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Memórias de um Sargento de Milícias: Um romance histórico?

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Academic year: 2020

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Memoirs of a Militia Sergeant: a historical romance?

Memoirs of a Militia Sergeant: a historical romance?

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Memoirs of a Militia Sergeant: a historical romance?

Memoirs of a Militia Sergeant: a historical romance?

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Resumo:esumo:esumo:esumo:esumo: Tendo em vista a discrepante e controversa crítica acerca da classificação estilística da obra Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, este estudo pretende revelar alguns pressupostos poéticos da narrativa almeidiana que a aproximam da perspectiva do romance histórico, ao mesmo tempo em que ele prenuncia o romance moderno.

Palavras-Chave: Palavras-Chave: Palavras-Chave: Palavras-Chave:

Palavras-Chave: romance histórico, estética, narrativa, documento. Abstract:

Abstract: Abstract: Abstract:

Abstract: Having in mind the discrepant and controversial criticism concerning the stylistic classification of the work Memory of a militias sergeant, of Manuel Antônio de Almeida, this study intends to reveal some poetic presupositions of the almeidiana narrative that approaches the perspective of the historical romance, at the same time in which he foreshadows the modern romance.

Keywords: Keywords: Keywords: Keywords:

Keywords: historical romance, aesthetics, narrative, document.

Edwirgens Aparecida Ribeiro Lopes de Almeida*

* Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Professora do Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes.

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1 Introdução 1 Introdução

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no espaço e no tempo.

Machado de Assis

Em meados do século XIX, Manuel Antônio de Almeida nos legou esta preciosidade literária, a obra

Memórias de um sargento de milícias. Publicada na forma de folhetim, no suplemento dominical “Pacotilha” do jornal O Correio Mercantil do Rio de Janeiro, os capítulos apareceram sem autoria e, em seguida, quando da edição em livro, em dois volumes, entre 1854 e 1855, a autoria foi atribuída como sendo à de “Um Brasileiro”.

Nessa época, a limitada receptividade do público ao texto confirma o pouco interesse do diminuto círculo de leitores. De acordo com parte da crítica oitocentista, o desinteresse do público deveu-se à ausência da atmosfera romântica, das idealizações e do lirismo presentes na literatura do período a que estavam acostumados os leitores. Ademais, a obra, protagonizada não por um representante das elites, mas por um aventureiro, integrante das classes populares, referia-se a um tempo anterior àquele da sua escritura, e parecia indicar uma sátira à tendência sentimental da classe dominante, que se recusava a admitir uma vida em sociedade diversa daquela exposta nos romances românticos. Devido a essa inovação literária, sob a ótica de Manuel Antônio de Almeida foi apresentada uma nova forma de ver a sociedade e o caráter dos representantes das classes sociais.

Essa nova representação da sociedade carioca do século XIX não foi fruto da inconsciência e do descuido lingüístico e literário de um jovem estudante de medicina, como dizia alguns críticos,

de que o escritor e jornalista Manuel Antônio de Almeida esteve imbuído, precedendo o estilo de Machado de Assis, com quem teve breve contato nos bastidores da imprensa carioca.

Durante as décadas de 1860 e 1870, a obra foi reeditada, mas não conseguiu atrair novamente grande público. Suscitou, no entanto, inúmeras discussões e revelou-se como importante obra da literatura nacional a partir das leituras dos críticos do final do século XIX e de todo o século XX. A fortuna crítica da obra a considera uma produção que valoriza e torna pública a cultura brasileira, estimulando valioso acervo de interpretações. Da variedade de leituras críticas resultam classificações discrepantes da obra como romance de costumes, precursora do realismo literário, antecipadora do modernismo, filiada à novela picaresca espanhola, com traços do romance histórico do Romantismo, presa à tradição popular brasileira, ou às fontes da novelística francesa do século XVIII ou XIX.

Em linhas gerais, o que se encontra a respeito da crítica do século XIX é que ela não se deixou atrair pelo romance de Manuel Antônio de Almeida. Por outro lado, estudos recentes demonstraram que homens das letras, como Augusto Emílio Zaluar, Quintino Bocaiúva, Joaquim Manuel de Macedo, Bethencourt da Silva, dentre outros nomes, pronunciaram-se, quando da morte do romancista, acerca da obra e do papel do autor para o cenário literário e jornalístico nacional. Esses depoimentos foram compilados, na década de 1990, por Bernardo de Mendonça, e passaram a compor o manual intitulado Obra dispersa, contendo, também, outros escritos de autoria de Manuel Antônio de Almeida. Essa reunião de artigos e ensaios ampliou as discussões e possibilitou às novas gerações o conhecimento da opinião dos contemporâneos de Manuel Antônio de Almeida sobre a obra Memórias de um sargento de milícias, e, ainda, permitem novas reflexões sobre a estética dessa obra.

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Críticos como José Veríssimo, Astrogildo Pereira, Mário de Andrade, Antonio Candido, Walnice Nogueira Galvão e Roberto Schwarz apontam que, nessa obra, configura-se uma provável identidade do malandro brasileiro. Nesse sentido, a obra ficcionaliza, com certa veracidade, através da dialética da ordem e da desordem, a identidade pessoal e nacional dos primeiros cinqüenta anos do século XIX. Admitindo que as Memórias trazem em si o dinamismo do histórico, reconhecem o veio documental presente na narrativa, e garantem que nela há possibilidade de se conhecerem e de se examinarem alguns aspectos do tempo do rei D. João VI.1 Como comenta Roberto Schwarz:

as Memórias serão tratadas como um romance realista a sério, em que está em jogo o sentido da vida contemporânea. Noutras palavras, trata-se da passagem da crítica de edificação nacional à crítica estética; da crítica de função puramente local à crítica de sondagem do mundo contemporâneo; da crítica em que o nacional é comemorado à crítica em que ele é historicizado. (SCHWARZ, 2002, p. 136)

Isso posto, vê-se que uma das concepções destacadas pela crítica acerca do romance Memórias de um sargento de milícias refere-se às marcas do real, isto é, à conformidade com os costumes, comportamentos, lugares e personagens da época narrados por Manuel Antônio de Almeida.

D i s c u s s ã o D i s c u s s ã o D i s c u s s ã o D i s c u s s ã o D i s c u s s ã o

Eu ficaria embaraçado se houvesse de classificar este romance em uma das escolas em que se dividem as concepções e as maneiras literárias.

José Veríssimo

1 Como constata Ronaldo Costa Fernandes (1996), as formas de narração embrionárias, a palavra novel do inglês e novela do espanhol, tiveram origem no termo jurídico novella = novidade, no Código de Justiniano, fazendo referência a um adendo ou complemento a uma lei anterior; portanto, o termo romance enquanto forma narrativa nasce dentro do espírito do documento.

Nutrindo-se da ambiência dos primeiros anos do século XIX, às vésperas da irrupção do indianismo, Manuel Antônio de Almeida nos faz notar uma outra realidade nacional, quando rompe com o romance consagrado pelos leitores da época, em que a litera-tura evasiva e idealizante decantava os encontros amorosos vividos entre uma delicada heroína e um bravo herói. Este tipo de narrativa dentro dos pro-tótipos da concepção romântica estava destinada aos leitores de uma burguesia emergente, aspecto tam-bém reconstruído pelo autor à medida que foge a esses padrões.

Em Memórias de um sargento de milícias, encontramos a recriação do presente com certo “sentimento de realidade”, fator que, de certa maneira, aproxima-o do romance histórico mesmo quando foge dos padrões europeus. Sob essa concepção, procuraremos reinterpretar a narrativa de Manuel Antônio de Almeida como romance, sobretudo, como romance histórico.

Esse tipo de romance surgiu, no início do século XIX, com o escocês Walter Scott e pressupunha uma narrativa de exaltação da história da pátria e dos atos de bravura de um determinado povo. Após o surgimento na Escócia, o gênero se expandiu por toda a Europa e chegou ao Brasil. Nesse ínterim, apresentou variedades significativas conforme a situação política e social de cada nação. No Brasil, a valorização da história e do passado nacional constituiu uma das mais importantes atividades durante o Romantismo. A História, a Etnologia, a Lingüística tiveram grande desenvolvimento, de que são índice a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB (1838). A História foi uma das atividades intelectuais que maior favor gozaram sob a égide do Romantismo.

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representante foi José de Alencar com a publicação dos romances O Guarani (1857) e Iracema (1865). Essas obras corresponderam ao desejo de valorizar a temática nacional em oposição à cultura lusa. Em vez dos assuntos da Idade Média, sobre os quais recaíram geralmente os registros do Romantismo europeu, o brasileiro encontrou nas recordações da história local, nas lendas do nosso passado e na glorificação do indígena, as sugestões para uma desejada volta às origens próprias, que seriam a fonte de inspiração da arte e da literatura, aliás de todo espírito e civilização brasileira, confirma Afrânio Coutinho (2002). Assim, Alencar reporta-se ao encontro do nativo com o colonizador, já que não tivemos um passado medieval. Discutindo acerca dessa diversidade de abordagens nas narrativas históricas, Osmar Pereira Oliva, citando Antônio Soares Amora, acrescenta:

[o] romance histórico brasileiro não foi apenas uma busca do que, num episódio histórico, pudesse ser interessante, e também empolgante, dado o curioso de um estilo de vida que o envolvia, e o invulgar dos caracteres, das ações e dos dramas dos seus protagonistas. Evidentemente foi tudo isto, mas foi também, e sobretudo, a busca de uma interpretação (em termos de ficção, escusava dizer) da história nacional. (OLIVA, 2006, p. 131)

Assim como Alencar deu formas próprias ao romance histórico europeu, Manuel Antônio de Almeida também o fez quando optou por representar o presente com suas problemáticas sociais em vez de pôr em cena o passado.

Essa discussão põe em relevo a problemática para se pensar o texto literário como texto histórico, assim como se ressalta a importância da harmonia entre forma e conteúdo na composição da poética ficcional. Digamos então que, na obra de Manuel Antônio de Almeida, por meio da verossimilhança interna, são refletidos alguns traços da sociedade fluminense de meados do século XIX, ao mesmo tempo em que, utilizando comparações, o autor

primeiros anos do mesmo século. Nessa perspectiva, vê-se que a obra almeidiana, em desacordo com os padrões e o tom do momento, rompe com a coerência formal do romance tradicional e antecipa mudanças que se veriam nos romances modernos. É possível perceber, no romance, uma certa narratividade da história ao passo que o narrador nos chama a atenção para o fato de “estar caindo na monotonia de repetir quase sempre as mesmas cenas com ligeiras variantes: a fidelidade porém com que acompanhamos a época, da qual pretendemos esboçar uma parte dos costumes, a isso nos obriga”. (ALMEIDA, 1999, p. 107)

Além da forma, tematicamente, o romance também distancia do romance histórico tradicional à medida que se aproxima dos romances modernos, não descreve os grandes feitos de uma nação e nem se constroem heróis, mas revê o avesso das instituições sociais e da humanidade num passado próximo (no tempo do rei D. João VI). Dessa forma, a negação da cultura portuguesa através de mitos, lendas e narrativas indígenas dá lugar à presença de uma massa anônima, constituída por pessoas pobres, populares, suburbanas. Ao invés do lendário, do fingimento, Manuel Antônio optou pelo enredo histórico dos primeiros anos do século XIX, colocando em cena uma classe, ainda, desprivilegiada da história e das páginas literárias.

Ao reconstituir uma época relevante para a História brasileira, período de busca de afirmação da identidade nacional, assim como de desestabilização das classes sociais, devido à mudança da estrutura social do Brasil pela vinda da família real portuguesa, Manuel de Almeida inaugura uma nova forma de escrita, que rompe com os padrões portugueses e europeus de linguagem e de forma dos romances romântico e histórico. Afasta-se da tensão maniqueísta romântica do bem x mal por meio de um nivelamento de classes sociais quando põe em cena um herói malandro em uma sociedade (des) organizada.

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O autor, ainda, afasta a sua narrativa dos padrões e do tom do momento quando dá às personagens a voz da própria classe, uma linguagem popular, como diz a Comadre pírolas, em lugar de pílulas. A linguagem popular e coloquial pode ser, ainda, percebida nas expressões como “fora da chapa”, isto é, retirar José Manuel da concorrência por Luisinha, e “curando com ouro as brechas que ele fazia na cabeça de seus adversários”, sobre o Tenente-Coronel procurar compensar materialmente as diabruras de seu filho. Distante da linguagem utilizada por Alencar nas obras indianistas ou aquela empregada nos romances de Bernardo de Guimarães, tal verossimilhança pressupõe o senso da realidade e da representação da sociedade no romance. O espaço utilizado, ainda como em alguns romances, é o urbano, embora não mais o centro, mas a periferia. Graças a isto, a ficção de Manuel Antônio de Almeida se aproxima das formas espontâneas da vida social.

Em alguns capítulos, os dados históricos aparecem isolados, servindo apenas como informes e em outros, aparecem como parte constitutiva da ação, e aí o documento não existe em si mesmo, mas incorporado à criação. Assim, o quadro descritivo de costumes do tempo presente na narrativa deve ser visto como elemento de composição. Não é possível, pois, considerá-la um documento tendo em vista a sua totalidade, mas é prudente afirmar que Manuel Antônio soube intuir o histórico e social e diluí-lo na construção literária, a fim de pôr o leitor a par de algumas tradições do tempo narrado. Para garantir ao discurso um efeito verossímil, como nos jornais, Manuel Antônio de Almeida se limitou a contar pequenas histórias dos becos e das sarjetas do subúrbio carioca. Ressaltou, assim, a gente miúda que vivia em um país novo onde a burguesia, ainda, era vinculada à pobreza e o poder da colônia era centralizado pelo rei. Nesse intento de caracterizar as Memórias como romance histórico, fazemos uso da citação de Osmar Pereira Oliva, com o mesmo intuito em relação à obra Agosto, de Rubem Fonseca:

[a]través da reconstrução do espaço físico e do ambiente político, Rubem Fonseca constrói a trama romanesca, possibilitando a classificação do romance Agosto no gênero romance histórico, porque tematiza uma elaboração da História, uma forma de memória, no sentido de que faz ressurgir um passado, não muito distante de nós, através da linguagem literária ficcionalizante. (OLIVA, 2006, p. 134)

Perfilando esse mesmo viés investigativo, pode-se notar que a ficção de Manuel Antônio de Almeida refere-se a um tempo pouco anterior ao da enunciação revelando cenas incomuns nas páginas literárias do período dos anos de 1850. Nesse sentido, convém colocar em questão a adequação do romance almeidiano ao romance histórico moderno, chamado por Linda Hutcheon (1991) de metaficção historiográfica. De acordo com os postulados de Hutcheon, o tempo pós-moderno procura revisitar os discursos dos considerados ex-cêntricos, marginalizados, instaurando neles uma voz considerada da margem, para que a narrativa histórica ou fictícia possa falar ali mesmo da margem. Um dos aspectos que distancia o romance histórico moderno em relação ao modelo do romance de Walter Scott é o enfoque de personagens e fatos que não tiveram relevância em documentos históricos.

Nas Memórias, o romancista coloca em cena personagens pouco recorrentes da historiografia literária romântica, prostitutas, comadres, parteiras, barbeiros, professores e meirinhos. Nesse sentido, o romance transita entre o romance histórico e o romance moderno. Nesse processo de construção mimética da sociedade carioca do período, Manuel Antônio ficcionaliza a personagem histórica Major Vidigal. Sabido é que, mesmo sendo uma criação da fantasia, um ser fictício comunica a impressão da mais pura verdade existencial.

O crítico Antonio Candido (2005), refletindo acerca da gênese das personagens, ressalta que tanto as diferenças quanto as afinidades entre o ser vivo e o

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de verdade na narrativa. Pessoas e personagens são seres fragmentados. O nosso conhecimento a seu respeito é insatisfatório e incompleto. Na vida, submetemo-nos à visão fragmentada das pessoas que é imanente à nossa própria existência. No romance, essa fragmentação é criada racionalmente pelo escritor, que delimita o conhecimento do outro. Essa delimitação é proporcionada ao passo que o escritor nos permite formar uma idéia completa da criação fictícia por meio de gestos, vestimentas, comportamentos, aspectos físicos.

Candido acrescenta que o ser fictício é mais lógico que o ser vivo, pois “o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser”. (CANDIDO, 2005, p. 59) Portanto, a compreensão do ser que nos vem do romance é mais complexa, porém é mais precisa do que a que nos vem da existência, pois conhecemos o sujeito do exterior, mas a personagem pode ser vista de dentro, através da ação do romancista. Em Memórias de um sargento de milícias, podemos constatar a verossimilhança das personagens à medida que Manuel Antônio as trata “como seres íntegros e facilmente delimitáveis, marcados duma vez por todas com certos traços que os caracterizam”. (CANDIDO, 2005, p. 60) Esses traços vinculam-se à profissão (mestre-de-reza, professor, tenente-coronel, mestre-de-cerimônias, major), à classe que originam (o compadre, a comadre, a cigana, a vizinha) e resultando em caricaturas (Toma-largura, Maria-da-Hortaliça, Leonardo-Pataca, Major Vidigal).

Como vimos discutindo, em meio ao processo da narratividade da história, deparamo-nos com as características da personagem Major Vidigal. O narrador comunga do discurso histórico da época que ressalta a autonomia e a imposição desta relevante figura para a manutenção da ordem no Rio de Janeiro do período destacado. Segundo as constatações do narrador, o Major Vidigal:

que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. (ALMEIDA, 1999, p. 20)

Dada a relevância dessa figura histórica para a manutenção da ordem no Rio de Janeiro do tempo do Rei, encontramos hoje uma homenagem a ele quando é nomeado um espaço urbano da atual cidade como “Morro do Vidigal”. Na obra, Manuel Antônio constrói tal personagem com o propósito de atribuir-lhe o status de representante maior da lei e da ordem na imaginária cidade das Memórias. Ronaldo Costa Fernandes (1996) ressalta que na tentativa da retratação das “reais” características da cidade e da sociedade carioca, a escrita almeidiana deixa de lado os grandes casarões ornamentados pelos excessos, ainda românticos, e “liberta” suas personagens pelas ruas, dotadas de liberdade afetiva, autonomia e determinação.

Diante da presença da personagem Major Vidigal, um sujeito histórico da sociedade carioca do tempo do rei, vale, então, distinguir o Homo fictus e o

Homo sapiens, já que um não equivale ao outro. O

Homo fictus pode nos ser apresentado de forma coesa e completa, enquanto este último só nos é conhecido quando morre. Apenas pós-morte é possível elaborar uma interpretação completa, provida de lógica acerca da existência do ser. Por isso, em certos casos, os artistas atribuem apenas à arte a possibilidade de entrar num domínio de conhecimentos absolutos, de certeza, atesta Candido. (2005)

Escrevendo um romance histórico que antecipa a trilha percorrida pelos modernistas, Manuel Antônio de Almeida procurou reconstruir na ficção uma personalidade histórica. Porém, Antonio Candido questiona a possibilidade do autor transplantar da

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realidade um ser vivo, e aproveitar integralmente a sua realidade. Neste sentido, acrescenta:

[n]ão, em sentido absoluto. Primeiramente, porque é impossível captar a totalidade do modo de ser duma pessoa, ou sequer conhecê-la; segundo, porque neste caso se dispensaria a criação artística; terceiro, porque, mesmo se fosse possível, uma cópia dessas não permitiria aquele conhecimento específico, diferente e mais completo, que é a razão de ser, a justificativa e o encanto da ficção. (CANDIDO, 2005, p. 65)

Para dar o sentimento de verdade, o autor manipula a realidade, reproduz ou inventa a personagem a fim de construir a ficção. De acordo com François Mauriac, citado por Candido, é da memória que o romancista extrai elementos da invenção, “e isto confere acentuada ambigüidade às personagens, pois elas não correspondem a pessoas vivas, mas nascem delas”. (CANDIDO, 2005, p. 67) Em Memórias de um sargento de milícias, essa dissolução do histórico no literário culmina em uma dialética apropriada para se pensar a sociedade brasileira dos anos de 1900. Com esse intuito, o narrador reconta a história quando revela algumas tradições e costumes do período. Pela precisão e pelo colorido da descrição, podemos, no capítulo 19, “Domingo do Espírito Santo”, tomar conhecimento de um momento em que o “real” combina e se completa no enredo. O narrador desenvolve o capítulo inteirando o leitor a respeito de “uma das festas prediletas do povo fluminense”. Em um exercício comparatista, esclarece a mudança de alguns hábitos decorrentes da ação do tempo sobre os costumes, e com ar nostálgico, acrescenta: [a]quele que escreve estas Memórias ainda em sua infância teve ocasião de ver as Folias, porém foi já no seu último grau de decadência, e tanto que só as crianças como ele davam-lhe atenção e achavam nelas prazer; os mais, se delas se ocupavam, era unicamente para lamentar a diferença que faziam das primitivas. (ALMEIDA, 1999, p. 53-54)

O narrador prossegue seu depoimento explicando o que eram e como eram as Folias, a presença do Imperador, e ainda nos revela uma das cantigas dos pastores: “O Divino Espírito Santo/ É um grande folião,/ Amigo de muita carne,/ Muito vinho e muito pão”. (ALMEIDA, 1999, p. 54). Ainda, conclui o capítulo, chegando à casa de Dona Maria e combinando a visita ao “Fogo no campo”. Nesse capítulo, o real serviu como informe, porém não se diluiu na construção narrativa.

Todavia, em outras passagens da obra, podemos perceber a intuição do real sugerida pelo romancista. “Quando o autor os organiza de modo integrado, o resultado é satisfatório e nós podemos sentir a realidade”. (CANDIDO, 1993, p. 33) Para tornar clara a citação, Candido faz uso do capítulo 15, “Estralada.” A fim de ratificar a proposição, retornamos ao primeiro capítulo, “Origem, nascimento e batizado”, em que o narrador principia descrevendo um tipo do tempo do Rei, o meirinho. Faz comparações de ordem física e moral - trajes, feição, honra, respeito, costumes e prestígio – entre o tempo presente da enunciação com aqueles dos primeiros anos do século XIX. Preocupa-se, também, com a descrição das ruas e do ponto de encontro chamado “o canto dos meirinhos”. Se recorrermos ao livro do historiador Luiz Carlos Soares (1992) intitulado

Rameiras, ilhoas e polacas, temos, com a mesma precisão das descrições de Manuel Antônio de Almeida, a revelação dos costumes, dos trajes dos meirinhos, da prostituição encontrada no Rio de Janeiro na época.

Conclusão: Conclusão:Conclusão: Conclusão:Conclusão:

Acredita-se que, em meio às controversas classificações (enquanto romance romântico, realista, picaresco, malandro, de costumes ou moderno) e discussões a que é submetido o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, pelas razões já elaboradas, isto é, a existência de traços que pudesse justificar cada um desses estilos, pode-se acrescentar o viés de um

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modo europeu, mas romance histórico que rompe com a tradição do Romantismo, e que inaugura formas que ganhariam a sua maturidade no romance moderno do século XX. Referências bibliográficas Referências bibliográficas Referências bibliográficas Referências bibliográficas Referências bibliográficas

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VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.

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