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CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO DA CATEGORIA GÊNERO NOS ESTUDOS SOBRE O MEDIEVO

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Academic year: 2021

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO DA CATEGORIA GÊNERO

NOS ESTUDOS SOBRE O MEDIEVO

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CONSIDERATIONS ABOUT THE USE OF THE GENDER CATEGORY

IN STUDIES ON MEDIEVO

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva

(UFRJ-CNPq-FAPERJ) andreiafrazao@terra.com.br

Resumo: O termo gênero foi incorporado ao

vocabulário acadêmico, sobretudo a partir da década de 1980, em diferentes campos do conhecimento, com distintos significados. No que concerne aos trabalhos historiográficos sobre o medievo no Brasil, o termo começou a figurar em meados da década de 1990. No texto, apresento considerações sobre uma das muitas possibilidades de uso do termo gênero para o estudo das sociedades medievais. Baseando-me, sobretudo, nas proposições de Joan Scott, Jane Flax e Thomas Laqueur, também objetivo discutir aspectos metodológicos para o estudo dos saberes sobre a diferença sexual.

Palavras-chave: Gênero; Historiografia; Metodologia; Medievalismo

Abstract: The term gender was incorporated

into the academic vocabulary, especially from the 1980s, in different fields of knowledge, with different meanings. Concerning the historiographical works on the medieval in Brazil, the term began to appear in the mid-1990s. In the text, I present considerations on one of the many possibilities of using the term gender for the study of medieval societies. Based mainly on the propositions of Joan Scott, Jane Flax and Thomas Laqueur, I also aim to discuss methodological aspects for the study of knowledge about sexual difference.

Keywords: Genre; Historiography;

Methodology; Medievalism

1 Considerações iniciais

Em 1996, Maria Izilda Matos declarou em uma de suas obras que os estudos de gênero formam um “campo minado de incertezas, repleto de controvérsias e de ambiguidades, caminho inóspito para quem procura marcos teóricos fixos e muito definidos”.2 Já se passaram mais de 20 anos desde que a pesquisadora publicou essa frase, mas optei por citá-la logo no início desse texto porque resume a minha visão sobre essa área de estudos.

Os estudos de gênero formam um amplo campo interdisciplinar, no qual 1 As reflexões aqui apresentadas vinculam-se aos projetos desenvolvidos com recursos do CNPq, por

meio de uma bolsa PQ2, e da Faperj, por meio do Programa Cientista do Nosso Estado (CNE).

2 MATOS, M. I. História das mulheres e gênero: usos e perspectivas. Caderno Espaço Feminino,

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convivem várias visões sobre o que significa gênero e o que constitui a sua análise, o que tem suscitado calorosos debates no âmbito acadêmico, mas também em outros setores da sociedade. Face às múltiplas discussões e controvérsias, como o próprio título indica, neste texto apresento alguns dos principais aspectos que constituem a minha compreensão sobre os estudos de gênero em perspectiva historiográfica, com ênfase na investigação sobre o medievo ocidental.

Comecei a me interessar pelos estudos de gênero, ou melhor, fui motivada a ler sobre o tema em fins dos anos 1990, quando a professora doutora Valéria Fernandes da Silva, então minha orientanda, cursava o mestrado na UFRJ e decidiu desenvolver sua pesquisa nesse campo, que culminou com a redação da dissertação intitulada Relações de Gênero no Processo de Construção do Mosteiro de São Damião, finalizada e defendida em 2001 junto ao PPGHIS-UFRJ. O principal objetivo do trabalho foi analisar as regras e formas de vida impostas às mulheres seguidoras dos ideais de Francisco de Assis que viviam na comunidade de São Damião na primeira metade do século XIII. Diferentemente do que ocorreu com os homens que seguiram ao Assisense, as religiosas não puderam, em um primeiro momento, seguir a regra franciscana e, quando lhes foi permitido, não foi de forma exclusiva. O desenvolvimento da pesquisa, a partir da perspectiva das relações de gênero, permitiu que Valéria propusesse novos olhares sobre a presença das mulheres nos primeiros anos do franciscanismo.

Após a finalização dessa experiência de orientação, dei continuidade às reflexões teóricas e metodológicas sobre os estudos de gênero. Realizei leituras,3 participei de eventos específicos sobre a temática, desenvolvi exercícios reflexivos e estabeleci diálogos com outros orientandos e pesquisadores. Nesse processo projetos de pesquisa foram elaborados, textos publicados, disciplinas na graduação e na pós-graduação ofertadas e orientações de monografias, dissertações e teses realizadas, propiciando a constituição de uma compreensão sobre os estudos de gênero e de estratégias metodológicas para desenvolvê-los. Uma breve síntese do resultado dessas reflexões acumuladas nos últimos anos sobre os estudos de gênero, 3 Joan Scott, Jane Flax e Thomas Laqueur foram os autores que mais influenciaram as minhas

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mais do que uma reflexão inovadora, é a proposta desse texto.

2 Gênero e Estudos de Gênero

Como sublinhado, o termo gênero tem gerado muitas controvérsias, e não só entre os pesquisadores. Em um artigo publicado em 2012, no qual apresenta os debates que resultaram da publicação de um manual para estudantes pelo Ministério da Educação francês com o título Tornar-se homem e mulher (Devenir Homme ou Femme), Joan Scott afirma: “apesar da ampla disseminação do termo, os significados de gênero estão longe de estarem resolvidos”.4 Assim, são dados ao vocábulo diversos sentidos, como mulher, relações entre mulheres e homens, dominação masculina, papéis/orientação/identidade sexual, diferenças anatômicas, etc. Desta forma, considero fundamental iniciar esse exercício de síntese com a apresentação do que denomino como gênero.

A partir da reflexão e leitura de diversos autores, adoto a definição de gênero como saberes, ou seja, complexas compreensões, que são estabelecidas historicamente, nas sociedades, em meio às relações de poder, sobre a diferença sexual. Tais saberes não se limitam a ideias objetivas, formadas antes da organização social, mas constituem as suas múltiplas dimensões.

Dessa compreensão de gênero decorrem vários aspectos. Em primeiro lugar, o gênero não se fundamenta na anatomia corporal, mas nos sentidos atribuídos às diferenças percebidas nos corpos. Em segundo, o gênero não é universal ou fixo. Ou seja, não há uma única configuração sobre a diferença sexual, mas múltiplos saberes sobre essa diferença, que, como já realçado, são constituídos no decorrer da história, no âmbito social, podendo, inclusive, serem concorrentes em uma mesma sociedade e período. Tais saberes não se mantêm imutáveis; como a organização social no qual são forjados, sofrem transformações. Ainda que o uso do termo seja feito no singular, pois é uma categoria analítica, a sua aplicação sempre pressupõe multiplicidade. Em terceiro, o gênero está presente em diversos aspectos da organização social, atravessando ou compondo as relações sociais, as 4 SCOTT, Joan Wallace. Os usos e abusos do gênero. Projeto História, n. 45, p. 327-351, Dez. 2012. p.

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subjetividades, as identidades, as práticas cotidianas, as normas, as instituições, os símbolos, etc., não necessariamente de forma determinante. Em quarto, o gênero é um saber que atua como estratégia ou tática, como ação objetiva ou interiorizada, seja para submeter, disciplinar, dominar, reprimir, diferenciar, legitimar, mas também para negociar e burlar. E, por fim, ainda que na maioria das sociedades os saberes sobre a diferença sexual sejam constituídos predominantemente a partir de um esquema binário (homens – mulheres), não significa que em todos os grupos sociais, em todas as sociedades e em todos os períodos históricos esta diferença foi, é ou será configurada desta mesma forma. Além disso, ainda que o gênero seja hegemonicamente instituído como binário, não está isento de ambivalências, incoerências, descontinuidades, conflitos e contradições.

Partindo dessa definição e de tais desdobramentos, compreendo estudos de gênero no campo historiográfico como análises sobre a constituição, o “funcionamento” e a circulação dos saberes sobre a diferença sexual, articulados aos vários aspectos do social, em espaços e momentos específicos. Assim, tais investigações buscam discutir como o gênero é socialmente constituído; em quais elementos se fundamentam; como se articulam aos aspectos da organização social; como se perpetuam; como são utilizados para justificar posições, desqualificar oponentes, legitimar a tutela, o controle, a repressão, a dominação, a exclusão, a hierarquização de diferentes grupos; como participam de negociações; como são empregados para burlar o que está instituido; como são reconfigurados, dentre outras questões.

Na perspectiva que adoto, o gênero não possui uma definição fechada, pois é uma categoria de análise empregada na produção de conhecimentos sobre a organização social. Seguindo a Scott, defendo que o gênero é uma categoria útil para as pesquisas historiográficas sobre o medievo, por algumas razões que passo a apresentar. Para cada uma das razões elencadas, apresento um ou mais exemplos de estudos já realizados.

A categoria gênero é útil, pois permite realçar a complexidade das organizações e das relações sociais, ao auxiliar na identificação de contradições, assimetrias e hierarquias, mesmo em grupos considerados homogêneos. Quando,

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por exemplo, analisamos as normativas vinculadas ao monacato presentes nas diversas versões das atas do Concílio de Coyanza, assembleia realizada em meados do século XI noreino castelhanoleonês, identificamos que os monges e monjas são posicionados em simetria, pois devem se manter passivos e submissos aos seus respectivos abades e às autoridades episcopais e reais.5 Mas a leitura crítica desses cânones, tendo como foco os saberes sobre a diferença sexual no âmbito da organização social, à luz do contexto mais geral, permite concluir que as normativas sobre o monacato também abarcam assimetrias de gênero. Pois, se, por um lado, monges e monjas, nas relações estabelecidas com os bispos e com a própria monarquia, são identificados de forma simétrica no texto de Coyanza, como já salientado, com a subordinação e a passividade, por outro, há que sublinhar que as mulheres, diferentemente dos homens, não poderiam aspirar a ordem clerical.6 Ou seja, para os homens existiam alternativas no ambiente eclesiástico, para as mulheres, não.

Outro aspecto que rompe essa simetria encontra-se em uma das variações das atas de Coyanza, a versão traduzida para o romance encontrada no mosteiro de San Facundo. Nela há menção a um pecado que é cometido com/nas monjas, o que também rompe com a simetria ao referir-se a um pecado que somente poderia ser cometido com religiosas e não com monges. Nesse texto, somente as monjas figuram como objetos passivos da ação pecadora alheia, o que reforça a dicotomia mulher/fraca/passiva - homem/forte/ativo, ainda que no âmbito aparentemente simétrico do monacato.7

O emprego da categoria gênero também propicia novos olhares sobre as

5 Essa simetria no que concerne à obediência aos abades e demais autoridades são encontradas em

outros textos medievais relativos ao monacato.

6 Alguns autores sublinham que durante o medievo houve ordenação de mulheres, porém só em

alguns círculos e/ou para alguns graus específicos, como a diaconia, ou que em ordens específicas para mulheres – as chamadas viúvas e virgens. Entretanto, a partir do século XII, a ordenação para as mulheres foi sendo descartada (MACY, Gary. Heloise, Abelard and the ordination of abbesses. Journal

of Ecclesiastical History, v. 57, n. 1, p. 16- 32, 2006.; ___. Ordination of women in the middle ages. Theological Studies, v. 61, p. 481-507, 2000.).

7 Desenvolvi tais ideias no artigo Reflexões sobre monacato, gênero e poder: uma leitura dos cânones

do Concílio de Coyanza. A referência completa de todos os textos mencionados encontra-se na

bibliografia final. Disponível em http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/ metis/article/viewArticle/1686. Acesso em 03/08/2020.

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interrelações entre sujeitos e sociedades, possibilitando a discussão sobre como são constituídas as identidades genéricas e as pessoais e, em contrapartida, como certos comportamentos e expressões individuais rompem com a perspectiva que se pretende dominante. Um exemplo do potencial dessa análise é o artigo Imitatio

Christi or Imitatio Mariae? Claire of Assisi and her Interpreters, de autoria de

Catherine Mooney. Nesse trabalho, a autora debate como Clara de Assis se identifica como imitadora de Cristo em seus escritos, enquanto os textos hagiográficos e a iconografia a apresentaram como imitadora de Maria. Para a autora:

This evolving portrayal of Clare and the correlative depictions of her female followers as imitators of Mary and Clare served to distance them from the centrally important Christian motif of imitatio Christi and consequently reinforced their secondary position vis-a-vis Francis and his male followers.8

Ou seja, os hagiógrafos, ignorando a forma como Clara se expressou, identificaram-na com Maria, estabelecendo uma hierarquia pautada em uma identidade associada a certa visão sobre as mulheres, que situou Clara e suas discípulas em uma posição inferior a Francisco e seus seguidores.

As reflexões sobre as relações de dominação, as transgressões e as negociações também podem ser favorecidas pelo uso da categoria gênero, ao atentarem para como o saber sobre a diferença sexual contribui para a submissão, o controle, a repressão, ou, em sentido contrário, para a insubordinação, a indisciplina e a desobediência, e também faz-se presente no estabelecimento de acordos e alianças. Para exemplificar a complexidade do gênero nas relações de poder, optei por apresentar três trabalhos.

O primeiro é o de Diane Owen Hughes, As modas femininas e seu controle, publicado no volume dedicado ao medievo da obra História das Mulheres, organizada por Duby e Perrot. Este texto analisa o nascimento da moda no Ocidente, demonstrando como tal fenômeno foi associado às mulheres e tornou-se tema de

8 MOONEY, Catherine M. Imitatio Christi or Imitatio Mariae? Clare of Assisi and her Interpreters. IN:

_____. (Org.). Gendered Voices: Medieval Saints and Their Interpreters. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999. p. 52-77. p. 76.

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misoginia, ainda que os homens igualmente estivessem atentos ao luxo e às vestimentas. Ao discutir tal questão, a autora destaca como a renúncia à moda tornou-se um elemento frequente nas hagiografias a partir do século XIII, mormente nas vitae sobre mulheres, como um símbolo do rompimento com a identidade social a qual estavam associadas e, no caso dos homens, mais raros, como um meio de submeter a carne e libertar o espírito. O texto de Hughes permite indicar que um mesmo fenômeno social, a moda, é atravessado de formas distintas pelo gênero: um motivo para desqualificar e controlar as mulheres ou, no caso dos santos, ao renunciá-la, um meio de subversão contra papéis sociais impostos.

Também realçando a ambiguidade das relações de poder e gênero, apresento algumas reflexões desenvolvidas emO martírio de Luzia de Siracusa na Legenda Áurea: uma leitura a partir da categoria gênero. Na análise da hagiografia presente

no legendário do século XIII, que retoma um evento que, segundo a tradição, ocorreu durante a perseguição aos cristãos de Diocleciano, foi possível concluir que além de perpetuar a memória da santa e transmitir ensinamentos morais e de fé, o texto contribuiu para reafirmar e propagar perspectivas de gênero. Luiza torna-se uma mártir porque recusou o papel social para o qual estava destinada - ser uma mulher casada -, ao fazer um voto consagrando a sua virgindade a Deus e distribuir o seu dote entre os pobres. Seu noivo, insatisfeito, denuncia-a às autoridades. Durante o inquérito, por seus atos, ela é desqualificada com adjetivos associados a uma dada perspectiva sobre as mulheres: é criticada como insensata, gastadora e meretriz e ameaçada de estupro.9 Mas a santa resiste até ser martirizada. Essa hagiografia é um exemplo de como o gênero ganha complexas configurações no âmbito social, pois a virgindade casta é apresentada como uma possível tática para conquistar a liberdade face ao casamento e um meio de empoderamento para enfrentar a opressão, também é o motivo para a repressão da personagem, inclusive por meio

9 Comparando o relato sobre o martírio de Luzia com o de homens também presentes na Legenda

Áurea, como, por exemplo, os capítulos dedicados a Sebastião ou Jorge, verifica-se que diferentemente do que ocorre nessa Paixão, a fé cristã é o motivo central da denúncia às autoridades. A fim de fazê-los renunciar à sua crença, além de torturas físicas, como dilacerar o corpo com garfos de ferro; queimar e esfregar sal nas suas feridas e entranhas que estavam expostas; dar veneno para beber, etc, em alguns casos são oferecidas honrarias.

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de ameaças de violência sexual, para, por fim, ser vista como uma alternativa social válida para as mulheres cristãs, desde que abraçada sob a vigilância eclesiástica ou familiar.

Mas o gênero também se faz presente nas negociações. A Forma de Vida de

Hugolino, texto composto nas décadas iniciais do século XIII, apresentava um

conjunto de normas que deveria ser seguido juntamente com a Regra de S. Bento pelas monjas da Ordem das Damas Pobres. Em diversos pontos do documento, após instituir uma normativa, como, por exemplo, a proibição da entrada nos conventos dos estranhos à comunidade, enumera, logo a seguir, as situações excepcionais. Ou seja, ao mesmo tempo em que é instituída uma norma que se inspira em um saber sobre a diferença sexual, que associa as mulheres religiosas à passividade e à inocência, abre-se espaço para exceções e, por extensão, para negociações, pois as proibições poderiam ser suspensas conforme a decisão da abadessa, o que aponta para uma contradição na forma como as religiosas são consideradas no decorrer do texto.10

Por fim, há de sublinhar que, partindo da premissa que o gênero está presente em todos os aspectos do social, ainda que de forma não determinante, a categoria gênero pode ser aplicada a diversos objetos e abordagens de estudo. Por exemplo, para a discussão sobre o patrocínio de textos durante o medievo. Essa é a questão debatida em Escrita hagiográfica, patronato literário e a categoria gênero:

uma leitura das vidas dedicadas à Santa Senhorinha de Basto. Nesse texto, são

analisadas três obras compostas entre fins do século XII e segunda metade do XIII -

Vita Beatae Senorinae Virginis (VSS), Alia Sanctae Senorinae Vita (AVSS) e Vida e Milagres de Santa Senhorinha (VMSS)- a fim de contribuir com as reflexões

relacionadas ao processo de composição das mesmas.11 A VSS apresenta perspectivas divergentes sobre Senhorinha, o que pode se relacionar ao seu processo de composição e ao caráter de compilação que apresenta em sua versão atual. Assim, a Santa é, ao mesmo tempo, uma mulher que vive recolhida e se 10 Essas reflexões estão desenvolvidas no texto Uma Leitura da Forma de Vida de Hugolino à luz da

categoria gênero.

11 Essas Vitae foram preservados por cópias tardias e sofreram a ação dos seus editores, o que tem

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mortifica constantemente, e uma figura ativa, ciente do que se passa ao seu redor, que convive com pessoas dos diversos grupos sociais, tem controle sobre a natureza, atende aos que necessitam, possui uma boa fama pública. Após a sua morte, sua santidade é reconhecida pela autoridade arcebispal local e seu culto se consolida. A obra, tal como foi fixada em fins do século XII, respondia a demandas sociais específicas do arcebispado bracarense, o provável patrocinador do texto. Na AVSS, Senhorinha é uma mulher que optou pela vida religiosa e, por sua vida virtuosa, foi reconhecida como Santa, engrandecendo, desta forma, a sua linhagem. Por seu poder de intercessão junto a Deus, pode socorrer ao próprio rei, que obteve a graça de ter seu filho, e sucessor, curado. Esta caracterização de Senhorinha aponta para uma obra patrocinada pelos Sousa, com motivações evidentemente políticas. Por fim, a VMSS, que segue, em linhas gerais, a VSS, mas apresenta uma Senhorinha mais humanizada e próxima dos fiéis, independentemente do sexo ou grupo social. Por estas características, esta vida provavelmente foi patrocinada pela própria comunidade ligada à Igreja da Santa, objetivando atrair os devotos. Ou seja, a categoria gênero foi empregada neste estudo para trazer novos olhares para a discussão sobre o processo de produção das três obras hagiográficas. Mas outras questões também podem ser abordadas, como, por exemplo, o uso simbólico das hierarquias de gênero para retratar disputas institucionais.

Face às definições de gênero e de estudos de gênero expostas, inevitavelmente são suscitados questionamentos: é possível analisar aspectos do social a partir da categoria gênero que poderiam passar despercebidos com o uso de outros referenciais, mas também não corre-se o risco de ignorar outros? Como estabelecer a articulação entre os saberes presentes nos testemunhos com as múltiplas práticas sociais do passado? Como não sucumbir aos esquemas e ao vocabulário do binarismo sexual nas análises? Como incorporar às reflexões historiográficas sobre o gênero as contribuições de outros campos do conhecimento, como a Psicologia, a Psicanálise, a Linguística e a Antropologia? Não tenho respostas a apresentar a todos essas questões. Neste sentido, ao finalizar a redação dessa

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seção, faço coro com Scott “gênero é uma questão perpetuamente aberta”.12

3 Aspectos metodológicos

Após apresentar as definições de gênero e estudos de gênero, sem ignorar os questionamentos que tais compreensões suscitam, passo a abordar alguns aspectos metodológicos que tenho adotado no desenvolvimento de minhas reflexões. Faz-se importante salientar que alguns desses recursos não são aplicáveis unicamente aos estudos de gênero, e podem, e de fato são, utilizados em diferentes pesquisas.

Para a compreensão de como o gênero é constituído, circula e “funciona” em determinadas sociedades/grupos, tenho realizado estudos qualitativos, analisando objetos com recortes espacial e temporal específicos. Ou seja, em abordagens micro, sem a preocupação de generalizar as conclusões. Essa opção se relaciona ao escopo dos estudos de gênero, que objetivam perceber as incoerências, as contradições, as nuanças, as descontinuidades para realçar a complexidade da presença dos saberes sobre a diferença sexual na organização social. A fim de realizar estudos com maior abrangência, podem ser montadas séries de dados com recortes geográficos e/ou temporais mais amplos, a fim de identificar eventuais regularidades e/ou singularidades. Outra possibilidade é o uso da comparação, que permite analisar de forma sistemática um ou mais objetos, seja em sociedades vizinhas ou distantes e/ou em perspectiva sincrônica ou diacrônica. Por meio da comparação também podem ser estudados aspectos presentes em organizações sociais que sofreram uma influência exterior comum ou que interferiram um no outro.

Outro recurso imprescindível é o constante diálogo com a historiografia. Sem dúvida, toda a pesquisa necessita revisar os trabalhos produzidos anteriormente, mas no caso específico dos estudos de gênero parte-se da premissa que a historiografia também contribui para perpetuar saberes sobre a diferença sexual. Logo, há que verificar como os historiadores transformaram os vestígios do passado em dados/fatos e como propuseram explicações para os processos históricos, analisando as obras para identificar, e não repetir, esquemas explicativos que

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reafirmam saberes sobre a difererença sexual, contribuindo para desconstruí-los.13 Os estudos de gênero podem ser realizados analisando variados vestígios do passado: textuais, como cartas, crônicas, leis, hagiografias, tratados; imagéticos, como afrescos, iluminuras, esculturas, e objetos em geral. Como já realçado, parte-se do pressuposto que o gênero está preparte-sente em todos os aspectos da organização, ainda que não de forma determinante e, é possível acrescentar, nem sempre de maneira explícita. Nesse sentido, todos os testemunhos do passado podem ser utilizados, mesmo aqueles que não tratam especificamente sobre a diferença sexual. Contudo, como em todas as pesquisas historiográficas, os vestígios precisam ser problematizados, pois resultam de complexos processos de produção, transmissão e circulação.

É por meio da análise dos vestígios do passado, realizando um estudo crítico das significações/sentidos que propagam, que se busca discutir como o gênero se constitui, atua e propaga nas distintas dimensões da organização social. Para tanto, é necessário considerar diversos aspectos na análise: a modalidade de vestígio analisado; quem o compôs e/ou o promoveu; em quais circunstâncias; para quem; em qual conjuntura; em qual lugar social e geográfico; como foi seu processo de composição; quais são seus fundamentamentos; quais tradições incorpora; quais ideias corrobora e quais recusa ou critica; com quem dialoga; que novas perspectivas propõe para obras anteriores ou acontecimentos; como está estruturado; se apresenta incoerências, contradições ou ausência; como foi enunciado, como circulou, foi transmitido e repercutiu.

Outro cuidado metodológico a ser aplicado aos estudos de gênero é a desvinculação da anatomia, da sexualidade, da identidade e da subjetividade e do papel sexual na interpretação dos dados identificados, a fim de que as possibilidades de análise possam ser ampliadas. Trata-se de um árduo exercício, pois na perspectiva hegemônia atual, tais aspectos são frequentemente articulados e pensados pela perspectiva binária. Mormente, os aspectos físicos (anatomia, gestos, tom de voz, etc) são considerados como o fundamento da diferença sexual. Contudo, 13 Desconstruir, aqui é usado no sentido de decomposição da lógica argumentativa, identificando os

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vale ressaltar que no decorrer da história esta compreensão não foi a única. Desta forma, se essa desvinculação não for feita, reflexões sobre fenômenos como a prática do travestismo dos santos no medievo, que figuram em diversas hagiografias, podem gerar interpretações limitadas. Neste mesmo sentido deve-se buscar um vocabulário que não reafirme o binarismo e evite afirmativas generalizantes, como “as mulheres/homens são” , “a mulher masculinizou-se” ou “o homem feminilizou-se”, dentre outras.

Um recurso metodológico que auxilia a análise de como o gênero atua nos diversos aspectos da organização social é selecionar uma variável, isto é, um aspecto que sofre reconfigurações ao ser articulado à diferença sexual. Essa variável é fundamental na constituição de questões de pesquisa qualitativas, de séries de dados e de exercícios comparativos. Distintos aspectos podem ser tomados como variáveis: alimentação; trabalho; educação, mobilidade; morte; casamento; lazer; adultério; aborto; violência; jejum; milagres, grupo social; etnia; moda/vestimentas; vida religiosa; etc. A partir do tema escolhido, pode-se discutir se ele sofre variações ao ser anteposto às diferenças sexuais; se outros fatores funcionam juntos para acentuar ou amenizar o gênero; se são percebidas incoerências etc.

O último aspecto metodológico a sublinhar é a proposição de compreensões múltiplas sobre o gênero nas organizações sociais. Pois se o objetivo é discutir como o gênero se constitui, atua e perpetua-se, sem perder de vista a complexidade de tais fenômenos, não é necessário limitar-se a uma única possibilidade de resposta às problemáticas de pesquisa previamente elaboradas.

Outros aspectos metodológicos poderiam ser elencados. Mas optei por apresentar aqueles que permitem verificar como as definições da categoria gênero e dos estudos de gênero expostas aqui podem ser desdobradas em trabalhos analíticos específicos. Como já destaquei, não há unidade no campo. Desta forma, outras definições geram distintas metodologias. Mas é importante reafirmar: a diversidade só enriquece o debate.

4 Considerações finais

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categoria gênero e defino estudos de gênero. Também indiquei alguns recursos metodológicos que aplico no desenvolvimento das análises. Como salientado, trata-se de uma perspectiva, não a perspectiva sobre estrata-se rico campo. Aliás, à luz das diretrizes adotadas, seria um contrassenso apostar em uma perspectiva definitiva.

Os estudos de gênero permanencem um campo “minado de incertezas, repleto de controvérsias e de ambiguidades, caminho inóspito para quem procura marcos teóricos fixos e muito definidos”.14 Em minha opinião, essas incertezas, controvérsias e ambiguidades podem ser explicadas, ainda que parcialmente, pelos desafios que os estudos de gênero evidenciam: a desnaturalização da diferença sexual, a compreensão de que o gênero afeta a organização social em diferentes níveis e o reconhecimento de que compõe as subjetividades e identidades coletivas e individuais.

Apesar das incertezas, controvérsias e ambiguidades, quero finalizar essa reflexão defendendo a relevância dos estudos historiográficos de gênero em geral, e, de forma particular, para as pesquisas sobre o medievo. A questão da diferença sexual, mesmo que nem sempre atue de maneira determinante, foi, e ainda é, um aspecto central das distintas organizações sociais, e, como tal, deve ser analisada. Por meio dos variados estudos de gênero, mesmo que repletos de divergências teóricas e metodológicas, os conhecimentos são ampliados e o tema é trazido para o debate.

Artigo recebido em 13.07.2020 Artigo aceito em 01.08.2020

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