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Contribuições da Teologia da Libertação para os Movimentos Sociais

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Academic year: 2021

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Alberto da Silva Moreira**

Resumo: neste artigo busco delinear e pensar algumas contribuições fundamentais do

que Löwy chamou Cristianismo (ou Teologia) da Libertação para os movimen-tos sociais no Brasil, com consequências globais mais amplas. Os movimenmovimen-tos sociais receberam da teologia da libertação, enquanto teoria social, prática política e motivação ético-religiosa, um impulso duradouro, que ainda reverbera em muitos contextos dentro e fora da realidade latino-americana.

Palavras-chave: Teologia da Libertação. Movimentos Sociais. Igreja Católica. América

Latina.

M

ichel Löwy, um dos mais fecundos e interessantes pensadores franceses (e brasileiros) da atualidade, distinguiu na sua obra A luta dos deuses (LÖWY, 2000) entre Teologia da Libertação e Cristianismo da Libertação. Segundo Löwy, o conceito Teologia da Libertação não é adequado para referir-se ao amplo movimento social e religioso que conhecemos sob esta designação. Primeiro,

Teologia da libertação refere-se à obra e aos textos de um grupo numeroso de

teólogos, entre eles Gustavo Gutiérrez, Hugo Assmann Leonardo Boff, Enrique Dussel e diversos outros. Segundo, o movimento social e religioso é mais antigo do que os textos da teologia e a maioria de seus ativistas não eram e não são teólogos. Na verdade muitos deles não são católicos e outros nem sequer estavam ligados diretamente a uma Igreja. Portanto, segundo Löwy, o movimento social e político que mobilizou e mobiliza a rede social, a cultura religiosa, a prática

CONTRIBUIÇÕES DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO PARA OS MOVIMENTOS SOCIAIS* ––––––––––––––––– * Recebido em: 22.04.2012. Aprovado em: 06.06.2012.

** Doutor em Teologia e Ciências da Religião. Professor no PPG em Ciências da Religião da PUC Goiás. Coordenador do Núcleo de Estudos Avançados em Religião e Globalização.

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política e de fé, deveria ser denominado Cristianismo da libertação. A Teologia da libertação seria, então, o produto espiritual e teórico deste movimento muito mais amplo. (LÖWY, 2000, p. 56s, 59). Estou fundamentalmente de acordo com Löwy nesta distinção. Todavia, o conceito que de fato se implantou histo-ricamente e se tornou conhecido para além das fronteiras da América Latina foi

Teologia da Libertação. Assim, continuo utilizando neste texto esta expressão,

mas com ela quero aludir tanto ao movimento social, político e religioso como aos estudos, textos e ao pensamento dos teólogos da libertação.

MUDANÇA DE LUGAR E DE MODOS DE PENSAR

A Teologia da Libertação latino-americana nasceu da proximidade com os pobres e os marginalizados. Como um pensamento primariamente não-acadêmico, orientado mais à prática pastoral e a uma opção existencial do que a questões doutrinárias, esta teologia, e o movimento social-político-eclesial que leva seu nome, supunham uma confrontação pessoal com a pobreza, a injustiça e a marginalização social vividos pelas camadas pobres da população. Os ho-mens e mulheres, religiosos, leigos, teólogos, padres e bispos que marcaram o movimento, buscavam (e ainda buscam) fazer uma experiência imediata de conhecimento e solidariedade com a vida dura e sofrida das camadas popula-res urbanas e rurais. Era o que se chamou de mudança de lugar social, que no caso dos teólogos devia produzir também uma mudança de lugar teórico ou uma mudança do horizonte epistemológico. Quer dizer, todos esses agentes pastorais e educadores populares buscaram e buscam uma aproximação física, afetiva e intelectual em relação aos índios, posseiros, camponeses sem-terra, pequenos lavradores do sertão, lavadeiras, empregadas domésticas, prostitutas, sem-teto, crianças e povos da rua e a quaisquer outros grupos de marginalizados ou vítimas da injustiça.

A mudança de lugar social implicava num deslocamento geográfico e mental do agen-te pastoral e do ministro religioso, em geral peragen-tencenagen-te às classes médias e morando nos bairros, conventos e instituições de classe média ou alta, para outros espaços ou segmentos da sociedade, para as periferias urbanas, o mundo da rua, as capelas rurais ou para regiões de conflito social, como a Amazô-nia Legal. A mudança física e afetiva para dentro do mundo dos pobres devia alterar a percepção das prioridades intelectuais e teológicas e colocar os temas ligados à vida e à sobrevivência dos pobres, sacramento de Deus no mundo, como as prioridades da Teologia e da prática eclesial. A mudança de lugar social foi acompanhada por um deslocamento na compreensão do papel dos teólogos: como intelectuais orgânicos (expressão tirada de A. Gramsci), ligados às classes populares, eles e elas deviam considerar que sua principal função não mais se

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constituía em doutrinar os grupos e comunidades cristãs, mas em pensar teologi-camente os grandes desafios que a realidade cotidiana colocava às comunidades e aos setores marginalizados.

Na verdade, a realidade do mundo dos pobres não era desconhecida, mas em todos estes espaços a Igreja católica e as demais igrejas cristãs tinham tido até então uma presença diferente, geralmente ligada apenas à devoção religiosa ou à assistência social. E a proposta da teologia da libertação, tanto para dentro da sociedade como para dentro das igrejas, não era de simples continuidade, mas sim de ruptura com um determinado passado, marcado pela geração sistêmica da desigualdade, do distanciamento, da injustiça e do preconceito. Na frase que muito se ouvia então, tratava-se de transformar relações socioeconômicas injustas e opressoras rumo a uma sociedade mais justa, democrática e fraterna. Dessa forma, mesmo considerando que simplismos e exageros aconteceram, podemos

dizer que houve uma virada epistemológica no processo de produção da teoria teológica. O teológico não era mais uma doutrina religiosa pronta, um

ensina-mento preparado a priori e vindo de um contexto distante, quase sempre europeu

ou romano, para ser repassado e internalizado pelas pessoas na base local da Igreja e da sociedade. A teologia se tornava muito mais um projeto coletivo

de decifração teológica da realidade, que devia ser realizado, pelo menos na

forma ideal, pela comunidade e pelo/a teólogo/a, que dela fazia parte. Teólogos conhecidos, como Clodovis (BOFF, 1984a) e Leonardo Boff (BOFF, 1984b) defenderam em muitas publicações essa virada no sujeito e no modo de fazer teologia: Teologia pé-no-chão, Teologia à escuta do povo e Pode o povo fazer

teologia? (SANTOS, 1984) do Recife.

A função de intelectual orgânico, desempenhada tanto pelo teólogo “profissional” como pelo “animador” da(s) comunidades, lembra imediatamente o papel que Paulo Freire na sua Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1987; 1968) havia pensado para o agente pedagógico: aquela pessoa que provoca, facilita e acompanha o processo de leitura crítica da realidade e da vida, processo esse que ele, num primeiro momento, chamou de “conscientização”. O agente pedagógi-co serve de facilitador ao processo de formação da pedagógi-consciência crítica e de constituição da identidade dos sujeitos eclesiais e políticos. Já nos inícios dos anos 70 havia críticas a um certo mecanicismo e autoritarismo embutidos na aplicação deste esquema, mas não resta dúvida de que ele contribuiu para a mudança da visão de mundo e das práticas religiosas e políticas de um grande número de pessoas.

Outra fonte importante de orientação para os animadores, teólogos e agentes pedagógicos no trabalho de formação nas comunidades e movimentos populares foi e ainda é o esquema da Ação Católica: os três passos do Ver, Julgar e Agir com suas inúmeras variantes locais. Todos esses métodos e esquemas estavam baseados

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fortemente numa hermenêutica bíblica, que partia de uma semelhança ou uma

analogia básica entre as situações de opressão e libertação vividas e relatadas

pelo povo na Bíblia com as situações de opressão e libertação vividas e relata-das pelas comunidades no presente. Esta proximidade ou analogia permite uma identificação afetiva das pessoas com a comunidade do “passado” e confere aos textos uma forte densidade mobilizadora, pois o mesmo Deus que lá agia, aqui e agora continua agindo. Também aqui houve talvez certo simplismo e atrope-lamento quanto à complexidade dos textos e dos contextos, mas o importante é que as pessoas começaram, com a ajuda da Bíblia, a pensar sua situação e a

elaborar um projeto político, ao mesmo tempo em que hauriam da leitura do

texto sagrado uma legitimação simbólica e política e uma força motivadora para continuar suas lutas no presente.

UMA METODOLOGIA PARA APRENDER A PENSAR E AGIR

Recapitulemos em grandes passos o método do Ver, Julgar e Agir na prática. Enquanto método teórico, que inspira também o processo de construção da teologia da libertação através de suas conhecidas mediações (socioanalítica e hermenêutica), remeto à obra de Clodovis Boff, Teologia e Prática (BOFF, 1977), que continua uma referência conhecida, ainda que controversa, sobre o tema (ANDRADE, 1991; AQUINO JR., 2008). Como é sabido, o momento do Ver compreende o levantamento e mapeamento dos grandes problemas e desafios enfrentados pela comunidade local ou regional, em todos os âmbitos: religioso, político, econômico, cultural. Para a elucidação dos desafios econômicos e políticos os animadores dos encontros, ou seja, os mediadores pedagógicos lançaram mão de pesquisas, estudos e dados produzidos por cientistas sociais de recorte crí-tico, muitas deles de orientação marxista. Lembro-me dos diversos cursos de que participei, como agente pastoral engajado na Pastoral da Terra no sul do Pará, sul do Maranhão, Mato Grosso e norte de Goiás (Tocantins), organizados pela CPT na década de 70 e 80 com a participação de José de Souza Martins e outros intelectuais de peso. Nenhum encontro diocesano ou assembleia impor-tante acontecia sem a presença de um “assessor qualificado”. Isso contribuiu imensamente tanto para a inserção social e política de professores universitá-rios e cientistas sociais, como para elevar o nível dos militantes na base e para qualificar a própria Intelligentsia eclesial, sobretudo católica.

O segundo passo, o Julgar, implicava na avaliação e no julgamento crítico da situação levantada, sempre em referência à Bíblia, à vontade de Deus e ao que se con-siderava ser o projeto de Jesus (a realização do Reino de Deus). Na sua forma ideal a metodologia previa que neste segundo momento, o teólogo e o biblista deviam contribuir mais, enquanto que o cientista social se encarregaria apenas

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do primeiro passo. Na prática as coisas aconteceram de uma forma muito mais dinâmica e complexa. Geralmente os/as animadores/as do encontro juntavam em si as funções e competências. Assim, mulheres que eram líderes do movimento de lavadeiras em cidades do norte goiano, ajudavam suas colegas a pensar cri-ticamente a situação de pobreza e marginalização em que viviam. A ocasião e o instrumento para isso eram a reflexão e a discussão sobre passagens da Bíblia que tivessem uma ligação com sua experiência, que tivessem uma mensagem transformadora a respeito. Sem dúvida, também aqui havia às vezes boas doses de simplificação, ingenuidade e certa pressa em identificar “o grande inimigo” capitalista. Todavia, em sentido luckasiano o mais importante é perceber que neste momento se “fazia fluir o que estava coagulado”, as pessoas se davam conta de que a história é processo e somos nós que a fazemos. As reificações paralisantes eram reduzidas ao que de fato são, construtos humanos, e abria-se a porta da vontade e da imaginação, teológica e política, para conquistar bens e serviços concretos, mas também novos horizontes para o possível.

O terceiro passo, o Agir, implica pensar e estabelecer conjuntamente propostas para a superação ou o enfrentamento das grandes e pequenas questões que angus-tiam as pessoas e as comunidades. Da discussão brotavam pautas, sugestões de encaminhamento concreto. Nos melhores casos supõe uma negociação a respeito da prioridade entre os encaminhamentos sugeridos, uma distribuição de tarefas entre as pessoas, contactos com outros grupos e apoiadores de fora, estratégias de divulgação ou de reforço das lutas. O grande ganho desse mo-mento consiste em comprometer pessoas concretas, sem muitos recursos, com agendas concretas e relevantes, dentro de um horizonte de tempo determinado. Não se espera que a solução venha do céu ou de cima; a indignação precisa encontrar um canal de expressão política (mesmo se no simbólico). Ao mesmo tempo, essa etapa se torna a primeira no próximo encontro: cria-se o hábito e a necessidade de pensar e avaliar as próprias ações. Quem tem pouca força não pode desperdiçá-la, tentando tudo ao mesmo tempo.

Tal esquema foi praticado inúmeras vezes e por todo tipo de organização eclesial, por exemplo nas reuniões da pastoral de saúde de base, em Porto Nacional (TO), ou nos frequentes encontros da Comissão Pastoral da Terra com as lideranças de posseiros e trabalhadores rurais no regional do Araguaia-Tocantins.

Sem dúvida, nem todo encontro de grupos eclesiais ou toda reunião de agentes pas-torais seguia esta metodologia ou perfazia todos estes passos. Houve grupos que avançaram mais, chegando a formar gerações de militantes; outros grupos se desfizeram, perpassados por conflitos e lutas internas entre lideranças ou correntes ideológicas, como acontece em todo processo histórico. Reuniões de grupos eclesiais de base, como acontece ainda hoje na periferia de Goiânia, ape-sar da situação bem distinta dos anos 80, recebem um acento mais politizado ou

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mais devocional conforme as urgências do momento ou segundo muitos outros fatores. Entre os quais está naturalmente o grau de mobilização dos participan-tes, a orienta ção ideológica da liderança religiosa e dos agentes facilitadores; ou ainda, o peso da “ameaça externa” a ser enfrentada e a maneira como se imagina poder fazê-lo.

A PRESENÇA HISTÓRICA DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Para entender melhor o que são movimentos sociais assumo uma conceituação oferecida por Maria da Glória Gohn, grande especialista no tema:

Movimentos sociais são ações sociopolíticas coletivas construídas por atores sociais coletivos, pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política..., criando um campo político de força social na sociedade civil... As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em comum. Esta identidade é amalgamada pela força do princípio de solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo... (GOHN, 2002, p. 251).

Seguindo resumidamente o panorama histórico traçado pela mesma autora em outras obras (GOHN, 1995, p. 110), podemos acompanhar passo a passo esta interco-nexão entre grupos eclesiais, agentes pastorais ligados à teologia da libertação e a atuação dos movimentos sociais no Brasil:

- 1968: Apesar de não haver uma data oficial para o início do movimento das Comunidades Eclesiais de Base, cujas raízes datam do começo dos anos 1960, pode-se tomar o ano da conferência de Medellín como o ano da sua implantação.

- 1971 é o ano do início do movimento das pastorais de periferia urbana em São Paulo, sob a coordenação de D. Paulo E. Arns, cujos militantes vão depois estar presentes nas mobilizações populares ao longo da década de 1970.

- 1972: Movimento do Custo de Vida em São Paulo e outras capitais, “um dos principais movimentos populares dos anos 70... organizador de vários movimentos sociais que lhe seguiram... reordenador da participação popular na vida associativa pública, desmantelada com o regime militar... surgiu ligado às ações da Igreja Católica, em sua ala da Teologia da Libertação” (GOHN, 1995, 111).

- 1972: Movimento dos loteamentos clandestinos, MLC – São Paulo, ligado à problemática da falta de moradia urbana e à especulação imobiliária predatória, esse movimento, nascido em parte dos envolvidos e “do trabalho das CEBs, de algumas pastorais da Igreja e da atuação de Centros Acadêmicos de faculdades de Direito” (GOHN, 1995, p. 113), deflagrou poste-riormente um movimento social de amplitude nacional.

- 1973: Estatuto do Índio e criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), uma pastoral especializada da Igreja Católica, que desde então contribuiu de maneira decisiva para o pro-cesso de organização dos próprios índios e ajudou a mudar fortemente a mentalidade popular acerca da luta por seus direitos.

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- 1975: Movimentos pela redemocratização do país – período rico em mobilização popular e de lutas pela reestruturação das instâncias representativas desarticuladas pelo golpe militar. Criação da Comissão Pastoral da Terra em Goiânia e tomada de posição dos bispos progressistas acerca da exploração e da violência do capitalismo na Amazônia e no Nordeste; lançamento de vários Movimentos Feministas.

- 1976: Movimento pela Anistia – segundo Gohn, este movimento, ao lado dos movimentos grevistas do ABC paulista, foi a principal luta social da década. Mesmo nascendo do movi-mento político e internacional mais amplo, a campanha pela anistia teve participação ativa e significativa das pastorais sociais e dos grupos ligados à teologia da libertação pelo país. - 1976: Movimento Sindical – formaliza-se neste ano um movimento de lideranças operárias

para reativar a organização sindical, entre elas muita gente saída das lideranças das comuni-dades de base e dos grupos ligados à teologia da libertação. Estas lideranças já lutavam desde 1974 para restabelecer a representação política dos trabalhadores e a recompor as perdas salariais, causadas pela inflação e por inúmeras medidas dos governos militares. A figura mais conhecida é Luis Inácio Lula da Silva, mas havia diversos outros.

- 1977: Movimento estudantil – a partir da invasão da Pontifícia Universidade Católica de SP pela polícia, aumentam as greves, manifestações e passeatas dos estudantes pelo fim do regime, que já não tinha nenhuma legitimação.

- 1978: As primeiras grandes greves e manifestações dos operários, principalmente dos meta-lúrgicos do ABCD paulista, desencadearam outras greves e manifestações por todo Brasil. O I Congresso da Mulher Metalúrgica marca a presença do movimento feminista e do DIEESE nestas lutas. Lula, Vicentinho e muitos outras lideranças que mais tarde vão formar o PT participavam de grupos eclesiais e da pastoral operária, assessorada por Frei Betto e os do-minicanos. Mas estavam presentes ainda no ABC paulista a Pastoral do Migrante e a Pastoral da Mulher, ligadas não só à Igreja Católica, mas à “ala libertadora” das Igrejas Luterana e Metodista. Pessoas que atuavam nesse meio, como a pastora Heidi Harschel, vão contribuir de forma importante nos anos seguintes para o estabelecimento pelo poder público de medidas de proteção à mulher e à criança, como os abrigos temporários e outras.

- 1979: Há um crescimento significativo das lutas populares e uma organização crescente em movimentos e iniciativas por direitos sociais e melhorias básicas nos serviços públicos; os movimentos mais importantes são dos professores e dos profissionais da Educação, da Saúde e do Transporte Público em São Paulo, o movimento pelas creches em Belo Horizonte e São Paulo. Segundo Gohn (1995, p. 119), “no conjuntural destacam-se: a organização das mu-lheres nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, a influência dos Movimentos Feminista e do Movimento da Anistia.” Outros movimentos sociais de peso vão começar a se articular nessa época: o Movimento dos Sem-Terra em Santa Catarina, a Comissão dos Atingidos por Barragens, também em Santa Catarina e o Movimento das Favelas, em São Paulo e Belo Horizonte. Em todas estas três iniciativas participaram ativamente lideranças ligadas à teologia da libertação: o MST e o movimento dos atingidos pelas barragens (Itaipú, Sobradinho e outras) contaram desde o início com o apoio decisivo da Comissão Pastoral da Terra e de muitos setores das igrejas cristãs; no movimento dos favelados encontramos, segundo Gohn (1995, p. 121), “inúmeros religiosos e agentes pastorais, responsáveis pela criação de uma Pastoral das Favelas e pela organização de inúmeros congressos, locais e nacionais”. - 1980: Criação da Articulação Nacional de Movimentos Sociais Populares e Sindicais,

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final do período militar. Nos anos seguintes, devido a um leque de divergências de caráter ideológico, político-partidário e organizacional, houve rupturas internas e a fundação da CGT – Confederação Geral dos Trabalhadores, ligado ao PMDB, e logo depois a CUT, Cen-tral Ùnica dos Trabalhadores, ligada ao PT, além da CONAM, a Confederação Nacional de Associação de Moradores. Na Anampos, na CUT e no PT a participação de pessoas ligadas à teologia da libertação foi bastante expressiva.

- 1980: ano do Congresso Nacional contra a Carestia, que marca segundo Gohn (1995, 124) uma mudança na condução política do movimento contra o custo de vida, que passa dos setores ligados às CEBs para grupos do PC do B. No mesmo ano é criado o PT e recriado o MDB e outros partidos nacionais. No processo de fundação do PT uma das alas mais ativas e influentes foi a esquerda católica ligada à teologia da libertação, comumente apelidada de a “ala dos igrejeiros”. Uma das figuras mais conhecidas é a Plínio de Arruda Sampaio, um dos expoentes da ala “igrejeira” dentro do Partido dos Trabalhadores.

- 1981: Movimento para a construção de Centrais Sindicais leva à realização da CONCLAT, a Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras, em Praia Grande, SP. Em Campinas organiza-se, articulado à Igreja Católica e à teologia da libertação, o Movimento Assembleia do Povo, uma iniciativa vitoriosa na obtenção do direito de uso da terra e de reurbanização em várias favelas, que se tornou modelo para várias iniciativas semelhantes em outras cidades (GOHN, 2003, p. 125).

- 1982 a 1995: este é o período que Ma. da Glória Gohn denomina na sua periodização dos movimentos sociais de “a época da negociação e a era dos direitos”. Os anos 80, também conhecidos com a década perdida em termos econômicos, mas “altamente positiv(os)” em termos políticos e culturais, vão terminar nos anos 90 num quadro desanimador: “a desmobi-lização e descrença das massas” (GOHN, 1995, p. 127). Para os nossos objetivos nesse ensaio é importante mencionar principalmente alguns acontecimentos e dados acerca da contribuição dos grupos saídos da teologia da libertação para os movimentos sociais na época. O quadro eclesial vai se tornando cada vez mais desfavorável e o controle ideológico por parte do Va-ticano, através da nomeação de bispos conservadores, fechamento de faculdades, perseguição de teólogos e diversas outras medidas “disciplinares”, aumenta consideravelmente. Por outro lado, o quadro social e político mais amplo se diversifica e se complexifica: surgem atores político-partidários especializados e específicos, mas as elites políticas do país, “impregnadas pelo fisiologismo, clientelismo, sectarismos e oportunismos, não conseguem elaborar um pacto social que... desse alguma perspectiva de saída da crise...” (GOHN, 1995, p. 127). Nos anos 90 o cenário das lutas sociais se modifica novamente, os movimentos sociais se alteram bastante em relação às décadas passadas, alguns entram em crise de militância, mobilização e de influência política, surgem novos movimentos, “centrados mais em questões éticas ou de revalorização da vida humana” (GOHN, 1995, p. 127). A participação de pessoas, grupos e setores ligados às comunidades de base, às pastorais sociais das igrejas (teologia da libertação) continua expressiva, ainda que mais diluída com o passar dos anos.

- 1982: Criação da CONAM, Confederação Nacional de Associações de Moradores, criação da CUT e primeiro Encontro Nacional da Comissão Pastoral da Terra, CPT.

- 1983: Movimento dos Desempregados, quebra-quebra de trens, ondas de saques em supermer-cados e lojas nas grandes capitais, criação da CUT, Central Ùnica dos Trabalhadores, criação do Movimento de Luta pela Moradia em São Paulo a partir do antigo movimento contra o custo de vida e de lideranças que vieram das comunidades eclesiais de base. I Encontro Na-cional dos Sem-Terra, que definiu as bases para a atuação do movimento nos anos seguintes.

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- 1984: Movimento Diretas-Já, considerado pela autora como o “maior movimento ocorrido no Brasil no século XX, ou até mesmo na história do país” (GOHN, 1995, 133). Criação do movimento dos Assentamentos Rurais no sul do país, com a participação de membros do clero progressista e de sindicalistas ligados à CUT.

- 1985: I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, em Curitiba: romaria da terra em Santa Catarina, criação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, o MNMMR;

- 1985-1988: Movimento pela Constituinte. Surgimento da UDR, a famigerada União Democrá-tica Ruralista, que trouxe grande aumento da violência ao campo, culminando no assassinato do Pe. Josimo Morais Tavares em Imperatriz, MA e que forçou uma atuação desdobrada da Comissão Pastoral da Terra. Acirramento das lutas pela terra e da resistência dos pobres no campo, fundação de inúmeros sindicatos de trabalhadores rurais pelo interior do país. Encontros anuais das CEBs, realização de inúmeras romarias, reunindo milhares de pessoas em vários estados do Brasil.

- 1986: Criação do Movimento Negro Unificado, movimento dos inquilinos em Belo Horizonte, dos Sem-Casas em São Paulo e dos locadores de imóveis.

- 1987: União dos Movimentos da Zona Leste, segundo Gohn, o mais expressivo movimento do final da década em São Paulo, articulado pelos membros das comunidades de base e apoia-do pelo bispo D. Angélico Bernardino e pelos padres Antonio Marchione, Ticão e outros. Criação formal da UDR.

- 1988: Criação do Forum DCA, que congregava 34 entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente; um marco na articulação das lutas pelos direitos das crianças e adolescentes no país. Este foi um dos resultados da Assembleia Constituinte, promulgada no mesmo ano, e que contou para sua realização e para que fossem incluídos direitos sociais na constituição com a mobilização de muitos grupos e movimentos organizados.

- 1989: Criação da Pró-Central dos Movimentos Populares através da transformação interna da Anampos; depois de várias idas e vindas a Central dos Movimentos Populares será fundada em 1993, devido principalmente à atuação da ala ligada à teologia da libertação e à figura de Frei Betto.

- 1990-1995: Ressurge com mais força o movimento ecológico, sobretudo devido à ECO-92, a Conferência da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento. Em 1992 surge o Forum das ONGs brasileiras, que contou na sua fundação com 1500 diferentes ONGs nacionais e internacionais (GOHN, 1995, p. 146). Entre 1993 e 1995 é forte a atuação do Movimento Ação da Cidadania Contra a Fome e pela Vida, saído do movimento pela Ética na Política, e ligado ao nome do carismático intelectual católico Herbert de Souza, o Betinho, lutador pelos direitos humanos, políticos e sociais desde a época do golpe militar. A Ação da Cidadania contra a Fome se espalhou pelo país, criou 3 mil comitês e mobilizou a opinião pública, sobretudo em torno da sua campanha pelo “Natal sem Fome”. Em 1994 surge o Movimento Viva Rio, inspirado e liderado pelos intelectuais do ISER, Instituto Superior de Estudos da Religião, uma entidade ecumênica e independente, profundamente ligada ao programa da teologia da libertação. Surge ainda o Movimento pelas Reparações, surgido do Núcleo de Consciência Negra da USP.

- Os anos 90 até meados dos anos 2000: Como injustiça social, pobreza, violência urbana não terminaram com o processo de redemocratização da sociedade brasileira, mas ao con-trário aumentaram nos anos 90 na sequela da expansão mundial do neoliberalismo, muitos movimentos e iniciativas populares desse período constituem uma resposta às condições

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econômico-sociais alteradas. O cenário sócio-político nos anos 90 mudou substan cial mente, (GOHN, 2003, p. 20), há uma desmobilização e menor visibilidade dos movimentos so-ciais em termos de grandes demonstrações nas ruas, as formas de organização popular se tornaram mais institucionalizadas, mais qualificadas, às vezes colaborando com o Estado e assessoradas por ONGs. Assim, surgiram os Foruns Nacionais de Luta, as parcerias entre sociedade civil organizada e poder público, o movimento pela Ética na Política que resultou no impeachment de Collor de Melo e as iniciativas de setores da economia informal, como perueiros e caminhoneiros, afetados pela crise econômica. Continuaram fortes os movimen-tos sociais no campo e o movimento popular urbano por moradia. Ambos qualificaram-se, institucionalizaram-se em boa parte, diversificaram sua plataforma de ação e a luta por mo-radia assumiu táticas e alianças com os movimentos de luta pela terra (GOHN, 2003, p. 25). Por outro lado, como os atores sociais não concentram mais sua identidade no campo dos atores populares e suas lutas apenas contra carências socioeconômicas, surge uma identidade “construída a partir da relação com o outro” (GOHN, 2003, 24) e formas de organização que expressam além das carências socioeconômicas também carências de ordem cultural, étnico-raciais, de gênero e da subjetividade. Representantes desta situação diferenciada são o movimento pela paz, iniciativas contra a violência urbana, os movimentos das mulheres, dos homossexuais, dos afro-brasileiros, dos indígenas, dos funcionários públicos (sobretudo professores - LDB - e médicos), dos ecologistas na sequência da ECO 92 (GOHN, 2003, p. 21, 28) e do movimento internacional anti-globalização.

Maria da Glória Gohn se pergunta sobre o que aconteceu com os movimentos populares estimulados pela Teologia da Libertação de lá para cá. Teriam eles desaparecido ou mudado de perfil? A própria autora afirma que não:

... Eles criaram e desenvolveram, nos anos 90, redes com outros sujeitos sociais, assim como redes dentro do próprio movimento popular... quer dizer, os movimentos populares criaram, ou ampliaram, ou fortaleceram a construção de redes sociais (GOHN, 2003, p. 23).

Os grupos e movimentos influenciados pela Teologia da Libertação se diferenciaram internamente, às vezes se desmobilizaram, outras vezes se uniram com outros grupos e movimentos, formando redes sociais contra diferentes formas de opressão (além daquelas político-econômicas do passado) e também em luta por “novos”

direitos a serem reconhecidos (de gênero, identitários, étnicos, culturais etc.)

Aqueles grupos, organizações não-governamentais e movimentos sociais influen-ciados pela Teologia da Libertação, entram, como todo o movimento popular, a partir do final dos anos 90 num processo de formação de redes internacionais. O primeiro Forum Social Mundial, realizado em Porto Alegre em 2001 e aquele, realizado em Belém do Pará em 2009, marcam esta nova fase, da conexão dos movimentos sociais brasileiros com o movimento mundial anti-globalização e altermundista. O próprio Forum Social Mundial foi imaginado por Oded Grajew e organizado por pessoas e organizações brasileiras ligadas à esquerda católica e à tradição da teologia da libertação, como o deputado Chico Whitaker do PT,

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João Pedro Stédile do MST, a Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB e o IBASE, Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas, ligado aos jesuítas, naturalmente em parceria com outras organizações brasileiras (como a CUT) e internacionais (como ATTAC, Le Monde Diplomatique, Via Campesina). Esta iniciativa significa, numa escala ampliada e muito significativa, mais uma modalidade de contribuição, nem sempre explicitada, da teologia da libertação às lutas globais, como adiante se explicita.

ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA TEOLOGIA

DA LIBERTAÇÃO PARA OS MOVIMEN TOS SOCIAIS

Seguindo Ilse Scherer-Warren, outra grande estudiosa dos movimentos sociais, podemos distinguir três níveis de prática social, para os quais a teologia da libertação deu uma contribuição significativa:

- a construção teórica: o trabalho de reformulação do pensamento e a produção de uma teologia diferente através dos centros de formação e das publicações;

- a mudança cultural: a mudança dos valores e formas de pensar pelo trabalho de reflexão crítica nos grupos de base e nos movimentos;

- a intervenção política: os membros das comunidades e dos grupos participam nos movi-mentos sociais, nas organizações da sociedade civil, nos partidos e nas redes internacionais (SCHERER-WARREN, 1996, p. 40).

Tendo essa interessante sistematização como chave de leitura no transfundo, mas sem me prender a ela, elaboro a seguir algumas intersecções e contribuições bási-cas que, na minha opinião, o Cristianismo ou Teologia da libertação tem dado aos movimentos sociais e à luta por um mundo mais justo e sustentável. Sem nenhuma pretensão de esgotar todas as modalidades, menciono apenas as que me parecem mais importantes ou menos citadas. Conforme abordei em outro momento nesta mesma revista (MOREIRA, 2005), no Brasil as igrejas ajuda-ram a preparar o clima, a sensibilidade, a tensão social, o senso de urgência e a organização que muitos movimentos sociais necessitavam para decolar. A teo-logia da libertação ofereceu, além da “mística”, as lideranças, a infra-estrutura organizacional e forte ajuda material a muitos movimentos sociais.

1) Educação Popular: cultura política, pessoal, infra-estrutura e material pe-dagógico

Uma contribuição importantíssima das igrejas ligadas à teologia da libertação para a gestação dos movimentos populares e para uma nova cultura política no Brasil foi e continua sendo a educação popular. Só uma instituição capilarizada nos setores populares como a Igreja Católica teria condição de oferecer, além do

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pessoal capacitado, a produção, distribuição e utilização comunitária de ma-terial pedagógico adequado. Isso exige treinamento de pessoal, infra-estrutura e recursos que foram disponibilizados pelos setores mais comprometidos da Igreja Católica e de outras igrejas. Para que os passos do procedimento her-menêutico crítico (Ver, Julgar e Agir) fossem apreendidos pelas comunidades, compostas frequentemente por pessoas semi-analfabetas, que haviam tido uma evangelização tradicional, foram produzidas e distribuídas centenas de milhares de publicações em linguagem popular (cartilhas, folhetos, livretos, coletâneas, livros). Este material pedagógico, que até hoje abrange as temáticas mais dis-tintas, geralmente contém desenhos, figuras, tabelas, textos, tarefas, perguntas e passos metódicos para facilitar a compreensão e o estudo. Aos que querem aprofundar a temática, quase sempre é mencionada uma pequena bibliografia especializada.

Além disso foram produzidos um sem-número de jornais, livros, panfletos, literatura de cordel, programas em rádio e TV, áudiovisuais, peças teatrais, músicas, repentes e poemas com temas e motivos ligados à teologia da libertação. Isto contribuiu para exercitar um viés crítico no pensamento, tanto para fora na sociedade como para dentro na Igreja. Da mesma forma, desde os anos 70 até hoje os grupos, movimentos, pastorais, dioceses e paróquias identificadas com a teologia da libertação realizaram milhares de cursos de formação, assembleias, encontros e treinamentos pelo Brasil afora. Em tais cursos e encontros, geralmente à noite e nos finais de semana, se exercita também a análise crítica da realidade, a discussão de plataformas de ação e o apro fundamento na fé.

Logo, o que começou como estudo e debate em torno de problemas locais e específicos se tornou uma sensibilidade, um horizonte para o pensamento crítico, uma mentalidade, que mostrou sua fecundidade em centenas de outras iniciativas, às vezes muito distantes do contexto inicial. Por exemplo, nos diversos movimentos sociais. Naturalmente, tal sensibilidade nunca teria sido exercitada se os anos de educação popular não tivessem despertado no meio do povo uma miríade de lideranças dispostas, capacitadas e imbuídas do sentido ético-religioso do compro misso com causas coletivas. A questão da formação das subjetividades, do empoderamento dos indivíduos, da disposição pró-ativa em relação à reali-dade faz parte constitutiva desse processo.

2) Libertação cognitiva – ampliação dos horizontes do historicamente possível e desejável

Não existe possibilidade de se iniciar práticas amplas de emancipação sem contar com a transformação cultural e política nos horizontes do que é considerado possível, factível e necessário (MOREIRA, 2005). Tanto as igrejas como os movimentos sociais formam comunidades morais e emocionais. Uma das maiores contribuições

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da teologia da libertação para os movimentos sociais foi ter contribuído para que os seus agentes e participantes se percebessem como parte de algo maior, que desenvolvessem um sentimento do “nós”, do coletivo, e que partilhassem com os movimentos sociais valores, problemas e objetivos comuns (RUCHT, 2007). Os grupos eclesiais ligados à teologia da libetação atuam socialmente como comunida-des que proporcionam identificação primária e sentido para a vida, o mesmo “âmbito” do qual brotam os movimentos sociais. O que essas comunidades proporcionaram foi tanto uma nova visão da vida societária, como um novo modelo de sociedade, diferente daquela dominante. A Teologia da Libertação ajudou a produzir a “libertação cognitiva” necessária à ação social (SMITH, 1991); ela expandiu – devido ao seu horizonte utópico – os horizontes do que sem-teto, lavadeiras, peões, trabalhadores rurais e sem-terra poderiam ter con-siderado inalcansável até pouco antes.

Toda religião, como instituição e como conjunto de recursos simbólicos, tanto pode apoiar e legitimar as lutas das camadas e grupos sociais marginalizados, como pode deslegitimá-los, cooptá-los, demonizá-los. No caso da TdL, no processo de formação de movimentos sociais, a religião foi usada empiricamente como recurso político – o potencial democrático das comunidades de base ofereceu suporte e formou uma cultura política de participação e de co-responsabilidade que depois desaguou nos moviementos sociais.

3) Espiritualidade e “mística”

Apesar de uma certa visão messiânica que tendia ao tudo ou nada, bem analisada por Mo Sung (1994), o movimento profético em direção ao lugar do perigo e da ameaça marcou profundamente a espiritualidade, o método e a pedagogia da libertação. A divisa era: lutar junto com os pobres contra sua situação de opressão e injus-tiça, contra seu sofrimento imerecido, pela libertação integral. Esta disposição desenvolveu em muitos agentes e militantes uma sensibilidade diferente, uma

mística ou motivação espiritual que ainda marca a atuação de tantas pessoas

empenhadas nas lutas diárias dos movimentos sociais, das pastorais sociais e das comunidades populares. Não é à toa que o MST cultiva com cuidado e intencional mente a “mística” dos seus militantes. Aliás, não é porque muitos movimentos sociais têm cristãos nas suas fileiras que estes sentem necessidade de ter uma “mística”. Também militantes que se mantém longe de qualquer li-gação religiosa, ou que tem mesmo uma atitude francamente negativa a respeito da religião, também eles desenvolvem, se quiserem sobreviver, algum tipo de espiritualidade própria (RAMMINGER, 2012).

Tais considerações podem parecer algo difusas, mas assim que nos reportamos a pessoas concretas, grandes almas do bem e da luta pela justiça, percebemos imediatamente

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que a espiritualidade que conformou sua vida e lhes conferiu autoridade moral, foi o que de melhor poderiam ter legado aos movimentos sociais e às gerações futuras. Basta que façamos memória de alguns nomes que se consideravam ou consideram parte da teologia da libertação, como Betinho, Marçal Tupã-Y, Pe-dro Casaldáliga, Pe. Josimo, D. José Maria Pires, D. Fernando Gomes, Pe. José Comblin, Ir. Dorothy Stang, D. Oscar Romero, Santo Dias da Silva, Nativo da Natividade, José Cláudio Ribeiro e sua mulher Maria do Espírito Santo, D. Hel-der Câmara, Chico Mendes e tantos/as outros/as. Não por acaso tais pessoas são consideradas “santos” e “santas” pelas comunidades com que mais conviveram. 4) Crítica do capitalismo

A partir desse envolvimento existencial e da tarefa intelectual e política que ele exigia, as pessoas foram aos poucos desmascarando não apenas situações, mas um sistema que produz estruturalmente injustiça e marginalização. Assim a teologia da libertação desembocou necessariamente na crítica do capitalismo, ainda que nem todos os envolvidos o percebessem com igual intensidade. Nessa passagem a teologia da libertação aprendeu sim, e assumiu muito da análise marxista do capitalismo e da verve ética do marxismo. Na minha opinião isto não fez nenhum mal à teologia, muito pelo contrário: tornou-a auto-crítica e aterrada no seio da realidade conflitiva. A crítica não ficou apenas na desocultação e na tomada de consciência dos efeitos perversos de um capitalismo periférico sobre a vida e a morte dos pobres; também se mobilizaram recursos teológicos, estratégias políticas e mesmo medidas de caráter socioeconômico para enfrentá-lo. Todo o esforço em torno da economia solidária e das cooperativas de produção e consumo recebeu um grande impulso da teologia da libertação.

Os movimentos sociais só crescem quando as atitudes críticas a respeito das concepções hegemônicas (ou dos paradigmas dominantes) tornam-se mais e mais generali-zadas. Para que as concepções hegemônicas – como o atual capitalismo liberal – percam força, é preciso mostrar de forma clara e direta suas contradições, as feridas que causam, os custos humanos e ambientais que exigem, sua lógica sacrificial e desumanizadora. A teologia da libertação realizou essa tarefa seja sob o ponto de vista da reflexão teórica, seja em termos da prática de mobili-zação, seja em termos da criação de novos símbolos, novas linguagens e rituais significativos. As comunidades de base, as pastorais sociais, as comissões de justiça e paz o que mais fizeram e fazem é desafiar os códigos simbólicos do-minantes com a radical exigência em nome do que “deve ser”. Hoje, depois da queda do sistema socialista, uma das frentes de enfrentamento mais importantes do capitalismo é justamente o questionamento da sua pretensão (idolátrica) de validade total (MOREIRA, 2012). Justamente por isso a crítica da hegemonia

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do capitalismo globalizado faz parte tanto da agenda de muitos movimentos sociais como dos grupos de esquerda cristãos.

5) Ampliação da base social – universalização das lutas

Nenhum movimento social que originalmente parte de uma base estreita de apoio na so-ciedade alcança seus objetivos sem a simpatia e a cooperação de outros grupos sociais e de outras camadas mais amplas da população. Por isso, as chances de sucesso de um determinado movimento social dependem fortemente da sua capacidade de universalizar (oikumene) suas reivindicações básicas. Ou seja, da sua competência em convencer outras pessoas, nos contextos mais diversos, de que tais reivindicações são justas e boas. Isso acontece quando outros grupos sociais em contextos mais amplos, se identificam com tais causas, as assumem como suas próprias e as levam adiante. Portanto, os movimentos sociais preci-sam ser capazes de superar o caráter localizado dos seus inícios e passar a ser apoiados por diferentes classes e orientações sociais, de forma a consolidar-se e a universalizar suas reivindicações. Também nesse aspecto, absolutamente deci-sivo num contexto de sociedade globalizada, a teologia da libertação contribuiu enormemente para os movimentos sociais. As comunidades eclesiais de base, as pastorais sociais e a própria Igreja Católica por sua presença no mundo todo, formam uma grande rede internacional de apoio, que implica num intercâmbio constante de pessoas, informações e recursos. Essa colaboração foi crucial em diversos momentos, como na época do silenciamento de D. Helder e da tortura. A rede internacional de pessoas, grupos, iniciativas e instituições que se identificam(ram)

com as reivindicações da teologia da libertação serve hoje aos mais diversos movimentos sociais, seja aos trabalhadores rurais (MST e Via Campesina), ao movimento ambientalista, ao movimento altermundista, aos movimentos por identidades e direitos étnicos, culturais ou sexuais.

CONCLUSÃO

A Teologia da Libertação trouxe muito mais do que apenas uma nova forma de fazer teologia dentro das igrejas – aquela que pensa a irrupção do Reino de Deus a partir do avesso e do reverso da história. Ela trouxe um novo horizonte, um marco, um divisor de águas para todo tipo de pensamento teológico e ação pastoral que se queiram sérios em relação à revelação de Deus no mundo. Talvez a maior contribuição da Teologia da Libertação para a sociedade brasileira e por

consequência aos movimentos sociais tenha sido a mudança operada na cultura política da população. Tal mudança na cultura política foi operada, em primeiro lugar, através das mediações políticas, dos partidos, dos movimentos sociais, da

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mobilização popular, da luta dos sindicatos, entidades de classe, organizações não-governamentais e associações populares de todo tipo. Como vimos, em todas essas modalidades de organização político-social havia muita gente das comunidades e dos movimentos eclesiais de base ou pessoas que tinham uma forte influência da Teologia da Libertação. Elas não raro lideravam a iniciativa ou o próprio movimento social, como o MST, a Luta contra o Custo de Vida, o movimento dos seringueiros, das lavadeiras, o movimento por moradia em São Paulo. A própria luta pela redemocratização expressa na campanha pelas Diretas Já, teve na Teologia da Libertação, nas Comunidades Eclesiais de Base e nas pastorais sociais um vetor decisivo.

Mas, em segundo lugar, a teologia da libertação só pode contribuir para a mudança na cultura política da população porque houve uma mudança nos seus próprios

códigos simbólicos e religiosos. A influência política da Igreja depende da sua

eficácia simbólica (BOURDIEU, 1971), da sua capacidade de mobilização propriamente ético-religiosa. A força da mediação simbólica e religiosa das Igrejas ligadas à teologia da libertação se expressa, por exemplo, na lingua-gem profética dos seus líderes, nos muitos gestos simbólicos, nas caminhadas, vigílias e jejuns, na vida pobre de D. Helder Câmara e Pedro Casaldáliga e, em última instância, no apelo silencioso expresso pelo martírio de inúmeras pessoas, leigos, religiosos e padres que doaram sua vida para que essa trans-formação integral acontecesse.Um dos últimos e mais fortes testemunhos dessa mudança nos próprios códigos simbólicos e religiosos foi dado pela Ir. Dorothy Stang, assassinada no Pará em 12 de fevereiro de 2005. Seu martírio, como o de tantos outros ligados à teologia da libertação, aconteceu justamente porque ao invés de reverenciar o sagrado “tradicional”, ligado às “essências divinas”, ela se colocou à serviço de um sagrado que se revela na dignadade da terra e do ser humano, no direito dos pobres e na beleza da natureza.

Justamente nesse segundo aspecto, da mudança nos códigos simbólicos e religiosos das igrejas, é que também se pode falar, com toda justiça, das muitas contribuições que os movimentos sociais deram às próprias igrejas e à Teologia da Libertação. Não se pode esquecer que há uma mão dupla no diálogo, um aprendizado recípro-co nesse processo. Os grupos ligados à teologia da libertação na Igreja Católica aprenderam com os movimentos sociais, entre muitas outras coisas, a percepção para a urgência, uma sensibilidade para o realmente importante, a necessidade de organizar e pensar a própria prática, a sabedoria para não desperdiçar energias e saber fazer alianças, a coragem para agir rápido e de forma contundente, a neces-sidade de animar e motivar as/os companheiros/as, a capacidade para enfrentar com coragem os conflitos internos e externos.

Infelizmente a Igreja Católica ainda não foi capaz e não soube aproveitar o impulso trans-formador e politizador das comunidades e movimentos que ajudou a criar. A

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campanha contra a Teologia da Libertação e a “volta à grande disciplina” (J.B. Libânio) se deu, na maior parte, não a questões de ordem doutrinária, heresias ou a reducionismos teológicos, mas devido à incapacidade da Igreja romana de romper com o modelo clerical e substituí-lo por formas eclasiais mais igualitá-rias, horizontalizadas e comprometidas com os setores marginalizados.

A partir de um distanciamento que só o tempo permite, pode-se dizer que houve, no bojo deste longo processo pedagógico – que ainda continua – um claro empoderamento das camadas populares, das comunidades eclesiais e de suas lideranças, seja para interpretar os processos sociais, econômicos e culturais, seja para organizar formas de reação política, cultural e socioeconômica. Além de formar uma mentalidade crítica e exigente em relação à própria Igreja, este trabalho molecular contribuiu para que os participantes dos círculos, grupos e movimentos multiplicassem em outros espaços sociais a mesma mentalidade crítica e de mobilização para o enfrentamento de problemas concretos. A educação popular realizada ao longo das últimas décadas (sobretudo no período de 67 a meados dos anos 90) pelos setores críticos das igrejas e pela “ala libertadora” da Igreja Católica, tem dado uma contribuição inestimável para a formação da cidadania no Brasil.

Nenhuma outra instituição ou instância social no Brasil, nem os partidos de esquerda, nem a escola, nem a mídia ou o próprio Estado influenciaram tanto e de forma tão capilarizada e duradoura a formação da consciência e da prática cidadã nesses últimos quarenta anos como o chamado Cristianismo da Libertação. E ao fazer isso, ele naturalmente abriu espaço para que além dos muitos pon-tos positivos, acontecessem também acontecessem os erros, os equívocos e as simplificações, como em todo processo político vivo.

Tal influência das Teologias da Libertação para a mudança da cultura política no Brasil também pode ser afirmada, ainda que em escala mais reduzida e dife-renciada, para o cenário latino-americano e internacional. Mesmo se há uma secularização e um deslocamento do modelo clássico de movimentos sociais (ALEXANDER, 1998), foram e são muitos os grupos, ONGs e movimentos sociais internacionais que nos seus inícios e no seu funcionamento atual foram marcados pelo contato com as diversas formas da Teologia da Libertação. Chiapas no México, Tamil Tigers no Sri Lanka, luta contra o Appartheid na África do Sul, movimento Minjung na Coréia do Sul, luta contra a opressão dos Dalits na India, movimento feminista mundial, movimento internacional dos povos indígenas, movimentos internacionais de camponeses e campo-nesas, movimentos contra a globalização capitalista nos Estados Unidos e na Europa, movimentos gay, pacifista e ambiental: todos esses grupos e movimentos foram influenciados pela teologia da libertação; alguns deles, além disso, realmente a recriaram dentro de suas próprias condições e de seu horizonte sociocultural.

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SOME CONTRIBUTIONS OF LIBERATION THEOLOGY TO THE SOCIAL MOVEMENTS

Abstract: in this article I outline some fundamental contributions of what Löwy called

Christianity of liberation (or liberation theology) for the social movements in Brazil, with broader global consequences. Social movements received from liberation theology, while social theory, political practice as well as ethical-religious motivation, lasting impulses that still reverberate in many contexts inside and outside Latin American context.

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Referências

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