• Nenhum resultado encontrado

Museus de arte, lugares de morte e de resistência: a estética de Hegel e as vanguardas artísticas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Museus de arte, lugares de morte e de resistência: a estética de Hegel e as vanguardas artísticas"

Copied!
104
0
0

Texto

(1)

! ! ! ! !

!

!

Museus,!lugares!de!morte!e!de!resistência:!a!estética!de!Hegel!e!as!

vanguardas!artísticas!

!

!

!

Verónica!Inês!Manguito!da!Costa!Rodrigues!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

!

Novembro!de!2017!

!

Dissertação!de!Mestrado!em!Cultura!Contemporânea!e!Novas!

Tecnologias!

(2)

Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, realizada sob a

(3)

MUSEUS DE ARTE, LUGARES DE MORTE E DE RESISTÊNCIA – A ESTÉTICA DE HEGEL E AS VANGUARDAS ARTÍSTICAS

Verónica da Costa Rodrigues

RESUMO

Afirmar que o museu subtrai à arte a sua autenticidade implica olhar para a história e para a cultura como esferas separadas na quais a obra de arte é colocada no momento de produção – aí e apenas aí a arte encontra a sua essência – e portanto olhar para a arte como habitante e não produtora de circunstâncias históricas. Perguntar pelo papel da arte – e do museu – na história, levar-nos-á quase sempre a pensar na grande questão que nos últimos séculos alimenta os debates em relação a essa figura a que chamamos cultura. Será da cultura a função de produzir enunciados ou apenas de conservá-los? A presente investigação debruçar-se-á sobre a instituição do museu de arte - do século XVIII aos dias de hoje – como fazedora de narrativas culturais e históricas, para as quais a estética de Hegel, ela própria museal, funcionará como simultâneo ponto de partida e de chegada.

PALAVRAS-CHAVE: Hegel; museu de arte; Iluminismo; avant-garde; estética; Marcel

(4)

ART MUSEUMS, PLACES OF DEATH AND RESISTANCE – HEGEL’S AESTHETICS AND THE ARTISTIC AVANT-GARDE

Verónica da Costa Rodrigues

ABSTRACT

To say that the museum detracts from the authenticity of the artwork relies upon regarding history and culture as two separate spheres in which the artwork is positioned at the moment of production – only there can art retain its essence - hence this means looking at art as inhabitant of historical circumstances, rather than a producer of them. To ask about the role of art historically as well as that of the museum, will almost always lead us to the old question that in past centuries has fueled debates on that figure that we now call culture. Does culture produce something, or is its task simply that of preserving what something/someone else has produced? Our investigation examines the institution of the art museum as a cultural and historical narrative maker from the 18th century to the present days. Hegel’s Aesthetics, museal in its own right, will serve as both the departure and arrival point for our analysis.

KEYWORDS: Hegel; art museum; Enlightment; avant-garde; aesthetics; Marcel

(5)

ÍNDICE

Introdução 1

Hegel, filósofo da arrière-garde 6

Taxonomia do Museu de Arte 19

1. A Revolução do Museu, Museu como objecto revolucionário 20

2. Museu de Arte como espaço de representação 27

Museus e seus Críticos 36

1. Quatremère de Quincy 37

2. Martin Heidegger 41

3. Theodor Adorno 47

Do paradigma do Altes Museum à galeria de arte contemporânea 56

1. Altes Museum 57

2. Para além do século XIX, os artistas e o museu 66

3. O exemplo do Musée d’art moderne de Marcel Broodthaers 80

Conclusão Error! Bookmark not defined.

(6)

Introdução

“Das estátuas sobraram apenas pedras, abandonadas da sua alma, tal como os hinos são agora meras palavras das quais a crença se desprendeu (...) O destino não restaura o mundo das obras de arte [Antiga], não nos oferece a Primavera e o Verão da vida ética na qual brotaram e amadureceram, se não uma recordação velada desse mundo”1

É já no excurso final da última secção do penúltimo capítulo da Fenomenologia do Espírito2 a que G. W. F. Hegel chamara Religião Revelada [Die offenbare Religion], que encontramos estas palavras. Escolhê-las para abrir a nossa investigação não terá sido fortuito, antes de qualquer outra coisa porque Hegel será a figura central deste projecto, funcionando como estrela polar que orientará mais ou menos manifestamente os argumentos que propomos. Porque estranhamos e nos entristece que Hegel funcione não raras vezes como figura de passagem nos cursos de filosofia em Portugal, onde as traduções são escassas e nem sempre rigorosas, nome marginal nos programas, vítima quase certa da duração dos semestres, reduzido a conceitos operacionais e interpretações pobres. Não sendo nosso intuito transformarmos esta investigação num manifesto pela leitura de Hegel, afinal, não estamos também nós em capacidade de lhe fazer devida justiça, aproveitaremos, todavia, a oportunidade que aqui se abre para lembrar a riqueza extraordinária do ideário hegeliano para as filosofias da sensibilidade, para a estética e teorias da arte e, claro está, para pensar o museu. Em segundo lugar, observamos que sobre a problemática concreta da museificação – o nosso eixo fundamental de análise - dificilmente encontraríamos na obra de Hegel palavras mais incisivas que estas; na verdade, alusões àquilo que aqui nos referimos por problemática da museificação, são, na obra de Hegel, dispersas e relapsas a sistematizações. Em terceiro lugar, se encontramos neste parágrafo uma oportunidade para pensar o transmutar do tempo e do espaço que a museologia abre na arte, a escolha de palavras, lembrando-nos aquelas dos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

1 Trad livre do inglês “The statues are now only stones from which the living soul has flown, just as the hymns

are words from which belief has gone. (…) So Fate does not restore their world to us along with the works of antique Art, it gives not the spring and summer of the ethical life in which they blossomed and ripened, but only the veiled recollection of the actual word.” in Hegel, Phenomenology of Spirit, pp. 455

2 Por razões económicas referir-nos-emos, doravante, à Fenomenologia do Espírito pelo acrónimo PdG

[Phänomenologie des Geistes]

2 Por razões económicas referir-nos-emos, doravante, à Fenomenologia do Espírito pelo acrónimo PdG

(7)

críticos dos primeiros tempos dos museus, serve ainda como portal para a grande questão que alimentou os cépticos do museu nos últimos dois séculos – a des-espiritualização da arte no mundo moderno, para a qual a cultura dos museus e salas de espéctaculo contribuiu fatalmente. O que nos interessa verdadeiramente aqui, é o modo como uma mesma premissa, aquela que Hegel tão belamente identifica nas linhas que seleccionámos, foi simultaneamente lâmina e gume daquilo que se tem escrito sobre os museus ao longo dos séculos. Que o museu abre na arte um novo capítulo, que a mundifica e que a torna livre ou então que a furta, lhe retira a alma, a aura, a autenticidade ou o significado, por estes estarem imbuídos no contexto de produção. Nuns e noutros – antecipemos desde já o crivo que nos guiará nos seguintes capítulos - encontramos essa ideia de que o objecto de arte, assim que entra no museu, permanece um objecto belo ao qual foi subtraído o espírito do seu tempo, ausência que significa perda e, em última instância, morte ou, por outro lado, progresso e libertação. Na verdade, o espírito do destino que Hegel evoca na PdG, como aquele que nos dá a ver as obras de arte antiga, oferece-nos muito mais que a vida ética e o mundo do povo que as criou, aquilo que aqui traduzimos por recordação velada [Erinnern], corresponde justamente à substância do espírito consciente de si como espírito. Será então essa des-espiritualização da obra de arte (conceptualizada pelo pensamento filosófico e exposta em museu) que indicará, em Hegel, o estado de maturação da consciência, agora liberta das formas arcaicas de projeção totémica. Se a arte deixou de ser vital a partir do momento em que passou das mãos dos padres para as dos curadores, tal não é incoincidente, e significa, concomitantemente, que o sujeito filosófico se tornou então capaz de transpor a distância entre realidade e categorias. Passamos portanto a poder falar num mundo da arte, à medida que o corpo da arte, o Kunstkörper lacerado do qual nos fala Goethe na introdução à primeira publicação da Propyläen, foi sendo desmembrado e seus órgãos enviados e preservados em galerias ao redor do mundo. O primeiro capítulo constituir-se-á então como uma aproximação – assumindo desde já o risco de um projecto condenado à incompletude – àqueles que consideramos serem os traços fundamentais da estética de Hegel que localizara o início da arte na “(…)tendência da imaginação para se separar da natureza a fim de se orientar para a espiritualidade"3, ou seja, na cesura originária da qual emergiu a cultura.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

3Trad livre do inglês “(...) the urge of imagination con­sisted in striving out of nature into spirit” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 517

(8)

No segundo capítulo - de todos o mais especulativo – procurar-se-á definir, pelo menos em termos de fronteiras, o nosso objecto de investigação. Primeiro, o museu de arte como instituição e não esses outros museus de nascimento paralelo e história igualmente interessante; segundo, o museu de arte oitocentista, projectado no pensamento do Iluminismo e consumado no Musée Central e não aquelas que podemos considerar terem sido as suas formulações embrionárias, os wunderkammer e os kunstkammer, os studiolis ou os cabinets de curiosités. Para daí ensaiarmos uma caracterização operacional da instituição do museu como dispositivo ou aparelho, partindo de uma leitura da genealogia foucaultiana – que tem, aliás, animado boa parte das críticas contemporâneas à museologia – para a partir dela nos demarcarmos daquelas teorias que, ao optarem por uma concepção heterotópica do museu (a par de outras instâncias como o barco ou o cemitério) se recusam a compreender que o museu, ao operar essa mumificação dos objectos de arte, cria aos modernos as condições de possibilidade de estabelecimento daquilo a que se pode chamar – pelo acoplar de dois conceitos aos quais Hegel se dedicara - uma invenção da descoberta – e, portanto, que se no museu a obra de arte morre, experimenta ainda uma espécie de parusia.

Lidas em conjunto, estas duas secções que perfazem o segundo capítulo, sugerem aquela que será umas das premissas orientadoras da nossa investigação – que entre o museu contemporâneo e o seu congénere oitocentista, encontramos curiosos correlactos que, com mais ou menos força, têm resistido às múltiplas transformações que ocorreram quer no campo da arte quer naquele das disciplinas que a estudam – a história e a filosofia, ou, a bem dizer, a história da arte e a estética – o que nos permite pensar a figura do museu no contemporâneo não como essencialmente disjuntiva mas quase como que consequencial daquela figura que nasceu nos alvores da modernidade. É certo, como não poderia deixar de ser, que a expansão histórica e territorial do museu – da restrita concepção oitocentista à sua disposição actual – se dá em concordância com um conjunto de factores políticos que orientam para uma era global (da qual advém, em primeiro plano, a desconfiança de alguns filósofos mais pessimistas ou conservadores, aos quais dedicaremos um capítulo). Todavia, epistemologicamente, o museu parece ter resistido a alterações profundas, mantendo-se sempre como um espaço de ordenação das coisas do mundo e da representação e compreensão do mundo ele próprio - as exposiçõs, as coleções, as trocas dumas e doutras, revelam justamente essa recontextualização do global(izante) no local(izado).

(9)

Afirmar a capacidade do museu em permanecer não significa, porém, colocar o museu junto das forças estáticas da tradição - os museus foram-se metamorfoseando, nalguns casos para além das próprias características que os tornam reconhecíveis enquanto tal - nem rebuscar o mesmo método historiográfico contra o qual Foucault se insurge. Há, todavia, algo de suspeito quando a mesma narrativa ressurge ao longo dos tempos. Não há hoje quem escreva sobre arte ou sobre estética do mesmo modo que se escrevia há meio século, surpreende-nos todavia, que assim se continue a escrever sobre os museus – podemos então antecipar a interrogação - não estará na origem disso a estabilidade essencial da instituição do museu não apenas nos últimos cinquenta mas nos últimos duzentos anos? Atacado nos areópagos da esquerda contra a direita, do conservadorismo e do avant-garde, dentro e fora dos seus limites propriamente concretos, o museu soube resistir a estas investidas. No terceiro capítulo, face a uma linhagem de críticos tão longa e tão diversa que teve início no justo momento em que foi edificado o primeiro museu de arte e não parou de engrossar em número e em género até aos dias de hoje, optámos pela selecção de três teóricos que consideramos particularmente expressivos – Quatremère de Quincy, Martin Heidegger e Theodor Adorno.

O quarto e final capítulo procurará constituir-se como síntese das aproximações mais ou menos hesitantes que foram sendo feitas nos corredores da investigação, da relação entre a estética hegeliana e o primeiro museu de arte de Berlim, à resistência do museu do pré e pós-guerra frente às empreitadas vanguardistas. Sabemos que a história da arte é tanto a história das obras de arte, como a dos seus artistas, dos seus museus, dos seus espaços de acção, dos seus teóricos, dos seus críticos, dos seus curadores, de uma estética, de várias estéticas, ou do fim de todas as categorias de estetização. Curiosamente, encontramos quase sempre ausentes – não porque irreconhecidos, mais porque tácitos ou adquiridos – os mecanismos através dos quais a história se enforma, as ligações mais ou menos explícitas entre os enunciados que apresentávamos há pouco, os modelos – porque vários – pelos quais se constrói a narrativa da história da arte. Uma obra de arte, quando se abre ao público enquanto tal, nunca o faz de modo solitário – a sua colocação espacial e temporal obedece a determinadas limitações históricas ou regras de apresentação, talvez capazes de formar, por direito, a sua própria categoria histórica. Por outro lado, o que nos é mostrado sobre um passado sob a forma de história, ou, se quisermos, de memória colectiva, diz-nos tanto sobre uma cultura como aquilo que, por trás dela, se esconde. Será então curioso debruçarmo-nos sobre uma vertente

(10)

constituinte da cultura que tem resistido às reestruturações históricas. Estaremos então perante um mise-en-abyme monístico, onde se confundem fins e meios? Se o fim da arte deixa de radicar em algo que a transgride então qual será o destino da arte com fim em si mesma? Tal questão servir- nos-á para que se torne possível operar o salto lógico – tão inortodoxo quanto necessário – e explorar o hegelianismo, mais ou menos assumido, do Musée d’Arte Moderne, Departmente des Aigles de Marcel Broodthaers – uma ficção que permite apreender a realidade e, ao mesmo tempo, aquilo que ela esconde4. Justamente por considerararmos que este museu-posto-em-obra, forma um universo que cartografa, à maneira hegeliana, a sociedade sob a forma de um museu de arte – as secções (Littéraire, Folklorique, documentaire, cinéma, financière, des Figures, Publicité, XIXème Siècle (bis), XVIIème siècle, d’Art moderne) feitas artefactos ou objectos, ocupam uma área cinzenta entre os artefactos culturais e culturalmente determinados e o museu como instituição. Noutros termos, o musée de Broodthaers leva-nos a questionar se haverá, afinal, um campo neste mundo contemporâneo a que possamos chamar fora-do-museu.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

4 Trad livre do inglês “‘fiction allows us to grasp reality and at the same time what it hides” in Marcel

(11)

Hegel, filósofo da arrière-garde

Os problemas levantados pela estética de Hegel dificilmente serão subsumidos a uma linguagem económica e facilmente escapam à mais atenta das leituras. Pela dimensão deste projecto optámos por segui-los com cautela, considerando, por outro lado, que subtraí-los a uma análise como esta, constituiria um acto de pena maior. Deste modo, as incursões estéticas de Hegel, propriamente aquelas que encontramos nas suas Lições de Estética (1818-1829) serão o objecto deste capítulo, o primeiro do nosso projecto mas que convida, na leitura, a uma perspectiva ante-capitular.

Lembremos que a estética de Hegel encontrou, como de resto, toda a sua obra – que fora considerada prosaica e mesmo deletéria para a filosofia da religião mas ainda assim excessivamente cristã para o marxismo - um percurso tumultuoso entre as filiações arrebatadas e as mais acérrimas condenações. Há que saber separar as palavras de Hegel daquelas dos seus intérpretes, sobretudo porque os seus conceitos, digeridos pela glosa do escárnio ou da paixão, surgem-nos um pouco por tudo aquilo que se produziu sobre arte no século e meio que se seguiu à sua morte. Podemos mesmo – sem substancial pena científica - forçar a premissa ao máximo afirmando que, depois de Hegel, raras, se algumas, foram as filosofias da sensibilidade que sobreviveram sem o selo mais ou menos explícito ou mais ou menos sincero, do hegelianismo. Kierkgaard5, o grande anti-hegeliano mas também Heidegger, que de Kierkgaard cedo se proclamou herdeiro, são curiosos exemplos disso, como o são também as incursões estéticas de Adorno e Benjamin, ou, noutra nota, as de Deleuze e Merleau-Ponty, Derrida e Bataille (às quais não estamos em capacidade de dar a merecida atenção). Todavia, tal não bastou para que Hegel se tornasse um favorito entre os pensadores da arte no século XX, frente às extensas e prolixas teorias da arte que, à luz da

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

5 Jon Stewart, em Kierkegaard’s Relation to Hegel Reconsidered, oferece-nos uma das mais detalhadas

argumentações histórico-filosóficas contra a premissa dominante na interpretação dos textos oitocentistas que traça uma barreira de betão entre a filosofia de Hegel e a de Kierkegaard, caracterizando-as como antitéticas em sua natureza. Afirmando, ainda, que o anti-hegelianismo de Kierkegaard se dirigiu menos a Hegel que aos seus intérpretes dinamarqueses como Hans Lassen Martensen ou Johan Ludvig Heiberg.

(12)

Crítica da Faculdade do Juízo, oferecem uma análise do belo e do gosto no percurso da arte até ao contemporâneo. Afinal, a estética de Kant, para além de uma das mais completas, ponderadas e frutíferas, oferece-nos uma definição do belo que é de tal modo abrangente – sem ser por isso abstracta – que o seu potencial de aplicação é, se não infinito, pelo menos infinitamente actualizável. O jogo livre que se dá entre a faculdade da imaginação e a do conhecimento, que Kant localiza na origem do nosso prazer pelo belo, constitui-se como invólucro de amplitude imensa no qual cabem os modos como experimentamos esteticamente as cataratas do Niágara, uma vista área, a Vitória de Samotrácia, o Édipo Rei ou o Cristo Amarelo. A estética de Hegel, na sistematização do desenvolvimento das artes no curso da história, no próprio carácter histórico e transitório que atribui à arte, ao que se soma o seu conservadorismo clássico e prelação pela música e poesia de entre todas as formas artísticas, deixou pouca margem de desenvolvimento e relação com as novas práticas. Não significa isto, porém, que se tenha deixado de ler Hegel, escrever sobre Hegel, ou pensar a possibilidade de abarcar formas artísticas como o cinema, a fotografia, a pintura abstracta ou mesmo a performance sem abandonar a estética hegeliana, ou pelo menos sem cair no abismo da especulação absoluta. Os exemplos que demos há pouco a propósito da marca mais ou menos assumida de Hegel nas estéticas que lhe sucederam, são cabeças de uma extensa lista que nos prova justamente o contrário e à qual poderíamos juntar pelo menos uma dezena de autores contemporâneos – Eva Geulen, Beat Wyss, Stephan Houlgate, Robert Pippin, Arthur Danto, Jason Gaiger, ficando a lista incompleta e restrita à filosofia e teoria da arte – aos quais regressaremos intermitentemente.

Na verdade, o que a estética de Hegel nos oferece de absolutamente original é simultaneamente aquilo que nela há de menos avesso a olhar a arte contemporânea: o departir do belo de que se ocupava o Idealismo desde a terceira crítica de Kant – o belo dos gestos, do sol, das montanhas, da fauna e flora de lugares distantes – em relação ao belo construído pelo homem, como aparência sensível da ideia (dassinnlich Scheinen der Idee) ou do espírito no retorno da ideia a si mesma. Hegel refere-se à arte como um dos modos de aparecer do espírito absoluto e portanto como veículo de educação do humano sobre si mesmo, sobre o que significa ser livre e auto-determinado – e, neste sentido, quando Hegel localiza a função da arte no “modo de trazer às nossas mentes e expressar o divino, os mais profundos

(13)

interesses da humanidade e as mais compreensíveis verdades do espírito”6, compreendemos que o que está em causa na arte não é o representar da divindade, mas a sua expressão. Por seu lado, a natureza é, em si, sem-espírito [geistlos], de modo a que qualquer representação estética de um tema natural, lhe será superior. É justamente nesta distinção – a saber, a beleza da arte é superior [höher] à da natureza7 e a arte é tão mais bela quanto mais afastada estiver do mundo natural e seus fenómenos8 - que encontraremos a primeira clave hermenêutica que nos permitirá compreender noções como a de aufheben (nas suas boas ou más traduções, ratificações e polémicas) ou o próprio sistema categorial da estética hegeliana para o qual a arte romântica, que não nos oferece a beleza helénica dos panejamentos perfeitamente drapejados sobre corpos que não são se não a própria forma do espírito, está, por comparação à arte clássica, mais perto da verdade. Isto é, que beleza e verdade, embora idênticas, não são uma e a mesma coisa, “Nada poderá haver de mais belo” que a arte clássica, todavia, “Há algo mais elevado que a bela aparência do espírito na sua forma imediata e sensível”9. O que Hegel nos diz sobre a história mas que, dada a natureza do seu sistema filosófico, podemos aplicar à arte, é que o nível de entendimento de uma civilização pode ser colocado numa relação quase directa com o seu estado de progresso e liberdade – quanto mais desenvolvido este for, mais próxima está uma civilização da liberdade. Na verdade, a abordagem hegeliana da arte e da beleza estão de tal modo imbuídas na totalidade do seu sistema filosófico, que falar de uma coisa sem a outra (ou julgar compreender uma, sem a outra) é quase impossível. Uma figura fundamental à leitura da sua estética é a figura do ser [Sein], compreendido como um processo em direcção à auto-consciência e ao regresso a si como espírito [Geist]. O processo histórico obedece à mesma racionalidade dialética do ser e, portanto, não pode ser antecipado ou controlado pelos seres humanos, embora se jogue e se dê através das suas acções. Trata-se de pensar a história como esfera na qual os seres humanos habitam e agem, inconscientemente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

6 Trad livre do alemão “(…) das Göttliche, die tiefsten Interessen des Menschen, die umfassendsten Wahrheiten

des Geistes zum Bewußtsein zu bringen und auszusprechen” in Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik I, pp. 21;

7 Trad livre do alemão “daß das Kunstschöne höher stehe als die Natur” in Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik

I, Bd.13, S.14

8 Entenda-se aqui, afastado da natureza por afastado do terrestre, na verdade, Hegel considera a mais alta das

artes aquela capaz de trazer o espírito aos sentidos como o modo de aparecer da natureza. A indeterminabilidade do belo natural respeita a um estado originário da sensibilidade, pertencente à dimensão do indizível ou do impensável. Neste sentido, podemos dizer que a categoria do belo natural que Hegel rejeita na sua estética não se localiza num campo necessariamente extra-estético mas emerge da distinção fundacional entre natureza e cultura da qual emerge, entre outras coisas, a possibilidade da experiência do belo.

9 Trad livre do inglês “Nothing can be or become more beautiful (...) Yet there is something higher than the

beautiful appearance of spirit in its immediate sensuous shape (...)” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 517

(14)

aprofundando o conhecimento de si mesmos, e a sua progressão como reconhecimento daquela que será a sua vocação última – a liberdade. O primeiro momento será o do espírito subjectivo, do em-si da criação e o seu campo o das paixões humanas; o segundo, o da existência ou da materialização e portanto o do espírito objectivo por-si, do edifício do Estado e das instituições; o terceiro, o espírito absoluto, fruto da síntese de ambos e liberto das querelas da finitude, o momento da identidade do ser em-si e para-si – quando o ser se torna objecto do pensar. Deste modo, o conteúdo da arte corresponde ao estágio de desenvolvimento da história a que pertence, e por isso será natural que no curso da história a arte tenha assumido diferentes modelos de relação com a liberdade; em Hegel estes modelos são três e sucedem-se cronologicamente, em simbólico, clássico e romântico. À arte simbólica corresponderá o espaço-tempo da Pérsia, da Índia e da civilização egípcia, para o qual a arquitectura terá sido a forma de arte capital, caracterizada por uma inadequação entre forma e conteúdo, pela ideia abstracta da liberdade e domínio da natureza e suas matérias-primas. À clássica, a Grécia Antiga e o primado da escultura, onde se alcançara a plena comunhão entre a forma sensível e o espiritual, noutros termos, a humanização do divino. À romântica, a Europa e o cristianismo, da Idade Média ao contemporâneo de Hegel, onde pinturas, árias e poemas – correspondendo cada uma destas formas a um estágio específico da marcha do espírito - tornam a interioridade concreta o seu conteúdo.

Pensemos, por agora, nas três formas de arte plástica, arquitectura, escultura e pintura. A forma que a arquitectura, como primeira realização da arte, dá ao espírito, é, diz-nos Hegel, uma forma imperfeita – embora seja produto da liberdade humana por se fazer da transformação da matéria a partir de preceitos matemáticos, e, portanto, artificiais - o resultado é demasiadamente abstracto, por radicar na ideia da totalidade como símbolo (onde as duas metades estão separadas uma da outra), e deixa transparecer um desequilíbrio entre o sensível e o espírito, ofuscado pela colossalidade da pedra. Ao contrário da escultura, que retira da natureza a matéria em bruto e a transfigura numa forma que é explicitamente aquela do espírito, na medida em que Hegel considera que a forma material da liberdade é, na terra, a do corpo humano – o espírito impõe-se à pedra. Não será então surpreendente que Hegel coloque o centro da arte [der Mittelpunkt der Kunst] na sua forma clássica, da qual a arte como tal se aproxima ou se afasta ao longo dos séculos. Do mesmo modo que a arte clássica é o centro do anel axial em torno do qual o todo da arte se organiza, a escultura será o centro da

(15)

arte clássica. Aí e só aí, o espírito perpassa pela arte - arte é a religião – aí e só aí, a arte cumpre a sua vocação máxima. O caso da pintura é extraordinariamente curioso, no modo como Hegel a trata por relação à escultura (clássica) e à música, “(...) a pintura não deve introduzir no seu domínio senão o que, contrariamente à escultura, à poesia, à música, ela é capaz de representar através das figuras e formas exteriores(...)”10, assim, o objecto pintado é como que um espelho, uma imagem em si de algo interior, que se apresenta como interior, isto é, como subjectivo. Noutros termos, é da pintura a função de lançar uma ponte entre as representações inadequadas da exterioridade e interioridade pela música e pela escultura, e por mais externa e concreta que seja a aparência visual na pintura, a própria imagem permanece espiritual e não concreta, “É a vida interior do espírito que se compromete a expressar-se como interior no espelho da exterioridade”11. A beleza romântica que encontramos nas obras de van Eyck, Raphael ou Coreggio, não assume, assim, a forma idealizada do corpo humano mas é um recorte dos seus sentimentos internos, não é portanto pura beleza – como a da escultura grega – mas aquilo que Hegel chama “beleza da interioridade”12 [Schönheit der Innigkeit]. Todavia, o período romântico encopassa não só a era de Raphael – e aquela que lhe fora imediatamente anterior – mas os dois séculos seguintes, prenhes em modificações estruturais no modo de relação da arte com o humano. Ora, na arte cristã, na sua máxima forma, o que é revelado é a verdade íntima do espírito - isto é, o espírito é recebido, tornado sensível, [versinnlicht] e o sensível é espiritualizado [vergeistigt]. Encontramo-nos diante da ideia da encarnação e da crença de que Deus aparece e pode ser incorporado esteticamente na forma humana. Nos termos de Hegel, “(…) a imaginação Cristã poderá representar Deus na forma humana e a sua expressão do espírito, apenas porque Deus se encontra completamente expresso como espírito”13. A particularidade (Bestimmtheit) é, como foi, a ponte para a revelação. (die Bestimmtheit isto gleichsam die Brücke our Erscheinung). Com o fim da Idade Média e o advento do protestantismo a arte – no caso, a pintura - perde a proeminência na vida religiosa e cede o lugar à música, ao hino, à poesia. Autónoma da religião, a pintura torna-se verdadeiramente secular e encontra o seu

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

10 in Hegel, Estética, Pintura e Música, Guimarães Editores, 1962, pp. 51;

11 Trad livre do inglês “It is the inner life of the spirit which undertakes to express itself as inner in the mirror of

externality” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 801-802;

12 vide Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art, pp. 531;

13 Trad livre do inglês “(...) the Christian imagination will be able to represent God in human form and its

(16)

conteúdo na prosa da vida de todos os dias, já que a sua vocação deixara de ser a de fazer aparecer o divino. Acrescentemos ainda que cada uma das formas artísticas tem os seus recursos e limitações próprias – a arquitectura e a escultura, pela sua tridimensionalidade, habitam o mesmo espaço que o observador; por seu lado, a pintura, também ela dependente de um suporte material no qual imprime o seu conteúdo, não a pedra mas o pigmento, mas que, sendo bidimensional, cria ela própria um espaço no qual não habitamos e que vale justamente por essa descontinuidade com o mundo físico.

Recordemos que Hegel, contra o dualismo sujeito-objecto e o idealismo da coisa-em-si como pura coisa, nos oferece uma definição da arte como aquilo que emerge do casamento da forma [Gestalt] com o significado [Bedeutung] por um lado, e com o apresentar [Darstellen] do significado em termos sensíveis, por outro. Noutros termos, é da arte a função de trazer ao entendimento aquilo que de outra forma permaneceria velado. Este é, em todo o caso, um casamento que merece uma atenção mais profunda, e cuja compreensão se desdobrou quase sempre num impulso teleológico que nos abre na arte três cesuras fundamentais: pré-arte, arte e pós-arte.14 O que observamos a partir desta decomposição das formas históricas da arte é que essa tarefa ou destino da arte como enformar de um significado cuja possibilidade de apreensão não é autónoma da expressão sensível, dá-se apenas no enquadramento medial a que chamámos propriamente arte, para o qual os dois blocos que o precedem ou sucedem – pré-arte e pós-arte – tendem a gravitar. Cesuras como esta, apesar de essencialmente correctas (em relação à sistematização hegeliana das artes em simbólico, clássico e romântico) e absolutamente úteis, arriscam a propagação infinita de meandros e perfídias – afinal, nunca é tarde para lembrar a velha máxima de que os filósofos vivem ou morrem pela mão dos seus intérpretes. Como já vimos, a aparência sensível [Scheinen] da liberdade ou do espírito será aquilo a que Hegel chamará beleza – e por isso o artista não escolhe fazer um objecto belo ou não, nem a relação do objecto artístico com a beleza tem algo de acidental ou contingente, sendo, pelo contrário, pura condição de existência. A consagração de alguma coisa como arte, advém, para Hegel, do pôr em obra do belo, e o belo é algo que pede para ser experienciado, mais do que contemplado teoricamente.

Não sendo o nosso projecto o da análise da classificação hegeliana das artes, a não ser

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

14 Os termos remetem para interpretações do sistema hegeliano, entre as quais aquelas de Hans Belting ou Arthur

Danto e protegem-nos, tanto quanto é possível, da parcialidade da escolha de uma, entre dezenas de designações possíveis.

(17)

por esse funil ou peneira a que aqui chamamos museu, consideramos justo lançar-lhe um olhar, não tanto para as subdivisões a que nos referimos há pouco – a saber, simbólico, clássico e romântico – mas para a hierarquização das artes a partir da forma-conteúdo. Ora, se quiséssemos representar uma sistematização das artes à maneira hegeliana, seríamos tentados a traçar uma linha cujo percurso iria do mais material ao mais espiritual, da arquitetura à poesia, no qual a pintura, a primeira das artes românticas, assumiria um lugar intermediário, para o qual um suporte tangível, não sendo existencial (como no caso da arquitetura ou da escultura onde a arte é o suporte) é ainda necessário. Tal sistematização, embora correcta, peca pelo mesmo simplismo com que alguns historiadores de arte olharam para a obra de Hegel. Um olhar epidérmico diz-nos sobre esta escala que a lógica na qual opera não será necessariamente extemporânea, afinal, a organização e validação das artes por suporte data da antiguidade clássica e o século XIX já havia fixado a música como a mais alta das artes (e mesmo antes disso, no Laocoonte, Lessing já previligiava a temporalidade da arte). O que está aqui em causa não será, portanto, tanto o suporte no qual a obra de arte se enforma mas o modo como esse suporte permite uma relação mais ou menos directa com o espírito. De um modo que pouca justiça faz ao projecto hegeliano, podemos qualificar os três estados da arte pela distância entre o conteúdo material e o espírito, onde o período simbólico é aquele no qual as formas se sobrepõem ao espírito, o clássico sintetiza harmoniosamente uma coisa e outra e no romântico o espírito perpassa, dominando a obra.

O termo-chave do qual nos temos vindo a aproximar será então o de espírito absoluto15 e a lógica a da circularidade; espírito absoluto compreendido como síntese de um passado realizado e rememorado num presente absoluto – que só ao sábio se revela, sendo sua a tarefa de converter o material do espírito, puros pensamentos [reinen Gedanken], em conceitos [Begriffe]. Na verdade, a circularidade dialéctica será a lógica motora da fenomenologia de Hegel “O verdadeiro é o devir de si mesmo [das Werden seiner selbst], o círculo que pressupõe e tem no princípio o seu próprio fim como seu objectivo final e que é

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

15 Pode dizer-se que em Hegel, Deus e espírito absoluto significam o mesmo mas as condições para o seu uso

diferem. O espírito absoluto, diz-nos Hegel, é filosoficamente a mesma última realidade a que a veneração chama Deus e encontra-se por isso presente nos três modos de arte, religião e filosofia. Espírito absoluto é uma ideia religiosa na medida em que significa que os objectos da filosofia e da religião devem ser o mesmo. O uso do termo religião para Hegel surge para significar a realidade do espírito absoluto e para significar um modo particular de experienciar essa realidade.

(18)

efectivamente real apenas através da sua realização e do seu fim”.16 Como é sabido, a forma do espírito absoluto que apresenta a verdade de modo mais límpido é, para Hegel, a filosofia; tal não significa, porém, que outras formas menos articuladas do espírito sejam volvidas ao redundante, pelo contrário. Os conceitos – a matéria-prima e o resultado da filosofia – nem sempre foram em si suficientes para que o ser humano fosse capaz do entendimento último da verdade. Hegel, assumidamente protestante, reconhece ter sido, a dada altura, a religião cristã, o motor primário de compreensão, na medida em que a filosofia não era de entendimento ecuménico, “É em termos de religião que um povo define aquilo que considera verdadeiro”17. Todavia, conceitos e fé não nos oferecem ainda, sequer no seu conjunto, a mais alta compreensão da verdade. Como seres concretos, cuja vocação última será a liberdade, os seres humanos requerem uma expressão material que lhes permita apreender a verdade pelos sentidos – a essa manifestação sensível da verdade/ ideia Hegel chamará beleza. E será justamente daí que emerge o grande crivo entre a estética de Hegel e aquela de Kant a que aludimos há pouco – se a beleza é a expressão da liberdade, isso implica que também ela seja criada livremente pelos homens, excluindo-se desta condição tudo aquilo que encontramos na natureza. A beleza é eminentemente estética, nela, conceitos e religião dão-se como coordenadas cuja manifestação máxima se deu na arte helénica, onde se dá a pura expressão do “(...) divino, os interesses últimos [Wahrheiten] da humanidade, e as mais compreensíveis verdades do espírito.”.18 Terá sido justamente essa capacidade de representação puramente estética do espírito que morreu, no momento em que a arte helénica foi substituída por outras categorias histórico-artísticas. Isto é, que a arte clássica não só marca o advento da arte completa em si mesma, como, ao alcançar o limite de possibilidades da arte, o ideal, menoriza aquilo que lhe possa suceder. A verdade da arte não pode ser já articulada na arte mas só através da filosofia, que permite relacioná-la com a consciente crítica moderna. A arte perdeu o seu lugar central na cultura moderna mas a “ciência da arte” (Wissenschaft der Kunst) pode, pelo menos parcialmente, preencher esse lugar. Importa, antes de avançarmos, recordar a distinção fundamental entre representação (estética) da liberdade e apresentação da liberdade,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

16 Trad livre do alemão “Es ist das Werden seiner selbst, der Kreis, der sein Ende als seinen Zweck voraussetzt

und zum Anfange hat und nur durch die Ausführung und sein Ende wirklich ist.” in Hegel, PdG, pp. 23

17 Trad livre do inglês “It is in terms of religion that a nation defines what it considers to be true” in Hegel,

Lectures on Philosophy of History, pp. 105

18 Trad livre do alemão “(…) das Göttliche, die tiefsten Interessen des Menschen, die umfassendsten Wahrheiten

(19)

daquilo que significa ser livre – qualquer representação estética falha invariavelmente na transmissão de conceitos e é justamente isso que faz dela estética. A compreensão clássica da humanidade como individualidade múltipla e eminentemente livre, implicaria o transformar do conflito cardeal entre humano e natureza num casamento harmonioso entre a conceptualização humana e a natureza (teleologicamente estruturada), e o modo como os gregos pensaram fazê-lo foi justamente através da arte. Quiasmaticamente, o que a arte (clássica) dá a ver, são os próprios limites dessa concepção de liberdade, na medida em que a solução que nos oferece é unicamente estética – a arte oferece a própria exegese, “A beleza clássica contém internamente, em si, o significado da liberdade auto-suficiente [selbständig]. Não o significado disto ou daquilo mas o significado de si mesma e portanto as ferramentas necessárias para se interpretar, isto é, o espiritual, que se faz a si mesmo como objecto para si mesmo. É esta objectividade de si que contêm a forma externa e não o contrário; esta, idêntica àquilo que lhe é interno, é por seu lado o significado de si mesma, conhecendo-se a si, aponta para si.”19 Noutros termos, esta totalidade “sólida e simples” conduziu a um distanciamento face ao conceito de espírito, e a arte clássica assim soçobra dando origem ao divórcio que encontraremos no período romântico entre o ideal subjectivo e aquele da manifestação exterior, desdobramento no qual o espírito adquire “(...) a consciência de ter em si mesmo o seu outro, a sua existência enquanto espírito e de gozar a sua finitude e a sua liberdade”.20

Em todo o caso, esta morte da arte corresponde a um fim sem retorno, por mais voltas que a história dê não existirá percurso conducente às alturas solitárias da arte clássica. E, talvez por isso, na primeira tradução inglesa das lições de estética, na década de ’20 do século XX, Osmatson tenha transformado aufheben, um termo riquíssimo no alemão, em morte [death], abrindo um percurso de coloridos desvios semânticos que nas várias línguas românicas e celtas transforma a observação de Hegel acerca da arte nos seus dias, numa tese acerca da morte ou do fim da arte. Falamos, sem surpresa, da tese da dissolução do propósito absoluto da arte, com que Hegel abre as suas lições quando observa que “a arte é, para nós,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

19 Trad livre do alemão “Denn die klassische Schönheit hat zu ihrem Inneren die freie, selbständige Bedeutung,

d. i. nicht eine Bedeutung von irgend etwas, sondern das sich selbst Bedeutende und damit auch sich selbst Deutend. Dies ist das Geistige, welches sich selbst zum Gegenstand seiner macht. An dieser Gegenständlichkeit ist auch die Form der Äußerlichkeit, die mit ihrer inneren Entsprechung verbunden ist, wobei auch ihre unmittelbare Bedeutung die Bedeutung ihrer selbst ist” in Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik II, pp.13

20 Trad livre do inglês “(...) solid and substancial (...) cannot renouce his isolation and withdrawl into himself or

(20)

coisa do passado”21. Olhar para esta observação, nas suas múltiplas variações no próprio corpo das Vorslegen, obriga a uma certa prudência, quer a consideremos fulcro da estética de Hegel, quer acidente acoplado à sua dialética para o qual contribuíram fatalmente as primeiras traduções. As páginas de literatura analítica são, uma vez mais, copiosas e polissémicas, datando as primeiras do mesmo Inverno de 1828 em que Hegel daria aquelas que viriam a ser as suas últimas palestras na Universidade de Berlim. Como é sabido, Hegel não se refere nunca a um fim ou a uma morte, diz-nos somente que algo é passado, está perdido ou ultrapassado, noutros termos, que a arte se dissolveu. Estes processos ou momentos de dissolução – encarados como exemplos de sublação no sistema hegeliano - correspondem a intermeios entre dois períodos onde, por força da história, um passa a substituir o outro. E, neste sentido, a arte não se dissolveu apenas uma e fatal vez, mas - entre simbólica, clássica e romântica – ter-se-á dissolvido três vezes, sendo a última aquela em que a arte, subtraída da sua imediaticidade, é substituída pela filosofia, pela história de arte, pela crítica e pela estética. A entrada histórica da arte clássica e da arte romântica na sua compreensão filosófica marcou o fim da essencialidade da arte. Amovida da sua união com a religião, a arte moderna encontra o seu fim, continuando a existir apenas como arte, como produto do processo cultural de secularização para o qual a arte passou a ser compreendida como história, alcançando o oposto polar da Kunstreligion da Grécia Antiga, para a qual arte era religião, mas distante também da arte religiosa da Idade Média. Alcançado o seu destino espiritual, a arte entrega-se ao humano, a arte religiosa do passado passa então a bela aparência desencantada pelo espírito, museu como casa das Musas, conclave privilegiado da educação estética dos indivíduos modernos. Se nos perguntarmos se o que é passado é o carácter da arte como objecto-existência, se o que se continuou a produzir após a conquista do mundo grego no século IV a.c., já não é belo nem sequer arte, a resposta surge-nos clara – a arte continuará a ser produzida e a cumprir a sua tarefa por milhares de anos. Lembremos ainda que a observação de que a arte é coisa do passado, coincide com o advento da cultura dos museus e salas de espéctaculo e, portanto, com a sua estetização. Todavia esta será uma estetização que já não serve a reconciliação do sensível com o inteligível da estética pré-romântica, no sentido em que a obra de arte na galeria perde essa capacidade mágica de ter imanente na sua

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

21 Trad livre do inglês “art (…) is and remains for us a thing of the past” in Hegel, Aesthetics: Lectures of Fine

(21)

materialidade uma dimensão cognitiva, esse vínculo entre o sujeito e o objecto torna-se espéctaculo histórico da própria insolvência. Noutros termos, aquilo que a certa altura era a manifestação concreta da vida do espírito, torna-se apenas matéria na qual se acopla a contemplação estética. E tal vale de modo igual para a arte deslocada para as salas de exposições quanto para as formas de arte que começavam a ser produzidas nesta altura, tendo ou não o museu em vista. Didier Maleuvre coloca este problema em termos muito lúcidos – se as obras de arte nos parecem distantes, alienadas, ou intangíveis no museu, tal ocorre porque a aparência moderna da obra de arte incorpora em si mesma a experiência de alienação entre o sujeito e o objecto, ou entre o espírito e a experiência sensível que marcam a modernidade. Acrescentemos ainda que a morte (como der Tod e não como aufheben) não raras vezes acompanhada de palavras como nascimento ou re-nascimento [wiedergeboren] remete-nos na estética de Hegel para aquilo a que podemos chamar a função mediadora da arte e que nada tem a ver com as teses da dissolução da arte no mundo moderno. O que a arte medeia são os reinos do natural e do espiritual, ou, se quisermos, do pensamento e sua exteriorização, do significado e da forma. Esta é uma morte que ocorre propriamente na obra de arte e respeita à realidade, à natureza, naquilo que tem de precário e transitório, pela obra e na obra metamorfoseada em espírito. O que temos em mãos é um fenómeno de significado duplo, como dupla é a relação da arte com o espírito – morte como o perecer imediato do puramente natural e simultânea condição do nascimento do espiritual que contém na sua essência aquilo que morreu, mas também o seu reverso, pelo retorno da beleza [wiedergeboren] em estética como reconhecimento (filosófico) do belo. E, neste sentido, como Eva Geulen22 faz notar, a morte da arte é o seu próprio processo.

A marcha do espírito é lânguida e lenta e a sua apreensão só é possível em retrospectiva, pelo incorporar da memória como recolecção23. Será isto que encontraremos nas últimas linhas da FdG, “Mas o outro lado do seu devir, a História, é um devir consciente e auto-mediado - Espírito entregue ao Tempo; mas este entregar-se, esta kenosis, é igualmente um entregar-se de si mesmo; o negativo é o negativo de si mesmo. Este devir apresenta uma sucessão lenta e lânguida de espíritos, uma galeria de imagens, em que cada uma delas,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

22 cf. Eva Geulen, The End of Art: Readings in a Rumor after Hegel, Stanford University Press, California, 2006 23 Para uma leitura interessante a propósito da recolecção vide Donald Verene, Hegel’s Recollection: A Study of

Images in the Phenomenology of Spirit, State University of New York Press, 1985. Para uma análise extra-estética da figura da memória em Hegel recomenda-se a leitura de Peter Fuss e John Dobins, “Spirit as Recollection: Hegel’s Theory of Internalizing Experience”, Idealistic Studies II, nº2, 1981, pp 142-150.

(22)

dotada de todas as riquezas do Espírito, se move lentamente justamente porque o seu ser tem que penetrar e digerir a total riqueza da sua substância. Aquilo que tem que cumprir reside em saber perfeitamente aquilo que é, conhecer a sua substância, deste modo este conhecer é o entregar-se a si mesmo, ir ao seu interior, no qual se abandona a sua existência externa e se entrega a sua forma existencial à recolecção”.24 A figura da memória como recolecção [Erinnerung], cuja operação Hegel curiosamente ilustra com aquela do sistema digestivo, será, embora central na estética, candidato favorito a emendas e adendas na linha da filosofia hegeliana. Tal ocorre a partir do momento em que Hegel, nas suas lições, se refere ao papel da recolecção como capacidade de síntese entre descoberta e invenção mas que, paradoxalmente, é estruturalmente falente. Será justamente pelo meio da digestão das formas históricas recoleccionadas pelo espírito absoluto, que seremos capazes de uma compreensão racional da realidade externa ou que se torna possível que um indivíduo incorpore e internalize os diferendos da sua própria experiência, reconciliando uma imagem atemporal de si mesmo e do mundo. É uma figura que encontramos, por exemplo, numa asserção das Vorlesungen (cremos que a propósito da Antiguidade Clássica, embora não haja certeza pela natureza do capítulo em que surge) em que Hegel afirma que terá sido nas “(...)obras de arte que as nações depositaram as suas mais ricas intuições e ideias, e a arte é muitas vezes a chave, nalgumas nações a única chave, para compreendermos a sua religião e filosofia.”25, justamente porque fundadas na memória, as obras de arte podem, em determinadas circunstâncias, servir como fontes de memória, de recolecção de uma continuidade que sobrevoa as fatias do tempo. Sabemos que galeria de imagens de que nos fala Hegel na PdG remete para o próprio tecido da realidade, todavia, há algo de irresistível na transposição eidética do processo da erinnerung para a ideia de um arquivo universal capaz de encerrar em si todas as imagens necessárias à experiência individual do mundo como auto-evidente. A essa representação encontramo-la de modo manifesto na figura do museu, a que Gadamer se refere mesmo como

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

24 Trad livre do inglês “But the other side of its Becoming, History, is a conscious, self-mediating process—

Spirit emptied out into Time; but this externalization, this kenosis, is equally an externalization of itself; the negative is the negative of itself. This Becoming presents a slow-moving succession of Spirits, a gallery of images, each of which, endowed with all the riches of Spirit, moves thus slowly just because the Self has to penetrate and digest this entire wealth of its substance. As its fulfillment consists in perfectly knowing what it is, in knowing its substance, this knowing is its withdrawal into itself in which it abandons its outer existence and gives its existential shape over to recollection” in Hegel, PdG, pp. 492

25 Trad livre do inglês “In works of art, the nations have deposited their richest inner intuitions and ideas, and art

is often the key, and in many nations the sole key, to understanding their philosophy and religion” in Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art I, pp. 7

(23)

“o arquivo dos arquivos” e, particularmente, pelas condições singulares que só a arte oferece ao espírito, na figura do museu de arte.

(24)

Taxonomia do Museu de Arte

O nosso objectivo para este capítulo será o de perguntar pelo conjunto de coordenadas que orientam a teoria e a prática do museu de arte nos últimos dois séculos. A história do museu como instituição é prenhe em estórias de imperialismos, colonialismos, relações de poder – os saques de artefactos egípcios formam uma espécie de lado negro da Revolução Francesa em todos os livros de História – e a sua presença na literatura foi, se não mesmo prévia e fixada nas grandes utopias do Ocidente, pelo menos imediata à construção do primeiro museu. Afastamo-nos, em todo o caso, de quaisquer pretensões de sumarizar a evolução histórico-filosófica de uma instituição com a complexidade do museu de arte, mas justamente pelo seu lugar tão particular na história e na filosofia, sentimo-nos urgidos por uma necessidade de clarificar aquilo que aqui nos referimos por museu, quer ao nível do que consideramos ter sido a sua primeira concretização histórica, quer ao nível de uma aproximação ontológica aos seus atributos fundamentais, que é o que nos permite distingui-lo de tantas outras instituições de nascimento coincidente e compreendê-lo naquilo que tem (e que conserva) de fundamentalmente original. Recordaremos, para tal, o momento de charneira inaugurado pela Revolução Francesa e marcado pelo desejo de criar uma nova religião civil, desafiando directamente a hegemonia da Igreja Católica e os ditames do ancien régime, que encontrou realização concreta e simbólica na expropriação de propriedades pertencentes à igreja e à monarquia, das quais a conversão da catedral de Saint-Geneviève no Panteão dos heróis da Revolução, será a expressão mais célebre. Ora, terá sido justamente esta viragem para um, se quisermos, novo sentido historicista da história, com a dupla função de tornar públicos os tesouros do passado e celebrar o génio humano, que esteve na origem do museu. Num segundo momento, procuraremos olhar para o museu num contexto mais laboratorial – sem por isso omitir o seu passado Iluminista - para que lhe possamos reconhecer um conjunto de conceitos fundamentais que são alicerces de práticas, discursos e políticas institucionais das quais os museus emergem como 1. duplos do mundo, 2. modelos de reflexão. Noutros termos, procuraremos compreender o modo através do qual os museus criam uma comunhão através dos objectos que expõem e que, ao assumirem para si essa função, fazem nascer um contexto que força a que os objectos artísticos passem a significar determinada coisa – justamente por isso elegemos Michel Foucault e Jean-Louis Déotte para orientar as nossas

(25)

leituras. A partir do momento em que se atribui um significado aos objectos que se encontram dentro do museu, está-se a criar uma separação com a experiência viva, criando um público e assegurando uma cultura. Daí advém o enquadramento dos museus na mais abrangente problemática do arquivo - cuja análise ficará para outra altura - que nos permite pensar outros conceitos como o de monumentalidade, do museu e das obras de arte que abriga, ou o de cesura histórica. Para os quais, uma vez mais, podemos recorrer a Hegel, e recordar que uma obra de arte não é trazida à existência por respeitar as determinantes históricas do seu tempo, mas que pertence ao seu tempo, justamente pela diferença em relação a este, sendo representativa da dialética de forças pela qual uma era histórica se separa de si mesma. É portanto como imagem de, que arte é um monumento, aparência de algo que passou e que se preserva no presente como passado. E, deste modo, embora seja certo que a disposição dos objectos em museu, pela proibição – tantas vezes excessiva - do contacto directo, convida a uma distância contemplativa que se manifesta no plano espacial do museu de arte por meio de mecanismos concretos, esta é ainda uma distância que se dá ao nível de uma disjunção temporal - os objectos estão-nos distantes, justamente porque nos são distantes, na medida em que se presentificam como monumentos de uma era histórica à qual nunca teremos acesso.

1. A Revolução do Museu, Museu como objecto revolucionário

“Os frutos do génio são património da liberdade... Por demasiado tempo estas obras-primas têm sido manchadas pelo olhar da servidão. É no seio de um povo livre que deve estar o legado dos grandes homens.”26

Museus são lugares de catalogação, organização, classificação, e não há operação de catalogação, organização, classificação que não implique uma escolha, e, portanto, que não seja política. Se essas operações e parametrizações são ainda características primárias à prática da museologia nos dias de hoje – e sabemos que pelo mundo da arte contemporânea pululam museus (sobretudo teóricos) que negam veementemente qualquer rótulo impositivo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

26 Trad livre do inglês “The fruits of genius are the patrimony of liberty (…) For too long these masterpieces

have been soiled by the gaze of servitude. It is in the bosom of a free people that the legacy of great men must come to rest.” Luc Barbier citado in Andrew McClellan, Inventing the Louvre - Art, Politics, and the Origins of the Modern Museum in Eighteenth-Century Paris, pp. 116

(26)

ou político – é questionável e aberto a debate. Todavia, se pensarmos em termos históricos, podemos afirmar com relativa segurança que os museus são, por berço, fundamentalmente políticos e a sua origem, no fogo cruzado da Revolução Francesa, sobejamente instrumental. Não será pois surpreendente que os primeiros museus públicos, ao surgirem numa era de ruptura epistémica, tenham herdado e servido de mostruário a um dos paradoxos mais próprios das revoluções, aquele que se ergue entre as forças destrutivas e aquelas da preservação. Neste sentido, o Musée Central27 (instalado no palácio do Louvre) e o Musée des Monuments, dizem-nos tanto sobre os ideais da Revolução Francesa quanto a tomada da Bastilha ou o seu reverso na utilização da La Conciergerie como purgatório com o destino certo da guilhotina. A arte, que desde os primeiros tempos ocupara um lugar ao qual só teriam acesso príncipes, clérigos e nobres, torna-se propriedade do estado e passa a ser compreendida como autónoma e irredutível. Retratos e estátuas de aristocratas e seus palácios, os eróticos de Fragonard, o dramatismo barroco das cenas da vida de Cristo e da Virgem, assim que tomados dos lugares que habitavam e da teia de simbolismo religioso ou estatutário que os esteava, passam a ser apenas isso, retratos e estátuas, e o seu valor um valor histórico e estético. Sejamos cautelosos, embora o Louvre, que aqui consideramos o primeiro museu público28, tenha oferecido à arte a sua estetização, o modo como o fez foi pela deslocação do referente, do trono ou do altar, para o Estado, fazendo da sua função uma função política. Terá sido, todavia, este salto referencial que esteve na origem da configuração moderna do museu, e que nos permite compreender que o paradoxo fundamental ao qual nos dedicaremos na secção seguinte, a saber, o estatuto simultaneamente temporal e atemporal da instituição do museu, proveio da alteração na percepção estética das obras de arte a que deu abrigo e não se constituiu como elemento primariamente configurador destas.

Se em Paris se montaram os primeiros museus modernos e se de Paris nos chegaram as primeiras críticas, parece-nos compreensível que tomemos como exemplo o do Musée Central, inaugurado no primeiro aniversário da República29, que passou a habitar as galerias de um dos mais imponentes palacetes parisienses, na margem direita do Sena. Como é sabido,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

27 Inaugurado em 1793 como Musée Central des Arts, o museu do Louvre viria a ser renomeado como Musée

Napoleon em 1802. Para facilitar a leitura referir-nos-emos a este museu por Musée Central a não ser que falemos especificamente do Louvre do século XX.

28 Para argumentações a favor do Altes Museum como primeiro museu moderno cf. Douglas Crimp, On the

Museum’s Ruins. Cambridge, MA: MIT Press, 1997

(27)

ao longo do século XVII e XVIII, o hábito de abrir coleções privadas a um público, em determinados dias da semana, era prática corrente e símbolo de estatuto. Um pouco por toda a Europa, os membros mais proeminentes de uma sociedade, abriam as suas casas para exibir uma acumulação de artefactos raros usualmente recolhidos em viagens e ofertados por amigos ou altos cargos de outros países. No caso dos reis e príncipes, esse estatuto era demonstrado pelas valiosas colecções de arte, das quais a Kunstkammer de Augusto da Saxónia, em Dresden (1560) ou a sempre-crescente colecção dos Médici na tribuna do palácio Uffizi em Roma (1581) são os exemplos mais notáveis. Também em França, décadas antes da Revolução, se criara o costume de abrir determinadas salas do Palácio de Versalhes para que as classes mais altas da sociedade se deleitassem com a extensa coleção da família real, que mais tarde passou a ser dividida, tal era a densidade de visitantes, entre a residência de Luís XIV e o Palácio do Luxemburgo em Paris30 (1750). Curiosamente, no caso francês, sobretudo após a inauguração da mostra de arte francesa na sala do trono do Palácio do Luxemburgo, a exibição das obras dos grandes mestres conheceu, a par do evidente prestígio que concedia ao monarca, uma segunda função, a de promover uma tradição artística nacional. Contrariamente ao que havia sido feito até à data, a confusão de estilos, naturezas, escolas e eras, que marcava as exposições setecentistas foi substituída por uma rígida organização temática, aproximando-se da configuração muaproximando-seal que reconhecemos nos dias de hoje. Se retomarmos os exemplos anteriores – o caso alemão e o italiano – a kunstkammer de Dresden, que à altura já transbordava o castelo, foi aumentada para os estábulos adjacentes, ou a colecção da galeria Uffizi, também ela aumentada e que fora descrita pela última dos Médici, Anna Maria Luisa, como jóia de Florença, que deveria “(...) permanecer como decoração para o Estado, para a utilidade do Público e para atrair Estrangeiros”,31 apercebemo-nos que ao longo do século XVIII ambos cresceram em número de obras, em espaço, alteraram mesmo os seus propósitos e procuram-se mais abertas, mas permaneceram lugares de acumulação.

Não estará então na organização ímpar da Galeria do Luxemburgo, símbolo do ancien régime, e não nos seus sucedentes revolucionários – o Musée Central e o Musée des Monuments – o protótipo do museu moderno? A resposta a esta questão está longe de ser

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

30 vide Andrew McClellan, op. cit. pp. 14-15

31 Trad. livre do inglês: “(...)they would remain as decoration for the State, for the utility of the Public and to

attract the curiosity of Foreigners.” Anna Maria Luisa de’ Medici in “History of the Uffizi Gallery”, disponível em www.uffizi.org

(28)

evidente. Num sentido historicista, parece-nos claro que a disposição da Galeria de Luxemburgo lançou os pilares dos museus modernos para os quais as exposições privadas e cabinets de curiosités funcionam, na melhor hipótese, como meros embriões e na pior, como coisas essencialmente distintas. Acreditamos, todavia, que o que marcou o estatuto do museu da Revolução Francesa como primeiro museu moderno e que não encontramos em nenhum dos exemplos acima dados, prende-se para além destas questões organizacionais – que, como já vimos, antecederam em pelo menos duas décadas a inauguração do Louvre - com questões sociais ou de intenção, derivadas da alteração do estatuto da obra de arte. Optámos, assim, por excluir da nossa análise e do próprio termo “museu”, esses lugares de aglomeração de objectos, que tantos nomes e funções receberam entre os séculos XVII e XVIII, os studioli italianos, os cabinets des curiosités franceses e seus análogos alemães, os Wunderkammer ou os kunstkammern, não apenas por razões de estreiteza temática mas por considerarmos que, fora a afinidade superficial segundo a qual todos estes espaços são, como o museu, espaços de exposição, pouco se aproximam da instituição moderna do museu. Nomeadamente na medida em que cada uma destas instâncias se fazia orientar por dinâmicas de fechamento em tudo distintas daqueles que guiam os museus públicos. Fechamento dos objectos entre si, encerrados sobre si mesmos, como unicamente belos ou excêntricos e assim desfavoráveis à possibilidade de relação uns com os outros, porque dispostos segundo lógicas pessoais, como a do gosto; fechamento das galerias que os continham face ao seu exterior, pela restrição do público sob os critérios do número e da pertença. Neste sentido, e se for nossa intenção pensar uma sedimentação do conceito de museu que preceda a sua concepção prática, utopias como Christianopolis (1619) de Johann Valentin Andrea ou New Atlantis (1627) de Sir Francis Bacon, que descrevem comunidades orientadas para o conhecimento universal, não encerradas sobre si mas abertas como microcosmos no qual se dá a ver e se aprende sobre todas as coisas do mundo, estão mais próximas dos museus modernos do que os espaços de acumulação há pouco descritos. Jean-Louis Déotte, sobre o mesmo Le Regard de George Salles a que Benjamin dedicara aquela que viria a ser a sua última carta publicada, identifica, com Salles, uma diferença entre o olhar do coleccionador e aquele do curador “(...)diante de um grupo de objectos dispostos sem uma ordem particular o seu [do coleccionador] olhar habituado é capaz de entre eles encontrar semelhanças [likenesses] empíricas, ao passo que o curador, que não é mais que um historiador de arte com curso universitário, sujeitaria aqueles

Referências

Documentos relacionados

A par disso, analisa-se o papel da tecnologia dentro da escola, o potencial dos recursos tecnológicos como instrumento de trabalho articulado ao desenvolvimento do currículo, e

Para entender o supermercado como possível espaço de exercício cidadão, ainda, é importante retomar alguns pontos tratados anteriormente: (a) as compras entendidas como

Estes juízos não cabem para fenômenos tão diversos como as concepções de visões de mundo que estamos tratando aqui.. A velocidade deste mundo

nesta nossa modesta obra O sonho e os sonhos analisa- mos o sono e sua importância para o corpo e sobretudo para a alma que, nas horas de repouso da matéria, liberta-se parcialmente

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

3.3 o Município tem caminhão da coleta seletiva, sendo orientado a providenciar a contratação direta da associação para o recolhimento dos resíduos recicláveis,

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam