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Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG) (1838-1888)

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Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do

Rio Pardo (MG) (1838-1888)

Jonis Freire♣♣

Palavras-chave: Batismo; Compadrio; Identidade escrava.

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo estudar as relações de compadrio, uma das principais origens do parentesco fictício, estabelecidas pela população cativa na freguesia rural do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, localizada na Zona da Mata de Minas Gerais, no decorrer do século XIX. Utilizamo-nos como fonte de pesquisa os livros de batizado, onde compilamos os registros de batismo das crianças filhas de mulher escrava. O sacramento do batismo parece ter sido buscado tanto por senhores quanto por cativos, não obstante por razões diferentes. Procurar-se-á demonstrar que as relações advindas do parentesco fictício não se estabeleceram somente ente os cativos e seus “irmãos de cativeiro”. Na dita freguesia a população mancípia estabeleceu relações de solidariedade, primeiro com um grupo social em posição superior ao seu e depois dentro do próprio grupo social. Nesse segundo caso as escolhas se deram em sua maioria dentro do mesmo plantel, embora as estabelecidas entre plantéis distintos não tenham sido desprezíveis. Poderia se pensar que a Lei do Ventre Livre (1871) que libertou as crianças agora tidas como “ingênuas” pudesse ter levado os cativos a buscar uma coesão dentro de sua comunidade, isso aconteceu, entretanto, aqueles indivíduos continuaram a estabelecer suas relações de compadresco com um grupo de status social superior ao seu. As escolhas pessoais estabelecidas pelos escravos eram bem maiores do que até então poderia se pensar. Foram estabelecidas redes de solidariedade com livres, escravos, libertos/ forros. As relações de compadrio são exemplo de (re)adaptações feitas pelos escravos, dentro do sistema escravista de outrora. O cativo via na mesma a possibilidade de ampliar sua rede de parentesco e em certa medida, por meio destas relações de parentesco os escravos construíram uma coesão enquanto grupo.

Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-

MG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004.

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Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do

Rio Pardo (MG) (1838-1888)

∗∗

Jonis Freire♣♣

1. 1 Batismo e compadrio escravo

O batismo cristão mostrou-se no âmbito da sociedade brasileira como uma instituição forte e almejada por todos os estratos da população, significando a entrada do pagão no seio da Igreja Católica. Para os cativos não foi diferente, porquanto buscaram este sacramento e estabeleceram a partir dele relações de solidariedade e reciprocidade que se consubstanciaram por meio do compadrio (parentesco fictício). Para além de seu significado católico, os laços estabelecidos pelos cativos e seus padrinhos perante a Igreja Católica extrapolaram o âmbito da Igreja e mostraram-se presentes em toda a sociedade. Comecemos então a nos debruçar neste aspecto da vida daqueles indivíduos com o primeiro registro de batistério de uma inocente filha de escravos, feito pelo cura João Luis da Trindade em dezembro de 1838:

Aos vinte e oito dias do mês de dezembro de mil oitocentos e trinta e oito nesta capella do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo batizou solenemente e pos os santos óleos o padre Ignácio Ferreira de Lacerda na inocente Ireas filha legítima de Mariano Angolla e de sua mulher [?] crioula escravos do capitão Felisberto da Silva Gonçalves forão padrinhos Mariano Brás Nogueira e Jesuína Maria da Conceição todos deste curato e de que tudo fiz este assento.

O cura João Luis da Trindade.1

O relato do registro de batismo da inocente Ireas nos oferece muitos elementos sobre sua vida e as relações advindas a partir deste sacramento, alguns por si sós perceptíveis na feitura do registro, outros que procuramos inferir com a leitura dos livros de batismo. Para que possamos utilizar/analisar esta documentação é necessária uma certa ordenação que nos permita explorar as suas várias facetas. Entretanto, para que se chegue a esta ordenação é mister que se proceda a um árduo trabalho de compilação e tratamento dos dados contidos nos livros de batismo.

O registro de batismo, supracitado, coloca-nos diante de uma família escrava e nos possibilita discutir a historiografia brasileira sobre este tema, que até alguns anos atrás justificava - na bastardia (ilegitimidade), na promiscuidade e na anomia social imputada aos escravos - os principais empecilhos à constituição da mesma.2

Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-

MG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004.

Mestre em história pela Unesp/Franca; doutorando pela Unicamp.

1

Livro de batismo nº 1, Matriz do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1864, Argirita, MG.

2

Cf. MOTTA, José Flavio. Corpos escravos, vontades livres : posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP/ Anablume, 1999, capítulo IV.

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A “inocente”3 Ireas era filha legítima de Mariano Angola e de sua mulher [?] crioula, ou seja, seus pais tinham uma ligação matrimonial legalmente sancionada pela Igreja Católica. As bênçãos matrimoniais advindas do mesmo sacramento lhes reconheceram, ao menos moralmente, uma existência um tanto distinta da dos demais escravos que não as possuíam.

Para Mariano Angolla, pai de Ireas, a retomada de uma vida social interrompida traumaticamente pelo tráfico deve ter-se demonstrado imprescindível. Retirado de sua nação, Angola, casado com uma escrava crioula, ou seja, nascida no âmbito da sociedade brasileira, por intermédio do batismo de sua filha ele consegue estabelecer laços de compadrio com indivíduos de condição social livre. Para esta família, o estabelecimento desses laços, a partir do sacramento do batismo, deve ter sido de extrema utilidade, pois pais, padrinhos, a inocente e provavelmente o proprietário daqueles escravos passaram a estabelecer com esse evento uma ampla rede de solidariedade. Sheila de Castro Faria complementa:

[...] podemos supor que os africanos trazidos ao sudeste do Brasil, apesar da separação radical de suas sociedades de origem teriam lutado com uma determinação ferrenha para organizar suas vidas, na medida do possível, de acordo com a gramática (profunda) da família – linhagem. Encontrando, ou forjando, condições mínimas para manter grupos estáveis no tempo, sua tendência teria sido de empenhar-se na formação de novas famílias conjugais, famílias extensas e grupos de parentesco ancorados no tempo.4

O registro de batismo da escrava Ireas encontra-se no livro I de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo. Este registro é o primeiro encontrado para um inocente filho de mulher escrava. Nos três livros pesquisados para o período de 1838-1888, sucedem-se outros registros muito semelhantes, totalizando 1.970. Com o batismo, Ireas, pelas mãos de seus padrinhos livres, renasceu para o mundo dos homens e foi purificada do pecado original. Cabe notar que ela também recebeu o sacramento da crisma ou confirmação (Santos Óleos) que era administrado juntamente com o do batismo.5

O ato do batismo é bem antigo, começou provavelmente com a imersão de Cristo por João Batista. Kjerfve e Brugger atestam que este sacramento passou a ser incorporado pela Igreja Católica desde pelo menos o século III, e o seu significado é o de purificação do pecado original; a partir daí o batismo tornou-se o símbolo da entrada do inocente e do pagão no seio da Igreja Católica. 6

No Brasil, os ritos da Igreja foram codificados no Sínodo Diocesano de 1707, a partir da adaptação das resoluções do Concílio de Trento às condições sociais brasileiras, e publicados nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia em 1720.7 Com a inserção na Igreja por meio do batismo o batizando passa a ter direito aos demais sacramentos da Igreja Católica. Sem este sacramento era vedado ao indivíduo ter acesso, por exemplo, ao casamento, à extrema-unção ou à crisma. “O batismo é o primeiro de todos os sacramentos, e a porta por onde se entra na Igreja Católica, e se faz, o que o recebe, capaz dos mais

3

Por inocentes entendiam-se as crianças –via de regra com menos de sete anos – que ainda não comungavam.

4

FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Família escrava e legitimidade. Estratégias de preservação da autonomia. Cadernos Cândido Mendes. Estudos Afro-Asiáticos, nº 23, dezembro de 1992.

5

MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1973, p.76.

6

KJERFVE, T. M. G.N., BRUGGER, S. M. J. “Compadrio: relação social e libertação espiritual em sociedades escravistas (Campos, 1754-1766)”, Estudos Afro-Asiáticos, 20, junho de 1991.

7

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sacramentos, sem o qual nem um dos mais fará nele o seu efeito”.8 No que tange especificamente ao batismo, a legislação canônica estipulava as multas devidas aos párocos que não fizessem de maneira adequada este sacramento, e determinava a fórmula segundo a qual deveriam ser registrados os batismos, bem como suas interdições, matéria, formas e efeitos. A este respeito Schwartz nos diz que:

Segundo esse código, o pároco devia batizar o recém-nascido até oito dias após o nascimento. Cada criança devia ter somente uma madrinha (com mais de 12 anos de idade) e um padrinho (com mais de 14 anos de idade). Os pais da criança eram proibidos de ser seus padrinhos, bem como os membros de ordens religiosas (com exceção das ordens que concediam títulos de cavaleiro). O batismo dos escravos recém chegados e ainda não aculturados (escravos boçais de lingoa ndo (sic) sabida) exigia instruções religiosas especiais para garantir que compreenderiam suas obrigações de membros da igreja.9

Esta é uma descrição sucinta do conteúdo das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, dando-nos uma noção do que pode ser encontrado em seus códigos. É importante ressaltar ainda, que quando nos defrontamos com as fontes, percebemos quanto as leis eram burladas ou negligenciadas. Notamos, no caso da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, por exemplo, a presença de dois padrinhos do sexo masculino, a ausência de madrinhas, padres servindo de padrinhos dos inocentes, e outros desvios das leis estabelecidas pelo código canônico.

Os registros paroquiais de batismo são de extrema importância para a reconstituição demográfica da história brasileira, mais do que isto, “não são documentos apenas religiosos, mas sociais; a informação registrada fala da persona social total do indivíduo”.10 É claro que os registros de batismo com freqüência exibem lacunas e a freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo não é uma exceção.

A fórmula geral, empregada nesses registros de batismo, permite-nos ter acesso basicamente às seguintes informações no caso dos escravos: data da celebração do sacramento, local de sua celebração, prenome da pessoa batizada, nome dos pais, nome e sobrenome dos padrinhos – no caso de serem livres – com seus respectivos estados conjugais; nome do proprietário dos pais e do cativo batizado, nome dos proprietários dos padrinhos, quando estes eram escravos, e freguesia a que pertenciam pais e padrinhos do batizado.11 Outras informações aparecem esporadicamente nos registros, derivações do zelo ou da falta do mesmo por parte daqueles que faziam o assento.12

8

“CONSTITUIÇÕES Primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua M ajestade, propostas e aceitas em o Sínodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho de 1707.” São Paulo: 1853, IHGB. Livro primeiro, Título X.

9

SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 267.

10

GUDEMAN, S. & SCHWARTZ S. “Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”, in: REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq, 1988, p.39.

11

A forma como se deveria escrever os assentos de batismo era a seguinte: “Aos tantos de tal Mês, e de tal ano batizei, ou batizou de minha licença o Padre N. nesta, ou em tal Igreja, a N. filho N. e de sua mulher N. e lhe pus os Santos óleos; foram padrinhos N. e N. casados, viúvos ou solteiros, fregueses de tal igreja e moradores em tal parte (...) E ao pé de cada assento se assinará o pároco, ou sacerdote que fizer o batismo”. CONSTITUIÇÕES, op. cit., Livro Primeiro, Título XX.

12

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O sacramento do batismo interessava muito aos proprietários de escravos, pois em virtude da instituição do padroado, o Estado português delegou à máquina eclesiástica inúmeras funções, levando as esferas religiosa e civil da vida das populações a estarem pouco diferenciadas. Dentre estas funções, a que mais interessava aos senhores de escravos dizia respeito à declaração, feita no registro de batismo dos inocentes, do nome do seu proprietário, o que lhe garantia a posse efetiva dos mesmos. Maria de Fátima Rodrigues das Neves esclarece-nos bem sobre esse interesse:

Quando um escravo era comprado, havia uma matrícula que servia como ‘comprovante’ da posse. Porém o inocente nascido de uma escrava não era matriculado, já que não tinha ocorrido uma transação comercial. Dessa maneira o registro de batismo era a única forma de que dispunha o proprietário para comprovar que alguns, dos escravos, nascidos em seus plantéis, eram efetivamente seus.13

É importante ressaltar também que a Igreja considerava responsabilidade dos senhores o batismo dos escravos, já que uma das principais justificativas para a escravidão era a conversão dos pagãos e dos infiéis e a salvação das almas. No ato do batismo o pároco deveria informar aos pais e padrinhos do batizando os laços que estes passavam a contrair a partir daquele momento. Pelo batismo os padrinhos ficavam sendo “fiadores para com Deus pela perseverança do batizado na Fé, e como por serem seus pais espirituais tem obrigação de lhes ensinar a Doutrina cristã e os bons costumes”14; assim, aos “pais espirituais” cabia a formação moral e religiosa dos afilhados.

Talvez esteja no batismo uma das principais origens do parentesco fictício, embora ele não seja o único (outras formas deste parentesco podem ser encontradas no ato do casamento, da crisma, ou mesmo em certas festividades), mas era o mais importante na geração de laços de compadrio. A historiografia a esse respeito tem demonstrado como os escravos se utilizaram deste sacramento para o estabelecimento de relações sociais na luta pela (re)construção de sua vida comunitária.15 O momento em que os filhos adquiriam o status de cristãos era utilizado para garantir a extensão dos laços de parentesco por meio do apadrinhamento e do compadrio.

O sacramento do batismo tinha a mesma importância e valor para o negro que para o branco livre. Citando Walsh, José Roberto Góes expõe-nos que os escravos pagãos pareciam “ansiosos” pelo batismo para não serem tratados como simples animais; logo em seguida afirma que “o batizado dos escravos foi um fenômeno maciço, incentivado por senhores e procurado pelos escravos”.16 A este respeito Schwartz afirma:

[...] no ato ritual do batismo e no parentesco religiosamente sancionado do compadrio, que acompanha esse sacramento, temos uma oportunidade de ver a definição mais ampla de parentesco no contexto dessa sociedade católica escravocrata e de testemunhar as estratégias de escravos e

13

NEVES, M. de F. R. das. Ampliando a família escrava: o compadrio de escravos em São Paulo no século XI. In: NADALIN, S. O., MARCÍLIO,M.L. (orgs.). História e população: estudos sobre a América Latina, São Paulo:ABEP, IUSSP, CELADE, Fundação SEADE, 1990, p. 238, nota 5.

14

CONSTITUIÇÕES, op. cit., Livro Primeiro, Título XVIII.

15

Cf. entre outros BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas Gerais no século XIX. São Paulo: FFLCH/USP, 1994 (dissertação de mestrado), e SCHWARTZ, 2001,op. cit. .

16

GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Vitória-ES: Lineart, 1993, p.168.

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senhores dentro das fronteiras culturais determinadas por esse relacionamento espiritual.17

O compadrio estabelecido a partir do ato do batismo, tem significado. Por meio dele os escravos adquiriam laços de solidariedade e cooperação que redimensionavam o seu cotidiano, garantindo-lhes espaço de sociabilidade e convivência. Dentro do sistema escravista, ao criar um parentesco espiritual, o compadrio era usado pelos cativos como estratégia de sobrevivência. A família escrava representava neste aspecto um fator de importância primordial na consecução desses laços de solidariedade. A este respeito Manolo Florentino e José Roberto Góes consideram que a família escrava se abria no contexto escravista, sendo que esta abertura tinha um caráter eminentemente político. A família abrangia uma série de laços, e o sentimento de ser membro de uma delas, se estenderia aos padrinhos no ato do batismo cristão. Para estes historiadores, o compadrio possuía uma base espiritual tão importante quanto os laços consangüíneos ou os matrimoniais que os escravos estabeleceram. O fator principal para explicar a importância do compadrio estaria no cristianismo que se estendia a todo o âmbito da sociedade brasileira.18

Tais laços também tinham uma dimensão social fora da estrutura da Igreja. Podia m ser usados para reforçar laços de parentesco já existentes, solidificar relações com pessoas de classe social semelhante, ou estabelecer laços verticais entre indivíduos socialmente desiguais. Construído na Igreja e projetado para dentro do ambiente social, “o compadrio significava mais que tudo, a consecução de um laço de aliança que atava, à beira da pia batismal, os pais de uma criança e seus padrinhos”.19

Ainda sobre o compadrio podemos perceber basicamente duas tendências: a primeira pode ser denominada de “funcionalista”, vendo no mesmo uma relação de poder e sujeição, que em vez de gerar laços de solidariedade entre os cativos, reforçava a instituição da escravidão. Em tais estudos a ênfase recai sobre como as relações são usadas: “a função primordial do compadrio é criar vínculos de solidariedade entre os seus participantes, os quais se expressam, principalmente, através da cooperação econômica e da lealdade política”.20 Para Itamar de Souza, a instituição do compadrio não teria sentido fora desse contexto protecionista, e este vínculo se torna tão forte que se constitui numa espécie de dever moral.21

A segunda tendência procura analisar seu significado, o seu “uso”, percebendo no ato religioso do batismo um sistema de relações regulamentadas pelo costume que amplia e reinterpreta esse sistema de acordo com condições históricas e estruturais determinadas: “essa reelaboração pode servir a fins práticos: mas nada [...] justifica supor que em sua ‘utilidade’ resida à razão de ser da instituição”.22 Para os adeptos deste enfoque, o compadrio carrega um significado para os que dele participam, pois é um idioma por meio do qual as pessoas expressam a si próprias e de acordo com o qual elas vivem.

17

SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

18

O caráter político se faria presente no papel estabilizador da família, percebido tanto para os cativos quanto para o próprio sistema escravista. As tensões inerentes ao sistema escravista se fariam menos presentes no interior dos grupos parentais. Cf. FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

19

GÓES, op. cit., p.102.

20

ARANTES, Antonio Augusto. Pais, padrinhos e o espírito santo: um reestudo do compadrio. In: ALMEIDA, Maria Suely Kofes de et alii. Colcha de retalhos. Estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.196.

21

SOUZA, Itamar de. O compadrio: da política ao sexo. Petrópolis: Vozes, 1981.

22

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Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, aos pais ou responsáveis pelo batizando era dada a liberdade de escolha dos padrinhos, desde que se respeitassem as normas impostas pelas mesmas. Eram proibidos de ser padrinhos “os infiéis, hereges, e públicos excomungados, os interditos, os surdos, ou mudos, e os que ignoram os princípios de nossa Santa Fé; nem frade, freira, cônego regrante, ou outro qualquer religioso professo na religião aprovada”.23

O cativeiro, sem dúvida, influenciou as escolhas destes escravos: o fato de pertencer a um pequeno ou a um grande plantel, sua localização em áreas com características urbanas e/ou rurais, integradas ou não a plantation são alguns elementos que podem explicar as opções estabelecidas pelos escravos. As escolhas eram moldadas pelo contexto socio-econômico da escravidão e refletiam as relações essenciais de poder dentro de toda a sociedade e de toda a economia. Schwartz sustenta:

A vida vivida, as escolhas feitas e as estratégias adotadas pelos que sofriam com a escravidão eram continuamente moldadas e restringidas pela penetração e pelo poder do sistema social e econômico predominante, e não podem ser entendidas sem menção a ele.24

Vários estudos acerca deste tema, embora com métodos, perguntas e inquietações diferentes, indicam alguns padrões que caracterizavam o batismo de escravos no Brasil e a formação de laços de parentesco fictício (compadrio). Os cativos brasileiros, conforme a condição social a que estavam submetidos, estabeleceram várias opções de compadrio. Era comum se pensar, mediante o enfoque “funcionalista”, que os escravos tenderam a ter como padrinhos ou compadres seus próprios senhores, estratégia clara para a obtenção de benefícios ou regalias futuras. Assim, em lugar de gerar laços de solidariedade entre os cativos, o compadrio tinha uma relação meramente utilitária e desta forma reforçava a instituição da escravidão.25

Entretanto o trabalho pioneiro de Gudeman e Schwartz sobre o batismo e as relações de parentesco fictício, em duas paróquias do recôncavo baiano no século XVIII, demonstra, dentre outras coisas, que os senhores não se tornavam padrinhos dos próprios escravos, e seus parentes o faziam muito raramente. O compadrio não servia, segundo os autores, para salientar os aspectos paternalistas entre senhor e escravo, muito menos serviu como vínculo ou reforço dos mesmos, encontrando-se aí uma oposição entre batismo e escravidão, ou melhor dizendo, entre Igreja e escravidão: “cada uma destas [instituições] implica um tipo diferente de relações; quando as duas se encontram no singular evento do batismo, só pode haver silêncio e estranhamento, não superposição”.26 Enquanto a primeira remetia à proteção e socorro, a segunda era uma relação de propriedade baseada na subserviência, “o batismo representa associação à igreja e igualdade como cristão e como pessoa em relação ao outro”.27 Os autores chegaram à seguinte conclusão: quando havia padrinhos/madrinhas, pessoas livres apadrinhavam 70% dos batismos de escravos; escravos apadrinhavam 20%, e os libertos, 10%.28

Ao analisar a freguesia urbana de São José do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX, Roberto Guedes Ferreira concluiu que 37,9% dos padrinhos cativos tiveram

23

CONSTITUIÇÕES, op. cit. Livro primeiro, título XVIII.

24

SCHWARTZ, 2001, op. cit., p. 292.

25

Cf. COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala a Colônia. São Paulo: DIFEL, 1966.

26

GUDEMAN, e SCHWARTZ, op. cit. , p.41.

27

Ibidem, p.42 (grifo nosso).

28

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afilhados inocentes, o mesmo índice foi encontrado para livres-forros. O autor constatou ainda que padrinhos cativos eram escolhidos no interior ou fora da mesma escravaria, e que a escolha não era aleatória. No que concerne à naturalidade, observamos que os vínculos se efetivaram fundamentalmente entre compadres da mesma naturalidade, independentemente de serem ou não escravos.29

No caso da freguesia de Montes Claros, localizada no norte de Minas Gerais, Tarcísio Botelho verificou que ao longo de todo o século XIX, os padrinhos livres de ambos os sexos sempre representaram mais da metade do total, chegando mesmo a 80% em alguns momentos. Ali há ainda um predomínio absoluto de padrinhos de outros plantéis.30

Maria de Fátima R. das Neves encontrou o mesmo padrão em seu estudo sobre a cidade de São Paulo. Durante a primeira década do século XIX, encontrou uma maioria de indivíduos livres como padrinhos de crianças escravas, apesar de raramente ricos ou influentes. A pesquisadora assinalou também um número substancial de padrinhos de proprietários diferentes, e a existência de um pequeno número de senhores apadrinhando seus escravos.31

Ao contrário, Kjerfve e Brugger verificaram ligeira preferência por padrinhos livres em Campos (RJ), paróquia com algumas características urbanas e em região de agricultura canavieira, 50% na segunda metade do século XVIII. Porém, a percentagem de padrinhos de condição escrava se faz perceber, sendo considerada alta, em torno de 45,8%. Quando somados padrinhos escravos e ex-escravos, as cifras chegam a 49,1%, bem próxima da percentagem dos padrinhos livres. Em Campos nota-se ainda uma maior predileção por padrinhos oriundos de outros plantéis. As autoras também encontraram para os padrinhos livres, embora em número reduzido, títulos ou designações de prestígio social – padres, donas, indivíduos com patentes militares, etc. Como Botelho, elas igualmente não registraram crianças batizadas por santos, santas ou Nossas Senhoras. As autoras concluem que os laços de compadrio e o apadrinhamento “funcionavam como possibilidade de substituição ou ampliação da família escrava e, num sentido mais amplo, de formação de uma comunidade negra no Novo Mundo”.32

Ana Lugão Rios realçou que 48,6% dos casais de padrinhos eram cativos na região de Paraíba do Sul (Rio de Janeiro). Em finais do século XIX, os senhores não batizavam escravos (apenas 0,32% dos padrinhos), e em cerca de 18% dos batismos pelo menos um dos padrinhos era escravo. Esta autora sublinha que nas maiores propriedades rurais, os laços de compadrio formaram comunidades escravas, graças à predominância de padrinhos escravos nesses plantéis. Nas escravarias urbanas, a primazia de padrinhos livres deveu-se a atividades desenvolvidas pelos escravos nessas áreas, que lhes permitiam uma mobilidade física intensa, facilitando o convívio com homens de status social superior.33

José Roberto Góes também notou - em seu estudo da freguesia rural de Inhaúma do Rio de Janeiro, durante a primeira metade do século XIX - que os senhores nunca apadrinhavam seus escravos, e que 66,6% dos pais, quando batizavam seus filhos, ligavam-se a outros compadres cativos. Escravos e ex-escravos foram padrinhos em 90,6% dos casos de batismo estudados por ele. O autor ressalta que existia por parte dos cativos um

29

FERREIRA, Roberto Guedes, O Parentesco ritual na freguesia de São José do Rio de Janeiro. Sesmaria Revista do NEHPS. Faculdade de Filosofia de Campo Grande, 01, ano 1, 2001.

30

BOTELHO, op. cit.

31

NEVES, op. cit.

32

KJERFVE e BRUGGER, op. cit.

33

(9)

estabelecimento de relações de compadrio em torno do batismo, entre indivíduos de distintos plantéis da freguesia.34

2. 2 A Freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo - um estudo de caso.

Quais foram os padrões encontrados para os batismos dos inocentes filhos de mulher escrava na freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, e quais as relações advindas dos mesmos, durante o século XIX? Nesta parte pretendemos responder a estas perguntas à luz dos vários estudos sobre o tema e dos dados provenientes dos registros paroquiais.35

Deste modo, é necessário que procedamos a uma explicação acerca dos resultados ue serão analisados, mais precisamente sobre um aspecto que altera a variável condição social do batizando. Em vinte e oito de setembro de 1871, entrou em vigor a Lei Rio Branco, ou Lei do Ventre Livre, que dentre outras determinações emancipava as crianças recém-nascidas de mulheres escravas, denominadas a partir daquele momento como “ingênuas”.36 É óbvio que desde aí as proporções entre livres, escravos e libertos passaram por uma mudança, pois um número maior de escravos tornou-se livre. Schwartz afirma que “depois da Lei do Ventre Livre de 1871, os padrões e os costumes da escravidão foram submetidos a novas avaliações”.37

A respeito do impacto da lei sobre os recém-nascidos de mulher escrava, Robert Conrad nos diz que foram mantidos “em quase sua totalidade, na mesma condição servil como os demais escravos, faltando-se-lhes com a indispensável e devida instituição e desamparados da proteção tutelar da autoridade pública”.38 Mesmo estando livres a partir daquela lei, os “ingênuos” estavam vinculados ao sistema escravista e a todos os seus desdobramentos pelo menos até os 21 anos de idade. Isto porque a lei de 28 de setembro obrigava os senhores a cuidar dos filhos de escravos, nascidos ingênuos, até a idade de seis anos. Chegando a criança a esta idade, o senhor teria como opção receber uma indenização do Estado ou utilizar-se dos serviços do menor até que ele completasse os 21 anos. Esta segunda opção foi a mais utilizada. Portanto, só ao completar esta idade esses indivíduos estavam verdadeiramente livres.

Consideramos que, embora houvesse mudança na condição social dos recém-nascidos, de escravos para livres, os laços buscados por seus pais na confecção de solidariedades dentro da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo continuaram os mesmos, como discutiremos a seguir.

Comecemos pela análise da variação anual de batismo de crianças filhas de mulher escrava (Gráfico 1). Podemos inferir pelo mesmo que no decorrer do período em estudo existe uma tendência crescente do batismo cristão. De 1838 a 1850, anos em que se fizeram presentes os esforços para o fim do tráfico africano de escravos, o número de batizados foi inferior a 20, com exceção dos anos de 1844, 1849 e 1850, quando foram batizados 23, 21 e 22 crianças, respectivamente. No período posterior a 1850 até o ano de 1870, a tendência pela procura do batismo mostrou-se sempre presente. Apesar de haver variações, em nenhum ano, a partir daí, constatamos um número inferior a vinte batizados de inocentes.

34

GÓES, op. cit.

35

Sobre esses registros paroquiais é necessário frisar que, doravante, as tabelas e gráficos concernentes a freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo dizem respeito a um total de 1.970 registros de batistério, por nós compilados.

36

Sobre a dita lei e seus desdobramentos, cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

37

SCHWARTZ, 2001, op. cit., p. 282.

38

(10)

Reconhecemos também, após 1871, um aumento no número de batizandos. Se no período anterior (1850-1870) os batizados não foram inferiores a 20 por ano, somente depois de 1871 este número ultrapassou 50 batizados por ano, com exceção do ano de 1887. Talvez esta tendência possa ser um reflexo da Lei do Ventre Livre que a partir daí determinava que todos os nascidos de mulher escrava tornar-se-iam ingênuos, ou seja, livres. Diante deste fato, Botelho viu nesta lei um novo fator a incentivar o batismo de escravos. “Como para fazer valer estes direitos [de indenização ou de exploração do trabalho até os 21 anos de idade] os senhores deveriam registrá-los, sem dúvida alguma o nível de cobertura deste registro deve ter melhorado”.39

Talvez as novas condições do sistema escravista tenham influenciado os cativos levando-os a se reproduzirem, conseqüentemente levando-os a procurar cada vez mais o sacramento do batismo buscado pela comunidade escrava, e possivelmente também pelos senhores destes cativos durante todo o século XIX. Para os cativos objetivava -se a inserção no mundo católico, bem como o alargamento por meio do compadrio proveniente do sacramento do batismo. Aos senhores, além de ser um dever “moral”, o mesmo lhes garantia a posse efetiva das crias de suas escravas.

GRÁFICO 1

Variação anual de batismo de crianças escravas e “ingênuas”, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887. Ano do batismo 1886 1883 1880 1877 1874 1871 1868 1865 1862 1859 1856 1853 1850 1847 1844 1841 1838 Número de batizados 100 80 60 40 20 0 Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Quanto ao sexo das crianças batizadas (Tabela 1), podemos notar, no decorrer do século XIX, que na freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo havia uma certa simetria em

39

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relação ao número de meninos e meninas que receberam o sacramento do batismo. Os batizandos do sexo masculino com uma taxa de 51,4% suplantaram os do sexo feminino em apenas 2,8% do total. Neste segmento da população escrava (inocentes) verificamos um equilíbrio muito expressivo. Talvez possamos pensar em reprodução natural nos moldes apontados por Cano e Luna, e posteriormente enfatizados por Paiva e Libby e Botelho para a Província de Minas Gerais.40

Trata-se certamente de nascimentos decorrentes de reprodução natural de escravos que habitavam a freguesia, pois o número de escravas “chegadas” da África grávidas deve ter sido desprezível. O importante a ressaltar é que a dita localidade conheceu, durante o período em estudo, além do já citado equilíbrio entre os sexos, um índice elevado de nascimentos de inocentes filhos de mulheres escravas.

TABELA1

Sexo dos inocentes batizados, freguesia Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Sexo Freqüência %

Masculino 1.012 51,4

Feminino 956 48,6

Total 1.968 100

Não consta 2

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Quanto à origem destes inocentes, como trabalhamos apenas com registros de crianças podemos considerá-las todas como crioulas. O crioulo é o escravo filho de mãe africana nascido no âmbito da sociedade colonial. Na freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo poucos são os registros em que se identificam efetivamente os inocentes como sendo de origem crioula. Isto ocorre para as meninas em 30 registros e para os meninos em 28. Entretanto, somente 6 batizandos que possuem essa variável anotada são filhos de pai e/ou mãe de origem africana; para os outros 52 casos não consta essa variável, ou os pais são designados como crioulos.

Mariza Soares afirma que a origem crioula só “afeta” uma geração de cada descendência dos filhos de africanos. Posteriormente ao nascimento de seus próprios rebentos, esse termo é aplicado em outras designações.41 Nossos dados parecem corroborar esta hipótese, pois naquela freguesia o termo crioulo foi mais utilizado para designar “negros” filhos de “negros”. Talvez seja correto afirmar que a grande maioria dos inocentes para o qual não consta a variável crioulo (origem), seja filha dessa população intermediária (crioula), e que seus componentes constituam o que poderíamos designar como sendo a segunda geração de uma família escrava.

É interessante notar que a origem crioula só é imputada ao inocente nos anos anteriores a 1871. Se antes o termo crioulo diferenciava os escravos nascidos no Brasil daqueles nascidos na África, após a lei de 1871 o termo cai em desuso, pois agora todas as crias de ventre passaram a ser livres. Os registros de batismo de que nos utilizamos impedem incursões metodológicas aprofundadas sobre o “valor” dado aos nomes das crianças cativas para a memória geracional do grupo escravo. Isto se deve ao fato de os registros permitirem ter acesso apenas a um núcleo formado por pais e/ou mães e filhos. Não sabemos o nome de

40

LUNA, Francisco Vidal e CANO, Wilson. Economia escravista em Minas Gerais. Cadernos

IFCH/UNICAMP, 10: pp.1-14. out. 1983; PAIVA, Clotilde Andrade e LIBBY, Douglas Cole. Caminhos Alternativos: Escravidão e Reprodução em Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos: São Paulo, v. 25, n. 2, maio-ago., 1995, p. 213.; BOTELHO, op. cit.

41

SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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avós, tios, tias, ou de outros parentes consangüíneos, e desta forma não há como nos certificarmos da importância dessa memória para as famílias escravas, embora acreditemos que a mesma seja de extrema importância para suas vidas. Só por meio do cruzamento destes registros com outras fontes poderemos tecer considerações a esse respeito.

Florentino e Góes apontam ser de Carlo Ginzburg o alerta para o caráter universal do nome recebido ou assumido pelos indivíduos. “De fato, se algo distingue uma pessoa de outra em todas as sociedades conhecidas, este algo é o seu nome”. Ainda segundo estes pesquisadores, Herbert Gutman sugere que a nomeação feita aos filhos de uma forma e não de outra não é aleatória. Ao contrário, tais práticas, segundo este pesquisador, são inestimáveis evidências históricas que resumem experiências pessoais, acontecimentos importantes, visões de mundo, idéias e valores culturais.42

Para a freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo encontramos uma freqüência de nomes para os batizandos (Tabela 2). Tomando como referencial os nomes que aparecem por mais de dez vezes, notamos uma maior diversidade de nomes para as batizandas, 16 vezes, e os dos meninos aparecem 11 vezes. No caso destes últimos, notamos uma maior concentração de nomes, repetindo-se mais de 26 vezes. Outra observação que pode ser feita é a de que tanto os meninos quanto as meninas ganharam nomes de origem cristã e é possível pensarmos que a comunidade escrava de então estivesse mais integrada aos preceitos da religião católica.

Tabela 2

Repetição de nomes dos batizandos, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Batizandas Repetição Batizandos Repetição

Maria 98 João 57 Joana 34 Antonio 48 Rita 32 José 38 Sebastiana 20 Manoel 34 Joaquina 17 Pedro 32 Bárbara 15 Sebastião 30 Eva 14 Joaquim 26 Francisca 14 Francisco 17 Mariana 14 Domingos 17 Gertrudes 13 Adão 14 Ignacia 12 Sabino 10 Antonia 12 Carolina 12 Luzia 12 Tereza 11 Esperança 10

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Em seu estudo sobre a França do antigo regime, François Lebrun afirma haver uma primazia de João como nome masculino e de Maria como feminino. A mesma constatação é feita para a freguesia estudada. O pesquisador atenta que algumas variáveis, como a existência de santos locais mais ou menos importantes vem modificar a freqüência dos nomes. De acordo com Lebrun:

42

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A escolha do nome reveste assim um duplo alcance, religioso e mágico: assegura-se à criança a proteção simultânea de um grande santo (dado ao mesmo tempo como modelo) e dos antigos chefes da família ou deste ou daquele parente assim reencarnados.43

Em nosso estudo, quando se imputava o nome às crianças, era mais usual conferir o dos padrinhos/madrinhas vis-à-vis o de pais/mães, respectivamente 42 e 32; 9 e 8. Esses mesmos padrões foram encontrados por Florentino e Góes, nos registros de batismos das freguesias de Inhaúma, Jacarepaguá, São José e Mambucaba. Para eles, esses dados reforçam a seguinte hipótese:

[...] as práticas nominativas escravas estavam calcadas no resgate de vivências e relações que extrapolavam em muito o núcleo familiar consangüíneo formado por mãe, pai e filhos, envolvendo sobretudos outros tipos de parentes consangüíneos imediatos (tios, tias, avós etc.), além dos putativos (padrinhos, madrinhas, etc.). Assim se tais práticas definem um escopo familiar, estamos frente a uma concepção de laços parentais que ultrapassa a consangüinidade.44

Esses pesquisadores vêem neste processo um caráter eminentemente político, que objetivava aumentar os laços de solidariedade e proteção. Em Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, quando o nome dos pais era dado a seus filhos, havia um equilíbrio muito grande entre os pais, como exposto acima, ao contrário dos escravos fluminenses, que privilegiavam sobretudo o lado paterno. 45 Na tentativa de se entender esse processo, uma explicação possível estaria na instabilidade dos homens escravos diante de uma possível venda ou compra que o levaria a se separar de suas famílias. Desta forma, a nome dado aos filhos seria um gesto simbólico que teria o intuito de assegurar uma continuidade temporal na relação pai e filho.

No Gráfico 2 temos a oportunidade de observar quais os meses em que mais se deram as cerimônias de batismo dessas crianças. Notamos de início que a maior parte desse sacramento ocorreu em maio e junho, 206 e 175 respectivamente, embora em janeiro e novembro também tenham ocorrido muitas cerimônias deste sacramento, simultaneamente, 187 e 178. Notamos um mínimo dessa cerimônia em agosto e setembro, 145 e 138, com o mês de setembro apresentando o mesmo número de sacramentos do mês de fevereiro.

Maria Luiza Marcílio interpreta que as leis da natureza, e principalmente aquelas concernentes ao ritmo das estações do ano, influem sobremaneira na renovação da espécie humana. A pesquisadora evidencia que para a Europa o período de concepção se dá nos meses de maio e junho (primavera), e sua diminuição ocorre em setembro e outubro, o que é corroborado por Lebrun. O estudo sobre a cidade de São Paulo não confirma esses dados, pois, a mesma localidade não possui estações de tempo bem definidas, desta forma Marcílio afirma que o movimento sazonal das estações não influiu no número de nascimentos dessa cidade.46

Outrossim, Iraci Costa também expressa para o caso de Vila Rica uma provável inexistência de impactos significativos do clima ou de variações térmicas sobre a quantidade de concepções.47 Nesta localidade, notamos que nos meses de março, maio, novembro e

43

LEBRUN, François. A vida conjugal no antigo regime. Lisboa: Rolim, [19??], pp. 116-7.

44

FLORENTINO & GÓES, op. cit., p. 88.

45

Ibidem.

46

MARCÍLIO, op. cit.

47

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dezembro os nascimentos ocorrem de forma menos acentuada. De modo geral, parece que as estações do ano não influenciam significativamente no movimento de concepção da população cativa. Isto pode ser formulado quando analisamos o que acabamos de expor e percebemos que aumenta o número de nascimentos entre os escravos em abril, agosto e fevereiro. Podemos pensar que esta ocorrência estivesse sendo influenciado pelo produto agrícola principal daquela época, o café, ou seja, vinculando-se ao plantio, a colheita, ao beneficiamento, enfim, a momentos de maior e de menor utilização da força de trabalho escrava. Entretanto, estas análises só poderão ser confirmadas mediante um minucioso estudo do calendário agrícola para a época em questão.

GRÁFICO 2

Distribuição dos batismos por meses, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838 -1887. Mês do batismo 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 Nº de batismos 220 200 180 160 140 120

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Quando os registros de batismo eram confeccionados, os párocos anotavam a origem, embora de maneira desigual, dos padrinhos, madrinhas, mães e pais escravos. Em nossos dados foi possível identificar a origem de apenas 83 padrinhos e 77 madrinhas, num universo de 1.970 registros. Para pais e mães parece que houve, por parte dos responsáveis pela feitura dos registros, maior atenção a esse respeito. O número de pais e mães, cujas origens foram anotadas supera o dos padrinhos e madrinhas. Conhecemos assim essa variável para 223 mães e 127 pais. Contudo nos dois casos, o número de cativos de origem não declarada ultrapassa o daqueles com suas origens anotadas. Apesar disto, vamos tentar, mesmo que de maneira superficial, tecer algumas considerações a respeito desses indivíduos. Os pais de origem africana estabeleceram relações com mães de origem crioula ou africana em 38 e 24 casos respectivamente, e com os pais de origem crioula isso ocorreu em 36 e 6 casos. A Tabela 3 informa os números da presença africana e crioula nos livros de batistério.

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TABELA 3

Percentuais de africanos e crioulos, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Africanos % Crioulos % Total % Não consta

Mães 56 25,1 167 74,9 223 100 1.747

Pais 76 59,9 51 40,1 127 100 1.843

Padrinhos 48 57,1 36 42,9 84 100 1.886

Madrinhas 26 34,2 51 67,1 77 100 1.893

Total 206 40,2 305 59,8 510 100 1.460

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

As origens anotadas de pais e padrinhos são em sua maioria de africanos, respectivamente 59,9% e 57,1% . Provavelmente este fato seja um reflexo do tráfico de escravos, em que se preferiam cativos do sexo masculino, mais “aptos” para o trabalho. As mães e madrinhas eram majoritariamente crioulas, ou seja, nascidas em território brasileiro: 74,9% e 67,1% respectivamente (Tabela 3). Estes números parecem indicar que no decorrer dos cinqüenta anos por nós estudados, houve de início, o apontado para pais e padrinhos (tráfico de escravos), e posteriormente ocorreu na dita freguesia um equilíbrio entre o número de homens e mulheres, o que pode explicar, em especial no concernente às mães, o alto índice de crioulas.

A verificação da procedência regional dos escravos africanos apresenta uma dificuldade adicional, pois nos registros, em sua maioria aparece apenas a designação “de nação", sem nenhuma outra especificação (congo, rebolo, etc). Encontramos no caso de alguns escravos crioulos, menção à sua região de procedência no Brasil. Os números mais uma vez são escassos, talvez graças a um alto grau de generalizações. No caso dos africanos ser ”de nação” englobava toda a África, o que deve ter levado alguns párocos a uma generalização extrema. Provavelmente o mais importante era enquadrar os nascidos no Brasil (crioulos) e os nascidos fora (africanos). Vale lembrar que a identificação de procedência não era uma exigência da norma eclesiástica para os assentos de batismo. Assim a marca da procedência que se imprimia aos pais e padrinhos dependia do entendimento do responsável pela feitura dos registros.

No caso das mães, notamos uma dispersão quanto à sua procedência: 11 foram identificadas como crioulas e 9 como africanas, sabemos que as mães “brasileiras” são: da Bahia (5), de Minas (3), do Rio de Janeiro (2) e do Ceará (1). Somente por mais uma vez, agora para um padrinho, podemos conhecer sua procedência dentro do território brasileiro, proveniente de Minas Gerais. É certo que nossos números são pouco significativos e não nos permitem fazer afirmações sobre o tráfico interprovincial, no entanto, parece que embora em uma escala muito pequena, existiu em certa medida um pequeno tráfico interprovincial, principalmente com mulheres oriundas da Bahia. A nomeação feita pelos párocos a essas procedências “nacionais” demarca uma certa geografia no tráfico de escravos para aquela freguesia (Tabela 4).

(16)

TABELA 4

Procedência dos escravos da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Procedência Mães Pais Padrinhos Madrinhas Total

África 52 Rebolo 1 9 2 12 Congo 3 6 2 11 Benguela 4 1 1 4 10 Cabinda 1 4 1 6 Angola 1 3 1 5 Mina 5 5 Moçambique 3 3 Brasil 12 Bahia 5 5 Minas 3 1 4 Rio de Janeiro 2 2 Ceará 1 1 Total (África/Brasil) 20 20 17 7 64

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Não obstante as referências acerca dos reinos africanos sejam numericamente pouco expressivas – para os maiores grupos encontramos 12, 11, e 10 anotações para Rebolo, Congo e Benguela, respectivamente, parece que devido à proximidade com o porto do Rio de Janeiro, os escravos que podemos designar como sendo da África Ocidental e da África Central Atlântica fizeram-se mais presentes na freguesia. Este fato corrobora os estudos que sinalizam ser o século XIX responsável por uma entrada maciça de cativos através daquele porto. Em oposição a essas regiões africanas, só encontramos menção a três escravos (padrinhos) provenientes de Moçambique, na África Oriental.48

Alguns trabalhos postularam que o estabelecimento de relações de compadrio - tanto entre livres, quanto entre escravos - tendeu a se dar dentro de um mesmo grupo social ou com outro em posição superior. Em sua pesquisa sobre o recôncavo baiano, Gudeman e Schwartz concluíram que os escravos eram apadrinhados tanto por escravos como por livres, e os nascidos livres eram quase sempre apadrinhados por livres.49

Kátia Mattoso revela-nos que a relação de compadrio entre escravos possibilitava o estabelecimento de laços de “solidariedades individuais, de eleição homem a homem, fruto da vontade individual”.50 Ainda segundo a autora, tais laços tenderam a se efetivar mais dentro da comunidade escrava, com os cativos estabelecendo vínculos de compadrio de maneira significativa, com outros escravos. A interpretação mais comumente dada pelos escravos às relações de batismo foi à formação de laços de solidariedade na própria comunidade escrava.

Na freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, no decorrer do período em estudo (1838-1888), livres, escravos e forros apadrinharam os inocentes em 69,2%; 30,6% e 0,2% dos casos respectivamente. Os padrinhos para os quais não foi possível conhecer sua condição social totalizaram 255 (Tabela 5). Como já afirmado, na freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, podiam ser encontrados desvios às leis impostas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Neste aspecto contabilizamos 69 casos nos quais aparece

48

A divisão das regiões africanas por nós adot ada é proveniente dos estudos de Manolo Florentino. Cf. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

49

Cf. GUDEMAN e SCHWARTZ, op. cit., MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.

50

(17)

um segundo padrinho. Em 56 deles foi possível saber a condição social do padrinho, e observar que quando este fato ocorria os padrinhos de condição escrava suplantavam os de condição livre. Vale ressaltar, porém, que essa supremacia era mínima, respectivamente 35 (62,5%) e 21 (37,5%) casos.

TABELA 5

Condição social dos padrinhos, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Condição Social Freqüência %

Livre 1.186 69,2

Escravo 525 30,6

Forro 4 0,2

Total 1.715 100

Não consta 255

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

As madrinhas de condição livre estiveram menos presentes no batismo de cativos, mas tinham a possuir os mesmos padrões dos padrinhos. Encontramos madrinhas livres, escravas e libertas que amadrinharam em 62,5%; 37,2% e 0,3% dos casos, respectivamente. Em 384 registros não foi possível conhecer a condição da madrinha (Tabela 6). Em apenas 5 casos ocorreu a nomeação de uma segunda madrinha. Conseguimos saber a condição de 4 delas, escravas e livres, equiparando-se cada uma aparecendo duas vezes.

TABELA 6

Condição social das madrinhas, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Condição Social Freqüência %

Livre 992 62,5

Escrava 590 37,2

Liberta 4 0,3

Total 1.586 100

Não consta 384

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Não podemos afirmar, no entanto, que esses padrinhos e madrinhas livres fossem pessoas de posses ou de influência naquela localidade. Neves constata que eram livres, em sua maioria, os padrinhos de crianças escravas em São Paulo, na primeira metade do século XIX; ela acredita que tal fato pode estar relacionado à vontade do escravo em ampliar sua rede de parentesco ao grupo juridicamente superior ao seu.51

A predileção por padrinhos e madrinhas livres talvez obedecesse à preocupação mais pragmática de criar relações com pessoas que pudessem auxiliar os cativos em qualquer questão futura. Em 16 casos encontramos ausentes padrinho e madrinha. O padrinho possuía um papel de maior importância, vis-à-vis ao da madrinha. Se somarmos o número de casos para os quais não constam padrinhos e madrinhas (16) aos casos em que somente o padrinho estava ausente, eles estiveram presentes em todos os registros, exceto em 25 deles num total, de 1.970, ou seja, 1,2%. Usando o mesmo raciocínio, constatamos que as madrinhas estiveram ausentes em 108 (5,5%) dos registros analisados. Góes encontrou os mesmos padrões para Inhaúma (RJ), onde os padrinhos exerciam um papel de maior relevo que a

51

(18)

madrinha: “Independente de suas condições jurídicas, os homens tendiam a se fazer presentes quase duas vezes e meia a mais que as mulheres [...]”.52

Nos 9 casos com ausência do padrinho, no tocante à condição social de suas parceiras notamos que as livres se fizeram presentes em 4 casos, sendo que em um apareceram duas madrinhas livres. Em um caso há referências sobre uma madrinha escrava e outra livre; em 2 casos encontramos escravas, e finalmente contabilizamos 2 casos nos quais não consta a condição social da madrinha (um deles com duas madrinhas). Quando o contrário ocorreu, isto é, quando houve ausência da madrinha, mostrou-se uma tendência a ter-se dois padrinhos no ato do batismo. Em 27 destes batismos encontramos 2 padrinhos de condição escrava; em 21 deles, 2 de condição livre. Escravos com um padrinho livre e outro escravo somam 8; um padrinho livre e um sem constar a sua condição 3; em 8 casos há 2 padrinhos, sem referências à sua condição. Os outros 24 casos só possuem um padrinho e se distribuem da seguinte maneira: em 16 casos encontramos apenas um padrinho livre; em 6, um padrinho escravo, e em 2 não consta a sua condição social.

Ainda no que concerne às madrinhas, fica nítido que a proteção por meio das divindades (protetoras espirituais) ficou a cargo das mesmas, por meio das diversas “Nossa Senhora”. Guedes destaca em sua pesquisa sobre a freguesia de São Sebastião do Rio de Janeiro 51% destas madrinhas.53 Embora este número esteja muito acima do encontrado para a nossa localidade, os números que obtivemos demonstram uma certa predileção por essas madrinhas não-carnais. Em 35 casos, Nossa Senhora aparece como madrinha. Em apenas um caso encontramos uma designação mais específica, a do inocente Roque que possui como madrinha Nossa Senhora do Rosário (padroeira dos negros). Padrinho não-carnal apareceu em apenas um caso, o da inocente Amélia, que teve como padrinho o Senhor Bom Jesus (padroeiro da freguesia). Renato Venâncio percebeu uma ausência “física” das madrinhas no Rio de Janeiro, de 1750 a 1800:

[...] esta seletividade, madrinha no céu e padrinho na terra, correspondia a uma singular desvalorização da mulher. Ou seja, se o compadrio era utilizado como um meio de acesso a bens materiais e simbólicos, podemos deduzir que o distanciamento ou inexistência de madrinhas simboliza as reais dificuldades das mulheres na manipulação e utilização do prestígio e riqueza.54

Entretanto, este não parece ser o caso da nossa localidade. Ao que tudo indica, os padrinhos e madrinhas não-carnais deviam ser designados na falta de padrinhos e madrinhas carnais, ou quem sabe tenham sido escolhidos em virtude de um agradecimento por parte de seus pais pela superação de alguma dificuldade durante a gravidez.

Entre o grupo de padrinhos e madrinhas livres, distinguimos os que foram caracterizados com algum título ou designação de prestígio social. Estamos nos referindo no primeiro caso aos tenentes, alferes, capitães e outros, e no segundo, às designações como “dona” e “doutor”. Quando isto ocorreu, a maioria desses títulos e designações era atribuída aos padrinhos: 9 padres, 6 capitães, 5 doutores, 4 alferes e 3 tenentes; entre as madrinhas, a designação “dona” aparece 3 vezes.

Supomos que os senhores não tinham interesse no estabelecimento de laços de solidariedade entre cativos de plantéis diferentes. A historiografia põe-nos a par de várias

52

GÓES, op. cit., p.56.

53

O autor atribui esta cifra ao estudo de Márcio de Souza Soares. Cf. GUEDES, op. cit., p. 49.

54

VENÂNCIO, Renato Pinto. A madrinha ausente: condição feminina no Rio de Janeiro, 1795-1811. In: COSTA, I. D. N. da. Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: IPE/USP, 1986, pp. 95-102.

(19)

estratégias empreendidas pelos senhores para dificultar o entendimento entre os cativos; chegou-se mesmo a dizer que os proprietários incentivavam a “animosidade dos escravos”, objetivando impedir ações coletivas possíveis mediante um determinado convívio social.55

Na freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, os inocentes tenderam a ter como padrinhos “irmãos de cativeiro” do mesmo plantel, tanto no caso de padrinhos (68,7%) quanto de madrinhas (65%). O número de padrinhos pertencentes a outro plantel, embora inferior aos do mesmo plantel, também se evidenciou: padrinhos (31,3%) e madrinhas (35%) (Tabela 7). Os escravos que apareceram como “segundo” padrinho/madrinha, mencionados acima, distribuíram-se da seguinte forma: no caso dos padrinhos, 9 pertenciam a plantéis diferentes e 23 eram do mesmo plantel de seus afilhados. As 2 segundas madrinha pertenciam ao mesmo plantel das crianças que elas levaram à pia batismal. Os vínculos de compadrio extrapolaram os limites do cativeiro. Essas referências parecem indicar que tais relações eram escolha dos escravos, pois seria difícil para os senhores indicar como padrinhos de seus escravos outros da mesma condição e que pertencessem a outros proprietários. Podemos pensar que, embora pequena, tenha existido por parte dos cativos uma certa mobilidade geográfica fato que provavelmente influiu no estabelecimento de laços entre escravos de diferentes plantéis.

TABELA 7

Pertinência dos padrinhos e madrinhas escravos quanto ao plantel de batizandos, 1838-1887.

Plantel Padrinho % Madrinha %

Mesmo plantel 300 68,7 311 65,0

Plantel diferente 137 31,3 167 35,0

Total 437 100 478 100

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

O expressivo número de madrinhas pertencentes ao mesmo plantel pode ser explicado por serem elas as responsáveis pela criação dos seus afilhados, caso viesse a ocorrer a morte da mãe dos mesmos, bem como uma separação por venda, partilha, ou qualquer meio que rompesse os laços entre mãe e filho. De acordo com o afirmado por Góes: “o lugar proeminente da mulher nas relações constituídas em torno do batismo de escravos era outro”.56

Na freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, como o apontado para outras áreas, constatamos que os senhores muito raramente apadrinhavam seus escravos.57 Isto aconteceu em apenas 14 dos 1.970 casos no período estudado. Ademais, poderíamos pensar que mesmo depois da lei de 1871 - quando o relacionamento senhor-escravo talvez fosse diferente, pois as crianças eram livres e, portanto, os senhores pudessem ter passado a ser seus mentores ou protetores - nossos dados não sugerem tal eventualidade. Dos 14 casos citados, 7 encontram-se em período anterior à lei e os outros 7 em período posterior, demonstrando uma simetria singular no que diz respeito ao apadrinhamento por parte dos proprietários de crianças filhas de mulheres escravas na dita freguesia. Assim, podemos afirmar que a reinterpretação do rito católico dado pelos escravos não funcionou como reforço à instituição escravista, pois o compadrio não reforçou a relação senhor-escravo.

55

GÓES, op. cit.

56

GÓES, op. cit., p.57.

57

(20)

Quando confrontamos as condições sociais de padrinho/madrinha em relação à condição social dos batizandos (Tabelas 8 e 9), chegamos à conclusão de que os livres apadrinhavam crianças de todas as condições: escravas, livres e forras. Os padrinhos de condição escrava apadrinhavam crianças livres e escravas, mas não apadrinhavam crianças de condição forra. Estas crianças eram apadrinhadas exclusivamente por padrinhos livres. No caso dos padrinhos, os forros apadrinharam, crianças escravas por 4 vezes, e as madrinhas libertas também apadrinharam por 4 vezes mas à crianças livres.

Padrinhos e madrinhas livres superaram em número aos escravos. Seria possível pensar que a partir de 1871 os escravos procuraram padrinhos que estivessem à “altura” de sua nova condição social, e/ou que os padrinhos e madrinhas livres se integrassem mais ao novo panorama da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo.

Os padrinhos livres aparecem 1.181 vezes, sendo que em 638 (54%) casos eles apadrinharam crianças livres, obviamente devido ao fato de que o número de crianças escravas passou a diminuir após aquela data. O que notamos é que este segmento (padrinhos livres) deu um salto: os livres apadrinhando crianças escravas quando somados perfizeram 537 (45,4%) casos. Um paralelo pode ser feito com os padrinhos escravos, que talvez pelo mesmo motivo tenham aumentado seu percentual em relação às crianças de condição livre (Tabela 7). Podemos constatar que mesmo após a lei de 1871, os escravos ainda continuavam a procurar seus “irmãos de cativeiro” para serem padrinhos de seus filhos livres. Em virtude da liberdade não se consubstanciar de imediato, os pais dessas crianças continuavam, embora em número menor do que os livres, a procurar laços dentro da comunidade escrava.

TABELA 8

Condição social do padrinho e do batizando, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Padrinho Batizando

Escravo % Forro % Livre % Total % Não consta

79 15,4 1 25 253 21,4 333 19,5 73 94 18,3 3 75 285 24,1 382 22,5 80 4 0,3 4 0,2 2 0,2 2 0,1 Escrava Escravo Forra Forro Livre 341 66,3 638 54,0 979 57,6 101 Total 514 100 4 100 1.181 100 1.699 100 254 Não consta 11 4 16 1

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Quando a variável “segundo padrinho” apareceu e foi possível saber sua condição, vimos que os mesmos tendiam, no caso de escravos, a apadrinhar mais as crianças livres (30), e no caso das crianças escravas esse número se reduziu (04). Um padrinho batizou uma criança em que não foi possível saber sua condição. O mesmo ocorreu com os padrinhos livres, ou seja, um maior número de inocentes livres sendo apadrinhados em relação aos escravos, entretanto notamos um equilíbrio maior entre os 11 inocentes batizados por livres e 10 livres batizando crianças de igual condição.

Os mesmos padrões podem ser percebidos para as madrinhas, com um predomínio das livres em relação às escravas. Estas, quando livres, amadrinharam 988 vezes, sendo que destas, 507 (51,3%) a crianças de igual condição à delas. Quando os afilhados eram escravos, as madrinhas levaram 475 a pia batismal (48,1%) (Tabela 9) Quando as segundas madrinhas compareceram ao sacramento do batismo, tanto as livres quanto as escravas apadrinharam somente crianças livres, 2 vezes cada uma.

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TABELA 9

Condição social da madrinha e do batizando, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Madrinha Batizando

Escrava % Liberta % livre % Total % Não consta

87 15,0 224 22,7 311 19,8 94 100 17,2 251 25,4 351 22,3 111 4 0,4 4 0,3 2 0,2 2 0,1 Escrava Escravo Forra Forro livre 393 67,8 4 100 507 51,3 904 57,5 176 Total 580 100 4 100 988 100 1.572 100 381 Não consta 10 4 14 3

Fonte: Livros de batismo da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

A maioria dos padrinhos e madrinhas que estabeleceram relações de compadrio com os escravos da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo era livre 936 (61%); e no caso de padrinhos escravos e madrinhas da mesma condição, este número se reduziu a 446 (29,1%). Mais uma vez consideramos que a grande maioria dos cativos desta freguesia visava a estabelecer relações com indivíduos de status social superior ao seu, e a minoria com indivíduos da mesma condição (Tabela 10). Notamos ainda por essas cifras que esses padrinhos/madrinhas possuíram uma forte endogamia com relação à sua condição social (livre/livre; escravo/escravo) quando estabeleceram seus parceiros, no momento de batizar seus afilhados.

TABELA 10

Condição social do padrinho e da madrinha, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

Padrinho Madrinha

Escrava % Liberta % Livre % Total % Não consta

Escravo 446 29,1 4 0,3 22 1,4 472 30,7 53 Forro 3 0,2 3 0,2 1 Livre 124 8,1 936 61,0 1.060 69,1 126 Total 573 37,3 4 0,3 958 62,4 1.535 100 180 Não consta 17 34 51 204

Fonte: Livros de batismo, da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1887.

As 4 madrinhas libertas encontradas estabeleceram como “par” unicamente padrinhos de condição escrava; os padrinhos forros também totalizaram 4 e tiveram madrinhas de condição escrava como suas parceiras em 3 casos; no outro caso consta o padrinho forro, mas não foi possível identificar a condição da madrinha.

É interessante notar que tanto padrinhos quanto madrinhas escravas tiveram como parceiros indivíduos de todas as condições sociais. Os livres também estabeleceram, muitos parceiros naquela localidade, entretanto não contraíram qualquer tipo de parceria com forros nem com libertos. Como já dissemos, encontramos uma segunda madrinha em 5 casos, e em

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2 deles ambas as madrinhas eram escravas; em um, as mesmas eram livres; em outro, uma era escrava e outra livre; no último deles não foi possível saber qual a condição social existente. Nos casos em que apareceram segundos padrinhos (69), a distribuição foi a seguinte: em 26, os dois padrinhos eram escravos; em 21, eram livres; ema 8 não foi possível saber a condição social dos padrinhos; 8 casos possuíam um indivíduo livre e o outro escravo como padrinhos; em 4, um era livre e o outro não possuía condição explicitada; um caso possuía dois padrinhos escravos com uma madrinha também cativa

Quais e quem eram os padrinhos que apadrinharam repetidas vezes? Esta também foi uma questão que nos instigou. Inicialmente fizemos um levantamento buscando nos registros de batistério aqueles que tinham comparecido a este sacramento por mais de dez vezes, e localizamos 16 padrinhos e 18 madrinhas. Contudo, quando procuramos identificar quem eram estes padrinhos/madrinhas, nos deparamos com os problemas concernentes à feitura dos registros que, neste aspecto, demonstraram falhas.

Explicando melhor, aqueles que apareceram apadrinhando ou amadrinhando mais de dez vezes foram nomeados apenas, com seu primeiro nome, constituindo-se principalmente de indivíduos de condição escrava ou livre pobre. O fato de não possuírem sobrenome dificultou sobremaneira acompanhá-los nos registros, pois os mesmos ora aparecem com suas variáveis (condição, procedência, etc.) expostas, ora não. Desta forma, os números se quebraram transformando, por exemplo, uma Maria, que aparece 82 vezes, numa infinidade de “Marias”. Para se proceder a uma análise detida sobre quais e quem eram esses padrinhos, será necessária uma pesquisa contando com outras fontes.

Em relação ao domicílio dos proprietários, pais e padrinhos envolvidos no batismo, encontramos além dos procedentes da freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (Argirita), aqueles oriundos de outras localidades (município, distrito, curato, etc.), para uma visualização da localização destes lugares em relação à dita freguesia, bem como da sua divisão administrativa (conferir Anexo 1 e mapa 1).

No caso dos “primeiros” padrinhos/madrinhas, 10 deles pertenciam, segundo o anotado nos registros de batistério, a uma outra localidade. Para os padrinhos encontramos 3 escravos (Capelinha, Monte Alegre e Nossa Senhora da Piedade) e 3 livres (Monte Alegre, Nossa Senhora da Piedade e Santo Antônio do Aventureiro); para as madrinhas, 3 escravas (Capelinha, Monte Alegre e Nossa Senhora da Piedade) e uma livre (Monte Alegre). Os “segundos” padrinhos (aqueles que fugiam as determinações do Arcebispado da Bahia) pertencentes a outra localidade foram 2 livres (Nossa Senhora da Piedade e Santo Antônio do Aventureiro), e as madrinhas foram todas do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo. Mais uma vez parece patente que quando se buscava estabelecer relações de compadrio em Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, mesmo entre plantéis diferentes, isto se dava dentro dos limites da própria freguesia.

Dos proprietários de pais e/ou mães cujo domicílio foi identificado, 10 deles são de outras freguesias próximas à do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, ou seja, residiam em outra localidade (Angu, Conceição da Boa Vista, Leopoldina, Mar de Espanha, Oliveira, Nossa Senhora da Piedade, Rio Novo, Santo Antônio do Aventureiro, Serra Bonita e São João Nepomuceno) e possuíam propriedade na freguesia em estudo. Os pais/mães foram todos considerados daquela localidade, haja vista que as crianças deveriam ser batizadas “ nas pias batismais das paróquias, donde forem fregueses [ seus pais, ou mãe, ou quem deles tiver cuidado.]”58

Em páginas precedentes, afirmamos que a Lei 2.040, ou Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, foi um fator que mudou sobremaneira a condição social dos

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Referências

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