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Nietzsche, Derrida, Foucault, Deleuze : para lá de uma hermenêutica do sentido

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Nietzsche, Derrida, Foucault, Deleuze:

Para lá de uma Hermenêutica do Sentido

Victor Gonçalves

Orientador: Prof. Doutor Carlos João Tavares Nunes Correia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Filosofia, na

especialidade de Filosofia Contemporânea

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Nietzsche, Derrida, Foucault, Deleuze:

Para lá de uma Hermenêutica do Sentido

Victor Gonçalves

Orientador: Prof. Doutor Carlos João Tavares Nunes Correia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Filosofia, na

especialidade de Filosofia Contemporânea

Júri:

Presidente: Doutor José Viriato Soromenho Marques, Professor Catedrático e Membro do Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

Vogais: Doutora Maria Fernanda Bernardo Alves, Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra;

Doutor João Manuel Pardana Constâncio, Professor Associado com Agregação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;

Doutor José Luís Toivola Câmara Leme, Professor Auxiliar da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa;

Doutora Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão, Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

Doutor Carlos João Tavares Nunes Correia, Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

SFRH/BD/46893/2008

(3)

Resumo

No nosso trabalho 1) investigámos a possibilidade de se aplicar uma “hermenêutica do

sentido” em Friedrich Nietzsche, Jacques Derrida, Michel Foucault e Gilles Deleuze; e 2)

abordámos em cada um dos autores o problema da recepção filosófica, isto é, da possibilidade

e modalidades de leituras filosóficas, de os filósofos se lerem e compreenderem entre si,

prolongando ou rompendo linhas de sentido originais.

Os dois pontos estão profundamente relacionados, já que por “hermenêutica do

sentido” entendemos a presença em dispositivos textuais de sentidos fixos recuperáveis,

remetendo para questões ligadas às modalidades da recepção filosófica e à própria ontologia

da filosofia. O pensamento dos autores que aqui trazemos tende a suspeitar bastante da

possibilidade de haver verdades (esses “sentidos fixos” de que falámos) que primeiro se

cristalizam e depois se deixam recolher por acções hermenêuticas metodologicamente

definidas.

Para Nietzsche, que, em provocação filosófica, chega a declarar-se incompreensível,

tudo é interpretação; Derrida defende uma permanente suplementação dos sentidos originários,

inelutável iteração de todas as écritures; Foucault historiza pensamento e discurso, substitui a

verdade por “jogos de verdade” e, na última fase, singulariza a relação com o verdadeiro

numa filosofia prática do “cuidado de si”; Deleuze propõe que se veja o pensamento como

resultado do processo de pensar, e não o contrário, mais radical do que os autores anteriores,

sugere a substituição da interpretação pela experimentação, no fim de vida escreverá uma

obra sobre a produção filosófica, irmanada com a produção artística e a produção científica,

onde o “cérebro” conjura o caos.

Abstract

In the present dissertation we investigate 1) the possibility of applying a

“hermeneutics of meaning” to the works of Friedrich Nietzsche, Jacques Derrida, Michel

Foucault and Gilles Deleuze; and 2) we approached the question of philosophical reception in

each author, that is, the possibility and modality of philosophical readings, of philosophers to

read each other in a mutually understandable way, prolonging or shattering original lines of

meaning.

These two points are deeply linked, given that by “hermeneutics of meaning” we

mean the presence in textual devices of retrievable fixed meanings, which relate to questions

connected to modalities of philosophical reception and to the ontology of philosophy itself.

The thought of the authors featuring in our discussion tends to be quite suspicious of the

possibility of the existence of truths (the “fixed meanings” we alluded too) that crystallize at

first and then allow themselves to be gathered by methodologically defined hermeneutical

actions.

For Nietzsche, who, in philosophical provocation, goes to the point of declaring

himself incomprehensible, everything is interpretation; Derrida defends a continuous

supplementation of original meanings, an ineluctable iteration of all the écritures; Foucault

historicizes thought and discourse, he substitutes truth for “games of truth” and, in the last

phase, singularizes the relation with the truthful in a practical philosophy of the “care for

oneself”; Deleuze proposes for thought to be seen as a result of the process of thinking, and

not the contrary, more radical than the authors that preceded him, he suggests the substitution

of interpretation for experimentation, by the end of his life he will write a work about

philosophical production, pairing it with artistic production and scientific production, where

the “brain” summons chaos.

(4)

Agradecimentos

Este é o local para retribuir as dívidas que um longo trabalho deste tipo vai

acumulando. Mas serão com certeza dívidas infinitas, nem quem emprestou com tanta

generosidade esperaria ser recompensado na íntegra, se tal fosse possível. Trata-se, portanto,

de um gesto de gratidão desproporcional que pretende principalmente revelar que não estive

sozinho, mesmo se vivi vastas horas de solidão, que muitos outros nutriram, das mais diversas

maneiras, bastante do que aqui escrevi.

Institucionalmente, agradeço à Fundação para a Ciência e Tecnologia a concessão de

uma bolsa de investigação, sem a qual este trabalho dificilmente veria a luz do dia.

Agradeço a todos os Professores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

que me ensinaram – eu que vinha de margens diferentes, onde, de resto, fui muito feliz – a

envolver-me de outro modo com a filosofia, a temperar a minha impetuosidade discursiva,

olhando com mais cuidado para os textos. Entre eles, destaco a Professora Doutora Adriana

Veríssimo Serrão, o Professor Doutor António Pedro Mesquita e, porque me estimulou

filosoficamente e acolheu, o meu orientador, Professor Doutor Carlos João Correia.

Mas nada disto seria possível sem as sempre presentes, suporte inquebrantável, escudo

inteligente e amoroso, Ana Duarte, esposa sem falhas, e Maria Gonçalves, filha que amo sem

condições e me torna aquilo que sou.

Por último, porque com Nietzsche aprendemos o valor do acaso, agradeço à minha

linha de vida em ziguezague, soprando o quente e o frio, mas permitindo-me variar os

encontros felizes que coseram a dispersão do caos e acrescentaram sentidos vitais ao que

pensava, resgatando-me, a espaços, da reiteração estéril.

(5)
(6)

Introdução

I

O ímpeto principal para o nosso trabalho esteve na atracção filosófica que há vários

anos experimentámos por Friedrich Nietzsche e a constelação de autores que orbitam, em

revoluções imperfeitas, à volta dele. O estilo discursivo (plural, como veremos), a

radicalidade crítica (quase sem pontos de ancoragem, caotizando mais do que ordenando), a

abrangência vital dos temas

1

e o diálogo agónico, mas fecundo, com a tradição filosófica (a

sua forma de se inscrever nela) são as razões pelas quais nos mantemos fiéis ao que escreveu,

capaz ainda de nos surpreender, apesar de há muito virmos investigando a sua obra. Não nos

consideramos, porém, discípulos eruditos que, em boa verdade, se afastam tanto mais dele

quanto o reproduzem na exactidão do ipsis verbis. Talvez nos distanciemos também de

alguma boa compreensão decidida pelos modelos dominantes da recepção, mas tudo faremos

para o ler lentamente, como ele queria. E não nos deixaremos inebriar pelo seu lirismo

intensivo ou pela espantosa capacidade de alimentar a autodescoberta (variação da maiêutica

originária), como se desse apenas os primeiros acordes cognitivos de uma partitura composta

principalmente por quem a acolhe. Muita da escrita nietzscheana abala os preconceitos mais

protectores (nebulosas do “bem” e da “verdade”)

2

, fazendo vibrar as cordas do pensamento,

deslocando ou intensificando o que se deu por adquirido. Mas há camadas e sedimentos

abaixo, acima, ao lado... disso. À sedução quase instantânea junta-se o impulso para

1 Nietzsche escreveu sobre quase tudo, é um dos grandes jornalistas do século XIX (apesar, em

schopenhaueriano, das críticas à cultura jornalística). Num Fragmento Póstumo de 1887, 9[177], refere que o seu orgulho, tortura e sorte foi ter percorrido cada recanto da alma e mostrado o grau de civilização atingido no seu século.

2 Na medida em que têm desejos hegemónicos, um impulso para a absolutidade. Nesta via, até os juízos de

gosto estéticos, quando querem a universalidade, se transformam em juízos morais. (Cf. o Fragmento Póstumo de 1881, 11[79])

(7)

desenvolver leituras que multiplicam os sentidos possíveis, complexificando tanto os slogans

comuns que se vai formando uma carapaça de bom cepticismo. Passemos a coisas mais sérias:

devemos pensar criticamente cada sintagma nas teias intertextuais onde subsiste, indo de um a

outro Nietzsche, mas também dele a alguns dos seus maiores comentadores.

3

Reconhecendo que a compreensão não se esgota no que escreveu, quisemos

prolongá-lo e interpretá-prolongá-lo com comentadores que compuseram fiprolongá-losoficamente o que ele esboçou

aforística e dramaticamente, sem que isto evite a ida frequente às fontes. Escolhemos a

recepção francesa próxima do que hoje se chama, por facilidade comunicativa, o

“pós-modernismo” (e “pós-estruturalismo”), três autores em particular: Jacques Derrida, Michel

Foucault e Gilles Deleuze. Por duas/três razões fundamentais: a) foram leitores atentos e

implicados, quiseram estudá-lo para viverem um pouco à la Nietzsche (em libertação ou

emancipação, para lá das gastas considerações humanistas)

4

, são, pois, rigorosos nas

interpretações, sem imporem um rigor mortis demonstrativo;

5

a.1) o que publicaram, uma

parte à margem de Nietzsche (sem traírem, porém, o espírito nietzscheano), é indispensável

para se perceber melhor o próprio Nietzsche, como, e.g., alguns comentadores de Platão o

justificaram melhor do que ele a si próprio, desta forma a pretensa verdade da obra de

Nietzsche dilui-se no jogo receptivo que complexificou o que já era complexo;

6

b) todos eles

se libertaram de Nietzsche, não por cansaço ou estratégia profissional, mas porque,

respeitando-o, forjaram os seus próprios caminhos filosóficos.

7

Por outro lado, são pensadores

da cultura que mais sistemática e intensamente o estudou. A França, como ele previu, é o

3 Como defende João Barrento, “Acontece que a recepção de uma obra com a força, o poder de atracção e

penetração e o brilho literário da de Nietzsche exige um olhar diferente sobre os textos e os autores que o assimilaram: o olhar detectivesco, como é sempre o do investigador da recepção, seja ela descritiva ou normativa, passiva ou produtiva, mas também um olhar sensível aos movimentos ocultos da transmigração dos textos e das ideias, aos interstícios, meandros, e também caminhos mais direitos, da intertextualidade filosófico-literária”. (A espiral vertiginosa – ensaios sobre a cultura contemporânea, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 121)

4 O sucesso que teve Die Zerstörung der Vernunft de Georg Lukács (La Destruction de la raison, Paris:

L’Arche, 1957) prova que em França aos entusiastas de Nietzsche sempre se opuseram facções que ou o consideravam não-filósofo e perigoso irracionalista ou, como no caso de alguns intelectuais comunistas leitores de Lukács, um neonazi. Esta última linha, ainda que bastante mitigada, prolonga-se na constelação de Alain Badiou (e.g., o livro panfletário do antinietzscheanismo de esquerda de Aymeric Monville, Misère du

nietzschéisme de gauche. De Georges Bataille à Michel Onfray, Paris: Aden, 2007).

5 Se nos permitem a analogia, distinguimos o mau do bom rigor a partir de dois marcadores primaveris: o

primeiro usa o calendário abstracto/positivo dos meses e dias, impondo o início da Primavera Boreal, numa universalidade descontextualizada, a 20 de Março; o segundo é baseado na fenologia, sobretudo fitofenologia, e atende à maturação da flora num determinado ano e região. Segundo este critério, o início da Primavera varia de ano para ano e de região para região (mesmo em geografias próximas, como, e.g., a de Trás-os-Montes, onde há cerca de 15 dias de diferença entre as contíguas Terra Quente e a Terra Fria). Ora, o rigor numérico do primeiro afasta-se da realidade que pretende honrar, mais, é o pretenso rigor que o torna falso ou, pior, irrelevante.

6 Em Nietzsche, a suplementação dos seus textos é ainda mais fundamental, Eugen Fink tem alguma razão ao

dizer que ele dissimulou mais do que divulgou a sua filosofia. E talvez, por isso, a sua importância resida mais no trabalho de precursor do que de conceptualização sistemática. (Cf. Nietzsches Philosophie (1960), Stuttgart, Berlin, Köln, Mainz: Kohlhammer, 1986, p. 12 e 139; para, respectivamente, os dois períodos)

7 Situados à margem do existencialismo e da fenomenologia, sobretudo sartreana, mas sem se juntarem à

(8)

maior centro da recepção nietzscheana (embora tenha perdido o fulgor da segunda metade do

século XX).

Contudo, apesar do vasto trabalho hermenêutico desenvolvido no último século,

Nietzsche continua a defender-se dos “funcionários do pensamento”, reprodutores

conscienciosos do passado, os seus textos resistem à fixação de qualquer inteligibilidade

definitiva. Sempre que se ultrapassa o nível do recomendado, é-se coagido a desconstruir a

maioria das ideias feitas, com tal veemência que por vezes parece pensar-se a partir de

Nietzsche contra Nietzsche, ou, e isso é válido para quase toda a recepção francesa

pós-guerra,

8

se reinventa parte do seu pensamento para o acolher melhor.

9

Nietzsche gravou na

história do mundo, feita de sentidos múltiplos e dissonantes, novos textos que se relacionam,

às vezes no limite do plágio, com textos pretéritos e futuros. A este baile inter-relacional pode

chamar-se “intertextualidade”, abusando um pouco do significado que lhe deram Gérard

Genette e Julia Kristeva (“presença efectiva de um texto noutro”)

10

. E isto dificulta ainda mais

a sua sistematização que, aliás, a ser feita, exigiria um meta-sistema capaz de ligar peças

teóricas que em Nietzsche não se completam imediatamente numa obra auto-suficiente,

fundadora da verdade de si mesma. Neste sentido, ela é mais uma obra-função do que uma

obra-descrição.

Como não se consegue ler tudo, a biblioteca nietzscheana é incomensurável, optámos

por uma bibliografia dominada pela recepção francesa, correndo o risco de omitirmos leituras

estimulantes e arriscarmos colar-nos demasiado a certas perspectivas, esquecendo outras

linhas de investigação. Parece justo pensar-se que Nietzsche, tão polimorfo, admite, favorece

até a multiplicidade de pontos de vista. E é também natural haver uma espécie de tolerância

especial em relação às controvérsias que suscita (por vezes com bons resultados filosóficos),

mas a recepção nazi envenenou parte desta possibilidade. A obra de Nietzsche, lida apressada

ou instrumentalmente, pode alimentar as piores ideologias fascistas e racistas da “vontade de

8 Incluímos nela os três autores a quem dedicamos cap. inteiros, mas também os muito cit. Pierre Klossowski,

Maurice Blanchot, Georges Bataille, Jean Wahl, Jean Granier, Pierre Boudot, Sarah Kofman, Albert Camus, François Warin, Mathieu Kessler, Michel Haar, e outros menos recenseados. Ao inverso, afastamo-nos um pouco da via mais analítica de Patrick Wotling (apesar das suas teses serem bons contrapontos e o Nietzsche et le

problème de la civilisation – (1995), Paris: P.U.F., 1999 – um importante livro de filosofia; é também por isso

que usaremos poucas vezes os Nietzsche-Studien (a excepção mais relevante é Wolfgang Müller-Lauter) porque, apesar da abertura editorial que asseguram ter, parecem privilegiar abordagens mais analíticas. Sobre a possibilidade de se pôr Nietzsche no campo analítico, leia-se a inteligente argumentação de Steven D. Hales e Rex Welshon, a partir do conceito de “strong perspectivism” justificam que uma análise pode ser verdadeira num ponto de vista e falsa noutro. (Cf. Nietzsche’s Perspectivism, Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 2000, p. 3-9)

9 Nada que ele não tivesse previsto. Em Assim Falava Zaratustra I, “Vom Baum am Berge”, avisa-nos de

que muitas almas só se descobrem depois de inventadas (“erfindet”).

10 Cf. Gérard Genette, Palimpsestes. La littérature au second degré, Paris: Seuil, 1982. Julia Kristeva, Semeiotike. Recherches pour une sémanalyse, Paris: Seuil, 1969.

(9)

domínio”.

11

Por outro lado, com Peter Sloterdijk: “O tempo em que a cultura era amável

parece ter chegado ao seu fim.”

12

Um agon sem nobreza prescreve códigos de relacionamento

entre escolas e correntes filosóficas, tudo parece reduzir-se a uma guerrilha que cuida mais da

defesa do grupo do que de pensar criticamente os preconceitos que parasitam até as ideias

filosóficas mais brilhantes, parece que nos afastamos da boa polémica filosófica. Assim se

desvirtua muitas vezes o tentador (Versucher) que foi Nietzsche, o seu combate aos antigos e

novos dogmatismos. Render-lhe homenagem é, ao mesmo tempo que se interpreta o que

pensou, lançá-lo um pouco mais além do nosso bem e mal, termos que definem, antes de

mais, os valores de uma época, o apego ao verdadeiro e ao bem de um tempo e de uma

cultura.

Tomaremos Derrida, Foucault e Deleuze simultaneamente como continuadores de

Nietzsche, embora nos seus próprios termos, e filósofos com pensamento e obra próprias.

Cada um deles, nem sempre coincidindo nas teses e argumentos (tendo até alimentado

disputas filosóficas entre si), formulou o seu horizonte nietzscheano, demorando-se mais num

ou noutro campo, realçando um ou outro problema, usando uma ou outra chave interpretativa,

conceitos, métodos, visões… para, a partir daí, tecerem filosofias pessoais que por vezes se

afastam bastante de Nietzsche.

Estudar a obra destes três pensadores requer um misto de temeridade e ingenuidade.

Só estimulados por uma porção de coragem nietzscheana, que a custo conseguimos obter, e

alimentados a cada passo pela beleza e profundidade filosóficas dos escritos teremos alento,

por vezes sem o brilho exigido, para concluir o nosso trabalho. Haverá, por isso, prevemo-lo,

algumas incorrecções, hesitações e interpretações frouxas, mas também o cuidado de evitar a

sobranceria. Instigados pelo respeito, tudo faremos para os homenagear no que escrevermos.

Articulando, nomeadamente, imperativos metodológicos com a abertura a um pensamento

relativamente nómada, excêntrico, à margem de hábitos e ideias fixadas, recebidas ou

construídas, rejeitando, em parte, vias de desenvolvimento previsíveis. Regressaremos à

filosofia Crítica, mas mais abrangente do que as de Kant, Marx ou Freud isoladamente,

depurada de doutrinamentos (que numa leitura apressada parecem, paradoxalmente, preencher

parte da obra de Nietzsche). Queremos ensaiar outros percursos de interpretação, evitando

tanto quanto possível a luminosidade, que por vezes cega, dos grandes consensos ou das

11 Maurice Merleau-Ponty resume bem a catástrofe nazi: “Ce qu’il faut reprocher aux idéologies nazies, ce

n’est pas d’avoir rappelé l’homme au tragique, c’est d’avoir utilisé le tragique et le vertige de la mort pour rendre un semblant de force à des instincts pré-humains.” (Sens et non-sens (1966), Paris: Gallimard, 1996, p. 83)

12 O Sol e a Morte – Diálogos com Hans-Jürgen Heinrichs (2001, Die Sonne und der Tod. Dialogische Untersuchungen, Suhrkamp Verlag), trad. Carlos Oliveira, Lisboa: Relógio D’Água, 2007, p. 238.

(10)

modas;

13

obstando à vertigem discursiva que arrasta os textos para a arena dos debates

estéreis, ou os vota ao esquecimento. E como a criação, sem acções demiúrgicas

espectaculares, está apenas um pequeno passo antes da recepção, como não se pensa ex nihilo,

seguiremos uma ética da leitura que reconfigura e secundariza os nossos interesses para

receber os textos com extrema atenção. Não que procuremos a qualquer custo a pretensa

Verdade que neles se encerra, mas evitaremos treslê-los para os adequar a um qualquer

designo pessoal.

14

Trata-se de uma normatividade sem normas, um livre e imprescindível

pensar amigo dos textos (espécie de erótica hermenêutica). Não nos socorreremos, pois, de

uma tecnologia hermenêutico-cibernética capaz de traduzir inequivocamente, se tal for

possível, a intenção dos textos.

15

Se em Kant a vontade que coincide totalmente com as leis

da moralidade é uma utópica “vontade santa”

16

; aqui, a leitura que quisesse apreender, usando

certas leis hermenêuticas, a totalidade do sentido seria também um acto sonhador, acessível

apenas num novo, mas agora perfeito, Discurso do Método. Tal como a “república dos

espíritos livres” nietzscheana é uma “comunidade de liberdade”, também os imperativos da

nossa ética da leitura regulam práticas de leitores autónomos. Não se trata tanto, pois, de uma

metodologia, quanto de princípios que asseguram a independência da leitura em vez de a

constrangerem (evitando o circunstancialismo, particularismo e dogmatismo hermenêuticos).

Ao mesmo tempo, estabelece-se um pacto de generosidade entre autor e leitor, aquele não

deve alienar este, o leitor, por sua vez, não deve desobrigar-se do autor (malgré la “mort de

l’auteur”).

Assim, agiremos sob duas condições: a) ler bem não obriga a uma fidelidade absoluta

ao texto, em que a leitura seria somente uma espécie de redundância da escrita, o leitor

encontraria e coincidiria totalmente com as “pegadas na neve” do escritor.

17

Tal é, aliás,

inverosímil, ler é sempre interpretar. Apesar disso não significar, como dissemos, que todas as

interpretações sejam válidas, há-as incertas ou irrelevantes tanto quanto precisas e pertinentes.

13 “Um filósofo é um homem que experimenta, vê, ouve, suspeita, espera e sonha permanentemente coisas

extraordinárias; que é atingido pelos seus próprios pensamentos como se viessem do exterior, ou como se viessem de cima ou de baixo...” (Para Além Bem e Mal, §292)

14 Concordamos com Steven Hales e Rex Welshon quando escrevem (sobre Nietzsche, alargando-o a outros

autores): “we do not think that there is any such thing as the ‘ultimate’ Nietzsche, or the perfect interpretation.” (Nietzsche’s Perspectivism, cit., p. 10)

15 Por “texto” entendemos, por uma lado, o que Paul Ricœur disse em Du texte à l’action, Essais d’herméneutique II: “tout discours fixé par l’écriture, et selon cette définition, la fixation par l’écriture est

constitutive du texte lui-même”. (Paris: Seuil, 1986, p. 137-138) Por outro lado, abrimos a noção a novos elementos sobre os quais podem recair as interpretações, sem entrarmos numa espécie de semiótica geral. Como exemplo, pedindo novamente ajuda a Ricœur, quando refere a novidade hermenêutica de Freud, “tout ensemble de signes susceptible d’être considéré comme un texte à déchiffrer, donc aussi bien un rêve, un symptôme névrotique, qu’un rite, un mythe, une œuvre d’art, une croyance.” (De L’interprétation – essai sur Freud, Paris: Seuil, 1965, p. 35)

16 Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Lisboa: Edições 70, 1992, p. 84/BA86.

(11)

Mas partilhamos o princípio de que a filosofia está isenta, a sua história mostra-o bem, de

uma leitura correcta. b) Evite-se, no entanto, num certo antagonismo com a ideia anterior, o

‘jogo livre’ da linguagem no vazio, i.e., uma interpretação que seja a reescrita soberana do

texto original, desaparecendo, deste modo, sob a pena dos comentadores.

De qualquer forma, mesmo sendo importante, uma ética da leitura não conseguiria

suportar sozinha o trabalho hermenêutico que pretendemos realizar. Tivemos de construir um

resguardo metodológico, afinado ao longo do trabalho, para não nos perdermos numa

disseminação interpretativa incontrolável. Assim, a) em primeiro lugar, entrelaçado com a

ética de que vimos falando, queremos manter-nos fiéis aos textos originais, examinando com

rigor as obras de Nietzsche, Derrida, Foucault e Deleuze. Se, de acordo com a tese geral que

esperamos vir a demonstrar, não há qualquer hermenêutica do sentido, resultante do postulado

que avança a possibilidade de se recuperar o sentido intacto e unívoco dos textos, isso não

tolera, porém, um relativismo hermenêutico autorizando cada leitor a criar os sentidos que

bem entendesse. Ser-lhe fiel, é lê-los e interpretá-los dentro das margens, nunca fixas, é

verdade, de certos sentidos. b) Depois, pretendemos, sobretudo com Nietzsche, evitar o

desenvolvimento de linhas de interpretação baseadas na auto-suficiência de um ou outro

fragmento discursivo. Faremos com os conceitos nietzscheanos mais importantes um trabalho

de filologia, discutindo a diversidade de sentidos que os preencheram ao longo da sua vida

textual. c) Finalmente, usaremos em bastantes casos uma espécie de comentadores residentes

para perceber melhor os autores principais, noutros casos, menos frequentes, como

“argumento de autoridade”. Isso será muito mais evidente em Nietzsche, convocados Gilles

Deleuze (também para Foucault), Eugen Fink, Peter Sloterdijk, Pierre Klossowski, Maurice

Blanchot e Alan D. Schrift. Esta selecção não foi arbitrária, traduz a linha de recepção que

nos orienta: privilégio do pragmatismo sobre a fenomenologia ou analítica filosóficas.

18

Na

medida em que, com Richard Rorty, acreditamos que grande parte do campo metafísico foi

substituído pelo dos efeitos.

19

Para dar um pano de fundo aos três pontos anteriores, recuperamos de Jean

Starobinski o conceito de trajecto crítico (trajet critique), fio condutor entre uma recepção

ingénua e uma compreensão englobante, uma leitura regida pela lei interna do texto e uma

reflexão autónoma face a ele e à sua história. A crítica como “trajecto” deve ser, diz

Starobinski, uma “escola da atenção”, na qual o intérprete está obrigado a olhar criticamente

18 Neokantismos, preocupados com o desenvolvimento da teoria do conhecimento kantiana, e fenomenologia,

sobretudo Husserl, desvalorizam Nietzsche, acham risível o lirismo de Assim Falava Zaratustra, o seu pathos visionário, estilo assistemático. Como poderia Nietzsche caber, perguntam-se, na ideia de uma “filosofia como ciência de rigor”?

(12)

as suas próprias observações. “Atenção” que nunca, por mais criteriosa que seja, esgotará os

sentidos dos textos, mantendo-se vivos justamente porque resistem, discreta ou

intempestivamente, à pretensão de elucidação integral (eles não se deixam demonstrar more

geometrico). Assim, a finalidade da interpretação não é a de “compreender a obra em função

de um sistema, de uma ideologia ou de um qualquer saber.” Pelo contrário, trata-se de

experimentar a densidade da obra, ou do texto, não para o explicar minuciosamente, mas para,

a partir dele, iluminar parte do que se mantém na obscuridade, usá-lo para compreender

melhor o homem e o mundo.

20

Um dos problemas recorrentes nos estudos nietzscheanos é a utilização do seu

Nachlass (desigual em si mesmo): a) essencial para Heidegger, Jaspers, Kaufmann, Deleuze,

Danto, Müller-Lauter, Klossowski ou Richard Roos (onde pensam encontrar o verdadeiro

pensamento de Nietzsche; neles, diz Heidegger, falou de coração aberto)

21

; b) desvalorizado,

e.g., por Karl Schlechta ou Aléxis Philonenko;

22

c) usado documentalmente, como se se

tratasse de mais uma obra, por outros. Além disso, é citado a partir da obra-ficção Der Wille

Zur Macht por alguns (nomeadamente Deleuze e parte da escola anglo-saxónica actual, neste

caso por facilidade bibliográfica), com todos os riscos que daí decorrem; ou sem articularem

suficientemente o póstumo com o publicado (muitos dos comentadores). Se, no nosso

entendimento, o Nachlass contém informação indispensável, convém porém definir regras

metodológicas de utilização, principalmente: a) preferir a edição crítica de Colli e Montinari,

a mais fiel, até hoje, aos seus manuscritos; b) situar cronologicamente os textos e indagar

acerca das suas proveniências; c) indicar, quando isso é suficientemente claro, se se trata de

um esboço mais tarde utilizado nas obras publicadas, situando-o na sua linha genealógica de

desenvolvimento; c.1) julgamos que os de 1887/88 são mais importantes porque é verosímil

que muitos fossem escolhidos para obras futuras;

23

c.2) mantemo-nos na tradição ao elucidar

a partir do Nachlass os conceitos de vontade de potência e eterno retorno.

20 Cf. Jean Starobinski, L'œil vivant II : La relation critique, Paris: Gallimard, 1970, p. 13 e ss. Sobre a

função libertadora dos livros, escreve Sartre: “chaque livre propose une libération concrète à partir d’une aliénation particulière.”(Qu’est-ce que la littérature? (1948), Paris: Gallimard, 1989, p. 78)

21 Ver, e.g., de Richard Roos, “Règles pour une lecture philologique de Nietzsche”, in Nietzsche Aujourd’hui?, vol. 2, (“Passions”), Paris: U.G.E., 1973, p. 293.

22 Schlechta, Der Fall Nietzsche, Munich, Hanser, 1954; Philonenko, Nietzsche. Le rire et le tragique, Paris:

Le Livre de Poche, 1995, p. 4.

23 Sobre este assunto, ver de Christoph Cox Nietzsche, Naturalism and Interpretation, Berkeley: University

of California Press, 1999, p. 10-11. O comentador, por esta e outras razões, considera apropriado o uso do

Nachlass: “I consider it not only legitimate but wise to draw on the Nachlaß and The Will to Power as

supplements to Nietzsche's published work.” Convoquemos também a célebre citação de Heidegger: “Die eigentliche Philosophie bleibt als Nachlass zurück.” (Nietzsche I, Pfullingen: Neske, 1961)

(13)

A tradução coloca outro problema imenso.

24

Primeiramente, porque o estilo e as

técnicas da escrita nietzscheanas são inimitáveis: o uso de aforismos ou de fragmentos

relativamente curtos, adequados à condensação do seu pensamento, marca o ritmo da leitura

(pausas e acelerações) e as modulações de ênfase. E.g., o travessão (Gedankenstrich),

bastante usado, é um sinal de pausa, preparação para o final triunfante da ideia. Ora, em

português ele não tem essa função e, deste modo, a maioria das traduções suprime-o; assim,

porque não há um substituto gráfico-semântico, perdem-se importantes indicações de leitura.

Nós optaremos por mantê-lo, única forma de reproduzir alguma da intenção inicial. Os

itálicos e a grafia expandida constituem outro problema. A edição crítica Colli/Montinari

conserva as técnicas editoriais originais de expansão morfológica (sinal de destaque). Muitas

traduções em língua inglesa, francesa e portuguesa optaram pelo itálico. Mas na nossa

tradição filosófica, o itálico, além de destacar, indica também conotação. Deste modo,

mantivemos nas citações do original a expansão, traduzida pelo itálico em português. Outra

questão, ainda mais geral, está nas maiúsculas, com critérios bem diferentes entre o alemão

(todos os substantivos) e as restantes línguas europeias maiores. Neste aspecto, é preciso ver

caso a caso e confrontar o original, em nota de rodapé, com a tradução. Por outro lado,

Nietzsche utiliza a ortografia oitocentista, entretanto bastante alterada; além disso, cria,

sobretudo a partir de pequenos desvios morfológicos, alguns neologismos. Em ambas as

situações, seremos fiéis ao que está impresso nas obras que citaremos. Em segundo lugar, não

dominamos suficientemente a língua alemã para traduzirmos Nietzsche autonomamente, ao

contrário do que sucede com os autores franceses. Fá-lo-emos, pois, com a ajuda das edições

portuguesas das Obras Escolhidas da Relógio D’Água (desiguais no estilo e precisão, apesar

de representarem um importante trabalho de tradução) e das Œuvres philosophiques

complètes (Gallimard), a que se juntam algumas edições inglesas. E acreditando que as

línguas não são totalmente heterogéneas, há com certeza, como pretendia Walter Benjamin,

25

uma familiaridade a priori entre elas (para lá das relações históricas, de consenso e dissenso,

uma linguagem adâmica modera as divergências linguísticas),

26

condição de tradutibilidade

24 Diz Richard Roos: “La traduction nous prive presque toujours de la surface du mot, de son contact

immédiat. Or on sait quelle importance Nietzsche attachait à ce qu’il a appelé un jour, par une création verbale dont il s’excusait, die Hautlichkeit, ‘l’épidermicité des choses’.” (“Règles pour une lecture philologique de Nietzsche”, in Nietzsche Aujourd’hui?, vol. 2, (“Passions”), cit., p. 295-96)

25 Walter Benjamin, “Die Aufgabe des Übersetzers”, in Gesammelte Schriften, IV, Frankfurt am Main:

Suhrkamp Verlag, 1980, p. 1, 9-21.

26 Benjamin criticou a concepção mimética da tradução por conduzir a linguagem a uma redutora

convencionalidade de signos. Como refere Laurent Lamy, “l’arrière-plan de la pensée de Benjamin sur le langage est une forme postromantique de messianisme fondé sur un nominalisme mystique. Il introduit donc ici une mimésis plus profonde, une mimésis ‘cachée’ qui renoue avec la problématique de l’Innigkeit dans ses deux dimensions de distance et de proximité : celle d’une ‘ressemblance non sensible’.” (Recensão de L’Âge de la

traduction. ‘La tâche du traducteur’ de Walter Benjamin, un commentaire, Érudit.org, 23, 2 (2010), p. 228.

(14)

dos textos filosóficos ou literários. Ao mesmo tempo, estamos seguros que encerram sentidos

quase inexpugnáveis. Não apenas por serem outras línguas, mas a mesma de outra época

(Nietzsche escreve num jogo de linguagem do séc. XIX que já não é inteiramente reconhecido

pelos alemães actuais).

27

Além disso, perdeu-se parte da complexidade das relações

semióticas que manteve com a cultura viva, erudita e popular, do seu tempo.

28

Certas reservas

ou objecções, tantas vezes construídas com ironia, filiações intelectuais, paráfrases...

29

dificilmente se revelarão. Há, por tudo isto, um Nietzsche que se furtou à nossa investigação

(como há um Derrida, um Foucault e um Deleuze), sinal da sua sofisticação e das nossas

limitações. Ainda bem, explicar absolutamente um autor, se tal fosse possível,

30

arruinaria o

seu devir vital. Conhecendo as dificuldades, teremos presente o que George Steiner diz em

Depois de Babel: se é verdade que a fábula de Borges prova que “o próprio fac-símile é uma

ilusão quando o tempo passou”, “O que a tradução costumada procura fazer é ‘produzir o

texto que o poeta estrangeiro teria escrito se trabalhasse na nossa própria língua hoje, ou mais

ou menos hoje’.”

31

Devemos ainda justificar certas opções de citação. Usaremos siglas para algumas das

obras do autor principal de cada um dos quatro grandes capítulos, as mesmas obras serão,

porém, citadas por extenso nos outros (limitando a proliferação de siglas). No caso de

Nietzsche, a citação por extenso será em português (os títulos da maioria dos seus livros já

pertencem ao nosso património filosófico), manteremos, contudo, neste e no caso das siglas, a

citação original dos capítulos de Assim Falava Zaratustra, Crepúsculo dos Ídolos e Ecce

Homo, visto a terminologia não estar ainda suficientemente fixada. Prolongamos o hábito de

27 Desviamo-nos agora de Benjamin, passamos de uma ontologia para uma genealogia. Onde, mutatis mutandis, se situa Umberto Eco, pelo que escreveu em Dire Quasi La Stessa Cosa (Milano: Tascabili Bompiani,

2003/2010). A tradução só consegue chegar a “quase a mesma coisa”, e, para isso, é necessário conhecer a língua que se traduz, mas também a cultura, maneira de confirmar que as traduções automáticas são ineficazes. Derrida, por sua vez, em O Monolinguismo do Outro, diz que “Nada é intraduzível num sentido, mas num outro

sentido tudo é intraduzível, a tradução é um outro nome do impossível.” (Cit. por Fernanda Bernardo, “Nota

sobre a Edição e Tradução Portuguesa”, in Jacques Derrida, Vadios, trad. Fernanda Bernardo, Hugo Amaral e Gonçalo Zagalo, Coimbra: Palimage, 2009, p. 13) Por isso, Fernanda Bernardo sintetiza o problema da tradução como um desafio permanente, “um compromisso possível, mas também sempre irremediavelmente imperfeito entre dois idiomas […] partidários que somos de traduções fidelíssimas na sua inevitável infidelidade”. (Idem, p. 13-14, 17)

28 Como refere Herbert Marcuse: “The stars which Galileo observed were the same in classical antiquity, but

the different universe of discourse and action-in short, the different social reality-opened the new direction and range of observation, and the possibilities of ordering the observed data.” (One-Dimensional Man, cap. 6 “From Negative to Positive Thinking: Technological Rationality and the Logic of Domination”. Consultado a 22 de Agosto de 2013 em http://www.marcuse.org/herbert/pubs/64onedim/odm6.html)

29 Muitos Fragmentos Póstumos, demonstraram-no os alunos de Montinari, fazem referência a livros que

Nietzsche lia, por vezes transcrições literais, outras vezes resumos, outras vezes notas a partir das quais desenvolvia as suas próprias ideias.

30 Não o é segundo os ensinamentos de Lao Tzu: “O Tao que pode ser expresso não é o verdadeiro Tao”.

Também não vemos Nietzsche, inversamente, como uma espécie de “Faca Suíça”, martelo filosófico disponível para qualquer uso.

31 Depois de Babel. Aspectos da linguagem e tradução (1975, After Babel. Aspects of Language & translation, Oxford Paperbacks), trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D’Água, 2002, p. 376-77.

(15)

citar Nietzsche pelos §, totais ou particularizados em capítulos, os Fragmentos Póstumos

(Nachgelassene Fragmente) pelo ano, seguido do caderno e número de fragmento entre

parêntesis rectos. Mas acrescentaremos, quando transcrevermos o texto em alemão, a KSA

(Kritische Studienausgabe de Colli/Montinare) com volume e número de página. Nas cartas

também poremos a KSB (edição crítica dos mesmos editores para a Sämtliche Briefe).

II

A nossa Tese pretende estudar a possibilidade de se usar uma hermenêutica do sentido

em quatro autores que, entre muitas outras coisas, pensaram sobre modalidades da recepção

filosófica. Abrimos com Friedrich Nietzsche, inspirador de parte da filosofia contemporânea,

começando por investigar se a sua filologia conduziu a uma hermenêutica do sentido. O ponto

seguinte abordará a sua relação, ambígua e iconoclasta, com a filosofia, ponto de ruptura

epistemológica (embora em certos aspectos ele seja um eterno filólogo) e forma de conjurar a

obsessão historicista da época. Optará, sabemo-lo, por uma “filosofia de artista”, opondo-se

ao essencialismo platónico ou transcendentalismo kantiano. Ao mesmo tempo, radicalizará o

projecto das filosofias críticas da Aufklärung, desmistificando os resquícios preconceituosos,

humanistas e teístas, das ideologias da Verdade

32

, Identidade e Sujeito. Os novos filósofos

serão experimentadores (Versucher) e verídicos (parresiastas), desenvolvendo uma

“epistemologia do talvez (vielleicht)” à parte dos velhos racionalismos, instaurando um corpo

(Leib) pensante. Analisaremos pacientemente os conceitos nucleares de eterno retorno,

sobre-homem (Übermensch), articulado com o da morte de Deus, e vontade de potência (Wille zur

Macht). Em todos eles está uma linha de fuga que leva e se conclui na interpretação, nada

existe para lá da interpretação, é isso, aliás, que constitui a essência da vontade de potência.

Existindo interpretações elevadas e baixas, o eterno retorno e o sobre-homem desenvolvem-se

à volta de um desafio ético que obriga a interpretar de outra forma, já não procurando a

verdade ou o bem, mas a afirmação do que existe (amor fati e suas variações). Além disso,

Nietzsche fez uma cuidadosa e ampla auto-recepção, nunca abdicou de se reler e reinterpretar,

deixando-nos esse supremo exemplo que é Ecce Homo. Esta investigação servirá para testar a

possibilidade de uma hermenêutica do sentido, mas adivinha-se o fracasso de tal

eventualidade, motivando-nos a reflectir sobre uma “arte da interpretação”.

32 Para Richard Rorty, posição discutível, o início da “filosofia ironista” surgiu com Hegel: “o jovem Hegel

rompeu com a sequência Platão/Kant e iniciou uma tradição de filosofia ironista que tem continuação em Nietzsche, em Heidegger e em Derrida. São estes os filósofos que definem os seus resultados pela relação com os seus antecessores e não pela sua relação com a verdade.” (Richard Rorty, Contingência, Ironia e

(16)

Com Jacques Derrida, propomo-nos investigar as “margens da filosofia”, convictos de

que é totalmente indecidível a postulação que separa um “dentro” de um “fora” da filosofia ou

um “centro” e uma “periferia”. A sua “différance” define uma nova teoria das relações, isenta

de uma polarização fácil entre centralidade e marginalidade, elas são intercambiáveis, ou

então, um agon entre discursividades heterogéneas faz emergir as forças desconstrutivas que

residem no poder, vertiginoso, de cada texto se arruinar a si próprio, renascendo por vezes das

cinzas. Por conseguinte, é inconsequente sustentar a ideia de um sentido perene, e

recuperável, assegurando a ontologia dos textos. Tanto mais que no início está a escritura, um

texto nunca traduz o logos metafísico determinado pelo sentido que projecta, mas um trajecto

infindável de escrita e reescrita ou de suplementaridade (iteração). Daí a impossibilidade de

regressarmos à origem, só há rastros de rastros. Dentro dos textos, em permanente

reconstrução (é também disso que trata a desconstrução), os termos que os compõem são

igualmente indecidíveis, nenhuma etimologia ou genealogia permite recuperar o seu sentido

original, desvanecem-se os referentes ou significantes. Como nos mostra o termo pharmakon,

tanto mais sintomático quanto opera no interior do pretenso idealismo platónico: todas as

palavras são indecidíveis, têm um pendor disseminante que as impede de se ligarem a

referentes fixos. Derrida pede-nos que leiamos a tradição filosófica de outra forma, não já

escorados numa hermenêutica do sentido, acreditanto na acessibilidade da verdade textual,

mas no pressuposto de que os textos se fazem numa reescrita ad infinitum, decidindo cada

leitor o processo de suplementaridade a levar a cabo.

33

Por outro lado, só ilusoriamente se

pode sair dos textos, nada existe para lá deles, tudo é texto (enquanto escritura). A

controvérsia com John R. Searle sobre a leitura correcta de John Austin mostra que somente

neles, mas na forma como são interpretados, se joga a questão da inteligibilidade. Searle

critica o perspectivismo onde isso desemboca. Acusado por Habermas de promover o

obscurantismo, de rejeitar a herança kantiana da Aufklärung, Derrida riposta que, como na

Democracia, a Crítica filosófica é um work in progress, que ninguém, referindo-se

especialmente a Habermas, se pode declarar o seu mais puro e leal herdeiro. Abrindo então

para uma racionalidade abrangente que não se dogmatize a partir de um certo plano

transcendental erigido em filosofia universal. Em consequência, Derrida, como pensador mais

do que como filósofo, proporá, no seu plano de desconstrução geral, tornar o centro

tradicional da filosofia permeável àquilo que expulsou para as margens, contribuindo para a

33 Jean Granier abre Le problème de la Vérité dans la philosophie de Nietzsche com a ideia, recorrente ao

longo do seu comentário, de que os pensamentos maiores vivem quer das contradições que superam, quer das que não superam. Estas constituem a margem de desenvolvimento da doutrina, permitindo que ela continue a crescer mesmo depois da morte do seu autor. (Paris: Seuil, 1966, p. 11)

(17)

sua reinvenção. A desconstrução, algo que na verdade, de uma ou outra forma, com esta ou

outra designação, sempre habitou a filosofia, potencia as forças renovadoras que residem no

interior dos textos, desmontam os sentidos dominantes, resgatando dos seus escombros

alternativas vigorosas. Ora, esta visão obriga a reconsiderar de cima a baixo a questão da

recepção filosófica. É isso mesmo que Derrida fará na sua leitura (desconstrutora) de

Nietzsche, demonstrando que, no limite, todos os textos nietzscheanos são indecidíveis, mas

como apesar disso têm sentidos recuperáveis como rastros, retomados e reescritos, já que

“falta sempre reescrever Nietzsche”. Desta forma, combatem-se as teorias mais ortodoxas do

autor e da assinatura/copyright; partilhando a descrença pós-moderna na figura do sujeito

soberano, Derrida assegura que o processo de escritura, impressão gráfico-metafísica de

sentidos, ultrapassa a mera decisão autoral. Convoca-se assim o leitor para a reescritura,

corresponsabilizando-o activamente pelos sentidos dos textos. Por tudo isto, é improvável que

Derrida defenda uma hermenêutica do sentido, preferindo, acompanhado por Nietzsche, a

partir de meados dos anos 90, uma “filosofia do talvez”.

Michel Foucault escreveu frequentemente fora das heranças filosóficas mais

canónicas, indispondo aqueles que zelavam, presos ao destino e por vezes num sacrifício

trágico de si mesmos, por um eros filosófico exclusivista. Foucault defende, como Derrida

aliás, que os epígonos também compõem a herança, embora a desloquem para novas

vitalidades. Assim, só é relevante incluí-lo ou excluí-lo do mundo filosófico

(compreendendo-se que (compreendendo-se insira no dos colegas historiadores) (compreendendo-se (compreendendo-se qui(compreendendo-ser reflectir mais uma vez sobre os

limites da própria filosofia. E ele é com certeza útil nesse trabalho imprescindível de se

retomar o problema do seu lugar e alcance, de prosseguirmos a longa investigação que a partir

de Nietzsche (precursor composto por alguns dos seus receptores, reescritores conceptuais de

muito do que pensou) questionou a possibilidade de se constituírem filosofemas universais.

Chegando talvez à conclusão de que ela se desenvolve sobretudo numa “espécie de

jornalismo radical”, descrevendo os acontecimentos históricos dentro do tempo, com o

objectivo de influir nesse mesmo tempo (viver em filósofo, agir filosoficamente sobre o social

e o político). Uma filosofia-diagnóstico atenta à sua performatividade. Será isto ainda

filosofia? Veremos, mas recordemos que, para ele, a “filosofia nunca está actualizada”,

alojada num modo de ser que gentilmente ou intempestivamente trouxesse ao “caminho

certo”, subjugando-os, os pensadores desviantes e louvasse os burocratas da exactidão.

Foucault tentará desde muito cedo renová-la a partir de Nietzsche e Kant, uma estranha díade

que, no entanto, preparou a sua permanência no projecto Crítico, embora em moldes

diferentes dos ismos das escolas preponderantes. Misturou-o com a condição ética geral

(18)

nietzscheana da Überwindung e da Selbstüberwindung, impulso, quase cosmológico, para a

superação dos entes, instaurando-se uma instabilidade beligerante, já que tudo pode ser outra

coisa, mesmo, e talvez sobretudo, a própria filosofia. É por isso que se volta a questionar a

ideia de “sujeito”, figura preponderante dos antropologismos transcendentais (onde cabe a

perspectiva kantiana). Com isto, repensa-se a ontologia do pensamento, começando por

abandonar a solução datada do cogito. Foucault, que se considerava apenas um “intelectual

específico”, conhecedor parcial da realidade, incapaz de falar pelos outros, de ser o porta-voz

do proletariado ou da necessidade lógica/metafísica, não cessará de escrever, directa ou

indirectamente, sobre o exterior do pensamento, i.e., sobre um pensar que acontece fora da

soberania do sujeito. Tanto mais que este é o resultado sempre incompleto de subjectivações,

o sujeito vai-se fazendo, pelo “cuidado de si” ou de outros processos, ele não é o centro

imóvel e imperecível, sem história, do pensar. Do mesmo modo, o filósofo nasce enquanto tal

a partir de decisões performativas mais do que do desenvolvimento de procedimentos

académicos ou de uma arte própria à filosofia. O filósofo não desvela a Verdade, age em

coerência com as suas verdades, é um parresiasta trabalhando sobre si mesmo para assumir a

sua veracidade e obter linhas de realização hedonistas. Leremos com especial cuidado

L’Archéologie du savoir para testar a compatibilidade do método arqueológico com uma

hermenêutica do sentido. O seu trabalho sobre a figura dos “enunciados” e das “formações

discursivas”, devedor de Heidegger e de um estruturalismo à la Dumézil, está inteiramente no

“tournant linguistique” do seu tempo. Pelo seu campo conceptual, compôs um texto que

confirmará a sua pertença às teorias da interpretação: saber se o mundo está cheio de sentidos

que basta descobrir ou se é preciso a cada momento, até certo ponto contra Les Mots et les

Choses, negociar e experimentar sentidos que se vão desvanecendo por cansaço próprio ou

desvitalizados por outros mais cintilantes. Num mundo construído por acontecimentos em

sucessão agónica, interligados mas sem formarem uma teia rígida que ditaria a sua essência. É

deste modo que a tarefa da filosofia, no seu uso mais epistemológico, trata de constituir

interpretações infinitas. Foucault pensou isto a partir de Nietzsche, Freud e Marx, instigadores

da suspeição irredutível sobre os mitos essencialistas. Vendo eles a realidade como resultado

de ininterruptas interpretações, a História

34

e a filosofia não devem buscar, pois, a origem das

coisas, mas a sua proveniência, bem como o valor e sentido que genealogicamente foram

adquirindo.

Gilles Deleuze foi o mais filosófico dos três autores nietzscheanos que estudaremos,

notável leitor da tradição, professor reconhecido (no laboratório, político e pedagógico, de

(19)

Vincennes), inovador incansável, ousou escrever no seu ocaso um livro sobre a filosofia

(opondo-se ao descomprometimento meta-filosófico derridiano/foucaldiano), esplendor,

enquadramento e articulações com a arte e a ciência. Esta é uma das razões pela qual figura

no nosso trabalho, a outra é a de ser um excepcional leitor de Nietzsche (o seu Nietzsche et la

philosophie é incontornável) e de se ter confrontado sistematicamente com os exteriores da

filosofia, buscando na literatura, no cinema, na música ou no teatro estímulos que o

obrigassem a pensar (para ele, só se pensa quando se é forçado a tal). Na primeira fase da sua

vida filosófica, Deleuze interessou-se apaixonadamente pelo problema do pensamento (que,

aliás, recuperará no seu último livro), procurando responder às perguntas sobre “o que

pensa?” e “como se pensa?” No seguimento disto, veremos que usou Nietzsche e Proust para

exercer uma profunda crítica ao “pensamento representativo” e propor, em alternativa,

sobretudo em Différance et répétition, uma imagem do pensamento não codificada; assente

em dissensos, intensidades, fulgurações, ligações ao “exterior”... em vez da tradicional linha

kantiana da colaboração entre faculdades. Confrontaremos este novo pensamento – que já não

deseja a verdade, preferindo o erro fecundo à certeza estéril – com a possibilidade de uma

hermenêutica do sentido. Por aquilo que indicamos agora, parece evidenciar-se que o

pensamento “sem imagem” de Deleuze já não aceita ser um receptáculo relativamente passivo

de sentidos pré-definidos. Radicalizando a redefinição do campo epistemológico, com

repercussões antropológicas e políticas, abordaremos, naquilo que é considerada a segunda

fase deleuziana, em parceria filosófica com Félix Guattari, a passagem da interpretação, ainda

sujeita a determinações gerais, à experimentação, mais incondicionada. Será a partir de Franz

Kafka que edificarão uma teoria da criação e recepção rizomáticas. Nos rizomas, as ligações

são suficientemente ténues para consentirem desvios, reconfigurações que apresentam os

problemas de outra forma, redobrando as forças criadoras, visto que os problemas resistem às

soluções, sendo, por isso, mais importantes. Veremos também como se desenha uma

hermenêutica ou um livro rizomáticos e como se pode relacionar sentido e rizoma. Dentro do

Maio 68, no que obrigou a pensar de novo, sem qualquer enquadramento para ser apanhado

na sua pureza de acontecimento, “Pensée nomade” e Anti-Édipo formam, muito a partir de

Nietzsche, duas setas que se complementam na abordagem desse terramoto político, existindo

principalmente nos planos moral e psicanalítico (por isso, a intelectualidade dominante da

esquerda política francesa não percebeu que era diferente de uma rebelião antiestatal).

Tentaremos conjugar os dois textos numa relação “aparalela”, julgamos estar autorizados a

esta experimentação por tudo o que Deleuze disse sobre o direito, e o dever, de “roubarmos” e

“usarmos” os livros, mais ou menos sagrados, da História da filosofia. Na abordagem a Mille

(20)

referências e máquinas, algumas de guerra, veremos se se pode ligar um nomadismo geral à

possibilidade de sentidos que, depois de se fixarem, seriam recuperados por neófitos à procura

de verdades autoritárias, i.e., se pode haver uma hermenêutica do sentido quando a realidade é

constituída por “mil planaltos”. Finalmente, dedicaremos bastante espaço ao que é a filosofia,

forma que Deleuze e Guattari encontraram, no seu último livro conjunto, para entrar na velha

arena, relembrando que a filosofia foi sempre essencialmente uma questão de pensamento,

não de “pensar em”, mas de “pensar contra” ou de “pensar com”; não de “pensar

sequencialmente”, mas de “pensar estratigraficamente”. Tudo isto encenado numa poderosa

reinvenção do campo conceptual que a escora (da “geofilosofia” ao “plano de imanência”) e

na convocação da ciência e da arte para formar uma trilogia, sem elementos privilegiados,

que, na diferença dos seus componentes, combatem o caos e a opinião. No final do texto, o

“cérebro” substituirá a “consciência” e é pouco provável que faça uma apologia da

hermenêutica do sentido.

III

Situemos agora o conceito de “hermenêutica do sentido”. Queremos evitar arrombar

portas abertas, mas não temos também a pretensão de, nesta explicação sucinta, abrir

novíssimos horizontes de sentido. Richard Kearney, no Cahiers de l’Herne dedicado a

Ricœur, distingue a hermenêutica “diacritique” ricœuriana das radical e romântica. Esta,

sobretudo com Schleiermacher, Dilthey e Gadamer, tem a finalidade filosófica de associar a

consciência de um sujeito à de outro sujeito. Aquela, “inspirada pelo desconstrucionismo de

Derrida, Blanchot e Lyotard”, rejeita a possibilidade de apropriação e insiste no carácter

irredutível da alteridade.

35

Por seu turno, a hermenêutica diacrítica constitui uma espécie de

35 Derrida é muitas vezes acusado de matar o autor e a intenção do texto. Contudo, como esperamos

demonstrar, as coisas são mais complexas; e mesmo Umberto Eco, denunciando cada vez mais o despropósito das interpretações abertas, acaba por conceder que, em certas circunstâncias, Derrida tem razão: “I feel perplexed when I read the jeu de massacre performed by Derrida upon a text signed by John Searle. [Jacques Derrida, “Limited Inc.”, Glyph 2 (1977), p. 162-254] […] When a text is put in the bottle – and this happens not only with poetry or narrative but also with The Critique of Pure Reason – that is, when a text is produced not for a single addressee but for a community of readers – the author knows that he or she will be interpreted not according to his or her intentions but according to a complex strategy of interactions which also involves the readers, along with their competence in language as a social treasury.” (Stefan Collini (ed.), textos de Umberto Eco, Richard Rorty, Jonathan Culler e Christine Brooke-Rose, Interpretation and overinterpretation, Cambridge University Press, 1992, p. 67) Talvez por isso, no início do seu artigo, Richard Rorty diga que ao ler o Pêndulo

de Foucault de Eco tinha achado que ironizava o essencialismo, que podia, pois, ser seu camarada. No entanto,

um ensaio de Eco, quase da mesma época do Pêndulo, “Intentio Lectoris”, mostrou-lhe mais tarde que ele diferenciava a interpretação e o uso dos textos. Coisa que os pragmatistas, como Rorty, não fazem, já que essa distinção é o que os antiessencialistas como ele deploram, uma distinção entre interior e exterior do texto (o primeiro conteria essa essência, o segundo daria conta do uso relacional). (Cf. idem, p. 92-93)

(21)

terceira via para lá da “fusão de horizontes” e da “não-comunicação”.

36

Ora, parece que o

nosso trabalho pode ajustar-se ao diacritismo hermenêutico, visto orientar-se claramente, a

partir dos autores que estudaremos, para a recusa de uma hermenêutica do sentido, i.e.,

sermos cépticos acerca da possibilidade das leituras filosóficas recuperarem os sentidos

originários dos textos.

37

Ao mesmo tempo que defendemos, contra certas referências

filosóficas que usamos, a passagem incólume de algum sentido do texto ao leitor. Só assim,

aliás, é permitido falar-se de recepção filosófica que, de uma ou de outra maneira, com este

ou outro nome, tece uma História da filosofia, sem a qual, é bom dizê-lo, provavelmente não

haveria sequer filosofia.

38

Mas há uma dificuldade capital com a hermenêutica ricœuriana: o

deixar-se orientar, embora subtilmente, pela exegese bíblica; pela ideia, pois, de um texto

essencialmente verdadeiro na sua condição epistémico-teológica, que em vez de ser explicado

e interpretado orienta as condições de possibilidade da própria interpretação que sobre ele

recai, já que o seu horizonte de verdade se arquitectura em torno de símbolos. Assim se

compreende que remeta o problema hermenêutico para a seguinte questão: “qual é a função

da interpretação dos símbolos na economia da reflexão filosófica.”

39

Uma objecção possível ao nosso trabalho está na redução conceptual à “hermenêutica

do sentido” para pensar a disparidade filosófica e metodológica, por vezes dentro do mesmo

autor, do problema do sentido. Mais, de esse conceito ser usado na negativa, uma quase

recusa de conceptualização que, por isso mesmo, perde força enunciativa. Mas julgamos ter

feito a melhor opção. Por um lado, talhar um horizonte conceptual para cada modalidade de

recepção filosófica dos nossos autores dificultaria a articulação das diferentes perspectivas (o

território filosófico que escolhemos adequa-se mal ao estudo de blocos imóveis de

significações, homogéneos em si mesmos e heterogéneos em relação aos outros; é mais, com

Deleuze, um modelo de “espaço liso”, significados móveis, deslocando-se entre campos). Por

outro lado, perder-se-iam nuances importantes, os nossos autores pensam muitas vezes em

filigrana, uma conceptualização apressada e imperativa queimaria importantes franjas de

sentido.

Outra objecção pode estar no elevado número de páginas desta Tese (introduzimos

agora uma informação que retira consistência lógica ao protocolo introdutório), mas tivemos a

36 Cf. “Entre soi-même et un autre: l’herméneutique diacritique de Ricœur”, in Cahiers de L’Herne, Ricœur,

vol. 2, Paris: Éditions de l’Herne, 2004, p. 56-59.

37 Aproximamo-nos muito do que disse Paul Valéry sobre não haver a Verdade do texto: uma vez publicados,

cada texto “é como um aparelho de que todos se podem servir à sua maneira e segundo os seus meios”. E não é certo que o construtor o use melhor do que os leitores. (Cf. À propos du cimetière marin (1933), in Œuvres, vol. I; Paris: Gallimard, 1980, p. 1506-1507)

38 Quando a História se cristaliza numa neo-escolástica também arrisca o seu desaparecimento. Por outro

lado, sabemos que acabámos de desvalorizar a geofilosofia deleuziana.

Referências

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