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Protestantismo e Transformação social

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Academic year: 2021

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Protestantismo e Transformação social*

Oneide Bobsin

Introdução

O presente tra b a lh o está sendo pen sa d o c o m o um e n s a io o n d e se p re te n d e re fle tir sobre as fo rm a s possíveis de co rre sp o n d ê n cia e n tre a re ­ fle x ã o s o cio ló g ica de M a x W e b e r* * e a te o ria de G ra m s c i.***

Nesta p e rsp e ctiva , o tra b a lh o se lim ita rá a re p ro d u z ir, de fo rm a sucinta, a lg u m a s c a te g o ria s so cio ló g ica s destes dois pensadores, na te n ­ ta tiv a de, a p a rtir d elas, d a r a lg u n s passos in ic ia is em d ire ç ã o a um a fo r ­ m u la çã o de p ro b le m a s a serem e n fre n ta d o s no estudo s o c io ló g ic o da re ­ lig iã o , m ais e s p e c ific a m e n te d o p ro te sta n tism o no Brasil. Em outras p a la ­ vras, p re te n d e -se a n a lis a r a fu n ç ã o tra n s fo rm a d o ra ou le g itim a d o ra da ord e m e s ta b e le c id a de d e te rm in a d a s idéias com uns aos ram os p rin c ip a is d o p ro te sta n tism o b ra s ile iro .

Em p rim e iro lu g a r, deve-se a firm a r q u e se está tra b a lh a n d o com a u to re s cujas ca te g o ria s e conclusões so cio ló g ica s são c o m u m e n te situ a ­ das em correntes teóricas a n ta g ô n ica s. A lé m disso, n ã o se p o d e situar G ram sci com o um te ó ric o q u e tivesse se o cu p a d o em fa z e r s o c io lo g ia ,

* O presente ensaio nasceu do núcleo central de um trabalho fe ito para um sem inário sobre "Id e o lo g ia e C ultura", que se realizou no program a de pós-graduação em Ciências Sociais, na PUC-SP, no p rim eiro semestre de 1985, sob a coordenação do Dr. Renato Ortiz. O trabalho o rig in a l tem o seguinte título: Ética Protestante, Ideologia e Cultura.

** M ax W eber (1864-1920) nasceu em Erfurt, Turingia. Seu pai fo i jurista. Sua mãe era uma pes­ soa liberal e de crença protestante. Assumiu uma cátedra em H eidelberg em 1896. Baseou sua teoria sobre a erudição alem ã. Possuía uma visão geral das ciências. Conhecia história, teolo­ gia, direito, econom ia e sociologia, bem como literatura e filo so fia . Escreveu m uito sobre as religiões. Sua sociologia da re lig iã o continua presente nos meios acadêmicos.

* * * A. Gramsci nasceu em 1891, na Sardenha. Filho de pais pobres. Foi m ilita n te do Partido Socia­ lista Italiano. Fundador do PCI em 1921. Com o avanço do fascismo Mussolini coloca Gramsci na prisão. Na prisão produz m uito — Cadernos do Cárcere. Em 1937, Mussolini liberta Gramsci para não m orrer na cadeia. M orre em 1937. O estudo da re lig iã o ocupa um lugar im portante nos escritos deste teórico.

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com o fo i o caso d e W e b e r. O p rim e iro p o n to a fim e n tre G ram sci e W e b e r pode ser situ a d o na p e rg u n ta p e la a u to n o m ia re la tiv a das id é ia s e a fu n ­ ção d e la s na construção de um a nova re a lid a d e social. P arece-m e qu e tanto G ram sci q u a n to W e b e r a trib u íra m às idéias a c a p a c id a d e de e n ­ g e n d ra r situações novas, c o n tra p o n d o -se , desta m a n e ira , a o d e te rm in is ­ m o e c o n ô m ic o d e te n d ê n c ia s m arxistas o rtodoxas. N o caso d a "É tica Pro­ te s ta n te ", na p e rsp e ctiva de W e b e r, h o u ve um a certa a fin id a d e e n tre o esp írito c a p ita lis ta e a ascese in tra -m u n d a n a d o c a lv in is m o , o q u e fa c ili­ tou o d e s e n v o lv im e n to da e c o n o m ia c a p ita lis ta no o c id e n te . Já a "F ilo s o ­ fia da P rá xis" (m a rxism o ), na visão de G ram sci, d e v e ria se c o n s titu ir em m o la p ro p u ls o ra da transição d o c a p ita lis m o p a ra o so cia lism o no o c i­ d e n te .

O lim ite de um e n sa io destes reside no fa to de ser um a re p ro d u ­ ção fra g m e n ta d a d o p e n sa m e n to de G ram sci e W e b e r. Com este tra b a ­ lho estão sendo dad o s os p rim e iro s passos em d ire ç ã o aos universos qu e estes teóricos re p re se n ta m .

P ro b lem a — A u to n o m ia (re la tiv a ) d a s Id é ia s

A p e sa r das d ife re n ç a s te ó ric o -m e to d o ló g ic a s q u e d ista n cia m G ram sci de W e b e r, seria possível tra ça r um p a ra le lo e n tre a "É tica Pro­ te s ta n te ", co m o um a fo rç a id e o ló g ic a a fim a o d e s e n v o lv im e n to d o c a p i­ ta lis m o c o n c o rre n c ia l, e o s ig n ific a d o da "F ilo s o fia da P rá xis", co m o d i­ reção id e o ló g ic a no b o jo da so cie d a d e c iv il, na p e rsp e ctiva da transição do c a p ita lis m o p a ra o socialism o? F orm ula-se a m esm a q u e stã o com o u ­ tras p a la vra s, no q u e c o n ce rn e à tra n siçã o de um m o d o d e p ro d u ç ã o a o u tro e, re s g u a rd a n d o as e s p e c ific id a d e s históricas, a "É tica P ro te sta n te " e staria para o c a p ita lis m o co m o o m a rxism o (id e o lo g ia ) para o socialis­ mo?

A o rig e m da q uestão fo rm u la d a a c im a está na co m p re e n sã o q u e PorteiIi tem do p ro b le m a básico em G ram sci no q u e d iz re sp e ito à re la ­ ção e n tre re lig iã o , e n q u a n to id e o lo g ia , e a práxis. S egund o P o rte lli, " o v e rd a d e iro p ro b le m a c o lo c a d o po r G ram sci consiste em in v e s tig a r p o r­ q u e a W e lta n s c h a u u n g re lig io s a nã o tem fo rja d o um a n o rm a de v id a re ­ lig io sa , nã o tem e n g e n d ra d o um a p r á x is " 1. Faz-se a ressalva d e q u e G ram sci está p o le m iz a n d o contra o c a to lic is m o ita lia n o , p o r ser e le um a

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fo rç a id e o ló g ic a capaz de m a n te r as massas p o p u la re s sob o d o m ín io da Ig re ja , a q u a l, po r sua vez, se a p re se n ta com o um a p a ra to d o Estado. Po­ d e rá ser visto m ais ta rd e , neste tra b a lh o , qu e G ram sci nã o sustenta a m esm a posição em re la ç ã o a o in ício da re fo rm a p rotestante. Nesta dis­ cussão há q u e se destacar q u e G ram sci está interessado em m ostrar co­ m o um a id e o lo g ia pod e ou não fo rja r um a n o rm a de v id a c o tid ia n a . Na a v a lia ç ã o qu e T a w n e y fa z d o c a lv in is m o dos p rim e iro s tem pos, pode-se v e r c o n firm a d a em p a rte a p re o c u p a ç ã o de G ram sci.

Não é de todo fantasioso dizer que, em um palco menor mas com armas não menos form idáveis, Calvino fez pela bourgeoi- sie do século XVI o que Marx fez pelo proletriado do século XIX, ou que a doutrina da predestinação satisfez a mesma fom e de certeza de que as forças do universo se acham ao lado do eleito como a que seria saciada numa outra época pela teoria do ma­ terialismo histórico^.

A re la ç ã o e n tre a base e c o n ô m ic a e a superestrutu ra id e o ló g ic a assum e em W e b e r um a característica a p a re n te m e n te c o n tra d itó ria . De um la d o está a p e rsp e ctiva w e b e ria n a da p rim a z ia d o id e o ló g ic o em d e ­ trim e n to da in fra e s tru tu ra e c o n ô m ic a , e n q u a n to d o o u tro la d o pode-se observar q u e este so c ió lo g o che g a a a d m itir o m é to d o d o m a te ria lis m o histórico co m o um a das p o ssib ilid a d e s de a n á lise . Na "É tic a ” estas duas posições a p a re c e m de fo rm a cla ra . Em re la ç ã o a o m a te ria lis m o histórico W e b e r d iz: "C o m re fe rê n c ia à d o u trin a do m ais in g ê n u o m a te ria lis m o histórico, de q u e as id é ia s se o rig in a m com o re fle x o ou com o super­ estrutura de situações e conôm icas, som ente po d e m o s o p in a r n um a oca­ sião p o s te rio r." 3. Esta observação d e W e b e r tem o seu co n te xto na dis­ cussão a re sp e ito da p o s s ib ilid a d e de o e sp írito d o c a p ita lis m o ter p re ce ­ d id o o p ró p rio d e s e n v o lv im e n to e c o n ô m ic o c a p ita lista .

Em c a p ítu lo p o ste rio r da "E tic a ", W e b e r re to m a a discussão d e n tro de um a p e rsp e ctiva de a v a lia ç ã o d o p rin c íp io e p is te m o ló g ic o q u e n o r­ te o u o seu tra b a lh o . Ele descreve da se g u in te m a n e ira um a o u tra possibi­ lid a d e de a n á lis e :

Aqui apenas se tratou do fato e da direção de sua influência em apenas um, se bem que importante, ponto de seus motivos. Se­ ria, todavia, necessário investigar mais adiante, a maneira pe­ la qual a ascese protestante foi por sua vez influenciada em seu desenvolvimento e caráter pela totalidade das condições so­ ciais, especialmente pelas econômicas.4

2 — Tawney, R.H., 1971, p. 117.

3 — Weber, M ., Etica Protestante..., 1971, p. 34. 4 — Idem, p. 132

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A p a rtir destas observações in ic ia is pode-se ve r e le m e n to s a fin s nas obras de G ram sci e W e b e r. Se fo r d e slo ca d o o e ix o da discussão das questões te ó ric o -m e to d o ló g ic a s para questões re la tiv a s aos cam pos da p o lític a do re lig io s o e d o id e o ló g ic o , a co rre sp o n d ê n cia p o d e se to rn a r fe cu n d a . Em seu tra b a lh o c o m p a ra tiv o e n tre G ram sci e W e b e r, na busca de um a te o ria da re lig iã o , R enato O rtiz d e m o n stra q u e estes te ó rico s as­ sum em posições a fin s em q u a tro aspectos. P rim e iro , a re lig iã o co m o le ­ g itim a ç ã o da o rd e m co n stitu íd a . O discurso re lig io s o to rn a le g ítim o o p o ­ d e r p o lític o a o se a lia r a e le . Nesta p e rsp e ctiva as classes sociais são jus­ tifica d a s. S egundo, a re lig iã o assum e a ta re fa d e d o m e stica r as massas. As classes suba lte rn a s são le va d a s a a c e ita re m o p o d e r constituído . Ter­ ce iro , a re la çã o e n tre o rto d o x ia e h e te ro d o x ia re fe re -se aos c o n flito s e n ­ tre universos re lig io s o s e fo rça s p o lítica s a n ta g ô n ica s. Os c o n flito s d e i­ xam de e x is tir a p a rtir d o m o m e n to em q u e os " h e r e g e s " são in c o rp o ra ­ dos à o rto d o x ia . Q u a rto , a re la ç ã o e n tre h ie ro c ra c ia e c a p ita lis m o no m u n d o m o d e rn o , p o r e x e m p lo , se to rn a cada vez m ais desnecessária. O c a p ita lis m o e suas fo rça s e co n ô m ica s se to rn a m in d e p e n d e n te s do p o d e r re lig io s o . As relações e n tre re lig iã o e p o lític a se m o d ific a m m u ito após a re v o lu ç ã o burguesa na França5.

No passo se g u in te te n ta r-se -á c la re a r um pou co m e lh o r a lg u m a s c a te g o ria s qu e fo ra m a p re se n ta d a s de fo rm a im p líc ita a c im a , para qu e , num seg u n d o m o m e n to , se possa c a m in h a r para um estudo c o m p a ra tiv o .

Ética P ro te stan te e R a c io n a liz a ç ã o

Se o e sp írito c a p ita lis ta já estava presente em outras cultu ra s co­ m o a da In d ia e da C hina, p o r qu e só no o c id e n te e le e n co n tro u um espa­ ço fa v o rá v e l ao seu flo re s c im e n to ? Para W e b e r, a sede do lucro, a " a u r i sacra fa m e s " e os b a n q u e iro s nã o são re a lid a d e s específicas d o c a p ita lis ­ m o. Eles a n te c e d e ra m o s u rg im e n to d o c a p ita lis m o e de sua e co n o m ia . " O e sp írito p re ce d e u a m a té ria ."

Um a resposta a p ro x im a d a para a q uestão le v a n ta d a a c im a pode ser e n c o n tra d a na o b ra de W e b e r, m ais e s p e c ific a m e n te no e studo co m ­ p a ra tiv o e n tre o d e s e n v o lv im e n to do c a p ita lis m o na a g ric u ltu ra nos Esta­ dos U nidos d a A m é ric a d o N o rte e na A le m a n h a , be m co m o na a n á lis e d o C o n fu c io n is m o e Protestantism o. No p rim e iro caso, W e b e r constata q u e um dos e le m e n to s q u e fa v o re c e u o d e s e n v o lv im e n to e m p re s a ria l da

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a g ric u ltu ra dos U.S.A. re sid ia no fa to de q u e o a g ric u lto r norte- a m e ric a n o não estava v in c u la d o a um a tra d iç ã o , em c o n tra p o siçã o aos a le m ã e s de um a d e te rm in a d a re g iã o qu e estavam a m a rra d o s a e la . O salto d o a g ric u lto r p a ra o e m p re s á rio ru ra l im p lic a num ro m p im e n to com a tra d içã o . Por causa da fa lta de vín c u lo a um a tra d iç ã o , o c a p ita lis m o pôde flo re s c e r na a g ric u ltu ra nos U .S .A ., seg u n d o W eber.

No estudo c o m p a ra tiv o e n tre C o n fu c io n is m o e Protestantism o fica m ais e v id e n te a necessidade de ru p tu ra com a tra d iç ã o e os tabús para a c o n fig u ra ç ã o d o e sp írito c a p ita lis ta num m o d e lo e c o n ô m ic o . A se g u ir se­ rão destacados a lg u n s e le m e n to s do tra b a lh o de W e b e r sobre re lig iã o e ra c io n a liz a ç ã o (Die asiatischen Sekten und H e ila n d s re lig io s itã t und Kon- fu z io n is m u s und Taoism us)6. N ão obstante a presença d e e le m e n to s ra ­ c io n a is ta n to no C o n fu c io n is m o q u a n to no Protestantism o (C a lvin ism o ), a d ife re n ç a ocorre a p a rtir d o fa to de q u e , no p rim e iro , se buscava um a a d a p ta ç ã o a o m u n d o , e n q u a n to q u e , no seg u n d o , se e x e rc ita v a a d o m i­ nação d o m u n d o . Q u a n to à e s p e c ia liz a ç ã o p ro fis s io n a l, as duas re lig iõ e s se d ista n cia va m p o rq u e o C o n fu c io n is m o re je ita v a tal e sp írito p ro fis s io ­ na l, a o passo q u e no p ro te sta n tism o estava bem presente a necessidade do e xe rcício e fic ie n te e u tilitá rio da p ro fissã o ; " é no tra b a lh o q u e Deus vo ca cio n a os h o m e n s ".

O te rc e iro p o n to o n d e W e b e r e sta b e le ce um a d is tin ç ã o e n tre o C o n fu c io n is m o e o Protestantism o ascético reside na q uestão d a n e g a çã o da m a g ia fe ita p e lo ú ltim o e e n fa tiz a d a no p rim e iro . O C a lv in is m o se c o n fig u ro u com o um fe n ô m e n o re lig io s o q u e ro m p e u com a m a g ia , p e r­ m itin d o , desta m a n e ira , à q u e le q u e o a b ra ç o u , com o n o rm a de fé , a ru p tu ra com a tra d içã o . C om o e x e m p lo , pod e ser cita d a a crítica à esm o­ la no m e io do p ro te sta n tism o ascético. A esm o la se constituía num in c e n ­ tiv o à p re g u iça . A lé m d o m ais, nad a p o d ia ser fe ito p e lo h o m e m para in­ flu e n c ia r nos pla n o s de Deus. A o h o m e m c a b ia se v ira r sozinho num m u n d o o n d e Deus estava d ista n te . Neste se n tid o , a ascese in tra - m u n d a n a d o C a lv in is m o fo rn e c e u um e le m e n to ra c io n a l para o dese n ­ v o lv im e n to c a p ita lis ta , de a co rd o com W e b e r. Portanto, no Protestantis­ m o (C a lvin ism o ) a a çã o re lig io s a d e ix o u de ser m á g ica e tornou-se ra c io n a l7.

As questões a c im a re fe rid a s estão concentrad as de fo rm a clara em dois conce ito s-ch a ve da te o ria w e b e ria n a sobre a a fin id a d e e n tre ca­ p ita lis m o e c a lv in is m o . Trata-se a q u i de precisar m e lh o r os conceitos de

6 — W eber, M ., conf. G. Cohn, 1982, pp. 142-159. 7 — Weber, M ., op. cit., 1971, p. 328.

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"v o c a ç ã o " e d e " p re d e s tin a ç ã o ". Na p erspectiva de W e b e r, fo i Lutero quem re d im e n s io n o u o c o n c e ito de vocação a o d eslocar o seu e ix o do m osteiro para a v id a p ro fis s io n a l8. O h o m e m re a liz a a sua vocação (Be- ru f) nas ta re fa s p ro fissio n a is d o c o tid ia n o . A ascese se to rn o u in tra - m u n d a n a .

...a única maneira de viver aceitável para Deus não estava na superação da m oralidade secular, mas sim no cumprimento das tarefas do século, imposta ao indivíduo pela sua posição no mundo. Nisto é que está a sua vocação.9

A o d e s e n v o lv e r um c o n ce ito d ife re n c ia d o d a q u e le da te o lo g ia m onástica da Idade M é d ia , Lutero co lo ca va as bases para um a nova v i­ são d o ra c io n a lis m o , seg u n d o W e b e r. W e b e r, p o rta n to , viu nesta c o n tri­ b u içã o de Lutero o g é rm e n do e le m e n to ra c io n a l q u e se to rn o u fe c u n d o no C a lvin ism o , em co n tra p o siçã o a o p ró p rio Luteranism o q u e fic o u preso a um a ética m arca d a po r e le m e n to s m ágicos. Por esta razão o Luteranis­ m o n ã o a d q u iriu fo rç a s u fic ie n te para q u e b ra r as tra d içõ e s e im p o r um a no rm a d e v id a a fim a o c a p ita lis m o in c ip ie n te .

O ra c io n a lis m o lig a -se a o d o g m a da p re d e s tin a ç ã o e se c o n fig u ra num e le m e n to id e o ló g ic o , co m o um dos fa to re s q u e fa v o re c e u o de se n ­ v o lv im e n to do c a p ita lis m o no o c id e n te . A certeza de ter sido e le ito por Deus estava a n c o ra d a n u m a n o rm a de v id a p a u ta d a p e la p o u p a n ça , p e ­ la n e g a çã o do p ra ze r sexual e por um a é tic a de tra b a lh o ríg id a ao e x tre ­ mo. O s e n tim e n to (certeza) d e ter sido p re d e s tin a d o à sa lva çã o po r um Deus su p ra -m u n d a n o q u e d e c id ira tu d o na e te rn id a d e , d e v ia se m a te ria ­ liza r co m o n o rm a de vid a e a o m esm o te m p o com o e v id ê n c ia da a c e ita ­ ção d iv in a .

E apenas é condenável porque a riqueza traz consigo este peri­ go de relaxamento. Pois o 'eterno descanso' de santidade encontra-se no outro mundo; na Terra, o Homem deve, para es­ tar seguro de seu estado de graça, 'trabalhar o dia todo em fa ­ vor do que lhe foi destinado'. Não é, pois, o ócio e o prazer, mas apenas a atividade que serve para aumentar a glória de Deus, de acordo com a inequívoca manifestação de sua vonta­ de. 1®

8 — M artin Dreher, ao ler o trabalho, lem brou que em Lutero, profissão é vocação (Beruf) e voca- ção é profissão.

9 — W eber, M ., op. cit. 1981, p. 153. 10 — Idem, p. 112.

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W e b e r destacou outros e le m e n to s ra cio n a is d o pro te sta n tism o , os quais n ã o serão discutidos a q u i; a pena s m e n c io n a re m o s dois. U m a r e li­ g iã o de cu n h o é tic o , e não m á g ico , centra a sua a tiv id a d e , b a sica m e n te , no serm ão e na "c u ra de a lm a " . O c a lv in is m o substitui o sacerdote p e lo p re g a d o r e, p ro v a v e lm e n te , a m a g ia p e la oração. O im p a cto causado p e la ascese p rotestante na v id a dos crentes d e v ia e x ig ir um a a tiv id a d e de "c u ra de a lm a " 11.

Id eo lo g ia e Bloco H istórico

Gram sci não possui em sua obra um c a p ítu lo ond e a sua co m ­ preensão de id e o lo g ia s a p a re c e d e fo rm a siste m a tiza d a . Tanto este con­ ce ito com o outros sem pre a p a re c e m de fo rm a fra g m e n ta d a .

A o co n ce ito de id e o lo g ia e suas características G ram sci a trib u i v á ­ rios graus, a o m esm o te m p o em q u e usa term os e q u iv a le n te s para se re ­ fe rir a e la : filo s o fia s , concepções de m u n d o , sistem a de pensam en tos, fo rm a s de consciência e, a té , " filo s o fia da p rá x is ". Os v á rio s níveis da id e o lo g ia co rre sp o n d e m às diversas cam adas sociais. " N a c ú p u la , a co n ­ cepção de m u n d o m ais e la b o ra d a : a filo s o fia . N o nível m ais b a ix o , o f o l­ clo re . Há e n tre esses dois níveis e xtrem os, o 'senso c o m u m ' e a 'r e lig iã o " 12.

Tam bém não é possível tra ta r da q uestão da id e o lo g ia em G ram s­ ci sem fa z e r m enção de conceitos chaves da sua obra q u e estão in trin si- ca m e n te re la c io n a d o s com o te rm o em discussão. E d ifíc il e n te n d e r o c o n ce ito d e id e o lo g ia em G ram sci sem re c o rre r a ca te g o ria s g n o s io ló g i- cas com o Bloco H istórico e H e g e m o n ia 13. A Id e o lo g ia da classe d o m i­ na n te , qu e p e rm e ia um Bloco H istórico e dá coesão à so cie d a d e , pode ser ro m p id a q u a n d o setores su b a lte rn o s assum em a d ire ç ã o id e o ló g ic a da sociedad e c iv il. A luta id e o ló g ic a p ode fa z e r rach a d u ra s num d e te r­ m in a d o Bloco H istórico, seg u n d o este te ó ric o m arxista da superestrutu ra .

Deve-se c o lo ca r q u e G ram sci fa z um a d iv is ã o e n tre id e o lo g ia his­ to ric a m e n te o rg â n ic a , isto é, a q u e la q u e s o lid ific a o Bloco H istórico, e as id e o lo g ia s a rb itrá ria s de c a rá te r in d iv id u a l e p o lê m ic o . G ram sci descreve o p a p e l da p rim e ira d a se g u in te m a n e ira : "E n q u a n to h is to ric a m e n te n e ­ 11 — Idem, 1971, pp. 374 ss.

12 — Portelli. H. 1977, p. 24.

13 — Bloco Histórico é uma form ação social, ou seja, uma situação histórica global onde se articu­ lam a base econôm ica e a superestrutura ideológica, cf. Portelli, H., 1977, p. 15. Hegemonia, na compreensão de Gramsci, quer significar a capacidade de uma classe dar ao todo da socie­ dade uma direção, cf. G ruppi, L., 1980, p. 5.

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cessárias têm um a v a lid a d e q u e é a v a lid a d e p s ic o ló g ica , o rg a n iz a m as massas hum anas, fo rm a m o te rre n o em q u e os hom ens se m o ve m , a d ­ q u ire m consciência de sua posição, lu t a m . " 14

C om o p o d e ser n o ta d o , G ram sci a trib u i à id e o lo g ia um a fo rç a até certo p o n to a u tô n o m a da re a lid a d e q u e a a ju d a a e n g e n d ra r. Neste co n ­ te xto da discussão G ram sci busca em M a rx a id é ia d e q u e as crenças p o ­ p u la re s p o d e m ser tão sólid a s q u a n to um a fo rç a m a te ria l. Talvez fosse necessário situ a r esta a v a lia ç ã o d e M a rx a re sp e ito das crenças p o p u la ­ res co m o nã o p re d o m in a n te em seu e squem a e x p lic a tiv o da so cie d a d e . E necessário d iz e r q u e em M a rx a base e co n ô m ic a da so cie d a d e é o fa to r d e te rm in a n te fu n d a m e n ta l.

C om o já fo i m e n c io n a d o a c im a , a re a liz a ç ã o de um a nova h e g e ­ m o n ia p ode passar p e lo te rre n o id e o ló g ic o . As classes su b a lte rn a s p o ­ de m e x p e rim e n ta r o e xe rcício do p o d e r a tra vé s da d ire ç ã o id e o ló g ic a da so cie d a d e c iv il. " A re a liz a ç ã o de um a p a ra to h e g e m ô n ic o , e n q u a n to cria um novo te rre n o id e o ló g ic o , d e te rm in a um a re fo rm a das consciên­ cias e dos m étodos de c o n h e c im e n to , é um fa to de c o n h e c im e n to , um fa ­ to f ilo s ó f ic o " . 15

Por trás desta visão da construção de um n o vo Bloco H istórico assenta-se a e s tra té g ia de g u e rra de posição e g u e rra de m o v im e n to . A estra té g ia re v o lu c io n á ria tra ça d a p o r G ram sci, in sp ira d a na re v o lu ç ã o russa de 1917 e em discussões de estra té g ia s m ilita re s , tem co m o p ano de fu n d o a in v ia b ilid a d e da to m a d a d o p o d e r, no o c id e n te , p e la g u e rra de m o v im e n to 16. G ru p p i descreve da se g u in te m a n e ira a p e rce p çã o do c a m in h o re v o lu c io n á rio para o o c id e n te tra ça d o por G ram sci:

No Ocidente, há equilíbrio entre os dois elementos: sociedade civil e Estado. No Ocidente, por isso, não basta conquistar o Es­ tado, é preciso conquistar as trincheiras e casamatas da socie­ dade civil. E, por isso que no Oriente se pode fazer guerra de m ovimento, enquanto que no Ocidente se deve fazer guerra de posição.17

14 — Gramsci, A., 1974, p. 103. 15 — Idem, p. 88

16 — Gramsci toma estes conceitos da estratégia m ilitar. Parte do pressuposto de que o Estado no oriente é gelatinoso, ou seja, não tão consistente como no ocidente. Cf. Anderson, P .,1986, pp. 5 - 16. Supõe-se que a tom ada do poder em Cuba e Nicarágua (O cidente) não venha a ne­ gar a teoria de Gramsci. Q uando Gramsci fa la de Ocidente provavelm ente está pensando em países de capitalism o e Estados bem constituídos.

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G ram sci c o m p re e n d a a sociedad e c iv il co m o um c o n ju n to de o r­ g anism os pro va d o s, tais com o a fa m ília , a escola, a Ig re ja , os sindicatos, os p a rtid o s, etc. In co rp o ra a esta co m p re e n sã o ta n to os m eios de c o m u n i­ cação q u a n to o m a te ria l id e o ló g ic o , qu e vã o desde a concepçã o de m u n d o , passam p e la id e o lo g ia d o setor h e g e m ô n ic o e a lca n ça m a arte, o d ire ito , as b ib lio te ca s, museus, etc. E nfim , a so cie d a d e c iv il consiste n u m a o rg a n iz a ç ã o através da q u a l a classe fu n d a m e n ta l q u e está no p o ­ d e r d ifu n d e sua W e lta n s c h a u u n g a to d a a sociedad e.

C om o o c o n flito e n tre as classes se e sp e lh a no nível id e o ló g ic o , é possível às classes suba lte rn a s assum irem a d ire ç ã o id e o ló g ic a da socie­ d a d e c iv il, desde qu e a p ro v e ite m as desag re g a çõ e s no in te rio r do Bloco H istórico e fo rm u le m sua p ró p ria id e o lo g ia e p o lític a . M as para q u e a h e ­ g e m o n ia possa ser quase to ta l, é necessário a lia r à d ire ç ã o id e o ló g ic a um a d ire ç ã o p o lític o -m ilita r. " U m g ru p o social p o d e , e m esm o d e ve , ser d irig e n te antes de co n q u ista r o p o d e r g o v e rn a m e n ta l e esta é m esm o um a das p rin c ip a is con d içõ e s para a con q u ista do p o d e r ." 18

D entro desta p e rsp e ctiva , G ram sci ataca ta n to os "m a rx is ta s - e v o lu c io n is ta s " (m a te ria lis m o v u lg a r) q u a n to a filo s o fia e s p e c u la tiv a de B enede tto Croce. N u m a lin g u a g e m m arxista, e re d u n d a n te , p o d e ria -se d iz e r que G ram sci " r e - d ia le tiz a " a re la ç ã o e n tre base e c o n ô m ic a e su­ perestrutura.

F ilo so fia d a P rá x is e Ética P ro te stan te

O estudo c o m p a ra tiv o e n tre a "F ilo s o fia da Práxis (m a rxism o co­ m o id e o lo g ia ) e a "É tica P ro te sta n te ", seg u n d o G ram sci e W e b e r, respec­ tiv a m e n te , q u e será fe ito neste item de fo rm a re su m id a e p ro v is ó ria a p a rtir das colocaçõe s a c im a , p o d e rá ser fa c ilita d o p e la a n á lis e q u e o p ró ­ p rio G ram sci fe z da R eform a Protestante e da R evolução Francesa. Pode­ ria a R eform a Protestante do século XVI, m ais e s p e c ific a m e n te o c a lvin is- m o, ter sido vista p o r G ram sci co m o um p a ra d ig m a (s u p e ra d o ) para a sua c o m p re e n sã o d o p a p e l da id e o lo g ia no Bloco H istórico?

Q u a n to à p e rg u n ta le v a n ta d a a c im a , pode-se d iz e r q u e G ram sci vê na R eform a Protestante, e s p e c ia lm e n te no m o v im e n to lu te ra n o , um m o m e n to m u ito fe c u n d o o n d e a re la ç ã o e n tre in te le c tu a is e massas oco r­ re de fo rm a m u ito cla ra . Na sua o p in iã o , este processo ocorre n o v a m e n ­ te na re v o lu ç ã o burguesa da França, p o ré m de fo rm a e sse n cia lm e n te la i­

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ca. Na re v o lu ç ã o russa de 1917 o vín c u lo in te le c tu a is /m a s s a ressurge de fo rm a bem cla ra , c o n s titu in d o , p o rta n to , um n o vo Bloco H istórico. Se o lu te ra n ism o e n g e n d ro u um a fe c u n d a re la ç ã o e n tre os in te le c tu a is e as massas, o c a lv in is m o , por sua vez, num processo p o ste rio r, se co n stitu iu com o id e o lo g ia re lig io s a capaz de fo m e n ta r o d e s e n v o lv im e n to d o c a p i­ ta lis m o c o m e rc ia l e de fo rja r um a n o rm a de v id a c o tid ia n a . A p a rtir desta visão G ram sci situa a R eform a Luterana e o c a lv in is m o co m o um e lo da co rre n te , q u e vai d o R enascim ento a té o s u rg im e n to do m a rxism o com o a u g e d o p e n sa m e n to o c id e n ta l.

A Filosofia da Práxis pressupõe todo este passado cultural, a Re­ nascença e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução France­ sa, o calvinismo e a economia clássica inglesa, o liberalism o laico... A Filosofia da Práxis é o coroamento de todo este m ovi­ mento da reforma intelectual e moral, dialectizando no con­ traste entre cultura popular e alta cultura.19

E desnecessário d iz e r q u e G ram sci não está interessado no con­ te ú d o re lig io s o d o c a lv in is m o , mas antes na c a p a c id a d e deste fe n ô m e ­ no, no século XVI, de se im p o r com o n o rm a de v id a c o tid ia n a , p ro p ic ia n ­ d o , desta fo rm a , a s o lid ific a ç ã o , p e lo m enos re g io n a liz a d a , d o c a p ita lis ­ m o in c ip ie n te num n o vo Bloco H istórico em co n stitu içã o . Porte11i, um dos con h e ce d o re s d o p e n sa m e n to de G ram sci, assinala d e fo rm a tra n s p a re n ­ te esta p re o cu p a çã o :

Para Gramsci o mérito de Max Weber não é o escapar do deter­ minismo econômico, senão mostrar, partindo do caso protes­ tante, o mecanismo da passagem de uma concepção de mundo à ação prática. Gramsci recupera Max Weber reintroduzindo- Ihe a d ia lé tic a .^

S e g u in d o esta pista ch e g a m o s à visão d e so cie d a d e d o c a lv in is ­ mo. S em pre é bom ter em m e n te q u e o p ro te sta n tism o ascético in tra - m u n d a n o teve um a in flu ê n c ia m a rca n te po r um espaço de te m p o b re ve e num espaço g e o g rá fic o nã o a m p lo . A visão social d o c a lv in is m o p re v ia um a v id a c o le tiv a p a u ta d a p e lo s m a n d a m e n to s d ivin o s. C o n se q ü e n te ­ m ente, a so cie d a d e d e v ia ser o rg a n iz a d a d e fo rm a ra c io n a l. T a w n e y d e ­ m onstra co m o isto o co rre ra em G e n e b ra por um d e te rm in a d o te m p o .

19 — Gramsci, A. op. cit., 1974, p. 123. 20 — Portei li, H., op. cit., 1974, p. 90.

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A mesma combinação do zelo religioso e sagacidade prática incitou ataques contra o jogo, a blasfêmia, os excessos no ves­ tuário e a auto-indulgência no comer e no beber. A essência do sistema era a pregação ou a propaganda embora fosse p ro lífi­ ca em ambas, mas a tentativa de cristalizar um ideal moral na vida diária de uma sociedade visível, que deve ser ao mesmo tempo Igreja e Estado. Tendo derrubado o monasticismo, sua meta era transformar o mundo secular em um gigantesco mos­ teiro e, em Genebra, por algum tempo se conseguiu.^1 Decorre desta a n á lis e a p o s s ib ilid a d e de ve r no c a lv in is m o d o sé­ c u lo XVI (G e n e b ra ) um o u tro e le m e n to da te o ria d e C ram sei, a saber a re la ç ã o e n tre te o ria e p ráxis. G ram sci estava interessado em le v a r a v a n ­ te um a re fo rm a m o ra l e in te le c tu a l das massas p o p u la re s d o m in a d a s, q u e estavam sob o c o n tro le da Ig re ja C ató lica . N a sua visão o m arxism o triu n fa ria a li o n d e o cristia n ism o fracassou. A visão de m u n d o das classes p o p u la re s, p ro fu n d a m e n te m a rca d a p o r e le m e n to s m ágicos d o catolicrs- m o, d e v ia ser tra n s fo rm a d a . Na o p in iã o de G ram sci, a re fo rm a in te le c ­ tu a l e m oral d e v e ria o co rre r sob a in flu ê n c ia d o m arxism o. C o n se q ü e n te ­ m ente, ta m b é m seriam e x tirp a d o s da visão de m u n d o das classes p o p u ­ lares os e le m e n to s d o m in a n te s da id e o lo g ia da classe c a p ita lis ta no p o ­ der. Este p ro je to viu co m o in e v itá v e l um a crítica ra d ic a l da visão de m u n ­ do das classes subalterna s, d o m in a d a s p e lo Estado a través da Igreja.

Esta discussão a p o n ta p a ra conclusões um ta n to a fin s e n tre W e b e r e G ram sci. Parece q u e a m bos d ã o ê n fa se na necessidade de um a crítica ra d ic a l, ra c io n a l da visão de m u n d o das classes p o p u la re s. Na o p in iã o de W e b e r, a é tica pro te sta n te co m o ascese in tra -m u n d a n a (c a lv in is m o ) h a v ia ro m p id o com a tra d iç ã o e a m a g ia , p ro p o rc io n a n d o , assim , o d e ­ s e n v o lv im e n to de e le m e n to s a fin s e n tre a e c o n o m ia ca p ita lis ta e o c a lv i­ nism o. No caso ita lia n o , G ram sci co lo ca co m o p ro g ra m a de p a rtid o a crí­ tica ra d ic a l à re lig iã o do p o vo e da te o lo g ia o fic ia l co m o um dos pressu­ postos para a tra n siçã o a o socialism o. Tal proposta não fo i v ia b iliz a d a na Itá lia .

C om o le va r em fre n te a " re fo r m a m oral e in te le c tu a l" das massas popula re s? De q u e fo rm a o m a rxism o p o d e ria ser assum ido pelas massas" sem se to rn a r re lig iã o ? Estas questões estavam no p ro g ra m a de G ram sci p a ra a tra n s fo rm a ç ã o d a so cie d a d e ita lia n a . Se este p ro g ra m a deu re su l­ ta d o ou não, nã o é a p re o c u p a ç ã o d o tra b a lh o no m o m e n to . C oloca-se esta q uestão , no m o m e n to , com o o b je tiv o d e situ a r n o v a m e n te a pre o -21 — Tawney, R. H., op. c it., p. 120.

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cu pação deste tra b a lh o qu e reside em a n a lis a r a fo rç a da id e o lo g ia num sistem a social. N este s e n tid o volta -se a o c a lv in is m o do século XVI e se­ guintes. O c a lv in is m o , q u e fo m e n to u e le m e n to s a fin s com a e c o n o m ia c a p ita lis ta c o n c o rre n c ia l, cedo fo i su p e ra d o po r e la . Em outras palavras, o c a lv in is m o fo ra su p e ra d o p o r a q u ilo qu e a sua é tic a a ju d o u a e n g e n ­ d ra r. Passou de fo rç a id e o ló g ic a a fim p a ra re lig iã o d e le g itim a ç ã o d o sis­ te m a c a p ita lis ta . A e c o n o m ia c a p ita lis ta ce d o p re scin d iu d a re lig iã o .

Este processo se deu de fo rm a p a ra le la a o seu d e s d o b ra m e n to em m o v im e n to s re lig io so s q u e in c o rp o ra ra m outros e le m e n to s a lé m dos d o g m a s d a " p re d e s tin a ç ã o " e " v o c a ç ã o " . N o m o v im e n to p ie tista o c o rre ­ ra a in c o rp o ra ç ã o da " u n iã o m ís tic a "22 d o lu te ra n is m o , se g u n d o W eber. Com isto a ra c io n a liz a ç ã o ced e u à m a g ia . Já o m o v im e n to b atista in tro ­ duz a e x p e riê n c ia da conversão, ao passo qu e os m etodistas a d o ta m a conversão p ro vo ca d a m e to d ic a m e n te . Na o p in iã o de W e b e r, todos estes e le m e n to s são a lh e io s à o rto d o x ia ca lv in is ta . N ão o bstante o c a rá te r um ta n to e s p e c u la tiv o destas re fle x õ e s , p o d e ria -se le v a n ta r a h ip ó te se de qu e o c a lv in is m o , na p e rsp e ctiva d e W e b e r, e o m a rxism o , na ó tica de G ram sci, se c o rre s p o n d e ria m , em níve is d ife re n te s , na p ro b le m á tic a da ra c io n a liz a ç ã o . E vidente qu e não estão em jo g o as propostas p o lítica s destes dois pensadores.

C om o ú ltim a q uestão a b e rta deste item ressalta-se a p e rg u n ta p e ­ la p o s s ib ilid a d e d e um a re la ç ã o e n tre W e b e r e G ram sci no qu e concerne aos aspectos te ó ric o -m e to d o ló g ic o s . A p o s s ib ilid a d e d e destacar c o n c lu ­ sões a fin s e n tre G ram sci e W e b e r d e riv a d a fu n ç ã o do fe n ô m e n o a n a li­ sado ou d o m é to d o a través d o q u a l cada um d e le s a n a lis a a su p e re stru tu ­ ra id e o ló g ic a ? Em outras p a la vra s, é necessário d e slo ca r o e ix o d o estudo co m p a ra tiv o das questões fu n d a m e n ta is p a ra as d e o rd e m secundá ria ? Sabe-se que W e b e r p riv ile g ia a a n á lis e da e stru tu ra in te rn a de um d a d o fe n ô m e n o , a o passo qu e G ram sci a rtic u la a instância id e o ló g ic a com as outras instâncias de um a d e te rm in a d a fo rm a ç ã o social. Para W e b e r, o c a p ita lis m o e o p ro te sta n tism o são tipos ideais construídos a p a rtir d o e m ­ p írico e d o p a rtic u la r, e n q u a n to q u e para G ram sci o p a rtic u la r está s itu a ­ do n u m a re la ç ã o d ia lé tic a com a to ta lid a d e e é in flu e n c ia d o po r e la .

22 — Conf. W eber, "u n io m ystica" corresponderia à presença de elem entos não racionais no pro­ testantismo m arcado p elo dogm a da predestinação e pelo conceito de vocação (Beruf). Pode representar as fortes emoções do m ovim ento pietista. Também significa negação do mundo, em contraposição à dom inação do mesmo. Volta a afirm ação de que o luteranism o é uma re­ lig iã o de adaptação ao mundo, W eber, M ., op. c it., 1971, p. 431. Por outro lado, este afasta­ mento do m undo fa cilito u o surgim ento de grupos de vida monástica de caráter semi- comunista dentro da Igreja Reformada, W eber, M ., op. cit., 1981, p. 92.

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C ontudo, o e n s a io m ostrou ser possível tra b a lh a r com c a te g o ria s e conclusões de estudiosos q u e se situam em corre n te s de p e n sa m e n to a n ­ tagônicas. A ra zã o desta p o s s ib ilid a d e nã o está n o fa to de q u e os pensa­ dores a n a lisa d o s se c o n tra d iz e m um a o o u tro no se n tid o de opo siçã o e n ­ tre id e a lis m o e m a te ria lis m o , m as resid e nos e n fo q u e s m e to d o ló g ic o s q u e , apesar d e d ife re n c ia d o s , consegu em ca p ta r a d in â m ic a in te rn a de um a s itu a çã o id e o ló g ic a , re la c io n a n d o -a com a to ta lid a d e .

Questões abertas

Neste ite m te n ta r-se -á tecer a lg u m a s consideraçõ es sobre o p ro ­ testantism o a p a rtir das conclusões e das ca te g o ria s de a n á lis e s o c io ló g i­ cas tra b a lh a d a s a cim a . Trata-se, p o rta n to , de um le v a n ta m e n to de h ip ó ­ teses com o p o n to de p a rtid a para um a pesquisa q u e d e v e rá ser c o m p ro ­ va d a a p a rtir de um le v a n ta m e n to de cam po. In ic ia lm e n te fo ra m c o lo c a ­ das a lg u m a s pre o cu p a çõ e s g e ra is, seguidas p o r um a a p ro x im a ç ã o das te o ria s já existentes sobre o te m a . N o te rc e iro passo são fo rm u la d a s as hipóteses. Este en sa io situa-se no te rc e iro passo, e de fo rm a um ta n to p ro visó ria .

1. "T ra n s fo rm a o ho m e m e tra n s fo rm a rá s a s o c ie d a d e ", m á x im a do p ro te sta n tism o q u e fo i in se rid a e m te rritó rio s u l-a m e ric a n o , no fin a l

d o século passado, po r em presas m issionárias n o rte -a m e ric a n a s , persiste no m e io pro te sta n te co m o e s tra té g ia m issio n á ria a té nossos dias.

Teólogos, h isto ria d o re s e so ció lo g o s qu e se o c u p a ra m com a a n á ­ lise d o p ro te sta n tism o b ra s ile iro não raras vezes se d e ix a ra m le v a r p e la v u lg a riz a ç ã o da tese w e b e ria n a , tra d u z in d o -a da se g u in te fo rm a : " o p ro te sta n tism o fa v o re c e a ascenção social do in d iv íd u o , c o n se q ü e n te ­ m ente m uda-se por aí a s o c ie d a d e ." D entro desta visão o p ro te sta n tism o p o d e ria a ju d a r no d e s e n v o lv im e n to da so cie d a d e ca p ita lis ta a o e lim in a r os seus exa g e ro s. O p ro te sta n tism o p ro p ic ia ria aos q u e o abraçassem a ascensão in d iv id u a l na escala social. Tanto a v u lg a riz a ç ã o da tese de W e b e r q u a n to a sua a p lic a b ilid a d e im e d ia ta n ã o possuem consistência e m p íric a , a p a rtir d o nosso co n te x to sócio e c o n ô m ic o . A lé m disso, d e ve - se fris a r q u e o p ro te sta n tism o qu e não se " p o p u la r iz o u " v ia m o v im e n to s p entecostais, p e rm a n e c e em g ra n d e p a rte um sistem a de id é ia s estra n h o à re a lid a d e b ra s ile ira .

A transposição im e d ia ta d e ca te g o ria s so cio ló g ica s de W e b e r ou de outros, e de suas conclusões a re sp e ito d o pro te sta n tism o do século XVI, da Europa, não fa c ilita a a n á lis e so c io ló g ic a d o p ro te sta n tism o que a q u i se c o n fig u ro u . Fazer um a a n á lis e a p a rtir da transposição im e d ia ta

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de c a te g o ria s so cio ló g ica s de W e b e r im p lic a em desco n sid e ra r o d e se n ­ v o lv im e n to h istó rico ta n to d o c a p ita lis m o q u a n to do so cia lism o . C om o p ô d e ser n o ta d o a c im a , o p ró p rio d e s e n v o lv im e n to e c o n ô m ic o d o c a p ita ­ lism o p re scin d iu da re lig iã o por m ais a fin id a d e qu e pudesse te r h a v id o em a lg u n s m om entos. Diga-se de passagem q u e neste aspecto W e b e r e G ram sci se a p ro x im a m : am bos a c e n tu a m a fu n ç ã o le g itim a d o ra da so­ c ie d a d e por p a rte da re lig iã o . Parece qu e o p ro te sta n tism o b ra s ile iro , com a lg u n s m om entos de excessão, não fo i a lé m da le g itim a ç ã o da o r­ de m co n stitu íd a . M esm o o p e n te co sta lism o co m o v e rte n te p o p u la riz a d a d o pro te sta n tism o , o n d e os suba lte rn o s se fa z e m presentes, não fo i a lé m da le g itim a ç ã o .

O p ro te sta n tism o de v e rte n te p ie tis ta -fu n d a m e n ta lis ta norte- a m e ric a n a , q u e tro u xe im p líc ito em seu discurso um a visão de m u n d o m arca d a p e la m o d e rn iz a ç ã o e pelos id e ia s lib e ra is , a p resento u-se pouco lib e ra l e m o d e rn iz a d o r q u a n d o e lite s a u to ritá ria s to m a ra m o p o d e r de assalto nos países la tin o -a m e ric a n o s .

A a n á lis e qu e D 'Epinay fe z d o p ro te sta n tism o c h ile n o — p ro v a v e l­ m ente v á lid a p a ra o caso b ra s ile iro — , d u ra n te o p e río d o do g o v e rn o de Frei, le v a n ta um a h ipótese que d e ve ser c o n sid e ra d a a q u i. D 'Epinay a p o n ta para a im p o s s ib ilid a d e de o pro te sta n tism o fa v o re c e r, com sua e s tra té g ia m issio n á ria , o s u rg im e n to de um c a p ita lis m o m ais a va n ça d o . Ele in tro d u z um a p ro b le m á tic a re la tiv a à e strutura d o c a p ita lis m o de p e ­ rife ria , su b d e s e n v o lv id o e d e p e n d e n te :

É precisamente este ponto que será necessário examinar. Em­ bora o protestantismo favorecesse a criação de um espírito de empresa, encontraria estes canais estruturais para expressar- se, em produção real, da qual resultasse desenvolvimento para o conjunto da sociedade?23

2. Na discussão da é tica p rotestante e d e sua fu n ç ã o na sociedad e c a p ita lis ta d e p e n d e n te , a q uestão c o lo ca d a por D 'Epinay n ã o a p o n ta só

para a fa lta de espaço e stru tu ra l para q u e este fe n ô m e n o re lig io s o possa se expressar, mas le va n ta ta m b é m a p e rg u n ta p e la m e ta m o rfo se a qu e está s u je ita a é tic a -in tra m u n d a n a d o p rotestantism o . As co ndiçõe s so­ ciais, cu ltu ra is e e co n ô m ica s o n d e o p ro te sta n tism o se instala re d im e n s io n a m -n o de fo rm a m ais ou m enos cla ra . Parte-se da questão d o tra b a lh o , po r e x e m p lo . P ro va ve lm e n te a visão qu e se tem do tra b a lh o

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em nosso co n te xto d ife re bastante d a q u e la a n a lis a d a por W e b e r com re ­ fe rê n c ia ao século XVI.

O protestantismo, também por um fenôm eno de simbiose com a cultura sul-americana tradicional, que não vê no trabalho e no progresso o summum da vida humana, não parece introdu­ zir de form a sensível uma nova ética do trabalho.24

A inserção d o p ro te sta n tism o na sociedad e s u l-a m e ric a n a ocorre na m e d id a q u e seus diversos ram os con sig a m se a m a lg a m a r com outras vertentes c u ltu ra is e relig io sa s. A p e la -se n o v a m e n te para G ram sci que tão bem ca ra cte rizo u os diversos níveis de id e o lo g ia . Transpõe-se para o p rotestantism o a a n á lis e q u e G ram sci fe z da re lig iã o na Itá lia . O protes­ ta n tism o se in c o rp o ra rá à re a lid a d e na m e d id a em q u e e le fo r capaz de se c o n fig u ra r com o um a m á lg a m a d e d ife re n te s aspectos das re lig iõ e s co n te m p o râ n e a s, mas ta m b é m de crenças e superstições25. P ro va ve l­ m ente o p e n te co sta lism o é em p a rte o fru to desta a m á lg a m a ; a m esm a questão pod e ser tra n s fe rid a para o lu te ra n is m o laico. Talvez o protes­ tantism o de conversão, de reta d o u trin a , seja m enos capaz de re ce b e r in flu ê n c ia s c u ltu ra is e re lig io s a s d o m e io .26

3. Ficou im p líc ito neste en sa io um a a firm a ç ã o de W e b e r q u e c o lo ­ cou em d ú v id a a p o te n c ia lid a d e d o lu te ra n is m o de se co n stitu ir n u m a re ­

lig iã o com im pulsos re v o lu c io n á rio s ou a o m enos re fo rm a d o re s . O p o n to de p a rtid a para esta a firm a ç ã o de W e b e r reside na sua a n á lis e d o ca lv i- nism o com o re lig iã o cujos e le m e n to s ra cio n a is (em c o n tra p o siçã o à tra ­ d iç ã o e à m a g ia ) h a via p ro m o v id o o su rg im e n to de um a é tica in tra - m u n d a n a . Daí o ca rá te r de d o m in a ç ã o do m u n d o d o c a lv in is m o em o p o ­ sição a o lu te ra n is m o co m o re lig iã o de a d a p ta ç ã o à sociedad e in clusiva.

A fu n ç ã o de um a re lig iã o é d e te rm in a d a em g ra n d e parte p e la p ró p ria so cie d a d e o n d e e la se d e s e n v o lv e u ou fo i inserida. Com isto p re te n d e -se a firm a r q u e um d e te rm in a d o credo re lig io s o não necessa­ ria m e n te d e v e rá c u m p rir a m esm a fu n ç ã o social num co n te xto d ife re n te d a q u e le o n d e e le surgiu e se d e se n v o lv e u . C o n se q ü e n te m e n te esta co m ­ preensão da fu n ç ã o da re lig iã o em d e te rm in a d o co n te xto social re le m ­ bra um a das questões cen tra is deste en sa io , q u a l seja, em que m e d id a a

24 — Idem, p. 239.

25 — PorteiIi, H. op. cit., 1977, pp 25-26. Utiliza-se aqui a análise que Gramsci fez do senso comum para explicar a metam orfose do protestantismo sul-am ericano.

26 — O trabalho fe ito para universidade fem seu ponto fin a l aqui. O que segue são questões aber­ tas elaboradas posteriorm ente tendo em vista o etno-luteranism o.

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re lig iã o consegu e a in d a se im p o r a so cie d a d e e fo rja r um a n o rm a de v i­ da to ta l ou p a rc ia lm e n te d ife re n te do m o d o d e v id a d o m in a n te ? Parece qu e a fo rç a o rg a n iz a tiv a da re lig iã o , ta n to a nível in d iv id u a l q u a n to c o le ­ tiv o , co n se rva d o ra ou "p ro g re s s is ta ", s o b re vive , na m a io ria das vezes, em grupos ou seitas qu e estão fo ra do a lca n ce das estruturas eclesiásticas ou às m argens d e la .

R ecolocando a q u e stã o le v a n ta d a por W e b e r, parte-se p a ra um a a n á lis e de ca rá te r m u ito in tro d u tó rio do e tn o -lu te ra n is m o . As m e ta m o r­ foses q u e estão o c o rre n d o no e tn o -lu te ra n is m o (b ra s ile iro ) são em g ra n ­ de parte d e co rre n te s d o a v a n ço da so cie d a d e c a p ita lis ta no ca m p o e, su b se q ü e n te m e n te , na c id a d e via " p ro le ta riz a ç ã o " do p e q u e n o a g ric u l­ tor qu e m ig ro u com sua fa m ília . A co n ce n tra çã o c a p ita lis ta d a te rra para a in tro d u ç ã o da em presa a g ríc o la baseada na m o n o c u ltu ra e a im possi­ b ilid a d e d e c o n tin u a r s u b d iv id in d o o lote com seus filh o s p o d e m ser vis­ tas co m o as p rin c ip a is causas da m ig ra ç ã o para a cid a d e d a q u e le s que estavam p ro fu n d a m e n te lig a d o s a o tra b a lh o na p e q u e n a p ro p rie d a d e da terra.

O a v a n ç o c a p ita lis ta in tro d u z rupturas no m o d e lo de "c ris ta n d a d e e v a n g é lic a ". Usa-se esta expressão "c ris ta n d a d e e v a n g é lic a " num se n ti­ do não preciso. N ão se constitui um c o n ce ito bem d e fin id o . U tiliza -se es­ ta expressão para fa la r de um a d e te rm in a d a to ta lid a d e q u e a rtic u la in ­ te rn a m e n te três co m p o n e n te s: a) a e tn ia , g e rm a n id a d e ; b) a re lig iã o lu ­ te ra n a e ; c) a p e q u e n a p ro p rie d a d e a g ríc o la co m o base m a te ria l q u e por m u ito te m p o fo i p re d o m in a n te , ou ta lv e z a in d a c o n tin u a em m e n o r grau. O processo de u rb a n iz a ç ã o ca p ita lis ta (n ã o se restrin g e a pena s a o qu e ocorre na c id a d e ) com eça a desestrutura r esta to ta lid a d e . C om o um dos possíveis e x e m p lo s pode-se m e n c io n a r o p la n o de n a c io n a liz a ç ã o do p ro je to social e e c o n ô m ic o no p e río d o d e G e tú lio (Estado N o v o ) qu e su­ p rim iu , em g ra n d e p a rte , a lín g u a a le m ã nas escolas co m u n itá ria s . N ão está em jo g o um a a v a lia ç ã o p o sitiva ou n e g a tiv a d e tal processo de in ­ co rp o ra çã o a um a " c u ltu ra n a c io n a l" dos g ru p o s étnicos m a rg in a liz a d o s . Trata-se, isto sim , de le v a n ta r o p ro b le m a e a p o n ta r as conseqüências. Uma das conseqü ências de to d o este processo é o e n fra q u e c im e n to do e le m e n to é tn ic o da "c ris ta n d a d e e v a n g é lic a ". F ragm enta-se a base s ó c io -a n tro p o ló g ic a do lu te ra n is m o .

As conseqü ências deste processo não estão claras a in d a . Suspeita- se q u e no m u n d o da cid a d e os q u e m ig ra ra m te n d e m a se fe c h a r com o o b je tiv o de p re se rva r em seus va lo re s, im p o s s ib ilita n d o , po r o u tro la d o , a id e n tid a d e com a re a lid a d e in clu siva . A p e rg u n ta q u e fic a é a s e g u in ­ te: a " g u e tiz a ç ã o " do e tn o -lu te ra n is m o é re d im e n s io n a d a ou com eça a d ilu ir-s e ?

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Q ual a fu n ç ã o da c o m u n id a d e lu te ra n a u rb a n a neste processo de " p ro le ta riz a ç ã o " e de re a firm a ç ã o da id e n tid a d e tra d ic io n a l? N o caso específico do p e n te co sta lism o , a firm a -s e qu e a c o n g re g a ç ã o re lig io s a se a p resenta em p a rte co m o um espaço o n d e são re p ro d u z id o s a lg u n s v a lo ­ res tra d ic io n a is d o m u n d o ru ra l, fa c ilita n d o a in te g ra ç ã o d o in d iv íd u o à v id a urbana. E possível fa z e r um p a ra le lo com o lu te ra n ism o ? A in d a fa l­ tam e le m e n to s para um a resposta m ais segura. Para c la re a r a p re o c u p a ­ ção pode-se fa z e r uso de um e x e m p lo qu e vem o c o rre n d o no m e io do e tn o -lu te ra n is m o , p rin c ip a lm e n te no m u n d o u rb a n o . Nas co m u n id a d e s o nde a lid e ra n ç a pastoral in c e n tiv a a a d esão in d iv id u a l a Cristo e a sub­ seqüente ru p tu ra com o m odo tra d ic io n a l de v iv e r a re lig iã o , n ã o oco r­ rem conversões em e le v a d o n ú m e ro . Esta ausê n cia da necessidade de m udança não re v e la um a certa e s ta b ilid a d e da cosm ovisão e tn o - luterana?

" O tra b a lh o cansa, mas d ig n ific a a p e sso a ", fa lo u um a senhora lu te ra n a de classe m é d ia a um garçon n e g ro q u e lhe servia. A id e o lo g ia de q u e o tra b a lh o d ig n ific a e o p o rtu n iz a a ascençõo social in d iv id u a l es­ tá m u ito presente no m e io dos fié is da Ig re ja E vangélica Luterana. Tendo em vista a id é ia de "c ris ta n d a d e e v a n g é lic a " faz-se duas questões. Pri­ m e ira , em qu e m e d id a a visão do tra b a lh o honesto e á rd u o qu e p o s s ib ili­ ta a ascensão social in d iv id u a l n ã o se c o n fig u ra co m o b lo q u e io id e o ló g i­ co para a p e rce p çã o das raízes estru tu ra is dos p ro b le m a s sociais? In ú m e ­ ras vezes ouve-se q u e tal in d iv íd u o é p o b re p o rq u e é v a g a b u n d o . S egun­ da, este b lo q u e io id e o ló g ic o recebe um a sanção re lig io s a ?

W e b e r a firm o u q u e ta n to o lu te ra n is m o q u a n to o c a lv in is m o e n fa ­ tiza ra m a necessidade de v iv e r a re lig iã o no m u n d o secular e nã o no m osteiro. No caso do lu te ra n is m o , as obras d e co rre n te s da re lig iã o (fé ) d e ve m se e s p e lh a r nas relações p ro fissio n a is o n d e ocorre o tra b a lh o .

A e m p re g a d a qu e v a rre o chão está fa z e n d o a v o n ta d e de Deus; este e x e m p lo ja se to rn o u p ro v e rb ia l. W e b e r cham a este processo de ra ­ cio n a liz a ç ã o . Evidente qu e isto já se fa z ia presente no tra b a lh o dos m o n ­ ges na Idade M é d ia .

No e n ta n to , n ã o se pod e esquecer q u e a o lo n g o do c a p ita lis m o o tra b a lh o h u m a n o fo i assum ido cada vez m ais um ca rá te r a lie n a n te ao e x tre m o . M a rx a b o rd o u m u ito bem a a lie n a ç ã o d o tra b a lh a d o r no p ro ­ cesso p ro d u tiv o da fá b ric a em seus "M a n u s c rito s Econôm icos e F ilo só fi­ c o s ", de 1844. Inclusive fa z um a a n a lo g ia e n tre a a lie n a ç ã o re lig io s a e do tra b a lh o . É necessário, p o rta n to , re fle tir a q uestão d o tra b a lh o ta m ­ bém a p a rtir da te o ria da a lie n a ç ã o . D epreend e-se desta discussão duas

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p ergunta s conclusivas. A p rim e ira vai em d ire ç ã o à te o lo g ia e p rá tica pastoral da Ig re ja lu te ra n a , a o passo q u e a segund a p ro cu ra re la tiv iz a r a questão da ra c io n a liz a ç ã o .

A p a rtir da te o ria da a lie n a ç ã o d o tra b a lh o (do tra b a lh a d o r) a in d a é possível sustentar a id é ia de q u e os hom ens d e v a m v iv e r as " o b r a s " da fé nas relações de tra b a lh o ? A p e rg u n ta parte da s o c io lo g ia p a ra a te o lo ­ g ia . O p ro b le m a está co lo ca d o . N o n íve l da p ro d u ç ã o s im b ó lic a o lu te ra - nism o p rim itiv o — m o v im e n to da re fo rm a — a ce n o u com a s o cia liza çã o do p o d e r re lig io s o a tra vé s do "S a c e rd ó c io U niversal de todos os C re n te s". Talvez a re c u p e ra ç ã o deste p rin c íp io e a in co rp o ra ç ã o da c ríti­ ca do tra b a lh o a iie n a d o p o d e ria m ro m p e r com a q u e la visão u tilitá ria tão presente no m e io pro te sta n te de q u e a so cie d a d e d e ve ser usada para in ­ teresses in d iv id u a is — id e o lo g ia d o sistem a in c o rp o ra d a a o protestantis­ mo.

Por ú ltim o , a q uestão re la tiv a a o e n fo q u e te ó ric o m e to d o ló g ic o da discussão co lo c a d a a c im a . Pergunta-se se a ra c io n a liz a ç ã o co m o c a te g o ­ ria de a n á lis e a in d a dá conta de um a re a lid a d e o n d e a re la ç ã o e n tre re ­ lig iã o e so cie d a d e está cada vez m ais m arca d a p e la m e rc a n tiliz a ç ã o do re lig io s o ? A ra c io n a liz a ç ã o não e n co b re um processo de d o m in a ç ã o de classe nem sem pre a p a re n te ? Ela não se to rn o u um a n o va fo rm a d e m a ­ g ia ? Para tra ta r desta q u e stã o de fo rm a co n v in c e n te seria necessário co­ m eçar um o u tro tra b a lh o , te n d o em vista a a n á lis e d o fe tic h e em M a rx e em outros pensadores q u e tra b a lh a ra m o fe tic h is m o nas relações sociais da so cie d a d e c o n te m p o râ n e a .

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