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AS TEOLOGIAS E PRÁTICAS POLÍTICAS DOS MOVIMENTOS (ECO)FEMINISTAS

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Ivoni Richter Reimer**

AS TEOLOGIAS E PRÁTICAS

POLÍTICAS DOS MOVIMENTOS

(ECO)FEMINISTAS*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 15.07.2019. Aprovado em: 28.10.2019. Palestra proferida no III Colóquio Internacional do NEARG, em 05.04.2019, na PUC Goiás.

** Pós-doutora em Ciências Humanas (UFSC). Doutora em Teologia/Ciências da Religião (Universität Kassel). Graduada em Teologia (EST São Leopoldo). Docente na PUC Goiás (PPG em Ciências da Religião e em História). E-mail: ivonirr@gmail.com

Resumo: Apresenta panorama histórico de movimentos feministas e ecofeministas, em

seus vários contextos e tendências. Destaca interações entre esses movimentos e mulheres no campo da religião, da teologia e da espiritualidade. Situa avan-ços e retrocessos historicamente no âmbito de estruturas e sistemas de domina-ção. Elenca alguns desafios e revisões necessários em relação às emergências que surgem em novo contexto político-ideológico nacional e internacional.

Palavras-chave: Teologia. Ecofeminismo. Religião. Movimentos Feministas. História.

O feminismo, enquanto movimento social é um movimen-to essencialmente moderno, surge no contexmovimen-to das ideias iluministas e das ideias transformadoras da Revolução Francesa e da Americana e se espalha, em um primeiro mo-mento, em torno da demanda por direitos sociais e políticos (COSTA, 2005, p. 1).

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aço a introdução desta palestra, trazendo à memória as tragédias socioambientais e político-econômicas do Césio-137, há 32 anos em Goiânia, e do rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho/MG, nos últimos anos. No palco, estão grandes empresas mineradoras, destruição do ambiente por meio da mineração, depósitos de rejeitos, falta de manutenção das estruturas, exorbitantes lucros, acúmulo de capital para uma minoria, trabalho insalubre e prejuízo cotidiano em termos de saúde para a população e, no final, tragédia irreparável para todas as

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formas de vida ali existentes. A ganância e a falta de seriedade e/ou competência no exercício de funções públicas contribuíram e continuarão a perpetuar esta situação de riscos e perdas, caso não houver profunda mudança de mentalidades, empreendimentos, responsabilidades e espiritualidade.

O tema-título que me foi sugerido é amplo, bem como seu recorte espaço-temporal. A pró-pria composição do termo EcoFeminista indica para essa complexidade, pois acolhe em si dois movimentos sociais: ecológico e feminista, tendo este uma trajetória mais antiga e tendo ele também acolhido em suas perspectivas as questões ambientais e ecológicas. Por isto, resolvi fazer uma apresentação di-ferenciada, a fim de que os próprios movimentos feministas adentrem o palco em questão, para, então, entender por que teologias feministas de libertação se ocupam com determinados temas, em suas várias abordagens e linhas de pesquisa. Isto se justifica também pelo fato destes movimentos não serem tão bem conhecido por todas as pessoas no espaço acadêmico em questão, o que se evidencia ainda mais em âmbito da sociedade, igrejas e meios políticos. Desde o início, mesmo que ainda não pudesse ser assim concebido e conceituado, fato

é que o que tem impulsionado ações e estudos em movimentos feministas foi e continua sendo a desigualdade social, econômica, cultural e política entre homens e mulheres, portanto, de relações de poder e gênero, também em suas transversalidades com classe, etnia e idade. Mulheres teólogas e alguns ho-mens também participam desses movimentos e, assim, interagem no campo da teologia e da religião. Como todos os movimentos, também estes passam constantantemente por mudanças em perspectiva de demandas, reflexões e ações. Para esta atividade específica, decidi apresentar um pouco deste pano-rama e desenvolvimento.

UM POUCO DESSA NOSSA HISTÓRIA

As teologias feministas no Brasil têm se desenvolvido nos e a partir dos movimen-tos sociais e eclesiais. Epistemologicamente compartilham de elemenmovimen-tos cen-trais da Teologia da Libertação latinoamericana, e especificamente, partem das múltiplas experiências de diferentes mulheres, seu cotidiano, suas lutas, alegrias, opressões, violências e conquistas. As categorias corpo, sexualida-de, subjetividades, trabalho, público-privado, relações de poder etc. interagem tanto na conscientização que se tem de si mesma-mulher em relações, quanto na reflexão e análise em nível de pesquisa acadêmica, de coletivos e organiza-ções populares (RICHTER REIMER, 2013; CARDOSO, 2016). Uma das for-ças de movimentos e teologias feministas tem sido a interação entre as bases e intelectuais orgânicas e, na sua falta, isto também tem sido sua fraqueza, por meio de distanciamento e esvaziamento da necessária retroalimentação.

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Ainda na década de 1980, em tempos finais da Ditadura Militar, fomos percebendo, a partir dos movimentos sociais de libertação, entre eles os Sem-Terra, que as relações sociais de gênero perpassam todos os espaços societátios, numa cadeia ou rede de desigualdades que são justificadas e legitimadas via cul-tura, portanto, também religião, teologia e filosofia. Esta cadeia ou rede de desigualdades, sempre marcada por violências, começa em casa, na família e na comunidade (nível micro) e interpenetra ou atravessa a economia e o mer-cado de trabalho, as leis, as políticas de Estado, as mídias, as igrejas (nível macro) e influencia pressupostos/preconceitos que constituem a base a partir da qual são definidas as macropolíticas de desenvolvimento (MIRANDA, 2015).

Esta percepção continua existindo, visto que atualmente vivenciamos um retrocesso significativo nas diretrizes formativas de mentalidades e imaginários, sociabi-lidades e sensibisociabi-lidades, retrocesso esse pautado por violências (não só) sim-bólicas. O esforço de realizar o desmonte de conquistas sociais e políticas das últimas décadas, também em suas expressões culturais e de relações de poder, emerge raivosamente das profundezas organizacionais e estruturantes das re-lações de vida e influencia, com estonteante rapidez, opiniões e decisões por meio das mídias de comunicação. A midiatização de (des)informações e de fake news evidenciam o grau de leviandade com que a maioria do povo e seus governantes (!) está lidando e sendo levado a lidar com a vida em suas múl-tiplias relações, também ambientais. O recrudescimento das ‘ganas de poder’ é uma dessas expressões de forças que por um pequeno espaço de tempo, nos governos Lula e Dilma, foram represadas e ficaram submersas, e agora voltam estrondosamente à tona em todos os níveis de relações.

Isto que parece estar acontecendo na contramão e no desmonte de mudanças ocorridas no decorrer das últimas décadas igualmente evidencia e conscientiza para o fato que os movimentos sociais, entre eles, os movimentos feministas, estão em constante reconstruir, repensar, rearticular, com seus respectivos avanços e recuos... Nada é estático, fechado e pronto, e sempre haverá reações. Tudo está a caminho, e às vezes as ‘mudanças de trânsito’ fazem desvios/retrocessos que, dependendo de quem neles transita, podem fazer eclodir novas estratégias e articulações que, a seu tempo, haverão de florescer e dar frutos. De acordo com Mariano (2005), esses movimentos internos e muitas vezes conflitivos e paradoxais mantêm vivos as inquietações e os trabalhos realizados em ní-vel social e acadêmico, ressignificando-os continuamente. Talvez seja isto que alavanca a história, a reflexão e a (re)tomada de posições.

Para mapear panoramicamente parte da história dos movimentos feministas, tem-se utilizado o termo “onda”, o que em si já indica para movimento, fluência, interações e retropojeções entre uma e outra ondas... Vejamos alguns traços,

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demandas e conquistas que marcam estas ondas, mas que não se fecham nelas, podendo reaparecer de novo e também nas outras.1

Uma Primeira Onda: libertar e votar!

Internacionalmente, a “primeira onda” feminista refere e marca mobilizações e organi-zações de mulheres no séc. XIX-início séc.XX, cujo foco foi a reivindicação e a conquista de direito e poder políticos por meio da luta sufragista, da conquis-ta do voto das mulheres e por meio da liberconquis-tação da escravidão.

No Brasil, mulheres escritoras (Nísia Floresta e Luciana de Abreu) e a primeira médi-ca, que se tornou vereadora pelo Partido Libertador, em 1935 (Rita Lobato), foram importantes na conquista de direitos políticos das mulheres. Um desses direitos foi o voto das mulheres, que foi constituído via Código Eleitoral, no governo de Getúlio Vargas, em 1932, sendo que, em 1933, Carlota Pereira de Queiroz (SP) e Almerinda Gama (DF) foram eleitas deputadas constituintes. Nesse diapasão, também na área da Teologia, começava-se a pensar sobre a participação de mulheres na liderança de funções eclesiais.

Os terrores da Segunda Guerra Mundial, do fascismo, que sempre é de direita, e do holocausto contribuíram, em seu revés, para a eclosão de novas percepções, conscientização e mobilizações. No Brasil, o Estado Novo (1937-1945) sofreu com a derrocada de nações nazi-fascistas, e os movimentos sociais reivindicaram a instauração de processo de redemocratização, com indulto a presos políticos e constituição de eleições gerais. Nesse contexto e, especificamente, em nível sociocultural, destacava-se ideologicamente, por parte do Estado e da Igreja, o papel da mulher na esfera privada, como boa esposa, dona de casa e mãe. Movimentos de mulheres sofreram represálias políticas e foram alvo de inves-tigações policiais (MORENTE, 2017). É significativa a Primeira Convenção Feminina, da Federação das Mulheres do Estado de São Paulo, em março de 1949, que teve como tema: PELA PAZ POR UMA VIDA MELHOR, tendo como um dos resultados a constituição de Associações de Mulheres e Grupos de Estudo2. As conquistas políticas foram significativas para a história das

mu-lheres, mas continuavam esbarrando na ideologia patriarcal da subordinação das mulheres, o que legitimava seu papel de procriação, de cuidado da família, os mais baixos salários e a dificuldade de acesso à educação e à saúde, bem como a direitos civis.3

No campo da Teologia4, houve o importante alvorecer do grupo em torno de Elisabeth

Cady Stanton, nos Estados Unidos da América. Ela e seu grupo participa-vam do movimento sufragista e de abolição da escravidão e que, para melhor entender e combater a legitimação teológica da submissão de mulheres, in-gressou no curso de Teologia e, com o domínio das línguas bíblicas antigas e

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do método histórico-crítico, editou a primeira Bíblia das Mulheres, uma lei-tura crítico-libertadora de textos bíblicos que tratam de mulheres. No Bra-sil, mulheres protagonizavam em lutas pela posse da terra e pela participação de mulheres na igreja e na política, como no caso da líder religiosa luterana Jacobina Mentz Maurer, na revolta dos Muckers (1868-1874), em Sapiranga (RS). Ela atuou como líder social e eclesial, e serviu simultaneamente para, de um lado, acirrar os ânimos reacionários dos políticos/coroneis contra as lutas de libertação e, de outro, acalentar a esperança de mulheres e homens pobres em busca de participação, dignidade e direitos.5 Em outros estados

brasileiros pode-se reconstruir histórias de mulheres que enfrentaram, nesse período, o patriarcado, como é o caso também em Goiás6. Benedita Cipriano

Gomes nasceu na roça, em Lagolândia (hoje Pirenópolis), e cresceu com sua avó, trabalhando na lide doméstica e participando da vida religiosa católica do seu povo. Tornou-se curandeira, conselheira e líder carismática na luta contra oligarquias, enfrentando reações da igreja católica e dos políticos. Liderou co-munidade de aproximadamente 500 pessoas, em forma de comunhão de bens, chamada Corte dos Anjos. Para grande parte do povo goiano, ela era conside-rada santa, motivo pelo qual também realizavam romarias para Lagolândia, contando com a participação de até 15 mil pessoas. Ela estudou, fundou um jornal, participou do exército contra a Coluna Prestes em Goiás (1924-1925) e continuou seus trabalhos de liderança de comunidade ‘socialista’. Esta forma de organização do trabalho coletivo na terra e a atuação religiosa da mulher foram consideradas como um risco para o quadro político-social em Goiás e como uma ameaça de um ‘novo Canudos’, de acordo com o clero redentorista da região (SIQUEIRA, 2016), sendo que o governo do Estado resolveu aca-bar com a comunidade. Houve resistência, que foi vencida pelo exército, com várias pessoas mortas, feridas e presas, entre elas, também Benedita Cipriano Gomes, Santa Dica. Após um ano, saiu da prisão e, com um pequeno grupo, foi ao Rio de Janeiro e a São Paulo, de onde voltaram fortalecidos, passando a integrar lutas mais amplas, como a Revolução Constitucionalista (1932). Nes-se deNes-senvolvimento, tornou-Nes-se importante personagem na luta pelo sufrágio feminino e por outras formas de organização do trabalho e das relações entre homens e mulheres.

Esses três exemplos, aos quais podem ser reunidos muitos outros em todo o mundo, evidenciam os primeiros passos de movimentos sociais em que também mu-lheres foram lideranças em nível religioso, político e econômico. No conjunto e em seus diferentes contextos, percebe-se que todos eles sofreram represálias e confrontos, e foram combatidos por se tratar de mulheres que estavam à sua frente e por causa dos projetos de libertação e liberdade para mulheres e ho-mens, que neles eram experimentados. Portanto, ser mulher era uma condição

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que estava sendo ampliada para outros âmbitos, para além do lar, do privado e da dependência.

Uma Segunda Onda: o pessoal é político!

Com algumas conquistas e muita repressão, os movimentos de mulheres constituíram o que se convencionou de chamar de “segunda onda”, que tem na década de 1960 um marco referencial, junto com os movimentos contestatórios estudantis, paci-fistas (guerra Vietnã) e hippies. As desilusões em relação às conquistas de direitos políticos civis contribuíram com novas percepções e perspectivas. A mobilização foi forte contra a ditadura militar, com apoio internacional e com a luta e con-quista do acesso de mulheres da classe média à educação superior.

Neste contexto, é preciso lembrar que os movimentos sociais e políticos de mulheres são heterogêneos e às vezes antagônicos. No caso, e especificamente para o atual momento político brasileiro, é bastante oportuno lembrar o movimento ideológico que articulou, em 1964 e1968, as “Marchas com Deus, pela Pátria e pela Família”, em que mulheres participaram e foram usadas como massa de manobra em favor da ditadura (COSTA, 2005, p. 4), representando, estas, mo-vimentos de mulheres ‘bem comportados’, que eram e são aceitos e apoiados pelas direitas na política e nas igrejas.

De outro lado, estavam os movimentos feministas, cujo slogan marcou esta “segun-da on“segun-da”, afirmando: “O pessoal é político”.7 Com isto, estava-se propondo

ruptura com a compreensão limitada da política, restrita ao espaço público. Começamos a estudar teorias históricas sobre o patriarcado, que se estende para todos os setores da sociedade e das relações humanas. Entendendo-se o patriarcado como sistema de poder de homens (ricos, maioria brancos, escra-vocratas, coroneis...) para a subordinação de mulheres, e também com o apoio de muitas delas que compartilha(va)m desta ideologia, priorizou-se o com-bate aos dualismos (dicotomia público-privado) e essencialismos (GEBARA, 1997), que é base fundamental para ideologias liberais acerca das questões específicas da política e do poder político.

Destacou-se que a opressão das mulheres tem caráter político-ideológico e, mesmo sendo experiência pessoal, não pode ficar restrita e ‘guardada’ ao espaço pri-vado, pessoal e doméstico. Foi-se percebendo que as condições e os contextos, bem como as circunstâncias de experiências pessoais são estruturadas e estão circunscritas por meio de fatores públicos, legais e religiosos e que, portanto, problemas ‘pessoais’ e/ou individuais “só podem ser resolvidos através dos meios e das ações políticas” (PATEMAN apud COSTA, 2005, p. 2).

No conjunto, dentro do processo de redemocratização do país, no embalo dos movi-mentos políticos, sociais e religiosos, “Diretas Já”, e com a tarefa de repensar

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política e poder, ocorreu uma intensa mobilização, no campo e na cidade, para reivindicar as demandas ‘das mulheres’ junto ao Estado. Trazendo novas questões para dentro do espaço público, foram os movimentos feministas que também apontaram para a necessidade de rever condutas, dinâmicas, práticas e conceitos. Começou-se a estudar, dentro da análise do patriarcado e do se-xismo, categorias analíticas de gênero. Questionando sistemas socioculturais construídos e legitimados com base nos papeis e funções de gênero, histori-camente atribuídos às mulheres, movimentos feministas colocam-se na defesa dos direitos de gênero das mulheres, ao que, aos poucos, agregam-se também homossexuais e, atualmente parte de movimentos LGBTI+.8

No conjunto, mulheres ampliaram a atuação política com significativas conquistas de espaços institucionais para garantir seus direitos e os de quem elas representa-vam (crianças, adolescentes, pessoas idosas). A criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM - 1985 com o presidente Tancredo Neves) e a Constituição Cidadã (1988: “Constituinte pra valer tem que ter voz de Mu-lher”) tiveram a participação de mulheres oriundas de movimentos feministas, e ambos representam importante marco na defesa dos direitos equânimes para mulheres e homens no Brasil.

Neste sentido, aos movimentos sociais feministas, articulados com vários setores da sociedade, caberia

pressionar, fiscalizar e buscar influenciar esse aparelho [o Estado], através dos seus diversos organismos, para a definição de metas sociais adequadas aos in-teresses femininos e o desenvolvimento de políticas sociais que garantissem a eqüidade de gênero (COSTA, 2005, p. 7).

Um dos grandes desafios, desde então, consiste no esforço e no trabalho de pensar e discutir estratégias e mecanismos que possam dar conta de enfrentar as dis-criminações e opressões. Junto com isto também foi e é preciso repensar, re-ver e rearticular o diálogo e as relações com partidos políticos, com partes progressistas da igreja, com o Estado e com a sociedade em contexto patriar-cal, sexista, capitalista, racista e homofóbico. Em termos de práticas políticas institucionais, este movimento foi denominado lobby do batom e, junto com as reflexões, os projetos e as ações das Organizações Não-Governamentais feministas, significou também uma quebra com os tradicionais modelos de re-presentação. Por meio do CNDM, de forma especializada e profissionalizada, investiu-se em dinâmicas de pressão e mobilização em relação a direitos de gênero junto ao Estado, no intuito de influenciar nas políticas públicas.

É neste contexto, e em conexão com os resultados da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), em Beijing/China, que movimentos sociais feministas

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afirmaram o direito da mulher ao seu corpo, o que repercutiu em estudos da se-xualidade, do prazer e dos direitos reprodutivos, contra a violência doméstica. Este movimento refletiu também no campo da Teologia, por meio do acesso que, desde a década de 1970, em algumas igrejas, mulheres conquistaram para realizar o Curso de Teologia. Suas pesquisas e produções ocorreram por meio do estudo regular, acadêmico e de assessorias que elas realizavam em vários espaços formativos (eclesiais, pastorais, Centros de Estudos Bíblicos, Conse-lho Lationo Americano de Igrejas) e começaram a ser publicados em revistas da área, como Estudos Bíblicos, Cadernos do CEBI, Revista de Interpretação Bíblica Latino Americana (RIBLA), Concilium, Mandrágora, Estudos Femi-nistas, Estudos Teológicos entre outras, bem como em materiais de estudo, como As Igrejas Dizem NÃO à Violência Doméstica e Lar nem tão Doce Lar, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

Nesse desenvolver de processos e reflexões, da observação de realidades e demandas, também o ‘meio ambiente’ deixou de ser tratado como questão particular para tornar-se agenda, no compasso muitas vezes dissonante com outros movimen-tos socioecológicos. A esses movimenmovimen-tos e ações denominou-se ecofeminis-mo, do que tratarei mais detalhadamente abaixo. Em si, no campo social, fe-ministas têm-se inspirado em percepções espirituais holísticas e alternativas, também considerando a terra e seu corpo como sagrada, na interrelação com humanos que precisam todAs de cuidados. No campo teológico, feministas revisitaram tradições ancestrais diversas (bíblicas, indígenas, afrodescenden-tes, europeias de vários matizes) que têm na percepção da unidade de toda a criação o seu referencial, projetando o paradigma do cuidado e da relação para as reflexões e ações socioambientais.

A Terceira Onda: firmar estacas e alargar as tendas

A “terceira onda” dos movimentos sociais feministas marca sua existência a partir da década de 1990, aprofundando e revendo as principais questões até então tra-balhadas, destacando a necessidade de:

colocar nos espaços públicos as temáticas relacionadas aos problemas enfren-tados pelas mulheres, isso por meio de ações que buscam a garantia dos direitos legais das mulheres, o direito à sua autonomia e à integridade de seu corpo, ao aborto e direitos reprodutivos, à proteção contra a violência doméstica, contra o assédio sexual e o estupro (MIRANDA, 2015, p. 353).

Os anos entre 2003-2016 tinham sido significativos em relação às conquistas dos mo-vimentos sociais feministas no campo das políticas públicas. Mesmo assim,

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há algumas questões que devem ser ponderadas para análise do passado e para os projetos e ações a serem realizados nos tempos atuais, considerando as próximas gerações (“quarta e quinta ondas”): Dentro do contexto histórico, um importante passo político-institucional foi a reivindicação pelas bases e a criação, pelo presidente Lula, em 2003, da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM). Nesse lastro e com o apoio do SPM e do CNDM, foram realizadas várias Conferências Nacionais, que mobilizaram milhares de mu-lheres em nível nacional. Mesmo com estes avanços e conquistas, é importante observar que a relação dos movimentos feministas com o Estado nunca foi tranquila nem natural, pois ela esteve e está permeada por conflitos de interes-ses e ideologias apresentados pelas pautas de outros movimentos dentro deste mesmo Estado.

Neste sentido, destacam-se avanços de algumas pautas feministas, alcançadas em meio aos respiros de abertura para as questões de gênero: combate à violência con-tra a mulher, também por meio da criação da Lei Maria da Penha (2006) e das Delegacias de Mulheres, a regulação do emprego doméstico e das políticas públicas de saúde da mulher. Neste mesmo contexto, mas no contraponto de movimentos feministas, outros movimentos sociais e político-religiosos re-frearam as conquistas, bloqueando ações que tratavam temas da equidade de gênero, por meio do questionamento do direito ao aborto, da criação da Rede Cegonha, do Estatuto do Nascituro e por meio da retirada das questões de gê-nero e sexualidade do Plano Nacional de Educação (PNE) (MIRANDA, 2015). Semelhantes avanços e retrocessos devem ser considerados para as relações, projetos e

trabalhos de movimentos feministas dentro de igrejas, representados majorita-riamente por mulheres.

Não há dúvida que os movimentos feministas pós-Beijing e pós-Fóruns Sociais Mun-diais ficaram mais complexos e heterogêneos, ampliando seu campo de atu-ação e de embates gerando várias formas de feminismos: negro, indígena, LGBTI+, popular, acadêmico, ecofeminismo etc. Em todos os espaços, as atividades e a mobilização voltam-se à conquista e manutenção de políticas públicas e esforçam-se para ampliar ações afirmativas, mudança e melhoria da legislação protetiva às mulheres, avaliação e acompanhamento de acor-dos internacionais firmaacor-dos com o governo. Nisto tudo, as tratativas e as ações para incorporar a equidade de gênero nas políticas públicas têm sido um desafio constante. A sub-representação de mulheres em vários espaços de poder permanece sendo outro desafio. E no atual momento, o maior desafio é reacender chamas de mobilização, discussão, redemocratização, organização e estratégias para superar ideologias e políticas de banalização e barbarização (MOREIRA, 2019) da sociedade brasileira e, entre elas, eu incluo a indiferen-ça e o acovardamento da maioria da população.

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NOSSAS TEOLOGIAS (ECO)FEMINISTAS

O termo ecofeminismo é recente (final de 1970). Foi cunhado no interior de movimen-tos sociais e políticos na França, no esforço de associar as lutas por transfor-mação das relações de poder entre homens e mulheres também à necessária mu-dança das relações humanas com o ecossistema (CANDIOTTO, 2012), devido ao desastre ambiental-ecológico cada vez mais evidente em todos os lugares do mundo, principalmente no hemisfério sul. Portanto, movimentos e teologias ecofeministas situam-se e se movimentam em “nível político-ideológico das lutas sociais e das relações nacionais e internacionais entre os grupos humanos diante do crescente desastre ecológico” (GEBARA, 1997, p. 9).

A Teologia da Libertação, especificamente em suas perspectivas feministas, teve força, criatividade, resistência e alentou esperança junto com milhares de grupos, comunidades e eventos acadêmicos e eclesiais desde a década de 1980 até hoje. As teologias feministas, assim como os movimentos sociais feministas, respondem às necessidades oriundas de seus respectivos contextos (RICHTER REIMER; JANSSEN, 2013). Trata-se, portanto, de teologias contextuais. Des-de o início, no Brasil, elas colocam a vida digna, justa e prazerosa das mulheres em suas relações familiares, sociais, econômicas e políticas no centro de seus estudos. Não se trata de isolar mulheres, mas de contextualizar sua história presente e passada, a fim de perceber e transformar heranças que resultaram em apequenamentos de nós mulheres, dos quais muitos estão fundamentados religiosamente e consolidados por meio de ideologias patriquiriarcais.9 Por

estarem inseridos em movimentos sociais e eclesiais de libertação, os estudos realizados pelas teologias feministas acompanharam as ondas dos movimentos sociais feministas: o autoconhecimento/conscientização de si mesma e a busca por um lugar ao sol neste mundão de Deus; o direito de ser mulher, sujeito de sua história e do seu corpo, e dizer o que pensa (ter vez e voz); participação ati-va e efetiati-va em diversos espaços (família, comunidade, igreja, Estado); a dig-nidade de ser imagem e semelhança de Deus; a salvação como graça de Deus para pessoas de qualquer etnia, classe, gênero e idade; a ética como resposta ao amor no princípio da responsabilidade; a denúncia e a luta contra qualquer forma de violência, especificamente de gênero e doméstica; afirmação da cor-responsabilidade e da interdependência de todos os elos da criação etc.10

É no conjunto dos movimentos sociais feministas, pois, que começam e se aprofundam estudos teológicos sobre Ecologia, especificamente em perspectivas ecofemi-nistas, que coaduna ênfases e demandas feministas com emergências ambien-tais ecológicas, também vinculadas às relações econômico-sociais. Como em todos os movimentos sociais, também no ecofeminismo há várias tendências. De acordo com Rosângela Angelin (2006 apud FLORES; TREVIZAN, 2015),

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existem três tendências ecofeministas: a clássica [essencialista], a espiritualis-ta e a construtivisespiritualis-ta.

De forma resumida11, a tendência clássica considera que o homem/masculino teria uma

predisposição natural que o impele a competir e a destruir, e que sua obsessão pelo poder pode conduzir a guerras suicidas, bem como envenenar e destruir todo o planeta; em contraposição, uma ética feminina seria a de proteger os se-res vivos, opondo-se, assim, às agse-ressões ‘dos homens’ na busca por construir relações de igualdade, de pacificação e de preservação da natureza. A tendên-cia espiritualista elabora argumentos para mostrar que o desenvolvimento de ciências e tecnologias gerou simultaneamente processos de violência contra a mulher e o meio ambiente/ecossistema. Ela se mobiliza para lutar contra a do-minação, o antropocentrismo, o racismo, o sexismo e o elitismo etc. e, nisso, atribui para a mulher uma natural tendência protetora da natureza. A tendência construtivista tem semelhanças com as outras duas, no sentido de compartilhar ideias e ideais contra o racismo, contra o antropocentrismo e contra os impe-rialismos. Nisso, contudo, não assume que a relação que a mulher estabelece com a natureza seja devido a uma característica intrínseca do sexo feminino, mas que ela advém da responsabilidade de gênero, que também resulta da divisão social do trabalho, da distribuição do poder e da propriedade. A expli-cação é sociocultural no conjunto de uma estrutura sociopolítica marcada pela desigualdade.

A abordagem essencialista/clássica, é questionada por teólogas feministas como Ivone Gebara (1997, 2000) e Rosemary Radford Ruether (1975, 2014). O problema se coloca na percepção essencialista entre mulher e natureza, o que também se revela na predefinição ou no preconceito acerca da natureza e do ser mu-lher, geralmente realizado por homens no decorrer da história. Essa ‘essência comum’ pode desviar a atenção dos principais problemas sociais e políticos, como p.ex. a discussão acerca da função das mulheres no mundo público/pri-vado. Tal abordagem essencialista pode simplificar o lugar estratégico da críti-ca ao subordinacionismo hierárquico e à exclusão das mulheres na maquinaria patriarcal. Tais perspectivas acabam por restringir a atuação e a reflexão de mulheres ao âmbito doméstico/individual (maternidade e cuidado da família), e seu desdobramento ético associa-se a um preconceito do ‘feminino’ que quer e afirma que mulheres são mais intuitivas, sensíveis e empáticas, enquanto que o mundo dos homens é caracterizado pela agressividade, competitivida-de, autocentração e eficiência. O essencialismo acaba abraçando e/ou sendo abraçado pelos dualismos. Esta abordagem é mais ‘palatável’ e fomentada também em movimentos sociais, políticos e eclesiais conservadores, o que se torna bastante candente no atual momento conjuntural. E nisso mantém-se a subordinação hierárquica entre o público e o doméstico, com exacerbada

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valo-rização do espaço doméstico, desconsiderando que nele também se originam e reproduzem várias formas de violência e hierarquia. Nesse sentido, é bom lembrar que uma ‘onda’ não termina; ela se refaz em novas circunstâncias... No momento, parece-me que a essencialista é que readquiriu maior força de expressão, porque convém às políticas e ideologias que representam a maioria do povo brasileiro por meio de seus governistas.

A crítica às tendências essencialistas é importante, porque chama a atenção para a flui-dez entre o público e o privado/doméstico, bem como para a mobilidade dos seus agentes (presença de mulheres no espaço público ao lado dos homens; participação e divisão de tarefas do espaço doméstico entre elas e eles). Em termos teológicos, estas abordagens essencialistas entre mulheres/homens/na-tureza têm contribuído na consolidação dicotômica entre espaços público e privado, bem como na tentativa simbólica de substituição de divindades mas-culinas por divindades femininas, sustentadas nos processos biológicos das mulheres, buscando reconstruir um ‘paraíso perdido’ (CANDIOTTO, 2012). Para dar conta dos desafios atuais, é preciso perceber e assumir, para além das

di-ferenças, a luta contra uma “visão utilitarista da natureza, no mesmo estilo ao que [...] ocorre nas instituições da sociedade hegemônica, dominada pelos homens” (FLORES; TREVIZAN, 2015, p. 23). Em termos de trabalho her-menêutico e teológico, é urgente realizar ininterruptamente pesquisas críticas em perspectiva ecológica, “buscando sempre uma integração entre o grito dos pobres e os gemidos da criação” (REIMER, 2006, s/p).

Como relevante para os desafios das próximas gerações, podemos assim resumir o conjunto de proposições ecofeministas para a construção de relações que via-bilizem ambientes saudáveis e sustentáveis:

oposição a um desenvolvimento de maximização de benefícios monetários, em detrimento da saúde das comunidades humanas e dos ecossistemas; incorpora-ção e valorizaincorpora-ção dos saberes e trabalhos das mulheres envolvidas em ativida-des também de subsistência; concentração na organização econômica e política da vida e do trabalho das mulheres que apresente alternativas à crise ecológica e melhoria das condições de vida das mulheres e dos pobres; busca da autos-suficiência, da descentralização e da auto-organização, mediante a busca de equilíbrios (HERRERO apud FLORES; TREVIZAN, 2015).

Em consequência, permanece a perspectiva de feministas que a libertação não só de mulheres oprimidas, no conjunto das relações de gênero, encontra-se interliga-da a movimentos ecofeministas de libertação interliga-da mulher e interliga-da natureza, ambas exploradas por meio de sistemas patriquiriarcais de exploração, de acúmulo do capital e de subordinação de gênero. As tecnologias capitalistas da extração

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de minérios e da desterritorialização das riquezas naturais e humanas a serviço do acúmulo de capital, da destruição e da morte, colocam enormes desafios para rearticular as tecnologias teológicas12 a serviço das pessoas

empobreci-das e abandonaempobreci-das por este sistema capitalista, que adentra altares religiosos ideologicamente marcados por este mesmo capital. Neste diapasão, continua sendo verdadeira a constatação que a maioria das pessoas empobrecidas são mulheres. Portanto, continua sendo imprescindível a “necessidade urgente de vincular a luta pelos direitos das mulheres à luta em defesa da natureza”, tomando-se o cuidado, como afirma a cientista da religião Sandra Duarte de Souza (2000, p. 63), de “relativizar a afirmação de que a relação harmônica com a natureza redundaria [necessária e imediatamente] na superação da do-minação da mulher”. Esta superação não é automática, uma vez que o ecofe-minismo está situado “no nível políticoideológico das lutas sociais e das rela-ções nacionais e internacionais entre os grupos humanos diante do crescente desastre ecológico” (GEBARA, 1997, p. 9). As relações, pois, permanecem sendo de poder, também entre mulheres em seus respectivos agrupamentos humanos, ideológicos, políticos e culturais, o que atualmente e de forma muito clara se evidencia também nas representações políticas de mulheres nas diver-sas ‘cadiver-sas do povo’.

DESAFIOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, um dos esforços de teologias ecofeministas tem sido trabalhar em termos de reciprocidade e cooperação para um questionamento e reordena-mento da inter(rel)ação entre seres humanos e natureza. Para tal, faz-se ne-cessário constante e criativamente desconstruir epistemologias, imaginários e simbólicas permeados de dualismos, essencialismos e hierarquias, muito presentes em nível religioso e ideológico de diversos matizes, que permeiam relações políticas, econômicas e socioculturais (HOORNAERT, 2014). Esta desconstrução visa contribuir na revisão e reconstrução de relações de poder, especificamente de gênero, classe, etnia e idade no contexto de um mundo machucado pela ganância, pelo acúmulo, pelo desperdício e pelo abuso de poderes, gerando violências em todas as suas formas de manifestação.

Já na década de 1970 se vislumbrava o desafio e a necessidade de perceber e articular a interdependência entre a libertação das mulheres e as soluções para a crise ecológica. Este desafio persiste em nosso contexto, tempo e mundo marcados por relações de dominação. Portanto, é preciso rever e refocar os trabalhos conjuntos dos movimentos feministas e ecológicos, buscando parcerias jun-to a outros movimenjun-tos sociais, políticos e eclesiais, que igualmente possam atuar na busca comum de antever e realizar a necessária e radical mudança

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“nas relações socioeconômicas e nos valores da moderna sociedade industrial” (FLORES; TREVIZAN, 2015, p. 13).

Uma das propostas de teologias ecofeministas tem sido a cura integral do mundo, indis-sociável da postulação de uma nova espiritualidade, articulada também com a política (GEBARA, 1997, 2000; RICHTER REIMER, 2010; RUETHER, 2014). A releitura de tradições bíblicas, como a da criação e da aliança, bem como a revisão e reconstrução de uma cosmologia sacralizada e da práxis libertadora de Jesus, nas quais são analisadas também as relações de poder, tem contribuído para algum avanço de teologias ecofeministas para além dos enquadramentos essencialista, espiritualista e construtivista.

Aqui, em relação à cosmologia sacralizada no intuito de ressacralizar um mundo já desencantado, faz bem considerar que este pode ser um argumento ineficaz para desacelerar a exploração cada vez maior dos recursos naturais e impedir um mundo cada vez mais poluído para as gerações atuais e futuras. Um motivo para este questionamento é que todos os seres do universo devem ser respeitados pelo inerente direito que têm à vida e não porque sejam sagra-dos ou porque Deus neles transparece, haja vista as infindáveis e ineficazes discussões acerca do que e de quem seja sagrado, sempre culturalmente con-textualizado.

Além disso, considero fundamental reincorporar de maneira radical a crítica à cobiça humana e seu domínio sobre a natureza, conscientizando-nos que a mediação da tecnologia na ação humana tornou-a tão poderosa a ponto de poder fazer desaparecer qualquer forma de vida, principalmente as mais vulneráveis (GE-BARA, 2000). Neste sentido, ao invés de potencializar a separação/distinção entre a esfera da comunidade humana e a esfera da comunidade ecológica, o princípio vida – unindo ambas - pode situar afirmativamente o Mundo como um mesmo corpo de Deus. O risco de qualquer tendência (eco)feminista, per-manecendo isolada, é pulverizar e, com isso, enfraquecer o potencial político e emancipatório, que é uma das características centrais da categoria analítica das relações de gênero das teologias feministas.

E nesse quesito, importa firmar os grandes desafios que repercutem nos pequenos-gran-des pequenos-gran-desafios do cotidiano, quiçás pautas de agenda para a quarta e quinta ondas: grande desequilíbrio no acesso e exercício de poder entre homens e mulheres e a estrutura hierarquizada existente nas relações de poder em qualquer nível. Contudo, o acesso ao poder não garante de per se o diferenciado exercício em qualquer função de poder. Há de exercitar-se nesse acesso e nesse exercício, a fim de democratizar e tornar as relações de poder mais justas, sustentáveis e prazerosas. Para tal, tomo como referência algumas poucas experiências posi-tivas existentes tanto em nível público como privado, lembrando que nenhuma relação é fixa e continuada. Ela precisa ser revista no percurso, sofre mudanças

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e é passível de adaptações necessárias, temporárias e revisáveis. No conjunto, há de se considerar sempre as partes mais vulneráveis das relações, bem como o fundamento comunitário como referencial do exercício de poder, na demo-crática busca do bem integral de toda a criação.

Para tal, sempre de novo faz-se desafio “refletir os elementos religiosos em seu poten-cial para o desenvolvimento de uma espiritualidade de resistência” (LASSAK, 2012, p. 108). Isto faz parte de uma mística autodeterminada, não vinculada institucionalmente para se fazer força para as partes mais vulneráveis da cria-ção. Esta espiritualidade está profundamente imbricada na vida, no cotidiano e, portanto, também nas lutas e nos movimentos por libertação, em sua diver-sidade. Esta espiritualidade mística envolve sensibilidades e compaixão para com o conjunto da criação: onde um membro sofre, todo o corpo sofre e busca socorrer o mais vulnerável (1Co 12), denunciar as causas do sofrimento e alegrar-se com as conquistas no caminho.

Finalizando, volto às tragédias mencionadas no início e que perpassam esse texto na sua cotidianeidade e emergência, citando Pereira (2016, p. 107):

as tecnologias que servem ao poderio dos Impérios, de modo exemplar a minera-ção e os mecanismos de definiminera-ção do valor, são modos de ocultamento da justiça porque se apropriam da natureza de modo violento e restrito, e legitimam as for-mas de sofrimento e desigualdade.

Tecnologias podem evitar tragédias, mas não o têm feito. As tecnologias a serviço do acúmulo de capital, da violência e da morte não coloca(ra)m a dignidade da vida no centro de seus interesses e de suas ações. As injustiças, violências e tragédias clamam estrondorosamente para que sempre de novo aprendamos a entendê-las

• como expressão do ineficiente compartilhamento da vida em setores especí-ficos e não interrelacionados;

• como exemplo de que qualquer projeto e empreendimento deve passar pelo crivo da autosustentabilidade e da preservação do ambiente/da vida toda; • como alerta para a ineficácia de órgãos públicos e governamentais na

libera-ção e no controle de empreendimentos não sustentáveis;

• como chamamento para mobilização, organização e vigilância por parte de movimentos sociais e eclesiais;

• como conscientização de que não é tempo para banalizar e barbarizar as de-mandas ecofeministas;

• como radical expressão da urgência de nos insurgirmos na luta contra expres-sões de morte e violência.

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Então sempre de novo será tempo para rearticularmos nossas pesquisas e ações em prol da dignidade e qualidade da vida em todas suas expressões e dimensões, em prol da justiça e da equidade nas relações de gênero, classe, etnia e idade em interrelação com todo o ambiente, com toda a vida. E nesse sentido, esperança e militância ressurgirão também no campo das espiritualidades, que pode re-troalimentar as nossas pesquisas, ações e movimentos!

THEOLOGIES AND POLITICAL PRACTICES OF THE (ECO)FEMINIST MOVEMENTS

Abstract: It presents a historical panorama of feminist and ecofeminist movements

in their various contexts and trends. It highlights interactions between these movements and women in the field of religion, theology and spirituality. It situ-ates advancements and setbacks historically within the framework of struc-tures and systems of domination. It lists some challenges and necessary revi-sions regarding emergencies that arise in a new political-ideological context, nationally and internationally.

Keywords: Theology. Ecofeminism. Religion. Feminist Movements. History.

Notas

1 Atualmente constatamos uma quarta e quinta ondas das novas gerações de feministas. 2 O artigo de Ostos (2012) apresenta e elabora as contribuições e represálias de movimentos

de mulheres no período do Estado Novo, bem como a ideologia patriarcal conservadora que vigorava com o apoio da Igreja Católica.

3 A inventiva patriquiriarcal da ‘ideologia de gênero’ é reação aos movimentos e às conquistas civis, jurídicas e religiosas de mulheres. Ver Machado (2018) e Souza (2000).

4 A este respeito ver Richter Reimer (2005), com referências. 5 A este respeito ver Richter Reimer (2005, p. 20-21).

6 Maiores informações sobre mulheres pioneiras nas lutas contra opressão e discriminação em Goiás, ver Siqueira (2016, p. 52-58).

7 Oportuno lembrar que é abusivo, ofensivo e inverídico caracterizar o movimento como a ‘queima do sutiã’.

8 A respeito de políticas públicas para a população LGBTI+, especificamente de segurança pública, o que também se interrelaciona com segurança de gênero e ambiental, ver Mello, Avelar e Brito (2014).

9 Acerca desse conceito, ver Schüssler Fiorenza (2009, p. 129-143) e Richter Reimer (2005, p. 16-35).

10 Parte da inspiração para os estudos e as ações em relação às questões socioambientais esteve nas origens de parcerias com movimentos sociais de libertação na Europa, como o movimento ecumênico “Frieden, Gerechtigkeit und Bewahrung der Schöpfung”, no qual

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temos as participações de Luise Schottroff, Marlene e Frank Crüsemann, Rainer Kessler, p.ex., e de Rosemary Radford Ruether, nos EUA.

11 Ver detalhes em Flores; Trevizan (2015, p. 12-15).

12 Acerca destas tecnologias, ver Cardoso (2016, p. 108-109). Referências

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Referências

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