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CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS, CLÁUSULAS ABUSIVAS E O CÓDIGO CIVIL DE 2002

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CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS, CLÁUSULAS

ABUSIVAS E O CÓDIGO CIVIL DE 2002

MESTRADO EM DIREITO CIVIL

PUC/SP SÃO PAULO

(2)

DIOGO L. MACHADO DE MELO

CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS, CLÁUSULAS

ABUSIVAS E O CÓDIGO CIVIL DE 2002

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito das Relações Sociais (subárea de Direito Civil) sob orientação do Professor Doutor RENAN LOTUFO.

PUC/SP SÃO PAULO

(3)

Banca Examinadora

______________________________________________________

______________________________________________________

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Dedicatória

Ao amigo RENAN LOTUFO, como parte da (impossível) tarefa de retribuir o que graciosamente recebi e aprendi. Por ter me mostrado que só quem ama é capaz de ouvir e entender as estrelas, bem como a própria evolução e efetivação do direito.

(5)

AGRADECIMENTOS

Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa ...

SAINT-EXUPÉRY

Para falar a verdade, sempre gostei dos agradecimentos que constam das dissertações, teses e livros. Querendo ou não, neles estão, de fato, a história do autor, o seu percurso até a consagração (e por que não, as causas do insucesso...) de seu árduo trabalho. Confesso que relutei em fazê-los aqui. Mas o medo de não tornar público este gesto de carinho e de reconhecimento, por mais paradoxo que pareça, me fez tomar coragem. Antes de agradecimento, deve o leitor considerar estas palavras parte de uma oração que, humildemente, faço por ter conseguido chegar ao fim de mais este trajeto.

Não poderia deixar de agradecer, em primeiro lugar, com o coração cheio de alegria, aos meus queridos e adorados pais, José Horácio de Melo e Sandra Marina Machado de Melo. Exemplos de educadores e advogados, a quem tudo devo, especialmente, por terem me dado todas as condições de sair da minha pequenina cidade e realizar um sonho: estudar Direito na PUC/SP.

Também não posso deixar de agradecer meus queridos irmãos mais velhos, Matheus e Rodrigo, que em cada gesto e a cada palavra de incentivo dão sentido à família que nos une.

(6)

conhecendo seu filho, meu grande amigo (e compadre) Francisco Thomaz de Carvalho Júnior (o Chico), a quem nutro profunda admiração e amizade. Aliás – como ele sempre gosta de frisar – foi por indicação do Chico que comecei a trabalhar, ainda como estagiário, no Renan Lotufo Advogados Associados.

Lembrando-me do escritório, hoje, já como advogado, não poderia deixar de agradecer a todos que estiveram (e estão) comigo e que, de alguma forma, ajudaram-me a dar cada passo, a crescer como estudante e como pessoa, respeitando (silenciosamente) minhas graves limitações intelectuais. No escritório, aprendi que o amor pelo Direito, a dedicação e o respeito ao próximo são condições mínimas para o exercício da docência e da advocacia.

Por isso, agradeço a todos que passaram por ali, mas faço especial agradecimento aos amigos Gilberto e Valéria. Foi com eles que passei grande parte de minha vida profissional. Humildes funcionários, sempre me trataram com carinho e me serviram com admirável dedicação, aturando pacientemente minhas rabugices e manias, como fiéis ouvintes, em todo início do dia. Sem eles eu também não estaria aqui.

Agradeço, ainda, pelo convívio com a amiga Maria Alice Zaratin Soares Lotufo, exemplo de mulher, advogada, professora, minha confidente, incentivadora e orientadora nas relações afetivas, suprindo a falta de minha mãe, que infelizmente não pôde estar aqui durante todo o tempo. Agradeço também aos membros da antiga formação do escritório, na pessoa de meus primeiros "chefes", Fernando Sartori e Luciana Stocco Betiol, e hoje aos amigos Luiz Philipe Tavares Cardoso, Juliana Maria Câmara e João Luís Zaratin Lotufo, pela paciência que tiveram comigo na fase final deste trabalho.

Aos amigos Irineu Jorge Fava e Elcio Trujillo, ilustres magistrados, a quem devo importante (e inesquecível) aprendizado, quando passei em estágio pela Escola Paulista da Magistratura.

Ao professor Silvio Luís Ferreira da Rocha, pela oportunidade da primeira monitoria em Direito Civil, enquanto aluno da graduação da PUC/SP.

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hoje, a honrosa posição de assistente em uma de suas Cadeiras da PUC/SP. Cassio, de coração, muito obrigado.

Agradecimento especial à amiga Susete Gomes Barné, pelas palavras de apoio no curso de mestrado da PUC/SP.

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RESUMO

O presente trabalho volta-se ao estudo e à sistematização apartada das cláusulas contratuais gerais no âmbito do direito privado, fornecendo subsídios para maior compreensão e melhor aplicação dos contratos por elas contidos.

Partindo da premissa civil-constitucional e da recente doutrina dos contratos, buscar-se-á contextualizar, historicamente, o surgimento e a utilidade das cláusulas contratuais gerais.

Em um segundo momento, serão apresentadas as características específicas das cláusulas contratuais gerais, suas diferenças de institutos afins, bem como a demonstração de sua natureza jurídica, o que legitimará as conclusões sobre os limites e as particularidades do seu controle e de sua interpretação.

As cláusulas contratuais gerais não contam com regramento específico em nosso país, mas têm sido objeto de leis especiais em diversos países. Partindo de experiências estrangeiras, serão apresentadas formas de controle das cláusulas contratuais gerais consideradas abusivas, tecendo-se comparação com os métodos de repressões administrativa, judicial e legislativa existentes em nosso país, em especial, no Código Civil.

Para melhor compreensão do fenômeno, de sua existência independente e anterior aos contratos de adesão que serão formados, também será feito um estudo sobre a formação dos contratos e do processo de inclusão das cláusulas contratuais gerais em contratos individuais, sem deixar de apontar, ainda, os mecanismos de tutela existentes em favor do aderente nesta fase.

(9)

ABSTRACT

The present work focuses the study and separate systematization of the general contractual clauses in the field of private law, providing subsidies for a greater understanding and better application of the contracts in which they are included.

From the civil-constitutional point of view, and according to the recent theory of contracts, it will search to place the start and the usefulness of the general contractual clauses inside a historical context.

Afterwards, the specific characteristics of the general contractual clauses, their differences with similar principles, and the demonstration of its legal nature, which will legitimate the conclusions on the limits and particularities of its control and interpretation, will be presented.

Despite there is no specific regulation in our country, the general contractual clauses have been the subject of special laws in several countries. Starting from foreign experiences, ways for controlling the general contractual clauses considered as abusive will be presented, comparing the methods for administrative, judicial and legislative repression existing in our country, especially in the Civil Code.

For a better understanding of the phenomenon, its independent and prior existence as regards the adhesion contracts which will be formed, a study on the contractual formation and the process of including the general contractual clauses in individual contracts will be performed, indicating further the mechanisms for protection existing in favor of the adherent in this stage.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...13

PARTE I – ASPECTOS ATUAIS DO DIREITO PRIVADO E DA TEORIA GERAL DOS CONTRATOS. CONTEXTO HISTÓRICO E UTILIDADE DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS ...16

1 Premissas metodológicas para o estudo do direito privado e das cláusulas contratuais gerais ...16

1.1 Introdução ...16

1.2 O direito público e o direito privado...17

1.2.1 O direito privado no curso da história: breves digressões ...19

1.2.2 A chamada “publicização” do direito privado ...25

1.2.3 A crise da dicotomia público e privado ...29

1.3 Lineamentos do direito civil constitucional ...30

1.3.1 Rumos do direito privado e do direito civil constitucional...35

1.3.2 A utilidade da autonomia do direito privado...35

1.3.3 O direito civil constitucional e o Código Civil de 2002...39

1.4 O estágio atual da teoria geral dos contratos...43

1.4.1 Os “novos” princípios do contrato...49

1.4.2 Obrigação como relação jurídica complexa. Relevância para o estudo dos contratos ...55

1.5 Contexto histórico do surgimento das cláusulas contratuais gerais: a massificação das relações contratuais...58

1.6 As cláusulas contratuais gerais. utilidade...69

PARTE II – AS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS ...75

2 Características das cláusulas contratuais gerais ...75

2.1 Nota preliminar. elucidação terminológica...75

2.1.1 Razões do uso do nome “cláusulas contratuais gerais” ...75

2.1.2. Cláusulas contratuais gerais e contrato de adesão. Distinção ...79

2.2 Conceito ...83

2.2.1 Conceito ...84

(11)

2.3 Características essenciais das cláusulas contratuais gerais: unilateralidade,

predisposição, generalidade, abstração, rigidez ...90

2.3.1 Unilateralidade – observação necessária ...90

2.3.2. Predisposição (pré-formulação, pré-formatação, pré-elaboração) ...94

2.3.3. Generalidade (e uniformidade) ...96

2.3.4 Abstração (indeterminação)...101

2.3.5 Rigidez...102

2.4 natureza jurídica das cláusulas contratuais gerais...104

2.4.1 Teoria normativista ...105

2.4.2 Teoria contratualista ...107

2.4.3 Teoria eclética ...109

2.5 Institutos afins – diferenças...115

2.6 Exemplos de incidência cláusulas contratuais gerais...118

3 As cláusulas contratuais gerais no direito estrangeiro ...122

3.1 Introdução ...122

3.2 Direito europeu. Antecedentes históricos da Diretiva n. 13, de 05.04.1993...122

3.3 Código Civil italiano...125

3.4 AGB-Gesetz alemã e o BGB...126

3.5 Unfair Contracts Terms Act na Inglaterra ...129

3.6 Loi sur la protection et l’information des consommateurs des produits et des services e code de la consommation na frança ...131

3.7 Suécia ...133

3.8 Standard contracts law em Israel ...134

3.9 Código Civil peruano...135

3.10 Lei das cláusulas contratuais gerais de Portugal (Dec.-lei n. 446/1985)..136

2.11 Ley sobre condiciones generales de la contratación na Espanha (Lei n. 7, de 13.04.1998) ...137

PARTE III – CLÁUSULAS ABUSIVAS E O CÓDIGO CIVIL DE 2002...140

4 Sistemas de controle das cláusulas contratuais gerais abusivas ...140

4.1 Introdução ...140

4.2 Controle administrativo. características...143

4.3 Controle judicial. características...145

(12)

4.5 Controle administrativo e controle judicial no direito brasileiro...164

4.6 controle de conteúdo no Brasil – Parâmetros existentes no Código Civil de 2002 para caracterização das cláusulas abusivas e seu controle...176

5 Considerações sobre o consenso e sobre a formação dos contratos no Código Civil de 2002 ...198

5.1 Introdução ...198

5.2 Formas de expressão da manifestação da vontade...201

5.2.1 Declaração de vontade. Declarações verbais, escritas, simbólicas...204

5.2.2 Declaração tácita e comportamento concludente. Silêncio ...207

5.2.3 Relações contratuais de fato. Observação necessária...209

5.3 Formação dos contratos no Código Civil...211

5.3.1 Consenso nos contratos entre ausentes ...219

5.3.2 Nota: consentimento no contrato de adesão ...222

5.3.3 Formação do contrato de adesão e das cláusulas contratuais gerais .223 5.4 O controle de inclusão das cláusulas contratuais gerais na formação do contrato de adesão ...227

6 Interpretação das cláusulas contratuais gerais...235

6.1 Introdução ...235

6.2 Interpretação dos contratos. breves considerações...237

6.3 Aplicabilidade das regras de interpretação dos contratos às cláusulas contratuais gerais...241

6.3.1. Interpretação das cláusulas contratuais gerais enquanto predispostas, antes de estar inseridas em contratos individuais ...247

6.3.2 Interpretação das cláusulas contratuais gerais inseridas em contratos de adesão. O art. 423 do Código Civil...250

6.4 A boa-fé e a função social na interpretação das cláusulas contratuais gerais ...261

CONCLUSÃO...270

(13)

INTRODUÇÃO

Definitivamente, sistematizar um estudo sobre o tema cláusulas contratuais gerais não é uma tarefa tranqüila. Há sempre o risco de se elaborar um trabalho incompleto.

Exemplo disso é que, das poucas obras monográficas ou artigos existentes sobre o tema, nenhuma delas optou pelo tratamento geral das cláusulas contratuais gerais: ora se dá enfoque ao estudo dos sistemas de controle, ora da abusividade das cláusulas contratuais gerais ou, ainda, no caso dos trabalhos estrangeiros, restringe-se ao comentário das leis que regulam as cláusulas contratuais gerais em um dado país. Nos trabalhos sobre os contratos de adesão, é dada ênfase à formação e ao estudo dos contratos individuais, mas nenhuma atenção às cláusulas contratuais gerais que os compõem.

O tema é extremamente rico e amplo, mas pouco explorado pela doutrina nacional. Por isso, estando certo da dimensão do tema, aceitou-se o desafio de um estudo geral das cláusulas contratuais gerais, tendo como parâmetro não o Código de Defesa do Consumidor, mas as relações civis, empresariais e o Código Civil de 2002.

O presente trabalho volta-se, portanto, ao estudo de uma parte específica do direito dos contratos ou, mais precisamente, das chamadas cláusulas contratuais gerais (também denominada em doutrina como condições gerais dos contratos ou condições gerais dos negócios), desde as origens dessa figura, de seu tratamento no direito estrangeiro e o seu enquadramento no direito civil brasileiro.

(14)

Por essa razão, além da contextualização histórica das cláusulas contratuais gerais, a primeira parte do trabalho (Parte I) volta-se, propositadamente, à fixação das diretrizes civis-constitucionais para o estudo dos contratos, que permitirão a melhor compreensão dos subsídios teóricos de interpretação e de caracterização das cláusulas contratuais gerais consideradas abusivas.

Por sua vez, a segunda parte do trabalho (Parte II) tem como enfoque o estudo das cláusulas contratuais gerais propriamente ditas, suas notas características, sua distinção com os contratos de adesão e institutos afins, sua natureza jurídica (Capítulo 2). Ainda nessa parte, posteriormente, serão indicados os pontos básicos do tratamento das cláusulas contratuais gerais na Comunidade Européia (Diretiva n. 13/1993), na Itália, bem como na Alemanha, Inglaterra, França, Suécia, Portugal, Peru e Espanha (Capítulo 3), que, diferentemente do Brasil, contemplam um tratamento legislativo específico sobre o tema, fornecendo importantes subsídios para interpretação e aplicação do instituto em nosso sistema.

A terceira parte do estudo (Parte III) volta-se ao estudo da patologia das cláusulas contratuais gerais, ou seja, da sua abusividade. Logo no Capítulo 4, serão estudadas as características dos métodos de repressão administrativa, judicial e legislativa das cláusulas contratuais gerais consideradas abusivas existentes no direito estrangeiro e, posteriormente, as características desses controles em nosso país, dando especial atenção aos subsídios para contenção da abusividade existentes no Código Civil de 2002 que, ao contrário do Código de Defesa do Consumidor, não dispõe de um elenco de cláusulas consideradas abusivas.

O tema não tem interesse apenas teórico, uma vez que o Código Civil, que consagrou expressamente nos seus artigos o princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato, deixou de trazer um regramento sistemático para o problema das cláusulas contratuais consideradas abusivas. Por isso o trabalho busca cuidar do problema das cláusulas abusivas especificamente no Código Civil, excluindo-se do tema do trabalho a regulação de clausulas abusivas feitas para a proteção do consumidor, que recebem tratamento especial no Código de Defesa do Consumidor.

(15)

tratar do tema especificamente no Código Civil pode ajudar, inclusive, em eventual estudo comparado.

No Código Civil, o único artigo que trata, especificamente, do assunto é o art. 424, pelo qual, nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio. O que se pretende demonstrar é como os princípios contratuais da boa-fé objetiva, da função social e do equilíbrio contratual – que não está expresso no Código Civil – podem ajudar no trato do tema das cláusulas contratuais gerais abusivas.

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PARTE I

ASPECTOS ATUAIS DO DIREITO PRIVADO E DA TEORIA GERAL DOS CONTRATOS. CONTEXTO HISTÓRICO E UTILIDADE DAS CLÁUSULAS

CONTRATUAIS GERAIS

1

PREMISSAS METODOLÓGICAS PARA O ESTUDO DO DIREITO PRIVADO E DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS

1.1INTRODUÇÃO

Durante séculos, o direito privado manteve-se intangível, no papel de sistematizar regras sobre as atividades entre os entes privados, ao lado do direito público. No curso da história contemporânea, por inúmeras razões que serão oportunamente apontadas, esta dicotomia entre público e privado foi sendo relativizada, o que motivou o surgimento de inúmeros estudos sobre um novo papel a cada um desses ramos do direito.

Nesse contexto, surge o chamado direito civil constitucional, que altera o enfoque do estudo do direito privado centralizado única e exclusivamente no Código Civil, passando a ter como fonte de incidência direta a Constituição Federal, e que terá especial importância na sua interpretação e no seu desenvolvimento.1

Indaga-se hoje sobre pertinência de uma configuração autônoma do direito privado (e do próprio direito civil), exatamente pela preeminência do Texto Constitucional no sistema jurídico e pelo fenômeno da publicização. Porém, em razão da incorporação de inúmeros preceitos constitucionais pelo Código de 2002, questiona-se o próprio caminho do direito civil constitucional nos dias de hoje. São inúmeros os trabalhos dedicados às relações entre o direito constitucional e o direito civil e, de modo mais amplo, sobre os caminhos a serem trilhados pelo direito privado. Como adverte J. J. CANOTILHO, esses estudos, por vezes, denotam logo a matriz constitucionalista ou civilista dos seus autores. Uns falam com arrogância sobre civilização do direito constitucional e outros respondem com igual sobranceria da constitucionalização do

1 LARENZ, Karl. Derecho Civil – Parte General. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978. p.

(17)

direito civil.2 O direito civil constitucional nunca esteve tão vigoroso e inabalável,

apesar das críticas infindáveis, servindo de importante vertente metodológica indispensável para interpretação e aplicação das cláusulas contratuais gerais, razão de ser deste trabalho.

1.2O DIREITO PÚBLICO E O DIREITO PRIVADO

A distinção entre direito público e direito privado representa uma das mais antigas dicotomias do Direito. Segundo TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., tratando-se de lugares comuns, essas noções também não são logicamente rigorosas, são apenas pontos de orientação e organização coerentes da matéria, que envolvem, por isso mesmo, disputas permanentes, suscitando teorias dogmáticas diversas, cujo intuito, na verdade, é conseguir o domínio mais abrangente e coerente possível dos problemas.3 Normalmente, essa distinção é feita pelos mais variados critérios, que, na maioria das vezes, são controvertidos.4

2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Dogmática de direitos fundamentais e direito privado. In:

SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 339. Vale aqui as indagações sugeridas por ERIK FREDERICO GRANSTRUP: "Um sem-número de jovens civilistas – acompanhado de um número não tão pequeno de veteranos – tem experimentado as trilhas do direito civil constitucional, ocasionando a pergunta que intitula este trabalho. Indaga-se, por ocasião, se isto seria uma nova disciplina, uma nova especialidade, ou até se afirma, levianamente, que se estaria diante de mero modismo intelectual. Parece-nos que a curiosidade incitada pela pergunta, bem como a necessidade de dar resposta adequada às reações superficiais, são motivos suficientes para dedicar um esforço explicativo". GRANSTRUP, Erik Frederico. Um exercício de direito civil constitucional. In: Temas de dissertação nos concursos da magistratura federal. Estudos em homenagem ao Professor Benedicto Celso Benício. São Paulo: Editora Federal, 2006. p. 81.

3 FERRAZ, Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao estudo do Direito – técnica, decisão e dominação.

São Paulo: Atlas, 1991. p. 131. Destaca ainda o autor: “A distinção entre o direito público e privado não é apenas um critério classificatório de ordenação dos critérios de distinção dos tipos normativos. Com sua ajuda pode-se, é verdade, classificar normas, com seus diferentes tipos, em dois grandes grupos. O interesse da classificação, porém, é mais extenso. A distinção permite uma sistematização, isto é, o estabelecimento de princípios teóricos, básicos para operar as normas, de um ou de outro grupo, ou seja, princípios diretores no trato com as normas, com as suas conseqüências, com as instituições que elas se referem, os elementos congregados em sua estrutura. Estes princípios decorrem, eles próprios, do modo como a dogmática concebe o direito público e privado. E este modo, não podendo ter o rigor de uma definição, é, de novo, tópico, resulta da utilização de lugares comuns, de pontos de vista formados historicamente e de aceitação geral”.

4 Ulpiano, em Roma, referiu pela primeira vez a distinção, ao apontar a existência de duas

(18)

PIETRO PERLINGIERI afirma que a unidade do fenômeno social e do ordenamento jurídico exige o estudo de cada instituto nos seus aspectos ditos privatísticos e publicísticos, mas destaca, como se verá, que essa dicotomia está em crise. Essa distinção, que já os romanos tinham dificuldade em definir,5 consubstancia-se ora na natureza pública do sujeito titular dos interesses, ora na natureza pública e privada dos interesses,6 surgindo ainda os mais variados critérios para uma diferenciação. Em famosa citação, NORBERTO BOBBIO reduz esses critérios a dois principais, quais sejam, forma e matéria da relação jurídica. Segundo o mestre italiano, com base na forma da relação jurídica, distinguem-se relações de “coordenação” entre sujeitos de nível igual e relações de “subordinação” entre sujeitos de nível diferente, em que um é superior e outro inferior: as relações de direito privado seriam caracterizadas pela igualdade dos sujeitos e, portanto, seriam relações de coordenação; as relações de direito público seriam caracterizadas pela desigualdade dos sujeitos e, portanto, seriam relações de subordinação. Com base na “matéria”, porém, que constitui o objeto da relação, distinguem-se os interesses ”individuais”, que se referem a uma única pessoa, dos interesses “coletivos”, que se referem à totalidade das pessoas, à coletividade. Levando em conta essa distinção, o direito

reduzia, em última análise, à regra de que o poder do Estado era ilimitado e devia ser acatado). A doutrina propôs diversos critérios; entre eles, o do sujeito e do interesse. Pelo primeiro, direito público é aquele que tem por sujeito o Estado, enquanto o privado é o que rege a vida dos particulares. Eu nada tenho contra esse critério, que define com razoável precisão o campo de aplicação do direito público. Mas não basta o jurista conhecer o campo de incidência do direito público, necessita, sobretudo saber das características dele. Caso contrário, de que adiantaria saber que o direito público é o que rege as relações envolvendo o direito privado? [...] De acordo com esse critério – o do interesse – seriam públicas as normas que tutelam interesses públicos e privadas as normas que regulam os interesses privados. Posto desse modo, há uma insuficiência séria nesse critério: ele não resolve o problema, apenas o transfere. Por ele, a dificuldade deixa de ser a diferença entre direito público e direito privado e se transfere para a distinção entre interesse público e privado. Realmente, sabendo que o direito público regula os interesses públicos, teremos que descobrir como apartá-los dos interesses privados! A doutrina, a partir daí, costuma se desviar, pondo-se a discutir, de acordo com a visão de cada pensador e se esquecendo completamente das normas jurídicas, o que é interesse público e o que é interesse privado: um dirá que interesse público é o que afeta toda a sociedade e não o indivíduo isoladamente, outro que o interesse público afeta preponderantemente a sociedade, embora possa interessar indiretamente ao indivíduo. Perceba, no entanto, que tais propostas de discriminação não partem de qualquer elemento sacado do direito positivo, mas sim de noções estranhas a ele; por isso, não têm serventia para a ciência do direito”. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos do direito público. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 129-130.

5 A base de toda a construção sobre a dicotomia entre direito público e privado advém do trecho de

Ulpiano no Digesto (1.1.1.2): Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem (Em tradução livre: O direito público diz respeito ao estado da coisa romana, à polis ou civitas; o privado, à utilidade dos particulares).

6 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.

(19)

privado seria caracterizado pela proteção que oferece aos interesses privados e o direito público, pela proteção oferecida aos interesses coletivos.7

Contudo, nem esses critérios não estão isentos de críticas. É cada vez mais visível que nas relações jurídicas entre privados nem sempre as partes se encontram em posição de igualdade, o que levou o direito a criar novos microssistemas justamente para proteger a parte tida como hipossuficiente. E sabe-se que nem sempre o Estado se relaciona com os sujeitos privados sob a forma de subordinação, pois, percebendo sua incapacidade para atuar diretamente em todas as áreas em que modernamente passa a intervir, cada vez mais o Estado transfere suas atividades à iniciativa privada, mediante concessões, autorizações ou delegações de algumas de suas funções, sendo que as relações que surgem entre os entes envolvidos são presididas mais por um sentido de coordenação que propriamente por um de subordinação.8 Assim, nessas breves linhas, percebe-se que a diferenciação não pode mais ser feita aleatoriamente, pela simples eleição de critérios que nem sempre representam a realidade, ganhando esta divisão mais ares de utilidade do que, propriamente, de cientificidade.

1.2.1 O direito privado no curso da história: breves digressões

Segundo HANNAH ARENDT, a separação entre as esferas pública e privada é caracterizada na cultura da Antiguidade de forma peculiar. A esfera privada compreendia o reino da necessidade da atividade humana, cujo objetivo era atender às exigências da própria condição animal do homem: alimentar-se, repousar, procriar. A necessidade coage o homem e o obriga exercer um tipo de atividade para sobreviver. A palavra “privado” tinha aqui o sentido de privus, ou seja, do que é próprio, daquele âmbito em que o homem, submetido às necessidades da natureza, buscava sua utilidade nos meios de sobrevivência. Nesse espaço, não havia liberdade, pois todos, inclusive os senhores, estavam sob a coação da necessidade.9

7 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Ed. UNB, 1984. p.

83.

8 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito

privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. p. 14, nota 5.

(20)

Libertar-se dessa preeminente necessidade era privilégio de alguns: no curso da história, percebe-se que apenas os cidadãos (cives) exerciam suas atividades no âmbito da polis, da cidade. Particularmente, na Grécia Antiga, reunidos com os iguais, participavam intensamente das grandes decisões envolvendo os interesses da comunidade, havendo nessa época a interpenetração do público e do privado. Em Roma, essas duas esferas são nitidamente separadas, já que havia pouca participação direta dos cidadãos enquanto tais na esfera pública.10 Na Idade Média, em razão da primazia da propriedade imobiliária sobre os demais institutos e da total fragmentação das formações sociais, houve absorção do público pelo privado. Nesse período, os senhores feudais exerciam verdadeira função pública sobre os habitantes de seus feudos, estabelecendo regras obrigatórias, impondo e arrecadando tributos, julgando seus servos e executando as suas decisões.

No início do século XVIII, ocorre a mais intensa divisão entre público e privado. O direito público passa a ser visto como ramo do direito que disciplina as atividades do Estado, sua estruturação e seu funcionamento, ao passo que o direito privado busca a regulamentação, as relações entre os entes privados, que passa a ter todo o seu arcabouço normativo nas grandes codificações.O direito privado ganha autonomia no momento das grandes codificações civis, cujo marco, sem qualquer sombra de dúvida, foi a Revolução Francesa. A Revolução tem como principal bandeira o rompimento com a monarquia e a nobreza, com o clero e, além disso, é contra a magistratura francesa. Segundo RENAN LOTUFO, o povo não mais aceitava que o Direito favorecesse só a nobreza, porque, inexistindo um sistema de legislação nacional, os juízes, sendo locais, sofriam a influência do seu meio e decidiam no mais das vezes de acordo com a praxe e o costume, evidentemente favoráveis ao status quo então vigente na França.11

Uma das razões que motivou a Revolução Francesa (e também a Revolução Americana) ocorrida no último quartel do século XVIII, foi a total aversão à intervenção do Estado nas relações entre os particulares, principalmente nas relações econômicas. A Revolução Francesa insurgiu contra o Estado Absolutista,

10 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito

privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. p.16

11 LOTUFO, Renan. Da oportunidade da codificação civil e a constituição. In: SARLET, Ingo

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no qual todo o poder estava concentrado nas mãos do soberano, e a nobreza gozava de inúmeros benefícios em detrimento do restante da sociedade. No que toca ao movimento americano, com a conquista da independência, tanto a Declaração de Direitos da Virgínia quanto a Constituição norte-americana consagraram como direito fundamental daquele povo a liberdade.

Em razão de tais circunstâncias, o revolucionário pleiteou a edição de uma nova ordem jurídica. E assim, no caso da França, a nova Constituição francesa de três de setembro de 1791 determinou que se elaborassem as novas leis, e essas deveriam viger em todo o território nacional. Daí partiu-se para o trabalho de codificação, sendo que, após tentativas frustradas, finalmente com Napoleão no poder, foi promulgado o Código Civil francês.

A partir daquele momento, as demais legislações foram postas de lado. Toda a França e também as nações vizinhas passaram a se centrar no Código Civil francês, que refletiu em seu texto os princípios da Revolução (liberdade, fraternidade e igualdade), focalizando dois outros valores fundamentais: propriedade e contrato. O ideal revolucionário burguês de “garantir propriedade a todos” era realizado por meio de contrato. Dessa forma, toda dogmática contratual foi construída, naquele período, tendo como premissa a plena liberdade de contratar.

A liberdade era entendida como algo inato a todo ser humano, livre para contratar como e com quem quiser.12 O direito privado passou a ser o centro dos interesses,

exatamente por representar o expurgo do Estado Absoluto.

Códigos surgiram por toda a Europa.13 Na Alemanha, o BGB (Bürgerliches

Gesetzbuch) nasceu para buscar a unificação do povo e da nação. O direito privado

12 LOTUFO, Renan. Da oportunidade da codificação civil e a constituição. In: SARLET, Ingo

Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. p. 22-23.

13 “O Code Civil exerce forte impacto em diversas legislações. Em primeiro lugar, nos países tocados

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se emancipava e era visto como autêntico baluarte da liberdade burguesa, relegando o direito constitucional a um segundo plano.14

Naquele tempo, o direito constitucional (ou outra manifestação do direito público) não exercia qualquer influência sobre o direito privado, mas este, ao contrário, tinha notável influência sobre o direito constitucional. O recurso aos conceitos do direito privado eram indispensáveis para a formação do chamado direito constitucional, que estava mais próximo de um direito político.15

Viu-se até aqui que o individualismo é o valor a ser prestigiado, como reação natural ao período estamental que caracterizou a era medieval, em que o valor do indivíduo estava ligado não a suas características e seus méritos pessoais, mas ao estamento social em que estava integrado. Enquanto a liberdade dos antigos permitia ao cidadão intervir no espaço público, a liberdade, nessa época, significa a livre movimentação no espaço econômico-privado.

italiano de 1865, fruto do movimento de unificação nacional, foi essencialmente copiado do Code Civil, cuja moldura jurídica e política se aparentava expressamente a Itália unificada. Pelo contrário, a florescente civilística italiana juntamente com a pandectista alemã inclinava-se muitas vezes para uma interpretação e um desenvolvimento histórico-romanístico que ultrapassavam cada vez mais o tipo francês no sentido da orientação típica da pandectista. No Codice Civile de 1942 esta evolução rematou-se num certo sentido. No entanto, esta nova codificação manteve-se ainda a ligação com a tradição legislativa do rissorgimento e da unificação nacional. Então, a ligação do direito civil italiano com a família jurídica francesa é garantida pela comunidade latina e pela consciência política da Revolução Francesa, que se tornou também na primeira revolução italiana; a sua ligação com a família alemã é mantida pela influência sempre forte da ciência pandectista do séc. XIX”. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. p. 395.

14 Aponta FRANZ WIEACKER: “O positivismo da ciência jurídica do século XIX tinha, com a formação

de um sistema fechado de direito privado e de uma teoria geral do direito civil, não apenas imposto pela primeira vez no direito positivo as exigências metodológicas do jusracionalismo, mas tinha ao mesmo tempo exprimido do ponto de vista espiritual a imagem jurídica da sociedade civil de seu tempo. O direito privado e a teoria geral do direito civil tornaram-se assim em modelos mesmo para as restantes disciplinas da ciência jurídica, nomeadamente para o direito penal e para o direito político”. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. p. 628.

15 Citando Laband e Otto Von Gierke, KONRAD HESSE aponta que: “En el ámbito del Derecho

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A ideologia individualista do período pós-Revolução Francesa é bem explicada por

FÁBIO KONDER COMPARATO:16

[...] revolução, ao suprimir a dominação social fundada na propriedade da terra, ao destruir os estamentos e abolir as corporações, acabou por reduzir a sociedade civil a uma coleção de indivíduos abstratos, perfeitamente isolados em seu egoísmo. Em lugar do solidarismo desigual e forçado dos estamentos e das corporações de ofícios, criou-se a liberdade individual fundada na vontade, da mesma forma que a filosofia moderna substituíra a tirania da tradição pela liberdade da razão.

O êxito dessas revoluções culminou no estrondoso crescimento do comércio e da atividade industrial, que resultou no período do liberalismo econômico, tão bem ilustrado na célebre expressão laissez faire et laissez passer, le monde va de lui-même, que orientou FRANÇOIS QUESNAY e os fisiocratas franceses do século XVIII a guindarem a não-interferência do Estado como princípio basilar da economia.

Segundo EDWARD McNALL BURNS, a idéia do laissez faire compreendia noções como a santidade da propriedade e os direitos do livre contrato e da livre produção. Constituía-se na idéia de libertar a atividade econômica das restrições sufocantes até então impostas pelo Estado.17

O intervencionismo estatal deveria ser mínimo. O papel do Estado, segundo ADAM SMITH, seria o de apenas interferir para evitar a injustiça e a opressão, em prol do progresso da educação e da proteção da saúde pública, e para a manutenção de empresas necessárias, que nunca seriam instaladas pelo capital particular.18,19

16 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,

1999. p. 128.

17 BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. 3. ed. São Paulo: Ed. Globo, 1955. v. 2.

p. 595.

18 BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. p. 596

19 Acerca dessa concepção liberal e individual no direito dos contratos, comenta ENZO ROPPO: “I

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Portanto, no século XIX, o direito privado teve como premissas o individualismo e o patrimonialismo, sendo a propriedade privada e a liberdade contratual símbolos fundamentais dos direitos de igualdade e liberdade dos cidadãos.

O Brasil também foi influenciado pelo contexto mundial, favorecendo o desenvolvimento e a emancipação do estudo do direito privado na sua ordem interna. O Código Civil de 1916 nasceu fruto das doutrinas individualista e voluntarista que, incorporadas pelas codificações do século XIX, inspiram o legislador brasileiro quando, na virada do século, redigiu nosso Código. Àquela altura, o valor fundamental era a vontade individual.20

Cabia ao Código, do ponto de vista formal, prever a atuação dos sujeitos de direito (contratante e proprietário) que nada mais queriam senão aniquilar os privilégios feudais. Até então, não havia interferência do direito público no direito privado, assumindo o Código Civil brasileiro o papel de estatuto único e monopolizador das relações privadas.21

Durante o período que antecedeu a Constituição de 1988, pode se afirmar que no Brasil todo o direito privado estava imbuído por essa filosofia patrimonialista e individualista, tendo como único foco de incidência o Código Civil até então vigente. Todo o direito de família, por exemplo, estava centrado única e exclusivamente na figura do casamento, voltado em grande parte a questões patrimoniais daquele tipo de família reconhecido. A propriedade, por sua vez, era considerada um direito pleno, sendo definida como uma relação de dominação da pessoa sobre o bem, sem intermediários, sob o prisma do direito subjetivo.22 O direito de contratar estava sob

20 Segundo GUSTAVO TEPEDINO: “Afirmava-se significativamente – e afirma-se ainda hoje nos

cursos jurídicos – que o Código Civil brasileiro, como os outros códigos de sua época, era a Constituição do direito privado. De fato, cuidava-se da garantia legal mais elevada quanto à disciplina das relações patrimoniais, resguardando-se contra a ingerência do Poder Público ou de particulares que dificultassem a circulação de riquezas. O direito público, por sua vez, não interferiria na esfera privada, assumindo o Código Civil, portanto, o papel de estatuto único e monopolizador das relações privadas. O Código almejava a completude, que justamente o deveria distinguir, no sentido de ser destinado a regular, através de situações-tipo, todas os possíveis centros de interesse jurídico de que o sujeito privado viesse a ser titular”. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 2-3.

21 Dúvida não há de que a cultura francesa exerceu marcante influência em nosso país, sendo

corrente o ensino da língua francesa nos cursos secundários e superiores. Essa influência, no campo do direito, fez com que sofrêssemos forte influência da escola da exegese, que leva o Código Civil ao centro das relações privadas. Nesse sentido, LOTUFO, Renan (Coord.). Apresentação. Direito civil constitucional. Caderno 1. São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 8.

22 Previu o artigo 544 do Code Napoleon de 1804: “La proprieté le droit de jouir et disposer de choses

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a égide da autonomia da vontade, sendo que as partes estavam livres para contratar, sendo vedada qualquer interferência estatal sobre esse direito individual.

Mas a estabilidade e a segurança, fielmente retratadas pelo Código Civil de 1916, entraram em declínio na Europa na segunda metade do século XIX (Revolução Industrial), declínio intensificado com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, tornando-se inevitável a necessidade de uma intervenção estatal cada vez mais acentuada na economia, o que forçou o legislador na edição de leis extracodificadas, atendendo às demandas contingentes, com o intuito de reequilibrar o quadro social delineado pela consolidação de novas castas econômicas que, de certa forma, representavam as situações de iniqüidade que a Revolução Francesa procurou aniquilar.

A partir daí, a legislação codificada apresenta sinais de esgotamento, há crise em seu instrumental teórico, sendo visível a vocação expansionista da legislação especial. O excesso do liberalismo, manifestado pela preeminência do dogma da vontade sobre todas as situações jurídicas, cede às exigências das ordens pública, econômica e social, que passam a prevalecer sobre o individualismo, funcionando como fatores limitadores da autonomia privada individual, no interesse geral da coletividade.23

1.2.2 A chamada “publicização” do direito privado

O direito privado não ficou incólume ao processo de transformação econômica, social e jurídica que se iniciou na Primeira Guerra Mundial, sendo certo, ao contrário, o forte impacto sentido em suas estruturas.

De um lado, floresceram as idéias modernas de Estado, assumindo funções antes deixadas à iniciativa privada. Se o chamado mundo da segurança – que caracterizou a era das codificações e das constituições liberais – representou, de certa forma, o primado do direito privado sobre o direito público, essa relação se inverte com o advento do constitucionalismo social e do conseqüente intervencionismo estatal mais acentuado, fruto das concepções do Welfare State.

proprietà e il diritto di godere e disporre della cosa nela maniera piú absoluta”. Sobre a nova configuração desses institutos, ver item 3.2 infra.

23 Sobre ordem pública econômica e ordem pública social como limitadoras da autonomia privada no

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Segundo NORBERTO BOBBIO:

[...] o primado do público significa o aumento da intervenção estatal na regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infra-estatais, ou seja, o caminho inverso ao da emancipação da sociedade civil em relação ao Estado, emancipação essa que fora o resultado da ascensão da classe burguesa. Com o declínio dos limites à ação do Estado, foi ele aos poucos se reapropriando do espaço conquistado pela sociedade civil burguesa até absorvê-lo completamente na experiência extrema do Estado total.24

Para GUSTAVO TEPEDINO, nesse primeiro momento de intervenção estatal, o que existiam eram leis emergenciais, que não alteraram a centralização e a exclusividade do Código Civil na disciplina das relações de direito privado, situação pouco a pouco alterada pela premente necessidade do Estado em contemporizar os conflitos sociais emergentes.25

Surgem leis em caráter emergencial ou conjuntural, registrando-se assim um segundo momento na história do direito privado: o código perde a natureza de exclusividade sobre as relações privadas, tornando-se direito comum, aplicável aos negócios jurídicos em geral. O legislador levou a cabo longa intervenção assistencialista, que se corporifica a partir dos anos 1930, cuja expressão, na teoria das obrigações, constitui-se o fenômeno do dirigismo contratual.

No final da Segunda Guerra Mundial ocorreu a redemocratização do mundo. Na Europa, os regimes totalitários abriram caminho para a constitucionalização de inúmeros direitos fundamentais. Com a vitória das Nações Unidas, foi elaborada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que passou a ser o grande centro emanador de valores para todo o mundo, inclusive para o direito privado.26

24 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1987, p. 25. Apud NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. p. 22.

25 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. p. 5.

26 Em outro trabalho, NORBERTO BOBBIO destaca a importância da Declaração dos Direitos do

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Lembra RENAN LOTUFO que quase todos os países do mundo, nesse período, continuaram tendo os seus códigos, cujos textos eram anteriores a essa remodelação trazida pelas constituições, sendo que:

[...] evidentemente que tais diferenças de datas importarão na exigência de uma leitura diferenciada do direito privado. Muitas matérias relativas à pessoa humana ascenderam, neste período, a nível Constitucional, sendo necessário, portanto, uma ampla reforma de concepção do direito civil, bem como toda uma reestruturação dos Códigos Civis.27

Cresceu na doutrina o entendimento de que o Estado deveria voltar a intervir nas relações econômicas travadas entre particulares, visando assegurar o respeito aos direitos fundamentais, garantir a existência de uma verdadeira igualdade, uma igualdade substancial.

Definitivamente, o Código Civil perdeu seu papel de constituição de direito privado, já que as constituições dos países passaram, paulatinamente, a definir (expressamente) em seus textos princípios relacionados ao direito privado, antes exclusivamente reservados ao Código Civil e ao império da vontade (função social da propriedade, organização da família etc.), passando a integrar a ordem pública constitucional.

Percebe-se, portanto, que a clássica noção de direito privado foi sendo, aos poucos, superada. Defronte tantas alterações, direito privado e direito público tiveram seus significados originários modificados: o direito privado deixou de ser, necessariamente, o âmbito da vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão.28

Outro fenômeno observado no direito privado foi que, ao lado dos códigos, as legislações extravagantes tornaram-se mais freqüentes, retratando a intervenção do legislador em uma nova realidade econômica e política no âmbito das relações

princípios fundamentais da conduta humana foi livre expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vive na Terra. Com essa declaração, um sistema de valores é – pela primeira vez na história – universal, não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre sua validade e sua capacidade para reger os destinos da comunidade futura de todos os homens foi explicitamente declarado.” BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo: Ed. Campus, 1992. p. 18.

27 LOTUFO, Renan. Da oportunidade da codificação civil. In: SARLET, Ingo Wolgang. O novo Código

Civil e a Constituição, 2003. p. 21.

28 MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. In: Revista de Direito

(28)

privadas. Surge a “era dos estatutos”, em que o legislador retira da principal lei civil setores inteiros da atividade privada, estabelecendo diplomas setoriais, cada um deles com vocação universalizante, autônoma e própria, disciplinando exaustivamente inteiras matérias extraídas da incidência do Código Civil (Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor, Lei de Locações etc.).29 Percebe-se que o direito privado perde a cômoda unidade sistemática, e a liberdade, paradigma de tempos anteriores, abre espaço para outro princípio fundamental: a igualdade.30

29 Como destaca GUSTAVO TEPEDINO, esses “estatutos” possuem peculiares características: em

primeiro lugar, destaca que essas legislações são de “objetivos”, indo muito além do que a simples garantia de regras aplicáveis aos negócios, valendo-se muitas vezes de estabelecer as chamadas “cláusulas gerais”, afastando-se da “técnica regulamentar” do Código. Em segundo lugar, percebe-se que a linguagem passa a percebe-ser menos jurídica e mais percebe-setorial, atendendo as exigências específicas (ex.: questões de informática, novas operações contratuais) trazendo muitas vezes dificuldades para o intérprete. Em terceiro lugar, destaca que o legislador, além de reprimir ou coibir certas práticas indesejadas, adota uma técnica de incentivo de comportamento, para com isso atingir os objetivos propostos por tais leis, revelando um novo papel, o que Norberto Bobbio chamou de “a função promocional do direito”. Em quarto, destaca que o legislador não mais cinge-se em regular situações patrimoniais, cinge-sendo que na esteira do texto constitucional o legislador cada vez mais condiciona a proteção das situações contratuais ou situações jurídicas tradicionalmente disciplinadas sob a ótica exclusivamente patrimonial ao cumprimento de deveres não patrimoniais. E em quinto lugar, aponta que aquele legislador do Código Civil que legislava de maneira geral e abstrata, tendo em mira o cidadão comum, dá lugar a um legislador-negociador, com vocação para a contratação, que produz a normatização para determinados grupos (locador e locatário, fornecedores e consumidores etc.). TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. p. 8-9.

30 Repor a igualdade no centro da reflexão liberal foi uma das façanhas de JOHN RAWLS, professor

(29)

1.2.3 A crise da dicotomia público e privado

Tem-se que a distinção entre direito público e direito privado, segundo alguns autores, está em crise.31 Em uma sociedade como a atual, torna-se difícil individualizar um interesse exclusivamente privado, autônomo, independente, isolado do interesse público.

A interpenetração do direito público e do direito privado, como se viu, é um ponto característico da sociedade contemporânea, a significar uma profunda alteração nas relações entre cidadão e Estado.

[...] daí a inevitável alteração dos confins entre o direito público e o direito privado, de tal sorte que a distinção deixa de ser qualitativa e passa a ser meramente quantitativa, nem sempre se podendo definir qual exatamente é o território do direito público e qual o território do direito privado.32

Mas há de se destacar que esse fenômeno não foi somente percebido pelos privatistas, ao contrário do que se pensava. Como comenta ADILSON DALLARI, essa interpenetração também é sentida pelos publicistas, que percebem a forte influência do direito privado sobre certos institutos do direito público, até então vistos como intocáveis:

[...] pode-se falar até numa equiparação entre Direito Público e o Direito Privado, eliminado o preconceito decorrente de uma antiqüíssima tradição privatística, no sentido de ser o direito privado um direito civil modificado, diferente, excepcional. Com o reconhecimento de que o Direito Público tem fundamentos e princípios próprios, autônomos, que nada têm a ver com o Direito Privado, provavelmente ficará mais clara a percepção de que ambos os campos do conhecimento e de atuação possuem raízes comuns, que estão na teoria geral do direito.33

31 PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalità costitucionale. 3. ed. Nápoles: Edizioni

Scientifiche italiane, 1994. p. 111.

32 PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalità costitucionale. 3. ed., p. 124. No mesmo sentido:

TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: Temas de direito civil. p. 19.

33 DALLARI, Adílson Abreu. Emancipação do direito público no Brasil. In: Perspectivas do direito

(30)

A grande questão nos dias atuais é saber se esta chamada “crise” possui o condão de gerar o total aniquilamento do direito privado e, mais especificadamente, do direito civil. A nosso ver, apesar dessa nova leitura, o direito privado se mantém intacto e, pelo próprio comando constitucional, deve ser preservado, eis que a sua tutela representa a própria tutela dos direitos individuais e a consecução prática dos direitos fundamentais previstos no Texto Maior.

1.3LINEAMENTOS DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

Apesar de ser um fenômeno indubitável no mundo contemporâneo, a incidência direta do Texto Constitucional no direito privado nem sempre foi aceita no curso da História. Como escrito, nos primórdios dos ordenamentos, era o direito privado quem fundamentava e dava subsídios teóricos para aestruturação dos Estados políticos. Foi o liberalismo, que formalmente reconhecia todos os seres humanos como universalmente iguais, o responsável pelo fato de que, no campo jurídico, Constituição e direito privado (Código Civil) caminharam durante um longo período paralelamente, como mundos que não se tocavam senão sob o aspecto formal.

A história do fenômeno da constitucionalização do direito privado não pode ser contada sem referência à história da Alemanha. KONRAD HESSE narra que naquele país, desde o advento da Constituição de Weimar, de 1919, importantes modificações foram sentidas na relação entre o direito privado e o direito constitucional. Se antes o direito privado servia de fonte para o direito político, e as barreiras entre direito privado e Constituição eram intransponíveis, o sentido de incidência dessa relação foi alterado nesse período e assim permanece até os dias atuais.34

A primeira parte daquela Constituição descrevia a estrutura política e as tarefas do Reich (competência legislativa da Câmara Federal para legislar sobre o direito civil, por exemplo), mas pela primeira vez trazia importantes matérias na sua segunda parte: previu, naquela época, os direitos e as obrigações fundamentais dos alemães, em especial o alcance e a eficácia das garantias dos institutos privados.

A propriedade, o matrimônio, a família, a garantia constitucional da liberdade contratual no tráfico econômico – até então considerados apenas preceitos

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programáticos, é bem verdade – vieram pela primeira vez estatuídos na Constituição. Mas o importante é que, também pela primeira vez, uma Constituição trouxe ao seu bojo normas de direito privado. Assim, desde a Constituição de Weimar, a norma constitucional deixou de ser fonte exclusiva de direito público (que regula forma de governo, sistema federativo, organização estatal etc.) para prever também outras funções, como as relações entre os particulares.

Com o advento da Lei Fundamental da Alemanha, a primazia da Constituição sobre as leis finalmente é reconhecida. Todavia, os fundamentos do direito privado não são mais considerados intocáveis. Os direitos fundamentais,35 expressos pela Lei Fundamental (que agora traz em um dos seus artigos a primazia da Constituição), passam a ser imediatamente aplicáveis.36

A Lei Fundamental alemã, ao prever toda uma seção de direitos fundamentais (inclusive com limitações e garantias aos institutos de direito privado), passa a incidir em todos os âmbitos do Direito, mas em especial sobre o direito privado, sendo que nenhuma prescrição jurídico-civil poderá estar em contradição com aqueles direitos fundamentais, tendo de ser interpretados segundo seu espírito.37

Assim, no mundo moderno, percebe-se que, para garantir a aplicação do direito privado, o papel da Constituição é de fundamental importância. É o degrau mais alto do ordenamento jurídico. Todas as disposições devem a ela se sujeitar e respeitá-la. As constituições da segunda metade do século XX deixam de ser documentos meramente programáticos para se tornarem aplicáveis, direta e automaticamente.

Após a Segunda Guerra Mundial, inúmeros países incorporaram em suas constituições direitos fundamentais. Dentre esses, inúmeros preceitos que eram até

35 O art. 1.º da Lei Fundamental contém um imperativo incondicionado: respeitar a dignidade da

pessoa humana e, no art. 2.º, atribui-se a cada qual o direito de desenvolver livremente a personalidade dentro de certos limites. Ambos princípios estão de acordo com o chamado personalismo éticono qual forma o fundamento ideológico do Código Civil alemão.

36 HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. p.65.

37 Segundo KARL LARENZ, sem dúvida o mais notável civilista contemporâneo, já em sua época

(32)

então conhecidos como institutos tipicamente privados. Em razão dessas inovações constitucionais, e por causa das diferenças de datas, tornou-se necessário que todo o direito privado fosse lido não mais como antigamente, mas de maneira diferenciada. Muitas matérias relativas à pessoa humana ascenderam, nesse período, ao degrau Constitucional, sendo necessário, portanto, uma ampla reforma de concepção do direito privado, bem como toda uma reestruturação dos códigos civis.

Diante desse descompasso, os estudiosos do direito privado se viram obrigados a uma nova empreitada, a um novo estudo, que muitos autores em diversas partes do mundo chamaram de direito civil constitucional,38 pregando a inteligência do direito civil e do direito privado, tendo como centro não mais o Código, mas a Constituição dos respectivos países.

O fenômeno da constitucionalização do direito privado pode ser visto sob dois enfoques. No primeiro deles, trata-se apenas da descrição do fato de que vários institutos que tipicamente eram tratados apenas nos códigos privados (família, propriedade etc.) passaram a ser disciplinados também nas constituições contemporâneas. Numa segunda acepção, implica analisar as conseqüências, no âmbito do direito privado, de determinados princípios constitucionais, especialmente na área dos direitos fundamentais, individuais e sociais.39

Para o espanhol JOAQUÍN ARCE Y FLOREZ-VALDÉS, o direito civil constitucional pode ser definido como:

[...] sistema de normas e princípios normativos institucionais integrados na Constituição, relativos à proteção da própria pessoa e nas suas dimensões fundamentais, familiar e patrimonial, na ordem de suas relações privadas gerais, e concernentes àquelas outras matérias residualmente consideradas civis, que têm por finalidade fixar as bases mais comuns e abstratas da regulamentação de tais relações e matérias, as quais podem

38 FLOREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. Los principios generales del derecho y su formulación

constitucional. Madrid: Civitas, 1990; PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982; FRANGI, Marc. Constitution et droit privè: les droits individeels et les droits economiques. Paris : Economica, 1992 ; KAYSER, Pierre . La protection de la vie privée par le droit. 3. ed. Paris : Economica, 1998 ; BALDASSARE, Antonio. Diritti della Persona e Valori Costituzionali. Torino: G. Giappichelli Editore, 1995.

39 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito

(33)

ser eventualmente aplicadas de forma imediata ou podem servir de marco de referência de vigência, validade, interpretação da normativa aplicável ou de pauta para seu desenvolvimento.40

Para o catedrático da Universidade de Oviedo, o direito civil constitucional apresenta-se não como uma parte do direito civil, mas como infra-estrutura do mesmo, contribuindo para superar o fracionamento do saber jurídico, bem como de alguns efeitos nocivos e secundários da dicotomia entre direito público e direito privado, ressaltando a superioridade do ordenamento.41

Da mesma forma dos diversos países do mundo, a Constituição brasileira de 1988 passou a disciplinar diretamente matérias que até então tinham exclusivo tratamento pela lei ordinária, muito particularmente por referir a matéria, até então, objeto de regulação exclusiva do Código Civil de 1916. Pela primeira vez em nosso ordenamento, uma Constituição da República trata, logo em sua primeira parte, em seus primeiros títulos, dos chamados Princípios Fundamentais e dos Direitos e Garantias Fundamentais, deixando as normas de organização político-estruturais em segundo plano.42

Embora esse fato pareça algo irrelevante para muitos, os novos estudos da civilística moderna não trataram tal dado como mero detalhe formal, mas como um evidente atestado ideológico solidificado pelo constituinte originário, momento em que deixou claro que os princípios fundamentais e os direitos inerentes à pessoa humana deverão ser sempre antepostos (e nunca pospostos) às demais regras constitucionais, precedendo às regras de organização do próprio Estado. Cumpre relembrar o que expõe PENSOVECCHIO LI BASI, catedrático da Universidade de Milão, para quem o interprete não deve esquecer que a Constituição contempla as opções fundamentais de um dado sistema jurídico, devendo o intérprete atentar

40 FLOREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. El derecho civil constitucional. p. 178-179.

41 FLOREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. El derecho civil constitucional. p. 179. Da mesma forma para

PIETRO PERLINGIERI, que afirma que o direito civil constitucional não só se apresenta como um novo estágio, mas “quale resultato non solamente di una rilettura del codice civile e delle norme in genere alla lucce dei princípi costitucionali ai quali, com è noto, è riservato un rango superiore, ma anche del superamento della presunta contrapposizione tra norme giuridiche contenute nei codici e princípi politici contenuti nella Carta Costituzionale”. PERLINGIERI, Pietro. Scuole tendenze e metodi. Problemi del diritto civile. Napoli: Edizioni Scientifiche italiane, 1989. p. 84.

42 Não é por mera coincidência que os direitos individuais, quando previstos nas Constituições

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cuidadosamente para os valores políticos consagrados nos princípios fundamentais nela esposados.43

Mesmo com muita resistência, a doutrina passou a aceitar a mudança de enfoque do direito privado. O Código Civil deixa de ser o centro, passando para a Constituição à condição de fonte propulsora de informações, sendo que os principais institutos do direito privado (agora elevados ao status constitucional) deveriam ser revisitados para a perfeita e adequada harmonização.44

Se o código mostrava-se incapaz de informar, com princípios estáveis, as regras contidas nos diversos estatutos, não parece haver dúvida de que o Texto Constitucional poderia fazê-lo, já que o constituinte, como foi dito, interveio (por meio de princípios e normas) nas relações de direito privado, determinando os critérios interpretativos de cada uma das leis especiais, recuperando-se, assim, o universo desfeito, reunificando o sistema.

O direito privado pós-Constituição de 1988 passa a se desenvolver segundo os critérios e princípios que a Constituição estatui.45 Não há duvidas de que a missão do direito civil (e mais amplamente a do direito privado) reside na homologação ou na concordância com os novos princípios constitucionais, o que não quer significar, todavia, que seu futuro está em xeque ou, muito menos, que a Constituição bastará para regular as relações jurídico-privadas. O que passou despercebido é que, nesse contexto, o direito privado ganha força e uma vital capacidade renovadora dentro do ordenamento, pelo que não poderá ser desconsiderado.

43 LI BASI, Pensovecchio. L´interpretazione delle Norme Costituzionali. Milão: Giuffrè, 1972. p. 62.

(Tradução livre).

44 Percebendo o fenômeno no direito privado francês, segundo BERTRAND MATHIEU, “la

constitutionnalisation du droit civil et la <<civilisation>> du droit constitutionnel sucitées par la jurisprudence du Conseil constitutionnel, développées par la doctrine, nécessitent aujourd’hui leurs prises em compte tant par lês avocats que par lês juges dans leur pratique quotidiennne. Qu’ils goûtent à ce vin nouveau!” MATHIEU, Bertrand. Droit constitutionnell et droit civil. Revue trimestrielle de droit civi, Paris, Sirey, p. 65, jan./mar. de 1994.

45 “La preminenza della Costituzione nella gerarchia delle fonti del diritto italiano ha un duplice

Referências

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