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A Arte e os Artistas do Vale do Côa

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A Arte

e os

Artistas do

Vale do Côa

[ Guia para V

isitantes ]

[ Guia para Visitantes ]

Luís Luís

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A Arte e os Artistas do Vale do Côa

Luís Luís

Parque Arquelógico do Vale do Côa

Associação de Municípios do Vale do Côa

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A Arte e os Artistas do Vale do Côa

ÍNDICE

Introdução 7 1. O Vale do Côa 9 O contexto natural 11 Geologia e geomorfologia 11 Clima 1 Fauna e flora 1 Actividade humana 15

Património cultural e arquitectónico 17

2. A descoberta das gravuras do Vale do Côa e o combate pela sua preservação 21

A descoberta 2

A luta pela preservação 25

A criação do PAVC e a classificação como

Património Mundial 27 3. Enquadramento histórico da arte paleolítica do Vale do Côa 1 O Paleolítico  O Paleolítico inferior  O Paleolítico médio 5 O Paleolítico superior 7

Os métodos de estudo do Paleolítico 4

A arte paleolítica 46

Arte móvel 46

Arte em gruta 47

Arte ao ar livre 49

Arte paleolítica em Portugal 5 Significados da arte paleolítica 5 Métodos de datação da arte paleolítica 55

4. A arte paleolítica do Vale do Côa 57 Localização e distribuição 59 Técnicas de representação 62 Gravura 62 Pintura 64 Motivos representados 64 Figuras zoomórficas 64 Representações antropomórficas 66 Signos 66

Composição das representações 67

O estilo paleolítico 69

Particularidades e inovações 72

Arte móvel no Vale do Côa 7

Datação da arte paleolítica do Vale do Côa 74

Significados 76

Núcleos de arte rupestre mais relevantes 77

Canada do Inferno 78 Penascosa 80 Ribeira de Piscos 82 Fariseu 85 Quinta da Barca 87 Faia 89 Vermelhosa 91 5. O contexto arqueológico da arte paleolítica do Vale do Côa 9 A investigação arqueológica 95 Sítios de ocupação 95

Cardina (Salto do Boi) 96

Olga Grande 4 97

Quinta da Barca Sul 99

Fariseu 99 Sequência da ocupação 101 Matérias-primas utilizadas 102 O modo de vida 10 6. A longa duração da arte rupestre do Vale do Côa 107 Pré-história recente 109 Arte rupestre 109 Ocupação humana 111 Proto-história 114 Arte rupestre 114 Ocupação humana 117 História 121 7. Nota final 125 8. Glossário 127 9. Notas 1 10. Bibliografia 17 11. Créditos das imagens 147

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A Arte e os Artistas do Vale do Côa

Nós escrevemos tudo isso para não nos esquecermos…

e… escrevemo-lo na pedra…

… para perdurar.

Hugo Pratt

1992

Se as portas da percepção estivessem limpas,

tudo apareceria para o homem tal como é:

infinito.

William Blake

The Marriage of Heaven and Hell

1790-1793

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A Arte e os Artistas do Vale do Côa

Em 1996, a abertura do Parque Arqueológico do Vale do Côa foi acompanhada de um guia para o visitante. Fazia-se, na altura, um resumo dos conhecimentos que então se possuía, de forma a torná-los disponíveis para o visitante que chegava ao Vale. Mais de 10 anos passados e muita investigação realizada, publicada em revistas científicas e em diferentes línguas, julgou-se necessário realizar um novo guia para o visitante que incluísse todo este novo conhecimento que o Vale do Côa nos tem proporcionado. No presente guia partimos assim do guia anterior1, reformulando-o e complementando-o com as informações que se têm vindo a acumular.

Este livro pretende, pois, ser um guia básico para os visitantes da arte do Vale do Côa. Baseando-se na informação científica apurada até ao momento, o seu objectivo é tornar o discurso científico acessível ao público do Parque Arqueológico do Vale do Côa, para que este entenda e conheça melhor a arte que vai observar, de forma a melhor usufruí-la.

Esta é hoje uma das maiores dificuldades da Pré-história e da Arqueologia em geral. Pretendendo tornar-se ciências socialmente relevantes, elas confrontam-se com a dificuldade de transmitir o seu conhecimento técnico aos cidadãos não iniciados. A grande dificuldade reside em evitar os dois extremos, o discurso científico hermético e a simplificação romanceada, comum nos populares códigos pseudocientíficos. Procurámos a virtude no meio. O leitor avaliará se o conseguimos.

Por se basear em dados da investigação científica, o conteúdo deste guia deve-se sobretudo ao trabalho dos arqueólogos e investigadores que têm passado pelo Parque Arqueológico do Vale do Côa, nomeadamente Thierry Aubry, António Faustino Carvalho e João Zilhão, e de Mário Varela Gomes, António Martinho Baptista e todos os seus colaboradores do Centro Nacional de Arte Rupestre, investigadores dos artistas e da arte do Vale do Côa.

Para além dos cientistas, directamente responsáveis pelo gradual desvendar deste segredo guardado há mais de 10.000 anos, devemos agradecimentos aos restantes colaboradores, presentes e passados, do PAVC e do CNART, que vão tornando este conhecimento possível. Gostaríamos de referir os guias do PAVC, os divulgadores diários deste património. São eles os modernos xamãs do Vale do Côa, que abrem as “portas da percepção” aos visitantes, que procuram conhecer e compreender a primeira Arte da Humanidade.

Um reconhecimento também aos autores das imagens que ilustram este guia.

O guia começa com uma breve caracterização do que definimos como Vale do Côa, com as suas características naturais actuais, mas também aquelas que foram o resultado da contínua acção humana neste território.

No segundo capítulo, descrevemos o contexto da descoberta da arte rupestre do Côa. Tratou-se de um processo único e exemplar, na defesa de um património cultural nacional e da Humanidade. Uma vez que, para verdadeiramente apreciarmos esta antiga forma de arte, necessitamos de alguns conhecimentos prévios, a terceira parte deste livro dedica-se a explicar o que é essa palavra estranha: o Paleolítico. Como eram os homens e mulheres que viveram nesse remoto período, como viviam e como era a sua arte.

No quarto capítulo vamos ao cerne da questão: a arte paleolítica do Vale do Côa. O que é, como foi feita, e lançamos pistas para responder à pergunta mais difícil de todas, porque é que foi feita. Descrevemos, sumariamente, alguns dos mais importantes núcleos de arte do Côa, visitáveis e não visitáveis pelo grande público. Esta arte foi realizada por pessoas como nós. No quinto capítulo procurámos saber como viviam aqui no Vale.

Finalmente, se a arte paleolítica é o que distingue o Vale do Côa, a expressão artística rupestre nesta região não terminou nessa época. Ela continuou até ao século XX. Disso trata o sexto capítulo. Os dois últimos capítulos apresentam um glossário e uma bibliografia, que se poderá revelar útil para o visitante mais curioso. No glossário procuramos explicar por palavras simples alguns dos conceitos a que a Arqueologia e a Pré-história recorrem e que são referidos ao longo do texto. Essas palavras são marcadas por um asterisco na primeira vez que surgem no texto.

No que diz respeito à bibliografia, incluímos ao longo do texto algumas notas com as inúmeras referências que utilizámos e que geralmente preenchem os textos de natureza científica. Esperamos que essas notas não sejam um obstáculo à leitura dos menos habituados a este procedimento e que sirvam de reconhecimento do trabalho realizado, bem como de pista de leitura para os mais interessados. Também para esses apresentamos ainda algumas sugestões de leitura não científica sobre o Vale do Côa.

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A Arte e os Artistas do Vale do Côa

O velho rio, na sua ampla bacia, repousava tranquilo no declínio do dia,

após muitos séculos de bons serviços prestados à raça que povoava

as suas margens, espalhando-se na dignidade tranquila da água que

conduzia aos mais recônditos confins da terra.

Joseph Conrad

O coração das trevas

1902

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O contexto natural

O rio Côa nasce na Serra das Mesas, na região do Sabugal, e percorre uma distância de cerca de 10 km até atingir o seu término no rio Douro, junto a Vila Nova de Foz Côa. Ao contrário da maioria dos rios da faixa atlântica da Península Ibérica, que seguem um percurso Este/Oeste, o Côa percorre esta distância no sentido Sul/Norte, junto à fronteira com Espanha, na zona do interior norte de Portugal, conhecida como Beira Alta (fig. 1).

Geologia e geomorfologia

Durante este percurso, o rio atravessa uma paisagem predominantemente granítica que, nos seus derradeiros quilómetros, cede lugar ao xisto. Geologicamente, o Baixo Côa integra-se na Zona Centro-Ibérica do Maciço Hespérico e está dividido em duas grandes áreas, uma a norte e outra a sul (fig. 2)1.

A sul, o rio atravessa os granitos hercínicos de diferentes tipos e o vale é predominantemente rectilíneo, com um leito muito encaixado, delimitado por margens abruptas (fig. ).

Os granitos desaparecem a cerca de 10 km da foz do rio, na zona de Santa Comba/Chãs, dando lugar ao Complexo Xisto-Grauváquico ou Super Grupo do Douro--Beiras, primeiro através da Formação de Rio Pinhão e depois das Formações de Pinhão e da Desejosa. Es-tas duas últimas unidades geológicas têm como cara-cterística fundamental na região a formação natural de grandes painéis verticais formados pela fracturação na-tural da rocha em zonas de declive e apresentam uma forte resistência à erosão (fig. 4).

Ultrapassados os granitos, o vale do rio torna-se mais aberto, numa primeira fase, desde a zona da praia fluvial da Penascosa até à foz da Ribeira de Piscos (fig. 5) para, a partir daí, se voltar a afundar em margens íngremes,

Fig. 2 – A Geologia do Parque Arqueológico do Vale do Côa. Fig. 1 – O curso do rio Côa desde a sua nascente, na Serra de Mesas, até à foz no

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embora com algumas praias fluviais, que se formaram pela deposição de aluviões em alguns meandros, como no Fariseu e Canada do Inferno.

O relevo ronda os 400 a 800 metros de altitude na margem direita do Côa, onde existe um planalto considerável em volta da Ribeirinha, atingindo apenas os 100 a 500 na margem oposta, onde se identificam alguns terraços fluviais pleistocénicos, na zona da Quinta da Ervamoira e um pouco a montante.

Geomorfologicamente encontramo-nos no limite ociden-tal da Meseta, que cede aqui lugar aos planaltos centrais e às montanhas ocidentais2. O seu limite é definido por um abrupto rectilíneo de sentido NNE-SSW nas imediações do Côa.

Neste Nordeste beirão, a Meseta apresenta uma platitude quase perfeita até ao Côa, ultrapassando-o um pouco para ocidente, num degrau mais baixo, até à ribeira do Vale da Vila, seguindo as linhas da falha Longroiva/Vilariça (fig. 6).

Apresentando um encaixe superior a 150 metros, com escassas zonas de passagem, o rio Côa funciona, nesta

área, como o grande limite natural do planalto da Meseta, e os declives mais acentuados para Ocidente e Norte.

Clima

A região do Vale do Côa caracteriza-se, actualmente, por um clima mediterrânico subcontinental. A temperatura média anual é relativamente baixa, cerca de 11º C, apresentando assinaláveis amplitudes térmicas. Os Verões são muito quentes e secos, ultrapassando frequen- temente os 40º C, e os Invernos frios, atingindo por vezes os 10º C negativos.

A precipitação é muito escassa no Verão, período durante o qual o rio chega mesmo a secar, e intensa, embora de curta duração, no Outono e Inverno, atingindo os 700 mm nas zonas mais altas e os 00 a 400 mm nas encostas e fundo do Vale (fig. 7).

Fauna e flora

Estas características climáticas reflectem-se, obviamente, no tipo de vegetação natural e na actividade agrícola da região.

Fig. 4 – Encosta com os típicos painéis verticais de xisto da região do Baixo Côa.

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A vegetação natural é mediterrânica, encontrando-se a zona inserida na província Carpetano-Ibérico-Leonesa, sector Lusitano-Duriense, caracterizada pelos bosques de azinheira e os zimbrais4. Esta vegetação natural encontra-se hoje muito degradada pela acção humana, fruto da antiga cultura extensiva de centeio, assistindo-se a uma alternância de matagais e áreas cultivadas. Ainda assim, subsistem algumas zonas com interesse natural, como sejam o montado de azinheiras e sobreiros nas zonas planálticas, onde podem ser observados a

Águia--de-asa-redonda, a Águia-cobreira, o Pombo-torcaz, a Rola-brava, a Lebre, o Coelho bravo e o Javali.

Nas zonas ribeirinhas dominam freixos, amieiros, choupos e salgueiros, no meio dos quais voa um grande número de pequenas aves, como a Toutinegra, mas também, no rio Côa, a Garça-real e o Corvo-marinho. No leito dos cursos de água, para além da Carpa, do Barbo e da Boga-duriense, surgem, por vezes o Cágado e também a Lontra.

As zonas escarpadas são o local privilegiado para encontrar algumas das aves mais importantes pela sua raridade, como sejam a Cegonha-negra, o Grifo (fig. 8), o Abutre do Egipto (fig. 9), a Águia-real, a Águia de Bonelli e o Bufo-real.

Actividade humana

As actividades económicas mais importantes da região são as do sector primário, principalmente a agricultura e a pastorícia, praticadas em moldes artesanais, onde se emprega mais de 40% da população activa, e se produz mais de 50% da riqueza regional5.

A agricultura, praticada em explorações fragmentadas e de pequena dimensão, baseia-se, fundamentalmente, na trilogia mediterrânica: vinha, oliveira e amendoeira. A cultura da amendoeira, que proporciona belas

Fig. 6 – Representação tridimen-sional da geomorfologia do Baixo Côa.

Fig. 7 – Temperatura e precipita-ção na Penascosa, no ano de 2005.

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Fig. 8 – Grifo (Gyps fulvus). Fig. 9 – Abutre do Egipto (Neophron percnopterus).

Fig. 10 – Amendoeira com fruto verde. Fig. 11 – Quinta da Ervamoira.

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imagens em Fevereiro/Março aquando da floração, encontra-se hoje em declínio (fig. 10). Pelo contrário, a olivicultura e principalmente a vinicultura estão em franco crescimento. A região do Vale do Côa encontra- -se integrada na Região Demarcada do Douro, a mais

antiga região demarcada do mundo, onde se produz o famoso Vinho do Porto. Tratando-se de uma actividade economicamente rentável assiste-se, hoje, a um aumento da área de cultivo, acompanhada por uma modernização dos métodos de produção (fig. 11).

Para além destas produções principais, a agricultura vive ainda de outras culturas complementares como a horticultura, junto dos cursos de água, e ainda alguma cultura cerealífera, hoje em franco declínio, como o provam os inúmeros pombais abandonados que marcam a paisagem do Vale (fig. 12).

A pecuária funciona como actividade complementar à agricultura, destacando-se a produção de gado ovino, e em menor medida o caprino*, bem como o aproveitamento dos produtos secundários com eles relacionados, como o leite, o queijo e a lã (fig. 1). Para além de um comércio pouco desenvolvido, salientam-se, ainda, algumas indústrias de pequena dimensão, relacionadas com o sector agro-alimentar, e com a extracção de granitos e xistos, que deixam importantes marcas na paisagem.

Património cultural e arquitectónico

Se a região é reconhecida sobretudo pelo seu património arqueológico, dever-se-á ressaltar aqui também algum do seu património cultural e arquitectónico.

Os castelos testemunham o facto de estarmos numa zona de fronteira entre os antigos reinos de Leão e Portugal. O rio Côa definiu essa fronteira até 1297, quando o Tratado de Alcanices fez com que as terras de Riba Côa, situadas na margem esquerda do rio, passassem definitivamente a pertencer ao reino português. Testemunho destes tempos são alguns topónimos de origem castelhana da margem esquerda, como Almendra ou Penascosa, mas também os castelos de ambas as margens, de entre os quais realçamos o singular castelo de Castelo Melhor (fig. 14) e os castelos de Longroiva e Marialva.

Os pelourinhos são ainda hoje as marcas de povoamento e do desenvolvimento dos poderes locais, salientando- -se os pelourinhos quinhentistas de Vila Nova de Foz Côa,

Almendra e da Muxagata (fig. 15).

Igualmente quinhentista, a Igreja Matriz de Vila Nova de Foz Côa destaca-se pela sua fachada manuelina (fig. 16).

Fig. 14 – Povoação de Castelo Melhor com o seu castelo.

Fig. 15 – Pelourinho e Centro de Recepção da Muxagata.

Fig. 16 – Igreja Matriz de Vila Nova de Foz Côa.

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Outros exemplares assinaláveis de arquitectura religiosa são as igrejas matrizes de Almendra e de Cidadelhe, que apresenta um curioso campanário independente. Passando à arquitectura civil, os solares são ainda a demonstração da opulência do poderes senhoriais, como o prova o Solar barroco do Visconde de Almendra (fig. 17). Mais tardios, são de destacar ainda alguns dos solares oitocentistas de carácter erudito, como o Solar dos Donas Boto, na Muxagata, e o Solar do Conde de Almendra. Igualmente do séc. XIX, mas testemunho de uma arquitectura pública, salienta-se a Casa da Câmara em Vila Nova de Foz Côa. De um carácter menos erudito, mas testemunho de uma realidade sociológica dos séculos XIX e XX, as “Casas de Brasileiro” impõem-se ainda hoje pela sua extravagância (fig. 18).

Ao nível da arquitectura popular podem-se observar ainda alguns exemplares de construção tradicional em xisto ou granito (fig. 19), consoante o substrato geológico em que se encontram, verificando-se, por vezes, uma curiosa forma de construção mista, onde o xisto se mistura com o granito, utilizado nas zonas estruturais mais importantes, como sejam os cunhais e as empenas das portas e janelas.

Próximo de Santa Comba, para além de uns raros fornos que ainda testemunham a prática da olaria (fig. 20), hoje em extinção, poder-se-ão ainda observar as poldras da Ribeira de Massueime. Estes blocos de pedra colocados na vertical no leito da ribeira franqueavam a passagem no sentido de Cidadelhe.

Pelos campos, os muros divisórios de propriedade alongam-se em volta dos caminhos (fig. 21), observam- -se ainda alguns muros apiários, hoje abandonados, e

uma infinidade de pombais dos mais variados tipos, dispostos pelas encostas (ver fig. 12).

Fig. 18 – Vista da zona do castelo de Vila Nova de Foz Côa. Fig. 17 – Pormenor do Solar do

Visconde de Almendra.

Fig. 19 – Construção em granito.

Fig. 21 – Muro em xisto.

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Requiem

Viam a luz nas palhas de um curral,

Criavam-se na serra a guardar gado.

À rabiça do arado,

A perseguir a sombra nas lavras,

Aprendiam a ler

O alfabeto do suor honrado.

Até que se cansavam

De tudo o que sabiam,

E, gratos, recebiam

Sete palmos de paz num cemitério

E visitas e flores no dia de finados.

Mas, de repente, um muro de cimento

Interrompeu o canto

De um rio que corria

Nos ouvidos de todos.

E um Letes de silêncio represado

Cobre de esquecimento

Esse mundo sagrado

Onde a vida era um rito demorado

E a morte um segundo nascimento.

Miguel Torga

Barragem de Vilarinho da Furna

18 de Julho de 1976

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Fig. 4 – Área submersa pela barragem de Foz Côa e os núcleos classificados como Monumento Nacional.

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A descoberta

Desde os anos 60 que se tem vindo a desenvolver no rio Douro um complexo programa de aproveitamento hidroeléctrico, que consistiu na construção da chamada “cascata do Douro”, um sistema de 5 barragens ao longo do curso nacional do rio: Crestuma, Carrapatelo, Bagaúste, Valeira e Pocinho (fig. 1).

A construção em 1983 desta última barragem, situada a cerca de 8 quilómetros a jusante da foz do Côa, fez subir o nível da água na zona da foz deste rio em cerca de 12 metros. Durante o processo de construção desta barragem foram identificadas as primeiras rochas gravadas da região, nomeadamente o conjunto artístico do Vale da Casa, datado do Calcolítico* ou Idade do Bronze antigo e da 2.ª Idade do Ferro, localizadas próximo de uma necrópole de cistas, mas também um conjunto de gravuras modernas na foz do rio Côa (fig. 2)1. Uma vez estudadas, estas rochas foram submergidas pela barragem.

No âmbito do programa de aproveitamento hidroeléctrico do Douro estava igualmente prevista a construção de uma barragem junto à foz do rio Côa (fig. 3). Tratava-se de um projecto de grande envergadura, que previa a construção de um paredão de 136 metros de altura, possibilitando a criação de uma albufeira de 702 hectómetros cúbicos (fig. 4). Este projecto era apresentado como tendo uma importância estratégica, assegurando o caudal necessário para pôr a funcionar a “cascata do Douro” durante os períodos de maior necessidade de água para a produção eléctrica2.

Em 1989, Francisco Sande Lemos realiza o estudo de impacte ambiental, no decorrer do qual se detectaram alguns sítios* arqueológicos, entre os quais algumas manifestações artísticas. No relatório final desse estudo, o arqueólogo aconselhava a realização de mais prospecções arqueológicas, considerando ser altamente provável a existência de mais superfícies gravadas no Vale do Côa3.

Só em 1991 se celebra o protocolo entre a EDP, empresa construtora da barragem, e o Instituto Português de Património Arquitectónico e Arqueológico (IPPAR), instituto público que tutelava a investigação arqueológica, que permite a criação do Plano Arqueológico do Côa (PAC), chefiado pelo arqueólogo Nelson Rebanda, que tinha por objectivo fazer o acompanhamento arqueológico das obras de construção, que se iniciam em 19924.

Logo em Novembro de 1991, Nelson Rebanda identifica

Fig. 1 – Aproveitamento hidro--eléctrico na bacia do Douro (Público, 02/07/95).

Fig. 2 – Vista geral do terraço do Vale da Casa antes da sua submersão em 1983.

Fig. 3 – Estado actual das obras de construção da barragem de Vila Nova de Foz Côa.

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a primeira rocha gravada com motivos paleolíticos do Vale do Côa, a rocha 1 da Canada do Inferno (fig. 5)5. Entretanto, as obras avançavam a bom ritmo.

Dois anos depois, no final do Verão de 1993, aquando do abaixamento do nível das águas da foz do Côa para efectuar algumas obras necessárias à construção da barragem, descobre-se um número surpreendente de gravuras paleolíticas igualmente na Canada do Inferno6. Mas é só em Novembro de 1994, quando o arqueólogo decide convidar um grupo de colegas a visitar o Vale, que esta descoberta chega ao conhecimento público, através de um artigo de jornal publicado no dia 21 desse mês com o título “Barragem de Foz Côa ameaça achado arqueológico” (fig. 6)7.

A divulgação destes achados levou, entretanto, à descoberta de mais sítios e mais gravuras paleolíticas no Vale e conduziu à formação de uma importante corrente de opinião que levantou a polémica da preservação das gravuras.

A luta pela preservação

Com a divulgação da descoberta das gravuras num momento tão adiantado da obra, colocou-se então um dilema radical: ou se construía a barragem ou se preservavam as gravuras8.

Do lado dos defensores da barragem posicionavam-se a EDP, empresa responsável pela sua construção e pela distribuição eléctrica em Portugal. Esta empresa contava com alguns argumentos de peso: a soma já investida na construção, a necessidade estratégica da barragem e alguma incerteza quanto à cronologia das gravuras por parte de alguma da comunidade científica.

Até então, a arte paleolítica era considerada como exclusiva do interior das grutas, não se valorizando suficientemente os raros exemplos de arte paleolítica ao ar livre já conhecidos9. Tendo isto em conta, a empresa construtora procurou provar que as gravuras não eram paleolíticas, o que, segundo o seu ponto de vista, diminuiria o seu valor e permitiria a construção da barragem. Deste modo, foi contratado um conjunto de especialistas (Robert Bednarik, Alan Watchman, Fred Phillips e Ronald Dorn), que vinham desenvolvendo métodos experimentais de datação* directa de superfícies rochosas. Estas datações, tiveram resultados surpreendentes e contraditórios entre si, chegando um dos especialistas a defender que as gravuras haviam sido realizadas há apenas 100 anos atrás por moleiros (fig. 7)10.

Os resultados foram, no entanto, refutados cientifica-mente, particularmente por João Zilhão, tendo-se provado que se tratava de métodos e valores não fiáveis para uma datação absoluta das gravuras11. Aliás, dois dos especialistas contratados, Ronald Dorn e Fred Phillips, vieram mesmo a público defender a não aplicabilidade dos seus métodos para fornecer uma datação exacta dos motivos paleolíticos gravados12.

O governo de então mostrava-se indeciso, embora nunca tivesse posto em causa a construção da barragem. Por isso, e uma vez provada a cronologia paleolítica das gravuras, procurava conciliar a construção da barragem com a preservação das gravuras, quer através da remoção das rochas gravadas e criação de um parque temático, quer pela sua simples submersão (fig. 8). Ambas as soluções foram vivamente contestadas pela comunidade científica. A remoção das rochas provocaria a fractura da sua maioria e, mesmo que se conseguissem remover todos os painéis, perder-se- -ia uma enorme quantidade de informação no que diz

respeito à distribuição espacial das rochas gravadas ou ao seu contexto arqueológico e paisagístico. A simples inundação das gravuras privaria o estudo e usufruto de tão valioso património a todos os cidadãos.

Do lado dos defensores da preservação estava a comunidade científica portuguesa, auxiliada pelos colegas estrangeiros numa campanha internacional13, os partidos políticos da oposição e uma parte significativa da opinião pública portuguesa, motivada por uma importante campanha de informação levada a cabo pelos meios de comunicação portugueses.

Desenvolveu-se um relevante conjunto de iniciativas com vista a pressionar as autoridades responsáveis, criando-se o Movimento para a Salvação da Gravuras do Côa, chegando-se mesmo a realizar uma greve de fome diária em frente ao Mosteiro dos Jerónimos. Em Vila Nova de Foz Côa os sentimentos eram contraditórios. A autarquia e uma parte da população defendiam então a construção da barragem, usando como argumento a criação de emprego e o desenvolvi-mento económico. Apesar disto, um dos mais signifi-cativos movimentos de apoio às gravuras foi criado pelos alunos e professores da Escola Secundária Tenente- -Coronel Adão Carrapatoso que, imitando uma canção

rap popular na altura, criaram um slogan que se tornou

célebre a nível nacional: “as gravuras não sabem nadar” (fig. 9)14. Um outro grupo de fozcoenses, nomeadamente Adriano Ferreira e José Pilério, notabilizou-se pela

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descoberta de cada vez mais painéis, nomeadamente os núcleos da Penascosa e Quinta da Barca, dois dos mais importantes núcleos de arte paleolítica, e os núcleos das margens do Douro, com a importante arte da Idade do Ferro, até aí desconhecidos pelos arqueólogos.

A criação do PAVC e a classificação como Património Mundial

Em Outubro de 1995 é eleito um novo governo. Logo após ter tomado posse, esse governo, e respectivo ministro da cultura, tomou a decisão de suspender imediatamente as obras de construção da barragem, que continuavam a um ritmo acelerado, dando instruções para que se elaborasse um relatório que avaliasse a importância dos vestígios arqueológicos do Vale do Côa.

Esse relatório foi elaborado durante o ano de 1996 e em Agosto desse ano, foi aberto ao público o Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), com visitas guiadas aos núcleos de arte rupestre da Canada do Inferno e da Penascosa. Em Janeiro do ano seguinte é apresentado o relatório final (fig. 10)15.

Nesse mesmo ano, no seguimento de um processo de reestruturação por parte do Ministério da Cultura da arqueologia nacional, é criado a 14 de Maio de 1997 (Decreto-Lei n.º 117/97) o Instituto Português de Arqueologia (IPA) e os seus serviços dependentes, Parque Arqueológico do Vale do Côa e Centro Nacional de Arte Rupestre. Em Abril de 2007, as atribuições do IPA foram integradas no Instituto de Gestão de Património Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR).

O PAVC tem por função gerir, proteger, musealizar e organizar para visita pública os monumentos incluídos na sua zona especial de protecção, tornando-se no primeiro, e até ao momento único, parque arqueológico português.

Em 2 de Julho de 1997 (Decreto n.º 32/97) são classificados como monumento nacional os núcleos de arte rupestre do Vale do rio Côa, até então identificados, mas também um sítio de habitat* paleolítico, entretanto começado a investigar (ver fig. 4 do presente capítulo).

Na sua 22.ª Sessão, realizada em Quioto (Japão), em 2 de Dezembro de 1998, o Comité do Património Mundial da UNESCO reconheceu a importância cultural das gravuras rupestres do Vale do Côa tendo-as integrado na lista de sítios classificados como património da humanidade16, num dos processos mais rápidos de

Fig. 7 – Bartoon de Luís Afonso (Público, 09/07/95).

Fig. 8 – Bartoon de Luís Afonso (Público, 05/03/95).

Fig. 9 – Logótipo do movimento de salvaguarda das gravuras do Vale do Côa.

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Fig. 10 – Capa do Relatório científico que serviu de base à decisão política de preservação

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A Arte e os Artistas do Vale do Côa

classificação por parte daquela instituição (fig. 11). Os critérios desta decisão foram:

“A arte rupestre do paleolítico superior do Vale do Côa é uma ilustração excepcional do desenvolvimento repentino do génio criador, na alvorada do desenvolvimento cultural humano;

A arte rupestre do Vale do Côa demonstra, de forma excepcional, a vida social, económica e espiritual do primeiro antepassado da humanidade”.

O processo de descoberta e preservação da arte paleolítica do Vale do Côa foi um importante “laboratório de análise sociopolítica”17. Em primeiro lugar, debateram-se aqui duas estratégias opostas de desenvolvimento. Por um lado, uma perspectiva economicista e industrialista defendia a construção da barragem como dinamizadora de desenvolvimento. A esta estratégia opunha-se uma outra fundamentada na defesa dos valores culturais e nas características locais e regionais como potenciadoras de um desenvolvimento efectivo e sustentável. O caso do Côa é exemplar porque nele a cultura e a ciência foram elementos determinantes na decisão política.

De especial relevância foi o facto desse debate se ter dado na praça pública, com especial relevância para as páginas dos jornais, revelando-se como um exemplo de participação cidadã. Ele teve como intervenientes não só os habituais actores institucionais e políticos, mas também a comunidade científica nacional e estrangeira e o empenho dos cidadãos, de entre os quais salientamos pelo seu significado os alunos das escolas de Vila Nova de Foz Côa e os seus professores.

Para além das implicações científicas que esta descoberta provocou, que adiante trataremos, a descoberta e preservação da arte paleolítica do Vale do Côa teve duas outras consequências. O falhanço na identificação e defesa da arte do Côa durante o processo de construção da barragem motivou alterações importantes na arqueologia portuguesa, de entre as quais salientamos a entrada de pleno direito do património arqueológico nos estudos de impacte ambiental. Por isso se fala hoje de um “antes do Côa” (a.C.) e de um “depois do Côa” (d.C.) na arqueologia portuguesa. Sem a polémica do Côa nunca se teria investido o que se investiu no estudo do património arqueológico da área inundada pela albufeira do Alqueva18.

A preservação do património do Vale do Côa motivou ainda alterações na gestão do território, originando uma nova figura dos planos de ordenamento: o Plano de Ordenamento de Parque Arqueológico (Decreto-Lei n.º 131/2002, de 11 de Maio)19. O Estado reconheceu que, tal como o património natural, o património arqueológico é por vezes suficientemente importante para que se definam regras especiais para a gestão de determinados territórios.

A polémica da arte do Côa marcou um conjunto de transformações que se deram nos finais do século XX e que ainda hoje prosseguem no seio na sociedade portuguesa.

O debate mantém-se ainda hoje, embora se tenha conseguido o mais importante: a preservação deste valioso património, a possibilidade do seu estudo científico e do seu usufruto por todos.

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Iniciou-se então o ciclo da vida e foi inaugurado o Tempo, sucedendo-se à

vida a morte e a uma geração uma outra.

O sol lançou-se na sua viagem pelos céus e as estações deram lugar

às estações; o mundo estava em movimento e, enquanto os humanos

cumprissem com a sua parte, manter-se-ia assim ordenado.

Bundahishn (Irão)

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O Paleolítico

O Paleolítico é o mais antigo período da história da espécie humana e decorreu entre cerca de 2,5 milhões e 10.000 anos antes do presente. Trata-se de uma expressão criada em meados do século XIX por John Lubbock, e que deriva do Grego antigo (palaiós «antigo» + líthos «pedra»), por oposição a Neolítico (do Gr. néos «novo» + líthos «pedra»), período que lhe sucedeu.

Os arqueólogos de há dois séculos basearam-se em noções tecnológicas para criar esta periodização, de forma a compreenderem a evolução cultural da humanidade. Assim, o Paleolítico foi definido como a Idade da Pedra Lascada e o Neolítico, a Idade da Pedra Polida. Isto não quer dizer que os instrumentos utilizados pelos seres humanos de então fossem exclusivamente de pedra. Para além destes, foram seguramente produzidos utensílios com fibras vegetais, madeira e tecidos animais, como peles, tendões e ossos. No entanto, com excepção dos ossos, esses materiais só muito raramente se conservaram até aos nossos dias, ao contrário dos utensílios líticos*. Por outro lado, no Paleolítico também se poliu a pedra e no Neolítico continuou-se a lascar. A arqueologia evoluiu extraordinariamente desde o século XIX, mas embora não seja cientificamente exacta, esta terminologia é ainda hoje empregue pela generalidade dos pré-historiadores. Foi pois no decurso do Paleolítico que o Homem se tornou no que é hoje, evoluindo não só tecnológica, mas também física e mentalmente1.

No seu desejo de tudo classificar, com vista a uma melhor compreensão da realidade, os arqueólogos dividiram este longo período em três: Paleolítico inferior, médio e superior (fig. 1).

O Paleolítico inferior

A história da espécie humana começou ainda antes do Paleolítico inferior, o mais antigo e longo da história da humanidade (entre 2,5 milhões e 100.000 anos antes do presente). Sabemos, já desde o século XIX, que evoluímos

dentro do grupo dos primatas, ao longo de um processo que é conhecido por hominização (fig. 2). Não é correcto dizermos que somos descendentes dos “macacos”. Antes, somos primos dos “macacos”, que é um termo comum para designar os primatas. A nossa espécie, Homo

sapiens*, é o estado actual de desenvolvimento de um processo que se iniciou há vários milhões de anos em África, o berço da humanidade. Aí se foi desenvolvendo um conjunto de espécies, hoje extintas, que se tornaram bípedes* e capazes de produzir cultura*.

O Paleolítico inferior iniciou-se quando um dos mais antigos antepassados dos seres humanos actuais produziu em África o primeiro utensílio de pedra. Este facto é de particular importância, pois uma das características que

Fig. 2 – Árvore genealógica humana.

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distingue as espécies humanas dos restantes animais, nomeadamente dos outros primatas, é a sua capacidade de produzir utensílios. Esta ideia tem vindo, contudo, cada vez mais a ser colocada em causa, uma vez que se tem vindo a verificar que os primatas, nomeadamente os chimpanzés, e mesmo outros animais, como os corvos da Nova Caledónia, são capazes de produzir utensílios. Neste momento, a grande distinção reside no facto dos seres humanos serem os únicos capazes de transformar radicalmente a morfologia da matéria-prima e conservar os utensílios para futuras utilizações, transportando-os consigo.

Não está arqueologicamente comprovado que os dois primeiros géneros humanos, Australopithecus* e

Paranthropus, já bípedes, fossem produtores de utensílios. Apesar disso, é provável que, tal como acontece hoje com os chimpanzés, eles recorressem a materiais naturais (pedras não transformadas, madeira, ossos) como utensílios. Os reconhecidos autores deste importante passo na história da humanidade pertenciam às espécies

Homo habilis* (fig. 3) e Homo rudolfensis*.

Estes hominídeos possuíam características semelhantes, nomeadamente o bipedismo, ou seja, a capacidade de locomoção apenas sobre os membros inferiores. No entanto, o Homo rudolfensis teria um cérebro maior, pernas mais longas e proporções do corpo mais semelhantes às nossas.

Ambas as espécies viveram na África Oriental, em ambiente de savana arborizada, e possuíam uma dieta parcialmente baseada em fruta e folhas, complementada com a ingestão de carne de animais mortos. Os primeiros utensílios de pedra que produziram terão servido exactamente para a extracção desta carne e da medula dos ossos das carcaças.

Esses primeiros utensílios de pedra, os choppers* e

chopping tools*, consistiam em simples seixos de pedra afeiçoados por percussão, criando-se assim um pequeno e rude gume cortante (fig. 4).

Igualmente em África, há cerca de 2 milhões de anos, surge o Homo ergaster* e, posteriormente, o Homo erectus* (fig. 5). Dotados de uma capacidade craniana superior, estes hominídeos revelam um desenvolvimento intelectual superior aos seus antecessores, apresentam um nariz semelhante ao nosso e um padrão de crescimento similar, o que terá possibilitado um período de infância, fundamental para a aprendizagem.

Prova do seu maior desenvolvimento intelectual são os utensílios de pedra que produziu, principalmente os bifaces* Fig. 3 – Crânio de Homo habilis

(KNM ER 1813).

Fig. 4 – Seixo talhado da Quinta da Barca.

Fig. 5 – Crânio de Homo ergaster (KNM ER 3733).

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(fig. 6). Estes objectos são já totalmente transformados, revelando uma capacidade de total transformação de um objecto natural em objecto cultural, bem como a prova da noção de simetria. Os bifaces serviriam como objectos multiusos, nomeadamente para a extracção de carne e medula óssea, sendo ainda hoje discutível se estes hominídeos eram simplesmente necrófagos, como os seus antecessores, ou se já caçariam. Eles são, no entanto, os primeiros a consumir regularmente carne.

Habitando inicialmente em ambientes de savana aberta africana, o Homo erectus foi a primeira espécie a colonizar a Ásia e a Europa, onde chegou há mais de 1 milhão de anos, como o provam os mais antigos bifaces conhecidos neste continente, integrados na cultura acheulense*. Este hominídeo terá sido igualmente responsável pelo domínio do fogo, um avanço de grande importância, assim como pela construção dos primeiros abrigos.

Com uma cultura material* semelhante ao Homo erectus, surge há cerca de 500.000 anos o Homo heidelbergensis*, que combinava características da espécie anterior, com outras mais humanas, nomeadamente ao nível do corpo.

Teria uma esperança de vida semelhante à nossa e um período de infância que possibilitava a aprendizagem. Em termos culturais seria semelhante ao Homo erectus, mas teria já a capacidade de caçar grandes animais, cuja carne combinava com raízes e sementes na sua dieta alimentar.

A ocupação do actual território português data deste período, que se conhece apenas a partir das indústrias* acheulenses identificadas em algumas estações arqueológicas, nomeadamente em terraços fluviais2. Na região do Vale do Côa foram identificados alguns sítios deste período em terraços pleistocénicos*, conservados nas margens do Douro, como na Quinta do Vale Meão, Quinta da Granja, Quinta da Pipa ou Barca d’Alva e mesmo no Côa, na Quinta do Curral Velho3.

O Paleolítico médio

O Paleolítico médio decorreu entre 100.000 e 40.000 anos antes do presente e distingue-se do período precedente em dois aspectos fundamentais. Assistimos

Fig. 6 – Biface da Quinta do Vale Meão.

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ao aparecimento de uma nova espécie de hominídeos, que por, sua vez, produziu uma cultura material distinta, que os arqueólogos apelidam de Moustierense*.

A nova espécie é o Homem de Neandertal* (fig. 7) e viveu na Europa e Próximo Oriente. Estes indivíduos apresentavam características muito semelhantes às da espécie humana actual, sendo, regra geral, mais baixos e robustos, com um nariz largo e protuberante, sem queixo e apresentando uma capacidade craniana superior à nossa. No entanto, se os víssemos hoje em dia no meio de nós não os distinguiríamos.

Esta espécie ocupou a Europa, o Médio Oriente e a Ásia ocidental e as suas características físicas denotam uma extraordinária adaptação ao clima glaciar em que habitava. Os Neandertais viveriam da caça e recolecção, em pequenos grupos e, possivelmente, já detinham a capacidade da fala articulada.

O seu destino é ainda hoje alvo de alguma controvérsia entre a comunidade científica, defendendo alguns investigadores que se extinguiu em face da concorrência que sofreu por uma nova espécie, o Homo sapiens. Outros defendem que se trata apenas de subespécies diferentes, uma de origem europeia (os neandertais), outra de origem africana (os sapiens), tendo a expansão destes últimos em direcção à Eurásia resultado em mestiçagem, como sugerido pelo esqueleto da criança do Lapedo (fig. 8)4. Descoberto no abrigo do Lagar Velho, no vale do Lapedo (Leiria), este esqueleto pertencia a uma criança de 4 a 5 anos de idade. A sua sepultura, a primeira de cronologia paleolítica identificada na Península Ibérica, foi datada pelo método do radiocarbono de cerca de 30.000 anos antes do presente. A fossa de enterramento encontrava- -se delimitada por um alinhamento de pedras e ossos de

veado. A criança estava amortalhada com uma pele tingida de vermelho, tinha um pendente de concha no pescoço e um diadema de dentes de veado na testa e sobre as suas pernas fora depositado o corpo de uma cria de coelho. As características do esqueleto apontam para uma mistura de características anatómicas modernas, como sejam a dentição, o queixo e a bacia, e neandertalenses, como sejam a robustez dos ossos dos membros, as proporções relativas da tíbia e do fémur e a morfologia da parte de trás do crânio.

Em termos de cultura material, o Paleolítico médio é marcado por uma inovação técnica importante, característica da cultura moustierense. Ao contrário dos utensílios acheulenses e anteriores, estes já não eram realizados simplesmente sobre seixos, mas principalmente Fig. 7 – Descoberta dos

esqueletos de Neandertal em La Ferrassie (França).

Fig. 8 – Esqueleto do Menino do Lapedo.

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sobre lascas*. A lasca é o fragmento de pedra que se destaca de um núcleo de pedra quando este sofre um forte impacto. No Paleolítico médio assistimos ao desenvolvimento de uma técnica de obtenção de lascas, intitulada “método de Levallois”* (fig. 9). Este método permitia a predefinição da forma da lasca a partir de um bloco de pedra em bruto, revelando assim que estes hominídeos possuíam uma extraordinária capacidade de abstracção e desenvolvimento intelectual, que lhes permitia prever mentalmente o resultado da sua acção sobre o objecto natural.

Outras provas de desenvolvimento intelectual e capaci-dade de pensamento simbólico do Homem de Neandertal podem ser encontradas no facto deste hominídeo coleccionar por vezes conchas e fósseis, objectos sem características utilitárias aparentes. Sabemos que cuidavam dos seus velhos e terão sido os primeiros hominídeos a sepultar os mortos, embora haja igualmente provas de canibalismo dentro de alguns grupos. Apesar disto, os Neandertais não conheciam a arte.

Os mais antigos vestígios directos de hominídeos detectados em Portugal são exactamente dentes isolados de neandertais, identificados nas grutas da Figueira Brava (Sesimbra) e da Columbeira (Bombarral)5.

Os vestígios da ocupação deste período da Pré-história são escassos no Vale do Côa, tendo sido apenas identificados dois sítios no planalto da Olga Grande, na margem direita do Côa, que apresentam lascas obtidas pelo “método Levallois”. Esta raridade poderá estar relacionada com uma

baixa densidade de ocupação do Vale durante esta época ou, mais provavelmente, com problemas relacionados com a preservação desses vestígios6.

O Paleolítico superior

O Paleolítico superior decorreu entre 40.000 e 10.000 anos antes do presente e marca, grosso modo, o domínio da espécie humana actual, o Homo sapiens (fig. 10). A nossa espécie terá surgido há cerca de 200.000 anos em África, de onde terá saído para ocupar todo o planeta, há cerca de 100.000 anos. O Homo Sapiens ocupou primeiro a Ásia7 e a Europa, cujos primeiros ocupantes ficaram conhecidos por Homem de Cro-Magnon*, a Oceânia e as Américas, ainda durante o Paleolítico superior, e finalmente a Antártida, já só no século XIX.

Em termos climáticos, este período é ainda marcado pela glaciação de Würm, que provocou a formação de grandes calotes de gelo nas regiões circumpolares, bem como nas montanhas de altitude mais elevada. No território português, este facto está comprovado na Serra da Estrela, a cerca 80 km a sul do Vale do Côa, onde o Vale do Zêzere apresenta uma formação claramente glaciar.

Este clima glaciar, com uma temperatura anual em média mais baixa cerca de dez graus centígrados e uma precipitação 30 a 50% inferior, foi, no entanto intercalado por momentos mais amenos, apelidados de interestádios (fig. 11)8.

Associada a este clima, a fauna do Paleolítico superior era composta por espécies bem adaptadas ao frio, como o

Fig. 9 – Núcleo levallois da Quinta da Granja.

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mamute*, o rinoceronte lanudo*, o megaceros*, o bisonte e a rena nas regiões mais frias da Europa Central. Para além destas espécies especialmente adaptadas o frio, percorriam toda a Europa grandes manadas de cavalos selvagens, veados, corços, cabras selvagens, camurças, e auroques*, os antepassados dos actuais bois domésticos. Com o fim do Paleolítico superior, algumas destas espécies extinguiram-se, outras recuaram para latitudes superiores e outras acabaram por ser domesticadas.

A flora acima dos 700 metros seria composta por estepe continental, enquanto que abaixo dessa altitude alternariam zonas de vegetação alpina, subalpina, boreal e temperada. É preciso, no entanto, notar que o panorama da fauna e flora foi variando, em virtude das variações climáticas que se foram registando ao longo dos 30.000 anos que durou o Paleolítico superior.

A alimentação dos nossos primeiros antepassados basea-va-se no consumo de grandes quantidades de carne, mas igualmente num largo espectro de produtos recolhidos. Para além da carne, a caça fornecia igualmente um conjunto de outros produtos secundários, fundamentais à sua vida, como o tutano dos ossos para alimentação, os ossos e hastes para a produção de utensílios, as peles para protecção, os tendões, utilizados como fibras muito resistentes, ou os dentes para adorno.

O facto de não serem produtores fazia com que estes caçadores-recolectores levassem uma vida nómada, deslocando-se em grupo, não de forma aleatória, mas ocupando um determinado território ao longo do ano, consoante as suas necessidades alimentares. Seguindo as manadas, frequentando as zonas mais favoráveis à recolha de determinados frutos ou plantas numa determinada Fig.10 – Grupo de Homo sapiens

visitando as gravuras do Vale do Côa.

Fig.11 – Periodização do Paleolítico superior e diferentes fases climáticas.

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Fig. 12 – Esquema de deslocação sazonal.

Fig. 13 – A importância do meio ambiente para as populações paleolíticas.

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época do ano (fig. 12). Para além da busca de alimento, uma outra razão para a mobilidade destes grupos residia na procura de matéria-prima para a produção dos seus utensílios (fig. 13).

Em termos gerais, a utensilagem lítica do Paleolítico superior baseia-se na produção de instrumentos a partir de lâminas*, isto é, lascas de forma alongada, onde o comprimento é duas vezes superior à largura (fig. 14). Estas lâminas eram então transformadas num conjunto enorme de diferentes utensílios, a partir de técnicas de talhe bastante apuradas, como o talhe por pressão ou o aquecimento prévio da matéria-prima, obtendo-se, assim, peças de grande beleza e eficiência. Os utensílios líticos diversificam-se de uma forma extraordinária, tornando-se mais especializados. Surgem-nos as pontas para caçar, as raspadeiras* para tratar as peles, os furadores* para perfurar, os buris* para gravar, etc.

Uma das matérias-primas fundamentais para o fabrico destes utensílios era o sílex* (fig. 15) que, pela sua natureza, pode ser facilmente trabalhado e apresenta grande resistência. No entanto, esta matéria-prima, formada em antigos depósitos subaquáticos existe apenas em alguns substratos geológicos, levando a que se procedesse a grandes deslocações e trocas entre diferentes regiões. Por outro lado, estes primeiros seres humanos não se limitavam ao uso do sílex. Mostrando um grande

conhecimento dos recursos de que dispunham, utilizavam uma grande variedade de matérias-primas líticas com objectivos diferentes, sendo as mais vulgares o quartzo* e o quartzito*, mas também o granito, o xisto e muitas outras.

De forma a melhor compreenderem a evolução verificada ao longo dos 30.000 anos que durou o Paleolítico superior, os arqueólogos dividem este período em diferentes momentos, ou culturas (ver fig. 11 do presente capítulo). Estas culturas são definidas com base na evolução tecnológica e adoptam os nomes dos sítios arqueológicos franceses, a partir dos quais foram inicialmente definidas. Assim, em traços gerais,

Fig. 14 – Debitagem experimental de uma lâmina por um Homo

sapiens actual chamado Thierry

Aubry.

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Fig. 16 – Planta com a distribuição de elementos de granito da Olga Grande 4.

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o Paleolítico superior inicia-se com o Aurinhacense* (entre os 40 e os 28 mil anos antes do presente), seguindo-se o Gravettense* (entre os 28 e os 21 mil anos antes do presente), o Solutrense* (entre os 21 e os 17 mil anos antes do presente) e, finalmente, o Magdalenense* (entre os 17 e os 10 mil anos antes do presente).

A ocupação humana deste período é conhecida no actual território nacional sobretudo a partir de jazidas* em gruta e ao ar livre, sobretudo da Estremadura portuguesa, uma região que apresenta grande abundância de sílex9. Até recentemente, julgava-se que o interior da Península Ibérica seria despovoado durante o Paleolítico superior, no entanto, a descoberta de sítios na Meseta castelhana, como La Dehesa, e no Vale do Côa veio comprovar que esta ideia era motivada apenas por um défice de investigação. A maior prova de que no Paleolítico superior o Homem se torna verdadeiramente Homem é o nascimento da arte, algo que nos distingue profundamente das restantes espécies animais.

Os métodos de estudo do Paleolítico

Na falta de documentos escritos, o estudo do Paleolítico, como de toda a Pré-história, baseia-se na arqueologia10. A arqueologia é uma ciência que procura estudar a evolução humana a partir dos vestígios materiais deixados pelas diferentes populações que habitaram o planeta. O arqueólogo procura compreender o modo de vida das diferentes populações sobretudo a partir do que elas inadvertidamente deixaram nos seus locais de habitat, mas também da forma como enterravam os seus mortos, dos objectos que com eles deixavam e do tipo de expressão artística que produziram.

A arqueologia tem duas grandes condicionantes do

seu trabalho. Por um lado, ela é em grande medida uma ciência do lixo e, por isso, estuda materiais que não foram intencionalmente produzidos para fornecer informação. No entanto, essa é igualmente uma das potencialidades do estudo arqueológico, pois recupera informação que não foi conscientemente deixada. Isso é particularmente notório quando se realizam estudos arqueológicos em momentos históricos e se confrontam os resultados dessa investigação com a documentação escrita que, como sabemos, é geralmente de âmbito limitado, subjectiva e reproduz a ideologia das classes dominantes.

Uma outra condicionante do estudo arqueológico é a consciência de que o registo arqueológico que hoje se pode recuperar é apenas uma ínfima parte da actividade humana passada, tendo já desaparecido para sempre a maior parte da informação, hoje irrecuperável.

Por esse facto, a actividade do arqueólogo reside na busca da maior quantidade de informação possível, a partir dos poucos vestígios a que tem acesso, revestindo-se hoje, cada vez mais, de uma natureza científica.

O método de estudo do arqueólogo baseia-se fundamentalmente na escavação (fig. 17). A escavação arqueológica é um método de estudo destrutivo, pois ao escavar, o arqueólogo está simultaneamente a destruir o registo arqueológico. Por esse facto, toda a escavação deve ser acompanhada por um registo minucioso dos objectos e estruturas identificados, através da sua localização tridimensional, do desenho de plantas (fig. 16) e alçados e da fotografia.

A estratigrafia está na base de toda a escavação arqueo-lógica. Trata-se de um conceito derivado da geologia, segundo o qual, devido à erosão rochosa, a superfície sedimentar da terra foi formada através da deposição

Fig. 18 – Corte estratigráfico da Quinta da Barca Sul.

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de camadas, umas sobre as outras, que se distinguem pela sua posição relativa e pelas suas características e conteúdo.

Uma jazida arqueológica é frequentemente constituída por diferentes níveis arqueológicos, que diferentes ocupações do sítio foram criando (fig. 18). Estes níveis, ou camadas, distinguem-se pela sua cor, mas sobretudo pela sua composição. Isto significa que uma determinada camada arqueológica, juntamente com os artefactos* e estruturas a ela associados, é mais antiga do que a camada que a sobrepõe e mais recente do que a camada que ela própria cobre.

Se a escavação arqueológica é a actividade mais reconhecida ao arqueólogo, o seu trabalho não termina por aí. O estudo laboratorial dos materiais recuperados, bem como dos registos efectuados, é um trabalho que geralmente ocupa muito mais tempo do que a escavação propriamente dita.

Terminada a campanha de escavações é necessário inventariar, classificar e desenhar os materiais recolhidos, isto é, juntar todos os elementos recuperados durante a escavação, de forma a compreender o modo de vida das populações que deixaram esses vestígios (fig. 19). Para isso, o arqueólogo pré-historiador socorre-se de um conjunto alargado de especialistas em outras áreas científicas de forma a obter uma visão o mais abrangente possível do seu objecto de estudo. Por exemplo, ele pode socorrer-se de geólogos para identificar as matérias- -primas e a sua proveniência ou para conhecer como

se processou a formação do registo arqueológico que estudou. Se identificou vestígios osteológicos humanos deverá socorrer-se de um antropólogo físico para a sua identificação e estudo. Se foram vestígios de fauna, deverá contactar um zoólogo, ou mais precisamente de um arqueozoólogo, para identificar e contabilizar as espécies registadas. De igual modo, para ter uma noção do meio ambiente em que viveram as populações que estuda, o arqueólogo deverá contactar um palinólogo para estudar os pólenes contidos nos sedimentos escavados, ou um paleobotânico, para identificar as espécies a que pertenciam os restos de carvões encontrados. Outro especialista que poderá colaborar é o traceólogo, que estuda os traços deixados em alguns instrumentos, de forma a identificar para que é que eles serviram.

Existe uma quantidade infinita de cientistas que podem auxiliar o arqueólogo a extrair o máximo de informação dos dados que recolheu, não havendo limites para esta interdisciplinaridade.

Uma questão fundamental e sensível para os arqueólogos é a datação, pois têm constantemente de provar a afirmações que produzem. As datações em arqueologia podem ser absolutas ou relativas.

Uma datação relativa consiste em determinar apenas se o objecto que pretendemos datar é mais antigo ou recente que o elemento de comparação, sem, no entanto, nos fornecer uma data absoluta sobre quando foi produzido ou utilizado. A forma fundamental de datação relativa é a estratigrafia, analisada atrás. Outra forma de datação relativa é a inserção de um determinado artefacto dentro de uma tipologia. As tipologias são séries de objectos semelhantes, organizados segundo a sua antiguidade, consoante as suas características. O arqueólogo poderá organizar os seus materiais em tipologias, por exemplo, de raspadeiras ou de decoração cerâmica, ou então integrar os seus objectos numa tipologia já estabelecida. Em termos do Paleolítico superior, foram definidas diferentes culturas que se sucederam no tempo, caracterizadas pelos seus objectos típicos. Por isso sabemos que uma folha de loureiro solutrense é mais antiga do que uma zagaia* madalenense e mais recente do que uma micro-gravette, típica do Gravettense.

Por datações absolutas entendem-se aquelas que determinam uma data em forma de número e que são obtidas por métodos físico-químicos, ciências igualmente fundamentais à arqueologia.

O método de datação directa mais importante é o do radiocarbono ou carbono 14, que se baseia no facto de que todos os seres vivos absorvem o isótopo carbono 14 (14C). Após a morte desse ser vivo, a quantidade de radicarbono começa a diminuir a um ritmo determinado. Daqui resulta que, identificando qualquer vestígio de matéria orgânica, como sejam carvões, conchas, ossos, ou vestígios de pintura contendo matéria orgânica, podemos determinar a quantidade de carbono 14 que ainda subsiste e, assim, conhecer a idade da sua morte de forma aproximada. No entanto, a não identificação de matéria orgânica em escavação impossibilita este tipo de datação, como acontece numa escavação em solos ácidos, que raramente possibilitam a preservação de elementos orgânicos. Nesse caso ter-se-á de recorrer a outros métodos, como seja o da termoluminescência (TL), que se baseia igualmente no princípio da radioactividade. Este método é aplicável a objectos que foram aquecidos, como sejam pedras encontradas no interior de fogueiras. Uma vez novamente aquecidas a altas temperaturas, estas pedras emitem uma luminosidade que, sendo medida, permite determinar o

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momento em que esse objecto foi aquecido pela última vez.

Igualmente baseado no princípio da luminescência, o método OSL (Optical Stimulated Luminescence) permite datar há quanto tempo foram os minerais expostos à luz do dia, antes de terem sido soterrados.

Apesar de serem absolutas, estas medições contêm algum grau de incerteza que é expresso através de um número. Por exemplo, a data 28.700 ± 1.800 BP significa que existe uma variabilidade de 1.800 anos na datação obtida, o que significa que o objecto pode datar de entre 30.500 e 26.900 antes do presente. A abreviatura BP significa “before present” a expressão inglesa que significa antes do presente, que para a datação arqueológica se reporta ao ano de 1950.

Para além de datação absoluta e relativa, a datação arqueológica pode ainda ser dividida em directa e indirecta, independentemente do método utilizado. A datação directa é aquela que incide sobre o objecto a datar. Por exemplo, se datarmos determinados pigmentos de uma pintura paleolítica através do radiocarbono, estamos a datar directamente essa pintura. Por outro lado, quando atribuímos uma data a uma camada arqueológica através da datação dos carvões nela contidos, estamos a datar indirectamente os materiais detectados nessa camada. Após o estudo de laboratório, segue-se a publicação dos resultados, feita em artigos de revistas científicas, livros monográficos ou em congressos da especialidade. No entanto, o trabalho do arqueólogo só termina, muitas

vezes, com a musealização dos objectos recolhidos. Se na sua maioria os materiais se destinam a depósito, por não serem objectos suficientemente significativos ou belos, alguns outros são apresentados em museus, não para serem simplesmente apreciados, mas sobretudo para nos contarem a história dos homens e mulheres que os produziram e utilizaram. Para isso é fundamental o contributo do arqueólogo que os estudou, juntamente com o museólogo, de forma a integrá-los numa exposição, que não seja apenas um armazém de objectos sem significado, mas uma experiência atractiva, informativa e significante.

A arte paleolítica

Uma das características mais importantes da nossa espécie, e que nos distingue das restantes, consiste na produção artística. Essa característica está presente desde as origens da nossa espécie, Homo sapiens, em África. Não sendo a primeira historicamente atestada, foi a descoberta da Gruta de Altamira (Cantábria, Espanha) que lançou os estudos e discussão sobre a arte paleolítica. Em 1879, enquanto Marcelino Sanz de Sautuola procedia a escavações na entrada da gruta, a sua filha María, de 8 anos, ter-se-á aventurado no seu interior, exclamando “Papá! Bois!”. Revelava-se, assim, após milhares de anos na penumbra, o magnífico tecto desta gruta decorado com bisontes pintados e muitos outros animais (fig. 20). Com a divulgação deste achado, inicia-se então um acalorado debate sobre a autenticidade da descoberta. Custava acreditar aos homens do século XIX que seres então vistos como rudes e primitivos fossem capazes de realizar tão complexas e delicadas obras, só acessíveis aos espíritos superiores da civilização à qual se orgulhavam de pertencer.

A posição dos cépticos investigadores de então, nomeadamente dos pré-historiadores franceses, só mudará com a descoberta de grutas com pinturas semelhantes na região da Dordonha, o que os levará a fazer um mea culpa11.

A partir de então, a arte paleolítica passa a ser um assunto relativamente pacífico entre a comunidade científica, até à descoberta do Vale do Côa.

A mais antiga arte da humanidade pode ser dividida em três campos fundamentais: arte móvel, arte parietal, no interior de grutas, e arte rupestre, ao ar livre12.

Arte móvel

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