUNAS SOCIAIS

2.1 ENTENDENDO O JORNAL O ESTADO

Procurando informações sobre o jornal O Estado, tentando compreender a história do periódico desde sua fundação, até o momento em que encerrou suas atividades em 2009,60 quais os proprietários e a que causas serviu, tivemos acesso a um caderno especial que foi lançado em 2015 pelo grupo RIC, visando a comemoração dos 100 anos de fundação do periódico. Utilizaremos deste fascículo e como contraponto a tese de doutorado de Leani Budde

“Jornadas impressas: o Estado e Florianópolis - 1985 a 2009” como fontes61, para que

pudéssemos perceber a conjuntura na qual estavam inseridos os jornalistas cujos textos foram utilizados no desenvolvimento da monografia. Produzimos um relato fundamentado nos fatos lembrados pelos agentes que vivenciaram o jornal, compreendendo que não há uma verdade absoluta.

O jornal O Estado, foi fundado no dia 13 de maio de 1915por Henrique Rupp e Ulisses Costa, passando por outros proprietários, entre eles Victor Konder e Altino Flores. Comprado em 1945 mediante testa de ferro por Aderbal Ramos da Silva, o mesmo visava a utilização do jornal como instrumento político, o que já ocorria desde a década de 1920 com os antigos proprietários. A partir de então, o jornal ganhou dinamismo empresarial, embora Aderbal nunca tenha estado presente na condução explicita da gazeta. A intenção do político na área da comunicação abrangia conjuntamente a rádio Guarujá, unificando os dois instrumentos com a incumbência de utilizá-los como propagadores de seu estandarte político partidário, o PSD. A influência de Aderbal sobre o jornal e a Guarujá estendeu-se até sua morte em 1985. O ex-governador presidia o grupo Hoepcke, complexo empresarial que incluía os veículos de comunicação, e teve evidente domínio nas indicações políticas catarinenses de 1946 a 1985. Esteve diretamente envolvido nas campanhas triunfantes de Celso Ramos (1961-1965) e Ivo Silveira (1966-1971). A ascensão do jovem político Esperidião Amim, prefeito nomeado de

60 A circulação diária encerrou-se em 31 de maio de 2007, data do último exemplar arquivado na Biblioteca

Pública de Santa Catarina. Depois disso ocorreram edições com periodicidade indefinida, por vezes semanal, até o início de 2009.

61 BUDDE, Leani. Jornadas impressas: o Estado e Florianópolis - 1985 a 2009. Tese (Doutorado em Ciências

Humanas) – Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC, 2013. Disponível em:

<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/106850/318075.pdf?sequence=1>. Acesso em: 16 set. 2015.

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Florianópolis em 1975, é consequência da ação direta de Aderbal, atuando também na eleição de Amim para a câmara dos deputados em 1978 e governo catarinense em 198262.

O jornal O Estado, foi o primeiro a atingir todas as regiões do estado, nos anos 1970. A extensão foi uma reação à criação, em Blumenau, do Jornal de Santa Catarina, em 1971, que utilizando jornalistas do Rio Grande do Sul, estabeleceu em Florianópolis uma ampla sucursal. Em resposta ao concorrente, O Estado acaba chegando a “fase áurea do jornal”, estabelecendo sucursais em todas as regiões do estado, introduzindo maior profissionalismo em suas páginas. Falamos em profissionalização, pois até o momento o jornal era formado por pessoas sem experiência de trabalho na área, e com formação em outro ramo, não sendo jornalistas. A partir dos anos 1970, o jornal começa a contratar uma equipe de jornalistas formados em universidades e com experiência em outras gazetas.63 Ao mesmo tempo em que se profissionalizava o jornal, aos poucos foi-se alterando as representações no modo como o jornalismo era feito. Alguns correligionários do PSD acostumados a serem protegidos com o silêncio do jornal, em questões que iam contra a comunidade, passaram a estranhar que o periódico abordasse esses temas.

Com a transformação de O ESTADO se criou aquela estrutura de redação, que não existia, o jornal na verdade era um instrumento político até ali. Com a transformação ele passou a ser olhado pelos próprios donos com uma visão mais profissional, tratando mesmo do jornalismo.64

Segundo Budde o depoimento confirma como a mudança no enfoque do jornal causou impacto no público leitor e no círculo de correligionários do PSD, mesmo que não tenha deixado de ser também um instrumento político.65 Apesar de relativa mudança, temos que ter em mente que resultante da união entre PSD e UDN formou-se a ARENA, partido que apoiava a ditadura civil-militar no Brasil. Sendo Aderbal Ramos, proprietário do periódico e pertencente à ARENA, podemos entender que por mais que não interferisse diretamente na condução do jornal, e concedesse relativa liberdade aos profissionais, o editorial e principais reportagens, davam suporte ao regime e defendiam os interesses do conglomerado empresarial que ARS presidia.

Como visto anteriormente, com o desenvolvimento do O Estado, diversos profissionais são contratados, e entre estes colaboradores destaca se Aldírio Simões que iniciou no jornal O Estado nos anos 1970, passando pelos jornais “Diários Associados", "Diário Catarinense", A Notícia e ANcapital, atuando também nas TVs Cultura, Barriga Verde e SCC e nas rádios A

62 http://ndonline.com.br/cem-anos-oestado/caderno-especial/ acessado em 11/03/2016 as 9:42h 63 BUDDE, 2013, p. 38.

64 MEDAGLIA, depoimento, 2012, apud BUDDE, 2013, p. 59. 65 Ibid., p. 54.

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Verdade, Cultura e Diário da Manhã. Produziu e apresentou o programa Bar Fala Mané no SBT. Conjuntamente a estas atividades atuou em épocas distintas nos anos 1980 e 1990 como superintendente da Fundação Franklin Cascaes, diretor de arte da Fundação Catarinense de Cultura e coordenador do carnaval de Florianópolis em várias ocasiões. No jornal O Estado possuía as colunas Fala Mané e Domingueiras, nestas eram retratadas diversas questões culturais, sendo o destaque principal o carnaval, grande paixão do jornalista66.

2.2 A QUESTÃO DO MANEZINHO NAS CRÔNICAS DO JORNAL O ESTADO

Com o decorrer dos anos 1980 instigam-se em Florianópolis as disputas locais em torno das questões culturais, cargos públicos, disputa por espaços e o modo como a cidade estava crescendo, acarretando no acirramento dos ânimos entre os habitantes, referente ao termo ‘manezinho da ilha’.67 Os jornalistas, percebendo o momento, instigam a população com notas

inflamadas em suas colunas, fazendo com que o assunto virasse febre nas rodas de bares e repartições públicas da cidade. Perceberemos pelo teor das crônicas neste capítulo, que o tema estava longe de ser esgotado. Mais precisamente no ano de 1987, esta efervescência chega ao ápice, dividindo os jornalistas e colunistas do jornal O Estado, no qual configura se uma disputa em várias frentes, sendo conjuntamente entre os moradores locais e os “vindos de fora” e entre os próprios nativos. Nas definições para delimitar o que seria um autêntico Mané, Aldírio Simões, Paulo Clovis Schmitz, Raquel Wandelli e Raul Caldas Filho, todos atuando no jornal O Estado em 1987 entre outros, entram nessa controversa competição, visando a definição do termo ‘manezinho da ilha’.

Para Aldírio na cidade antiga, chamar um ilhéu de manezinho era o mesmo que xingar a mãe do sujeito, o mesmo que comprar uma briga gratuita, ficava ofendida no ato. Era um termo considerado pejorativo, um palavrão. O mesmo que jacu, um matuto. Um Jeca tatu de Monteiro Lobato, um cara da roça, com cheiro de engenho e farinha nova”.68 Ainda segundo Aldírio, um dos primeiros a se manifestar sobre a forma pejorativa como o termo manezinho era utilizado, foi Amaro Seixas Neto69, que aceitou essa polemica e se intitulou matuto da ilha,

66 http://deolhonacapital.blogspot.com.br/2007/01/in-memoriam.html, Acessado em 15/03/2016 as 14:30h 67 Ocorre dos anos 1960 em diante, a ocupação desordenada de Florianópolis, em função da grande densidade

demográfica. Devido ao projeto político dos gestores da cidade, estar pautado na exploração turística e imobiliária utilizando o patrimônio cultural existente ocorre o acirramento nas disputas por espaços na cidade. Entre essas demandas estão às definições de quem seriam os autênticos manezinhos da cidade.

68 SIMÕES, Aldírio. Como se define um manezinho. O Estado: Leitura e Lazer. Florianópolis, 21 jun. 1987. p.

10-10.

69 Amaro Seixas Netto (02/11/1924 – 23/05/1984) nasceu em Florianópolis. Jornalista profissional, Professor,

Referências

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