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VITRINES DA MODERNIDADE

Marilia Rothier Carsoso (PUC-Rio)

RESUMO

Durante a segunda metade do século XIX, o romancista Machado de Assis desenvolveu um olhar acurado para observar as mudanças rápidas na vida urbana e publicou centenas de folhetins na imprensa diária. A sofisticação das lojas, restaurantes e teatros ofereceu-lhe uma metáfora perfeita – a moda – para construir seu característico estilo paradoxal e apontar as incoerências da moderna sociedade burguesa em países periféricos.

Palavras-chave: Folhetim jornalístico. Humor. Crítica social. Machado de Assis. ABSTRACT

During the second half of the nineteenth century, the novelist Machado de Assis developed a sharp look to observe the rapid changes in urban life and published hundreds of short essays in daily press. The sophistication of magazines, restaurants and theaters provided him a perfect metaphor – fashion – to produce his characteristic paradoxical style and point out the inconsistencies of modern bourgeois society of peripheral countries.

Keywords: Journalistic essay. Humor. Social criticism. Machado de Assis.

O cronômetro pode servir de índice para o discurso brasileiro na virada do século. Deseja-se progresso imediato para descontar anos de atraso. Políticos e literatos registram sua admiração pela técnica e seu empenho em que o país assuma a afeição moderna, exibida pelas metrópoles européias. Tudo deve vir rápido – os trens, as notícias, a mudança nas instituições.

O homem da rua pode ter o mundo nas mãos, lendo reportagens, entrevistas e crônicas – “gêneros benquistos pela imprensa empresarial” (SÜSSEKIND, 1987, p. 20), mal saída do amadorismo. Significativamente, nomeia-se crônica, o texto leve, fluente e sintético, que forma o elo entre o passado (as linguagens medievais) e o presente (registro do instante, resgatado

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da voragem para a fama).

Escritores de nome, ocupando o rodapé do folhetim-variedades, são pagos para fazer crescer as tiragens, combinando a assiduidade de profissionais com a graça de diletantes. Espera-se que se adaptem à tecnologia e imprimam novo ritmo à vida. Em suma: que ditem as modas.

“Um homem de olho alerta, profundo, sagaz” (ASSIS, [19--a], p. 57)

capta o espírito da coisa. Guardando-se de maiores entusiasmos, lança-se à aventura. Faz de seu ceticismo o tempero do humor e parodia o arrivismo dos inventores. Outros criam sistemas políticos infalíveis, xaropes milagrosos e botas superfinas. Ele apregoa “balas de estalo” e apresenta-se como o “relojoeiro” que virou

“A época moderna é a da aceleração do tempo histórico. [...] Passam-se

mais coisas [nos dias e anos] e todas elas passam quase ao mesmo tempo, não uma atrás da outra, mas simultaneamente.” (PAZ, 1984, p. 22-23) Por isso, a assinatura que se repete, semanalmente, numa coluna de jornal, deve estar na moda e tratar da moda. Ocorre, a algumas dessas assinaturas, identificar textos que seduzem o leitor para um jogo intrincado. Aí, o olho frívolo se fixa no brilho das toaletes, na aparência dos edifícios, nas vitrines, na superfície das expressões, nos espetáculos. Enquanto isso, a mão cruel vai recortando fragmentos onde se revelam o ridículo, o grotesco, o ilusório, o opressivo.

Tais assinaturas – de Lélio, Malvolio, Dr. Semana, João das Regras ou de um certo Policarpo que se despede com “Boas Noites” – disfarçam mal a marca inequívoca de Machado de Assis. Se suas crônicas revelam o presente no bordado de roupas e alfaias, a própria composição requintada delas vai diluindo os fios, para relativizar valores e minimizar diferenças, até que a vestimenta moderna toma a feição do mesmo abrigo grosseiro de todo os tempos.

O destaque do traço repetido, onde os outros só têm olhos para o novo, atrai para a reflexão um público desatento e apressado. Corresponde ao gesto do cavalheiro que, convidando sua dama para a valsa, interrompe os rodopios vertiginosos e ensaia os passos medidos do minuete. Primeiro a dama se choca mas, logo, sorri satisfeita. Pode observar todos os convidados e perceber que se tornou o centro das atenções. Se “este mundo é um baile” (ASSIS, 1946, p. 313), o convidado folhetinista nem sempre dança conforme a música.

Para se apresentar, a cada semana, diante dos leitores, o cronista cria atrações, descobre excentricidades e emprega ditos alheios, “metendo-lhes o jocoso” (ASSIS, [19--b], p. 70). Se não o entendem, de pronto, tanto melhor.

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“Conto com isso”, diz, “para gozar um pouco de sua estupefação, um dos raros e últimos prazeres deste ofício de escritor” (ASSIS, [19--.b], p. 105). Ofício certamente pesado, pois obriga a ter “idéias”, a todo momento, ou a tomá-las de empréstimo quando não se possui nenhuma. O objetivo é, nada menos, que “produzir a maior revolução do século. Uma revolução? A maior do século? Dar-se-á que alguma alfaiataria [...]” (ASSIS, [19--b], p. 19).

Criador de padrões de elegância, o cronista é, assim, como o costureiro que, duas vezes ao ano, desenha modelos – acessíveis a baronesas e bailarinas. A mudança periódica dos figurinos e a disseminação dos modelos, bem como da informação, iniciaram-se nos oitocentos e, especialmente, nas suas últimas décadas, se se trata do Brasil. “Na sociedade democrática do século XIX, quando os desejos de prestígio se avolumam e crescem as necessidades de distinção e liderança, a moda encontrará recursos infinitos de torná-los visíveis” (SOUZA, 1987, p. 25).

“Recursos infinitos” gastam-se, igualmente, nas crônicas, que se lêem

nos bondes e se esquecem ao final do dia. Se, vestindo Eugênia – imperatriz sem sangue real –, Worth inaugurou a linhagem dos grandes costureiros, Machado produziu uma Sofia – modelo dos arrivistas da sociedade carioca. Ao trazer essa elegante da Rua do Ouvidor para a coluna da crônica e, daí, para as páginas elaboradas de uma narrativa de delírio, desenhou sua própria trajetória de criador e intérprete-crítico – o semiólogo, de hoje em dia.

Tendo saído, “a matar o tempo, por bairros excêntricos”, o cronista volta com uma coleção de modelos para exibir na vitrine que é sua coluna de jornal. O passeio inclui longas paradas, quando se “ruminam” (ASSIS, [19--.a], p. 113) as imagens vistas. Por isso mesmo, elas retornam e se reduplicam na metalinguagem, que vai decompondo-as e distribuindo-as em sistemas significativos.

A série de crônicas de 1888-1889, publicada na Gazeta de Notícias, defini-se pela etiqueta e pela cronologia. O cronista, sistematicamente, cumprimenta seus leitores, no princípio com os “bons dias”, e despede-se, no final. É um modelo de boas maneiras. Faz questão de apresentar-se:

eu sou um pobre relojoeiro que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício. E, na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos. (ASSIS, [19--a], p. 46).

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Passando de um ofício a outro, o autor da crônica representa o tempo, como fluxo rebelde às medidas. A outra face de Chronos é Aion– o devir-louco. Mas, o ex-relojoeiro guarda seu tanto de bom senso e garante suas “papas”. Insere-se na contemporaneidade, adaptando-se aos instrumentos mecânicos e às exigências econômicas e sociais. Aí é que entra a etiqueta – arte de despistar a voragem e crer-se sobrevivente.

As inovações técnicas, disseminadas no país de modo mais acelerado sobretudo desde as últimas décadas do século XIX, repercutiram no cotidiano e na transformação da sensibilidade dos produtores culturais mais atuantes no Brasil da virada do século e dos dois primeiros decênios do século XX, chegando mesmo a marcar decisivamente – por contraste, imitação ou estilização – sua técnica literária. (SÜSSEKIND, 1987, p.17)

Por seu turno, o discurso machadiano faz-se ambíguo para caracterizar a modernidade. Encena o presente, perquire-o de várias perspectivas, conhece-o extensamente, mas reserva-se o direito de dúvida, embutida nas entrelinhas.

Num momento em que o telégrafo causou mal-entendidos, ironiza a situação, juntando sensacionalismo e fantasia. Trata o acontecimento como lançamento de nova moda:

Chove sangue, fuzila sangue, troveja sangue, tudo é sangue, sangue, sangue. / O assassinato telegráfico do Sr. Conselheiro Rodrigues encheu naturalmente de indignação a toda a cidade; mas, por isso mesmo, que foi só telegráfico, e que o morto ressuscitou com o bálsamo igualmente telegráfico do presidente Otôni. / Ao ver isso, lembrou-me que se algum dia viver na província, [...] Far-me-ei apunhalar, algumas vezes, telegraficamente. Só isso valerá por cinco anos de vida pública. (ASSIS, [19--b], p. 89).

A tecnologia serve à vaidade do homem, mas, justamente, quando resulta em equívoco. Assim se abalam as bases materiais e morais da sociedade capitalista. Nesse diapasão, é que uma crônica compõe a “epopéia burguesa” (ASSIS, [19--b], p.19). A ação trata de compra e venda, pagamento e troco e se passa numa camisaria. O texto remete-se ao padrão poético antigo para

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lo e coloca-se equidistante do tradicional e do moderno. Rebaixa o tom épico por aplicá-lo às miudezas vestuário e ridiculariza a burguesia ao identificar o troco honesto com um feito heróico. O humor resulta de reduzir-se a crônica à anacronia.

O mesmo jogo se repete, em micro-exemplos, onde se empregam velhos clichês e provérbios à descrição das circunstâncias presentes. É o caso das “exéquias régias de um republicano”, noticiadas pelo jornal. Ou do comentário de que “quem lhe dói o dente é que vai à casa do barbeiro”, escrito entre anúncios de dentistas. “Jornais, telegramas” e até “documentos oficiais” trocam “umas palavras por outras” (ASSIS, [19--b], p.147) e só o cronista se dá conta da vertigem produzida por essa violenta condensação do tempo.

À medida que percorre o noticiário, o folhetim machadiano absorve as vogas e expõe o prazer e os perigos de sua graça fugaz. Apresenta-se, então, como transbordamento dos padrões burgueses. “É dispêndio inútil” (BATAILLE, 1975, p. 27) --margem proibida de gozo, na economia do cotidiano. Como a moda, a crônica tem seu lado de mercadoria e sua face indomável de arte. Ambigüidade fascinante e difícil, que se expressa na oscilação entre falta e excesso.

Como as maisons de alta costura expõem vestidos e adereços, o cronista também monta suas vitrines. Mas, aí, exibe ora roupas, ora ossos. Só a desconstrução radical do espetáculo burguês pode descobrir, nos ritos fúteis, o seu tanto de controle e o seu tanto de liberdade.

Em novembro de 1884, a imprensa carioca, através de uma nota de O Paiz, descobriu um erro da polícia, a que deu enorme publicidade, pondo a nu o tratamento arbitrário e violento dispensado ao povo pelos policiais. Foi uma longa polêmica entre jornalistas e autoridades. Participaram dela o Jornal do Comercio, Gazeta de Notícias, Gazeta da Tarde, O Paiz, O Brazil, Pátria, O Apóstolo e Gazeta Universal. De corajoso alerta à opinião pública, a campanha tornou-se exploração sensacionalista de caso escabroso, envolvendo duas exumações, vários artigos de suspense e mau gosto e a exposição dos úmeros da (provável) vítima em vitrine da rua do Ouvidor. (DOYLE apud AZEVEDO, 1985, p. 13-14)

Muito barulho por nada. O processo foi arquivado sem definir, ao menos, se o morto era João Alves Castro Malta ou João Alves Castro Mattos, se desordeiro sem domicílio fixo ou encadernador empregado na Casa Laemmert. De certo, apenas a demissão do Chefe de Polícia e considerável lucro para as empresas jornalísticas. Talvez se possa contabilizar mais um saldo – a auto-crítica ensaiada pela parte humorística da imprensa, que, expontaneamente ou sob encomenda, caricaturou a si mesma como exploradora do episódio macabro.

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Castro Malta” não passa de “uma questão de moda”. Na falta de outros temas palpitantes para a conversa dos bondes e das salas, “o Castro Malta serviu a esta necessidade de toda a sociedade polida, vadia e curiosa”. A manutenção do interesse nos desdobramentos do caso e a enorme ocorrência de curiosos ao cemitério só se explicam pelos ditames da moda. Por isso mesmo, o cronista levanta a possibilidade de um “chapéu a Castro Malta” ou de um novo prato com esse “nome cheio de prestígio”. (ASSIS, [19--b], p.95). Esse tratamento elegante e frívolo do horrível, de um lado, responde à exigência do folhetim e, de outro, define o paradoxo da nova metrópole – “a sociedade fez a civilização que é a equação da inteligência e do crime.” (ALENCAR apud ANTELO, 1989, p.10)

No mesmo ritmo em que se cosmopolitiza, o Rio de Janeiro vai mostrando sua face perversa. Como centro da moda e do requinte, a Rua do Ouvidor expõe, em suas vitrines, ao lado do último modelo de Paris, o objeto mais chocante, que se pode encontrar. O respeitável público, passeando por lá, às tardes, deleita-se com ambos. Resta ao comentarista, inconformado, aguçar a graça e a crueldade de sua linguagem, na tentativa de sensibilizar o espectador.

Angelo Agostini desenha a exposição dos ossos a ponto de ser devorada por dois cachorros ávidos, com os focinhos colados ao vidro1. (AZEVEDO,

1985, p. 27) Aluízio Azevedo, profissional do folhetim cômico, transforma a campanha contra a polícia na fuga de uma esposa com o amante desconhecido. À caça do rival, o marido traído, encontra Matta, ressuscitado e filósofo, Malta, repentinamente morto e Mattos, namorado de sua sogra. Esse romance policial, em caricatura, só descobre um culpado – o próprio romancista2 (EULÁLIO apud

AZEVEDO, 1985, p. 168, 169). Machado, sob a assinatura de Lélio, insiste na definição do fenômeno. “O Castro Malta fazia o papel de macaco verde – ou o de uma célebre negrinha monstro que havia aqui na Rua do Ouvidor [...]. Coisa para encher o tempo.” (ASSIS, [19--b], p. 95)

A variedade de desdobramentos do caso Castro Malta, na imprensa carioca, evidencia, além da tentativa atabalhoada de estruturar-se um espaço público, a tendência de seu discurso por um gênero – o policial. Estudando a Paris de Baudelaire, Walter Benjamin menciona a “origem dos romances policiais” como índice da formação das massas urbanas. O aglomerado de indivíduos anônimos corresponde a um perigo, pois impossibilita a repressão a condutas

1A descrição foi feita a partir do desenho de Ângelo Agostini, “Estranha exposição – Dois cachorros

contemplando os ossos expostos”, publicado na Revista Ilustrada, n. 400, 24 jan. de 1895 e reproduzido à página 27 da edição citada de Mattos, Malta ou Matta?

2 Alexandre Eulálio explica que “dando de ombros à suficiência autoral da convenção, o obsessivo do

escre-ver apela aqui para a (arbitrária) autoridade da firma. E é então que esse romance pouco sério […] resume a sua multiplicidade textual […] recuperando-a através da unidade autoral obtida na última página. Colocado na posição incômoda de ‘falsário’ o Romancista assume o seu papel”.

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anti-sociais. Nesses circunstâncias, qualquer um pode representar “o papel do detetive” (BENJAMIN, 1989, p. 38). Tanto os novos profissionais da imprensa, repórteres e folhetinistas, quanto o poeta – enquanto flâneur – exercem vigilância, observando, atentamente, a multidão das ruas. “Qualquer pista pode conduzir a um crime”, desde que se desenvolvam “formas de reagir convenientes ao ritmo da cidade grande” (BENJAMIN, 1989, p. 39), onde contam a agilidade do olho e a rapidez da mão, que escreve ou desenha.

É ainda Benjamin que assinala a incorporação do traço policial ao texto de Baudelaire, influenciado por Edgar Poe, depois de traduzir seus contos. Nas Flores do Mal, estão presentes “a vítima, o assassino e a massa”, mas falta o “detetive” – peça básica, que foi substituída por outra, captada em Sade. Porque “leu Sade bem demais para poder concorrer com Poe”, é que Baudelaire tornou-se um crítico das massas modernas, em vez de tornou-ser um best-tornou-seller, consumido por elas. “O cálculo, o elemento construtivo nele ficava do lado anti-social e foi totalmente capturado pela crueldade” (BENJAMIN, 1989, p. 40-41). Essa análise, guardadas as proporções, serve à caracterização da cena brasileira. O desenho de Angelo Agostini e a produção romanesca de Aluizio Azevedo pertencem à vertente policial e a ela acrescentam o tempero da graça cômica. Já o texto de Machado, de corte equivalente ao baudelairiano, incorpora o elemento cruel.

No curso dos tempos modernos, o escritor procura escapar aos constrangimentos da ética burguesa, através do manejo de seu instrumento – a linguagem -- com o rigor da crueldade. Foi isso mesmo que Machado intuiu ao construir, em estrita (as)simetria, o discurso humorístico de suas crônicas. Dentro da mesma linha de trabalho, “estranhou” (CHKLOVSKI, 1971, p. 45), sistematicamente, a significação das notícias lidas. Tomados de maneira radical, os atos de produzir e decifrar o sentido não são neutros ou pacíficos, mas ao contrário, agressivos e violentos3 (FOUCAULT, 1974, p.12-14). Envolvem

formas de crueldade representadas pela imposição do nome às coisas, pelo constrangimento “fascista”4 (BARTHES, 1978, p. 14) da língua sobre os falantes

e pelos choques entre emissor e receptor de mensagens.

Tanto quanto o folhetim maneja seu código, também o noticiário se apresenta como escrita cifrada (BENJAMIN, 1986, p. 36) cujo valor só se resgata

3 Conforme se lê, em Foucault, “o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento,

da junção, da luta e do compromisso entre os instintos. / [...] E assim como entre instinto e conhecimento encontramos não uma continuidade, mas uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de com-pensação, etc. da mesma forma, entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer [...] só pode haver uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação.” (FOUCAULT, 1974, v. 6, p. 16)

4 A formulação de Barthes é: “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária,

nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. (BARTHES, 1978, p. 25)

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numa pesquisa de significados possíveis. Dramatizando esse trabalho árduo de tradução, o redator precipita-se, num salto de fantasia, para espaço exótico, pois “tudo isto, que parece algaravia, sendo lido por um espiritista, é como a língua de Voltaire, pura, límpida, nítida e fácil”. Nesse caso, supõe, “por um instante, ser o bei de Tunis” e partir da situação ideal de quem não entende nada nem é compreendido. Levando os jornais “cá do Rio, leria tudo” e, então, teria o seu “colégio de intérpretes, que lhe explicaria tudo” (MACHADO DE ASSIS, [19--a],

p. 79-80). Assim, o exército imaginário do poder, em estilo turco, transmite, ao leitor, a medida de energia e habilidade necessárias para se resgatar o sentido.

Imaginária ou real, a grande passarela do século XIX é o teatro – vitrine onde a sociedade se exibe e se mira. Daí vêm Lélio e Malvolio, personagens de Molière e Shakespeare, máscaras e revelações do homem da rua. Convertidos em narrativa escrita, eles têm, no espetáculo, sua metalinguagem. Encenam suas fantasias e contemplam (“ruminam”) seu próprio drama.

O termo “crueldade”5 tem seu emprego mais lúcido no teatro de Artaud.

A partir da crise do projeto moderno, a “cena cruel” é entendida como o fim da representação. Substituindo-se a negatividade romântica por uma afirmativa radical, postula-se um renascimento através da morte de Deus e do homem, enquanto nomes, que controlam, de fora, o espetáculo. “A questão do teatro da crueldade, da sua inexistência presente e da sua inelutável necessidade, tem valor de questão histórica.” Anuncia a decadência do “conceito imitativo de arte” (DERRIDA, 1971, p. 149-150).

No teatro clássico, vige o domínio da palavra, sob a forma de um texto (preexistente) que se repete, a cada montagem. No teatro da crueldade, suspende-se esse “logos primeiro” e o texto – tornado “escrita hieroglífica” – restituiu, à encenação, “sua liberdade criadora e instauradora” (DERRIDA, 1971, p.167).

Se Artaud se insurge contra a palavra, no desejo de povoar o palco com a força da vida, Machado parte, certamente, de posição contrária, trazendo a palavra para a boca de cena de sua página. No entanto, a palavra machadiana, enquanto imitação dos discursos de seus contemporâneos, é tão sistematicamente caricaturada, tão impiedosamente tornada grotesca, que fica, da mesma forma, destruída. Mas não se trata de substituí-la pelo corpo. Machado jamais mergulharia em tal “profundidade” (DELEUZE, 1974, p. 5-12).

5 As citações que se seguem reproduzem as considerações de Derrida sobre o teatro de Artaud. Vale

des-tacar: “Entrevemos assim o sentido da crueldade como necessitado e rigor. // A crueldade é a consciência; é a lucidez exposta.” (1971, p. 167)

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Como humorista, seu palco é o da “superfície” – onde o corpo se planifica em signos: leques, ossos.

O humor cruel – “despesa improdutiva” dos jornais – se apresenta, nas crônicas, suspendendo as representações cíclicas das temporadas, dos desfiles, ritos, loterias e eleições. E produzindo, com cortes de graça perversa, o espetáculo das roupas, em sua frivolidade radical.

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REFERÊNCIAS

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BARTHES, Roland. Aula. Trad. Prof. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, [1978].

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