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ALGUNS ASPECTOS DA INTERAÇÃO MÉDICO-PACIENTE EM DOMINGO À TARDE, DE FERNANDO NAMORA

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ANA MARIA RODRIGUES ALVES KUNINARI

ALGUNS ASPECTOS DA INTERAÇÃO MÉDICO-PACIENTE EM DOMINGO À TARDE, DE FERNANDO NAMORA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem, na área de concentração Linguagem e Trabalho, sob a orientação da Profª. Drª. Elisabeth Brait.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo

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Banca Examinadora

____________________________________________ Profª Drª Elisabeth Brait

____________________________________________ Profª Drª Maria Adélia Ferreira Mauro

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Ao Cláudio, meu esposo, pela compreensão. Ao Cláudio César, meu filho, por existir. À minha mãe, por tudo o que ela é.

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Agradeço

À Profa. Dra. Elisabeth Brait, por ter me dado esta oportunidade e por partilhar um pouco do seu conhecimento.

À Mariana, por sua meiguice e por ter me incentivado a procurar o LAEL.

À Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, pelo patrocínio deste curso.

À Fundação Antonio Prudente, por permitir a minha mudança de contrato.

Ao Dr. Torloni, um exemplo.

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Aos professores do LAEL, especialmente a Profa. Anna Rachel Machado pela solidariedade.

Aos médicos do Hospital do Câncer A C Camargo que muito contribuíram para este trabalho.

Ao Adail, pelas leituras e releituras deste trabalho.

À Maria Inês, pela amizade, pelas horas de estímulo e por todos os quês.

Ao Anselmo, pela dedicação.

À Maria de Fátima, pela amizade, pelas leituras, pelo stress...

À Maria Fontes, pelo estímulo no momento certo.

À Iara, pelas aulas de Faulcault.

À Vicentina, pela amizade.

À Luciana, Aline, Andréa, Cinthia, Érika, Iza, Janaina, Jocimara , Karina, Marcela, Raí, Rosário, Rose,Sandra, Socorro, Suely e Tê por estarem sempre presentes.

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Esta entrevista de Graciliano falou muito comigo e lembrei-me da “lavadeira”, durante todo o período de construção deste trabalho. Ele precisou passar por inúmeras “lavadas”, várias “ensaboadas”, “enxaguadas” sem conta, além das “quaradas” com anil, “torcidas” e mais outra e outra vez “torcida”, para enxugá-lo... não com as mãos, mas com o cérebro.

Considerando a notória dificuldade do texto acadêmico e todas as outras dificuldades, o resultado está aqui, aberto para outras reflexões.

Certamente a cada leitura, outras “lavadas” seriam necessárias, já que o que eu tinha para dizer poderia ser enfocado diferentemente, em outras situações.

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

Graciliano Ramos

(7)

RESUMO

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ABSTRACT

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 01

1. Problemática 06

2. Objetivo e Questão de pesquisa 12

Capítulo 1: Perspectivas teórico-metodológicas desta pesquisa 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 15

1.1 A linguagem 16

1.2 Palavra 18

1.3 Enunciado/enunciação 20

1.4 Interação 20

1.5 Discurso Citado 21

Capítulo 2: Metodologia 2.1 CORPUS: NATUREZA E CONSTITUIÇÃO 27

2.1.1 O autor 28 2.1.2 OContexto histórico de Portugal, durante o regime de Salazar 32 2.1.3 Contexto da pesquisa: o romance 35

2.1.3.1 A subdivisão do corpus em três partes 36

2.1.3.2As personagens 45

Capítulo 3: Análise: Alguns recortes 3.1 Os Discursos dos Outros, no Discurso Do Narrador 48

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3.1.2 A recuperação, pelo narrado, da figura do médico Jorge e as

transformações sofridas durante as interações 51

3.1.3 A Interação Jorge/Clarisse 58

3.1.4 A relação de Jorge com outros pacientes e com os colegas médicos 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS 97

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INTRODUÇÃO

A vida começa apenas no momento em que uma enunciação encontra outra, isto é, quando começa a interação verbal, mesmo que não seja direta, “de pessoa a pessoa”, mas mediatizada pela literatura. ((BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1929/2004 apud BRAIT, 2002, p. 125).

“A maior riqueza é a saúde”, escreveu o poeta e filósofo Ralph Waldo Emerson no século XIX (Sarafino, 1994 apud KOWALSKI, 1996, p.1), e essa riqueza, muitas vezes é obtida com um simples diálogo, com um esclarecimento, com uma informação.

“O paciente tem direito a um atendimento humano, atencioso e respeitoso, por parte dos profissionais da saúde” segundo a Cartilha dos Direitos do Paciente de 1995, apud FORTES, (1998, p. 19). É nesse contexto que está a importância da comunicação no discurso médico-paciente. Bebb apud SILVA, 1999, afirmam que a comunicação é parte do tratamento médico e que ficar conversando com o paciente, muitas vezes, é o próprio remédio.

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Para ilustrar esse raciocínio, recorremos ao depoimento de uma mãe de criança doente:

Orientar e acolher os pais e familiares me parece algo de extrema importância em qualquer doença, mas principalmente em tratamentos prolongados e que envolvem risco de vida, pois o estado emocional da família interfere diretamente na relação que o paciente estabelece com a doença... [...] Penso que isso evidencia a relação de confiança e, sobretudo a responsabilidade que se pode adquirir a partir de uma consciência maior da condição de paciente, da doença e do tratamento. (DIAS, 2000, p. 322).

Estudos de profissionais da área relatam que a comunicação entre médico e paciente pode ter rupturas, deslocamentos, ruídos. A que se atribuem esses ruídos? Como obter “qualidade” na interação médico-paciente? Como a comunicação de fato se efetiva?

A participação do paciente no tratamento é de fundamental importância e, para isso, é necessário ele estar devidamente informado sobre a sua doença e o acompanhamento da terapia a ser realizada, exceção feita a casos muitos especiais. Lopes (1996, p. 11) afirma: “A experiência mostra que o doente bem informado coopera com o tratamento e mantém a confiança no médico e na família”.

Num artigo da revista VEJA, “Doutor, me ouça!”, o médico sanitarista e escritor Moacyr Scliar reconhece:

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pacientes desenvolvem com eles uma relação mais estreita, o que resulta em tratamentos mais precisos e eficazes. Ao se sentir ouvido, o paciente aceitará melhor o diagnóstico e a terapia proposta, por mais duros que sejam. “Cada palavra dita por um médico ao seu paciente é um veredicto. Assim como o escritor, ele deve avaliar cada palavra e saber usá-la com extremo rigor”, (BUCHALLA, 2004)1.

Hoje em dia, no entanto, a relação de confiança entre médico e paciente parece estar estremecida, se levarmos em conta que, aqui no Brasil, pelo menos, e de acordo com dados do Conselho Federal de Medicina, a quantidade de queixas contra aqueles profissionais vem aumentando, nos últimos cinco anos. O presidente da Associação Médica Brasileira (AMB) julga que:

o crescimento de processos está relacionado às falhas na formação do profissional, ao aumento da quantidade de procedimentos no País e ao distanciamento entre o médico e o paciente. [...] Antes existia uma relação direta entre o médico e o paciente. (RODRIGUES, 2006, p. A30)2

Moacyr Scliar (2000) é da opinião que a inclusão de textos literários no ensino médico pode facilitar o entendimento da doença em sua dimensão mais ampla de maneira a contribuir para o processo interacional entre médico e paciente.

Para iniciarmos uma reflexão sobre a interação médico-paciente, como ela se realiza, optamos por trabalhar com o texto literário Domingo à tarde de Fernando Namora, tendo como apoio alguns dos conceitos de Bakhtin e do Círculo. Segundo Brait (2001, p. 95), “as questões da relação dos sujeitos com o mundo e a dimensão

1 BUCHALLA, A. P. (05/05/2004). Doutor, me ouça! In: VEJA, São Paulo, ano 37 n.18.

2RODRIGUES, K. (12/08/2006). Processos administrativos contra médicos crescem 393% em cinco

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assumida pela linguagem nessa relação que, sem dúvida, vai incorporar, mais tarde, o conceito de enunciação enquanto interação”:

a palavra integral não conhece um determinado objeto na sua globalidade. Só pelo fato de eu ter falado dele, a minha relação para com ele deixou de ser indiferente, tornando-se interessada e ativa. Por isso a palavra além de designar o objeto como algo que se torna presente, através da entonação (a palavra realmente pronunciada vem obrigatoriamente associada a determinada entonação que decorre do próprio fato de ser pronunciada) exprime ainda a minha atitude valorativa em relação ao objeto, positiva ou negativa, e, com isso, o põe em movimento, fazendo dele um elemento da eventualidade viva. (BAKHTIN, 1993, apud BRAIT, 2001, p. 95).

Na perspectiva da análise dialógica do discurso, em que a palavra é um ato social, sujeito a todas as implicações possíveis em sua situação de produção (conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades, etc.), os discursos que circulam, na interação médico-paciente refletem, refratam e transformam as ações profissionais, afetando o modo de recepção de tais discursos pelos pacientes. Assim, as palavras do médico poderiam ser sentidas como mais cuidadosas e humanizadas ou, ao contrário, como displicentes e desinteressadas, a depender da maneira como ele se situar como falante, no âmbito da instituição médica, que tem suas próprias regras de conduta.

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Escolhemos como corpus de pesquisa Domingo à tarde, de Fernando Namora, romance que tem como personagem central, um médico no exercício da medicina.

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1. Problemática

A sensibilidade de um escritor, a sua capacidade de enxergar o mundo e pinçar nos seus movimentos a complexidade dos seres que o habitam realizam-se na articulação verbal. (BRAIT, 2004, p. 66)

A interação e o diálogo no encontro médico-paciente

Desde há muito, as doenças mais graves e menos compreendidas pelos contemporâneos de seu tempo histórico, foram representadas ficcionalmente, em textos literários.

Embora o juramento de Hipócrates, de 460 a.C, norteasse a vida do cirurgião, tanto no exercício profissional como fora dele, alertando que “o paciente é o foco de toda atenção, dedicação e respeito, devendo o médico abster-se da prática de qualquer procedimento que possa prejudicá-lo”3 (ISMAEL, 2005, p. 47), tanto cirurgiões como sacerdotes, não tratavam de doenças consideradas contagiosas e apenas afastavam o doente do convívio social, como está ilustrado em numerosas passagens bíblicas.

3 ÍSMAEL, J.C. O médico e o paciente: breve história de uma relação. 2 ed. Ver. ampl. São Paulo: MG editores, 2005. 149 p.

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Em Levítico4, as pessoas com lepra (naquela época, não se sabia que a

doença não era contagiosa, embora ela fosse incurável) eram segregadas, estigmatizadas e declaradas imundas:

Quando no homem houver praga de lepra, será levado ao sacerdote. E o sacerdote o examinará; se há inchação branca na pele, a qual tornou o pêlo branco, e houver carne viva na inchação, é lepra inveterada na pele; portanto, o sacerdote o declarará imundo; não o encerrará, porque é imundo. (Levítico 13, 9-11, p. 105)

E, no Novo Testamento5, representação da vida de Jesus, ele, como se se pautasse pelo juramento de Hipócrates, mostrava sua compaixão pelos enfermos e excluídos ao falar-lhes, ao curá-los, ao ter piedade deles.

....que ficaram de longe e lhe gritaram, dizendo: Jesus, Mestre, compadece-te de nós! Ao vê-los, disse-lhes Jesus: Ide e mostrais-vos aos sacerdotes. Aconteceu que indo, eles foram purificados. (Lucas 17.13-14, p. 87)

Em Morte em Veneza6, publicado pela primeira vez em 1912, Thomas Mann

focaliza a cólera, doença de que morre o herói, Aschenbach. Na representação estético-discursiva do romance, o autor descreve o “Mal”.

“O senhor fica; o senhor não tem medo do mal.” Aschenbach encarou-o. “Mal?”, perguntou. O indiscreto calou, fingiu-se ocupado, simulando não ter

4 Levítico 13.9-11. In: BÍBLIA Sagrada/Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

5 Lucas 17.13-14. Novo Testamento, In: BÍBLIA Sagrada/Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

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ouvido. [...] Sentado na sua mesinha redonda de ferro no lado da sombra da praça, farejou repentinamente um aroma singular [...] um cheiro adocicado, oficial, que lembrava miséria, feridas e limpeza desconfiante. Havia cartazes impressos afixados nas esquinas das ruas: a Câmara Municipal prevenia o povo de que, devido a certas doenças já tidas [...] (MANN, 1971, p. 146)

Em A Montanha Mágica7, também escrito por Mann (entre 1912 e 1924), o

contexto social representado é um sanatório destinado ao tratamento de enfermidades respiratórias, localizado em Davos, na Suíça, e a doença grave enfocada é a tuberculose.

Em A Peste, romance escrito por Camus8 em 1947, o protagonista, Dr. Rieux, faz um diário da peste bubônica que ataca Oran (cidade no litoral da Argélia). É uma representação literária sobre como os sujeitos atingidos pela epidemia pensavam sua existência pública ou privada e seus vínculos íntimos e sociais, naqueles tempos de peste.

Por outro lado, cenas de interação entre médico e pacientes também foram representadas, ficcionalmente, na literatura.

No conto O duplo9, de Dostoiévski, escrito entre 1845 e 1846, todo o capítulo

II descreve a cena de uma consulta, à qual se submete o herói, Iákov Pietróvitch Goliádkin, e que se passa no consultório de “Krestian Ivânovitch Rutenspitz, doutor em Medicina e Cirurgia [...] que é capaz de diagnosticar qualquer doença ao primeiro

7MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Pan-Americana. 1982,

872 p.

8 CAMUS, Albert. A Peste. Trad. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record. 1973.

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olhar” (DOSTOIÉVSKI, 2004, p.291). No entanto, quando se cansa de dar atenção ao paciente, trata-o displicentemente, insensível à situação do paciente:

Krestian Ivânovoitch murmura umas palavras insignificantes, puxa uma cadeira para junto da mesa e, secamente, embora com correção, diz-lhe ou dá-lhe a entender que o seu tempo é precioso, que não o entende muito bem, enfim, que está às suas ordens na medida do possível mas que não pode de modo nenhum ocupar-se de coisas que são estranhas à medicina. (ibid, p. 294-295)

Tendo em vista a problemática do complicado inter-relacionamento médico-paciente, qual seria uma maneira mais humanizada de o médico enunciar o diagnóstico de uma doença grave, como é o caso do câncer, por exemplo, palavra cuja representação social, por si só, já tem conotação de sofrimento, dor e morte?

O título dos capítulos que constam do Índice do romance Pavilhão de

cancerosos10, de Soljenitzine, parece mostrar que os problemas são comuns a

médicos e pacientes, no tratamento dessa doença:

1. Não é câncer de jeito nenhum; [...] 4. Os problemas dos pacientes; 5. Os problemas dos médicos; [...] 7. Direito a tratamento; 8. Por que vive o homem?; [...] 12. As paixões retornam; 13. ... e os espertos também; [...] 18. No limiar da morte. (Soljenitzine, 1969, p. 7)

10 SOLJENITZINE, Alexander. Índice. In: Pavilhão de cancerosos. Trad. Sílvia Jambeiro. Rio de

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A escritora Susan Sontag retratou tais sentimentos, do ponto de vista do paciente (já que ela sofria da doença), ao comentar a maneira como se costuma entender a palavra “câncer”:

nossas opiniões sobre o câncer e as metáforas que lhe impusemos são um veículo das grandes insuficiências desta cultura, da nossa atitude superficial diante da morte, da nossa ansiedade com os sentimentos, das nossas reações temerárias e levianas aos nossos verdadeiros “problemas de crescimento”. (SONTAG, 1984, p. 107-108)

Ela mostra, em nossa opinião, que o uso de metáforas, por exemplo, serviria como tentativa de afastar as conotações implicadas à doença (que parecem, em nossa sociedade, ter mais força do que a própria doença!).

As representações sociais do câncer geram, em geral, certa atitude de distanciamento das pessoas, reflexo do temor que esse mal lhes inspira. Ao trabalhar com a ficção, há elementos revelados da relação médico-paciente que não seriam acessíveis à pesquisa empírica, em razão do justificável sigilo médico.

Por outro lado, os textos literários que têm como tema as doenças, e principalmente as malignas, em geral não focalizam as emoções, as preocupações, os valores e as representações sociais em relação à doença, do ponto de vista dos protagonistas da interação, o paciente e o médico.

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Isso não quer dizer que a narrativa seja uma “confissão” do médico Fernando Namora: é uma construção do autor. No entanto, a preferência por uma obra literária que representa, esteticamente, o problema ético enfocado (humanização no atendimento do paciente) é a justificativa para tal escolha, neste estudo.

Nesse romance, o autor descreve o viver do médico Jorge e as relações que se estabelecem entre ele e os pacientes incuráveis, retratadas no cotidiano de um hospital público em Lisboa, concentrando-se na relação dele com uma paciente em especial, Clarisse.

Namora articula as palavras e os enunciados para dar voz a cada uma de suas personagens, que vão tomando corpo no decorrer da narrativa. Ele “pinça”, seletivamente, o que melhor serve à sua sensibilidade, já que

a sensibilidade de um escritor, a sua capacidade de enxergar o mundo e pinçar nos seus movimentos a complexidade dos seres que o habitam realizam-se na articulação verbal. (BRAIT, 2004, p. 66),

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2. Objetivo e questão de pesquisa

Ao estudar a representação da linguagem na relação médico/paciente na ficção, temos como objetivo compreender como a linguagem se realiza nessa situação e o que isso diz dessa relação. Assim a primeira coisa a fazer é perguntar: Como aparecem as vozes na ficção? O que elas caracterizam? Existiriam possibilidades de compreensão, intervenção e, conseqüentemente, transformação nessa atividade, mesmo tendo como corpus um texto literário? Haveria a possibilidade de re-direcionar o olhar, o agir, do médico?

Sabemos que dificuldades na interação médico-paciente e essa dificuldade existe desde o momento da primeira consulta, quando o médico tem o seu primeiro contato com o paciente, ou seja no momento da anamnese. A linguagem e a escuta tem um papel muito importante nesse momento, pois é a partir desta escuta que o médico direcionará a conduta a ser adotada.

O médico não tem vontade de dizer ao paciente, quando do diagnóstico, se o paciente é ou não portador de uma doença grave, e o paciente por sua vez, não deseja ouvi-lo, tem medo de ouvir o diagnóstico que não seja o da possibilidade de cura.

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MÉDICO

DIAGNÓSTICO

PACIENTE

NÃO TEM VONTADE DE DIZER

NÃO DESEJA OUVIR

DIFICULDADES

NA INTERAÇÃO

Para refletirmos sobre a importância do discurso da narrativa na representação de uma relação (sempre desigual, assimétrica e perpassada por ideologias diferentes) da vida real, adotamos e nos fundamentamos na análise bakhtiniana do discurso, cujos conceitos possibilitam verificar como os elementos lingüísticos se integram e são percebidos no processo de interação dos personagens. O discurso de outrem (discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre) aparece como um dos principais recursos, e por isso recorremos a essa categoria de análise que muito contribui para a compreensão da obra.

Este trabalho não pretende considerar a representação da linguagem e das inter-relações estético-literárias como reprodução de situações reais, mas como um modo de entender, ficcionalmente, interações, a fim de verificar as estratégias utilizadas pelo autor para reinventar a realidade.

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são construídas as falas das personagens; como o narrador se utiliza de discursos direto e indireto; e qual o efeito de sentido desses recursos no contexto ficcional.

Esta dissertação está dividida da seguinte maneira:

Na Introdução, apresentamos a problemática, objetivo e questão de pesquisa e justificamos o interesse pelo corpus.

No capítulo 1, abordamos perspectivas teóricas que fundamentam esta pesquisa, principalmente os conceitos de linguagem, palavra, enunciado, enunciação, interação, e discurso de outrem, de Bakhtin e seu Círculo.

No capítulo 2, explicitamos os procedimentos do estabelecimento do corpus, os caminhos a serem adotados para a análise. Resgatamos alguns dados da bibliografia do autor, o contexto do romance e a divisão do corpus em três partes.

No capítulo 3, apresentamos a análise lingüístico-discursiva de Domingo à tarde, dividida em quatro subseções, tendo como foco a interação:

• A interação médico-paciente: diante de si mesmo e diante dos outros,

• A recuperação, pelo narrador, da figura do médico Jorge e as transformações sofridas durante as interações,

• A Interação Jorge/ Clarisse, e

• A relação de Jorge com outros pacientes e com os colegas médicos.

Nas considerações finais, apresentamos uma breve discussão dos resultados da análise lingüístico-discursiva: a transformação do médico (“tipo insociável, irascível, arrogante) em um médico mais humano, que se constituiu a partir do olhar do “outro”.

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Capítulo 1: Perspectivas teórico-metodológicas desta pesquisa

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A verdadeira substância da Língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüístas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1929/2004, p. 123)

Este trabalho baseia-se na concepção dialógica de linguagem (“linguagem: objeto e instrumento de estudo”) de Bakhtin e do Círculo. De modo a complementar a discussão e a análise dos dados do corpus deste estudo, recorremos a Brait (2000, 2005), Faraco (2005), Stella (2005), e Sobral (2005) estudiosos que também serão considerados.

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1.1. A linguagem

A linguagem, segundo Bakhtin, “é o produto da atividade humana coletiva”, e é por meio dela que:

• realiza-se a comunicação dialógica,

• negociam-se os sentidos das palavras presentes nos enunciados,

• esclarecem-se dúvidas sobre o dito e a forma de dizer,

• formulam-se respostas, ou melhor, “réplicas”, e

• constituem-se e se posicionam, nos diversos contextos em que atuam, os atores coadjuvantes.

O nosso corpus de pesquisa é um texto literário e um dos temas retratados no romance Domingo á tarde é o exercício da medicina que representa, do ponto de vista discursivo, acontecimento histórico-social atual e contemporâneo, já que a interação médico-paciente continua sendo situação problemática, em diferentes espaços.

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RODRIGUES, K. (12/08/2006). Processos administrativos contra médicos crescem 393% em cinco anos. In: O Estado de S.Paulo. Primeiro Caderno. VIDA & SAÚDE. p. A30.

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1.2. Palavra

Na concepção de Bakhtin e do Círculo, "a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, [...] é o modo mais puro e sensível de relação social" (ibid, p. 36). Ela tem duas faces: vem de alguém e se dirige a alguém, surge na interação. Sua existência e seu sentido dependem da relação entre o enunciador e o interlocutor no seio da sociedade de que fazem parte.

Os sentidos da palavra variam de acordo com as pessoas envolvidas na interação. Esse modo de ver a palavra mostra que, para o Círculo, ela nunca é apenas um elemento de uma língua estática, que ela não é "um centro imanente de significados" (STELLA, 2005, p. 177), mas está vinculada com as situações concretas em que os sentidos nascem, embora seja só na interação, sempre social e histórica, que esses sentidos existam. Na própria definição de palavra, constatamos a concepção dialógica de linguagem do Circulo, pois a palavra supõe, como ponte, duas posições, a dos co-enunciadores, em que ela,

sempre se dirige a um interlocutor e é função da pessoa desse interlocutor, variando caso se trate de uma pessoa do mesmo grupo social ou não; caso a pessoa seja superior ou inferior na hierarquia social; caso a pessoa esteja ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido); etc. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/ 2004, p. 112)

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sentido a interação social, que é social e histórica, que se realiza pr meio da enunciação, entendida como o processo de produção de enunciados.

Da mesma forma que o locutor considera a pessoa, ou seja, a imagem discursiva do interlocutor quando enuncia, o interlocutor, quando procura compreender o enunciado do locutor, considera a pessoa (imagem discursiva) deste.

Para o Círculo,

compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. [...] A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. [...] A significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1929/2004, p. 131-132)

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1.3. Enunciado/enunciação

Os enunciados pressupõem a enunciação, pois é esta que cria os enunciados; assim, “enunciação” designa o processo de produção de enunciados, e estes trazem as “marcas” da enunciação que os produziu. Cada enunciado é particular e individual, mas cada grupo social, à medida que se comunica, vai elaborando diferentes tipos de enunciados, nos termos das esferas de atividade nas quais ocorrem as interações, tanto dentro desse grupo como entre grupos.

1.4. Interação

Na concepção do Círculo, as esferas são espaços de produção, circulação e recepção dos discursos, indo além da simples situação imediata de interação.

E é na interação verbal que os protagonistas se constituem e se posicionam nos diversos contextos em que atuam.

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1.5. Discurso Citado

Com o intuito de estudar alteridade, confronto de vozes, e discurso de outrem na narrativa, Bakhtin estudou a obra literária de Dostoiévski:

Todavia a imagem do homem é a via para o eu do outro, um passo para [...] Todos esses problemas surgem inevitavelmente quando analisamos a obra de Dostoievski, que percebia com uma acuidade excepcional a forma de existência do homem como o eu ou o outro. (BAKHTIN, 2003, p. 349)

O romance é um enunciado completo, versa sobre o discurso e nasce de outro discurso (BAKHTIN, 2003, p. 272). Dessa forma, cada enunciado integra-se a outro enunciado, criando de certa maneira uma rede de significação.

Bakhtin escolheu como objeto de estudo os romances de Dostoiévski, buscando refletir e explicar a existência humana, uma vez que a literatura retrata e refrata a existência humana por meio da palavra.

a obra de arte literária deve ser compreendida inteiramente, em todos os seus momentos, como um fenômeno da língua, isto é, de modo puramente lingüístico (p. 22) [...] puramente composicional de organização das massas verbais, [...] realização artística de um acontecimento histórico ou social (BAKHTIN, 1993, p. 24).

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O trabalho de organização do discurso literário é realizado pelo autor-criador ao assumir uma posição “refratada e refratante” (FARACO, 2005, p. 39), ou seja, ele não é o autor empírico (a pessoa real, física: Namora, neste caso). Conseqüentemente, o mundo da obra não é o mundo real, concreto, mas um mundo lingüístico, discursivo, embora nem o autor empírico nem o mundo concreto deixem de existir no mundo representado da obra literária (SOBRAL, 2005, p. 108).

Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin/Volochinov dedicam o capítulo 9 para discorrerem sobre o “O Discurso de Outrem”: “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas , é ao mesmo tempo, um discurso

sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2004, p. 144).

O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do contexto narrativo. É a partir dessa existência autônoma que o discurso de outrem passa para o contexto narrativo (p.145). [...] Os dois planos da apreensão exprimem-se, objetivam-se no contexto narrativo que engloba o discurso citado. Qualquer que seja a orientação funcional de um determinado contexto - [...] uma obra literária [...] – nele discerniremos claramente essas duas tendências: o comentário efetivo, de um lado, e a réplica, de outro. (ibid, p.148)

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que possamos compreender as vozes dos sujeitos discursivos e as relações de sentido que foram estabelecidas no contexto narrativo criado por Namora.

Há três estratégias na forma do discurso citante introduzir o discurso citado: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre, com traços específicos decorrentes da relação que se estabelece entre eles e que refletem “tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem”, segundo Bakhtin/Volochinov (1929/2004, p. 146).

Os autores, na obra Marxismo e filosofia da linguagem (1929/2004), dedicam toda a terceira parte para tratar das diferentes formas de enunciação, a sintaxe e mais particularmente o discurso citado, isto é, os esquemas lingüísticos (discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre).

Discurso Direto

O discurso direto pode ser:

a) preparado: pelo uso de itálico, pela inserção de comentários entre parênteses, pelo uso de ponto de exclamação, interrogação, etc.,

Ex: “- Ah! – disse eu, absorto, como se tentasse identifica-la na memória já sem espaço para esses comparsas da banalidade.” (NAMORA, 1971, p. 21)

(34)

enfraquecimento da objetividade do contexto narrativo. O autor joga sobre o herói a responsabilidade daquilo que é dito.

Ex: Lembrava-me de a ter visto já não sabia onde. Talvez num café. Isso, num café: os seus cabelos vinham associar-se a um blusão carmesim (suponho que dessa cor – a atitude enxovalhada e altiva é que se me fixava com mais precisão), a um cigarro preso enfàticamente entre dois dedos esguios e enrugados. E tão segura de si como hoje. (ibid, p. 27)

Discurso Indireto

O discurso indireto requer uma maior elaboração do autor. Ele pode ser um analisador de conteúdo (do que disse o falante: há um distanciamento do contexto narrativo) ou analisador da expressão (que caracteriza não só o objeto do discurso, mas o próprio falante). No discurso indireto, o autor joga sob a responsabilidade do herói aquilo que é dito, mas de outra forma, introduz o discurso citado pela conjunção “que”, seguida dos verbos discendi (dizer, pensar, responder, afirmar, contestar, retificar, etc.)

O processo não se realiza diretamente sob a forma de discurso direto ou indireto. Essas formas são apenas esquemas padronizados para citar o discurso. [...] Conforme a língua, conforme a época ou os grupos sociais, conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo específico, vê-se dominar ora uma forma, ora outra, ora uma variante, ora outra. (ibid, p. 147)

Discurso Indireto Livre

(35)

do contexto narrativo com o autor do discurso citado. Nesse caso, as apreciações e as entoações dos dois autores são praticamente idênticas; “a narrativa é construída na tonalidade do herói, o discurso do herói na tonalidade do autor” (BAKHTIN/VOLOCHINOV,1929/ 2004, p. 172). O discurso indireto livre não é usado na conversação, mas é muito empregado no discurso literário.

O discurso citado pelas personagens do romance, no discurso do narrador, serve para a transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessas enunciações, enquanto vozes das personagens no contexto monológico coerente de Domingo à tarde.

Para a análise do nosso corpus, essas considerações são fundamentais para que possamos apreender, na voz do narrador, todas as outras vozes discursivas e compreender as relações de sentido instauradas no contexto narrativo.

A enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição uma outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente, para associá-la à sua própria unidade sintática, estilística e composicional, embora conservando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a anatomia primitiva do discurso de outrem, sem o que ele não poderia ser completamente apreendido. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2004, p. 145)

Tais considerações são enfatizadas por Bezerra:

(36)

inacabadas, vê o mundo como um processo em formação e o homem como um ser em formação, donde sua aversão à toda idéia do dogmaticamente acabado, do monologicamente fechado, da conclusão como ponto final. (BEZERRA, 2005, p. XI)

Assim, a estrutura de um enunciado que abriga um discurso citado deve “ajustar-se” sintática e composicionalmente a este discurso, estabelecendo entre eles uma relação dinâmica que interfere em sua apreensão. Essa inter-relação pressupõe um novo “outro”, uma terceira pessoa para a qual o discurso citado está sendo transmitido, que revela e intensifica “a influência das forças sociais”, que agem na maneira como eles são compreendidos:

Essa orientação para uma terceira pessoa é de primordial importância: ela reforça a influência das forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2004, p. 146)

(37)

Capítulo 2 Metodologia

2.1. CORPUS: NATUREZA E CONSTITUIÇÃO

Fernando Namora levou mais longe a renovação propondo uma problemática mais larga e uma sociologia das formas de expressão que deveria acentuar as diferenciações, as transformações e as inovações lingüísticas manipuladas na sua obra. (CHALENDAR, 1979, p.28)

Entre os muitos caminhos que poderiam ter sido adotados, foi no contexto literário do romance Domingo à tarde que constituímos o corpus, buscando conhecer um pouco mais sobre o autor e sua obra.

(38)

2.1.1. O autor

A desordem da minha vida não se alterou; apenas mudara de expressão e de local. (NAMORA, 1971, p. 165)

Fernando Gonçalves Namora (1919-1989), ou simplesmente Fernando Namora, nasceu e morreu em Condeixa, em Lisboa, Portugal.

O pai comerciante sonhava que o filho se tornasse um profissional da saúde, o que se concretizou.

Entretanto, paralelamente à vida de médico, ele se dedicou também à vida literária. Usou sua experiência, obtida no exercício clínico realizado especialmente em ambientes rurais, para representar, por meio de suas personagens, como acontecia a inter-relação médico-paciente na sociedade portuguesa, na sua época (cf. TOLEDO, 2004, p. 79).

(39)

Namora concedeu uma série de entrevistas, entre 1963 e 1965, compiladas parcialmente em Encontros com Fernando Namora (MENDES, 1979), em que reconheceu o valor de sua vivência pessoal naquela realidade, “visto que toda literatura interpreta e define o povo que a cria” (ibid, p. 31)

nunca me adaptei inteiramente à profissão médica, sobretudo aos seus rituais (dividido que me achava por outros interesses), também não me senti nela estranho. [...] Foi ela que me desvendou e recolheu o material literário (NAMORA apud MENDES, 1979, p.14).

O escritor observou que a criação literária não lhe ocupava todo o tempo, a ponto de dedicar-se, exclusivamente, “à maligna `obrigação´ de escrever”( ibid, p. 25). Ele considerava necessária a participação em, e a interação social do escritor com, o mundo em que viveu e no qual trabalhou - o da Medicina -, para elaborar a mediação entre o profissional da saúde e todos os “outros” com os quais conviveu: pacientes, familiares, outros profissionais, amigos, etc.

(40)

A importância da solidariedade ativa no atendimento ao paciente é ressaltada por Namora, ao ele reconhecer que:

A medicina predispõe à receptividade, ao solidarisma activo, e entrega-nos as chaves que abrem os esconderijos menos acessíveis, lá onde o homem é verdadeiramente o que é. (ibid, p. 14)

Devido à dificuldade de dividir seu tempo entre a Medicina e a Literatura, e por ter denunciado, como ficcionista, aspectos que refletiam uma sociedade a decompor-se, o autor foi interpretado como um frustado. No entanto, essa foi a maneira encontrada por ele para “estar ativamente presente no mundo”: escrevia o que ia experimentando (cf. MENDES, 1979, p. 14). Talvez aí esteja a explicação do porquê de suas palavras e a trajetória de suas obras.

Para alguns [...] escrever tem os limites da experiência vivida. Nesses me incluo. Os meus livros representam quase um itinerário de geografia humana, por mim percorrido; as andanças do homem explicam as do escritor. (ibid, p. 10)

Além de médico e romancista (um dos mais conhecidos escritores do século XX, em Portugal), também foi poeta, ensaísta e artista plástico.

(41)

Parte de sua obra foi traduzida para vários idiomas: A Noite e a Madrugada, Retalhos da Vida de um Médico, e Resposta a Matilde.

Domingo à tarde,foi dintinguido com o prêmio José Lins do Rego em 1967 e adaptado para o cinema por António Macedo, em 1966.

Imagem extraída de uma cena do filme Domingo à tarde. Direção de António de Macedo.

Lisboa: Produções Cunha Telles. 1966

Embora,o filme tenha sido premiado e seja de grande importância para a cultura portuguesa, propiciando uma outra leitura, por outra esfera de circulação, não tivemos acesso a ele.11

11

Exma. Senhora Ana Maria,

Na sequência da vossa comunicação, vimos informar que a cedência de cópias em suporte videográfico está estritamente limitada a contextos devidamente regulamentados, nomeadamente quando da edição videográfica das obras, pelo que motivos de ordem pessoal, extravasam o âmbito das nossas colaborações.

Aproveitamos igualmente a ocasião para esclarecer que o âmbito da nossa actividade e das nossas competências assume um carácter museológico.

A Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema através do seu serviço de arquivo (ANIM - Arquivo Nacional das Imagens em Movimento), tem por atribuições a guarda, a conservação e a preservação do património fílmico português. Grande parte dos materiais fílmicos em arquivo da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema são materiais de preservação dos próprios filmes. No que respeita a materiais de visionamento, a colecção destina-se a projecções no âmbito da actividade da própria Cinemateca, nomeadamente à sua programação regular na Sala Félix Ribeiro e Sala Luís de Pina, em Lisboa, à consulta “in loco” nas instalações do nosso arquivo, ou a acontecimentos de âmbito excepcional de carácter museológico para os quais são celebrados protocolos institucionais.

(42)

2.1.2. O Contexto histórico de Portugal, durante o regime de Salazar

Portugal encontrava-se em pleno domínio do Estado Novo, instaurado pelo golpe de Estado, tendo como pretensão a restituição da consciência política e histórica da nação.

Salazar, no entanto, que se propunha a ser o defensor dos direitos portugueses, governava com o apoio da igreja e com a mesmas características dos regimes totalitários vigentes na época, como o fascismo italiano, o nacional-socialismo alemão ou o falangismo espanhol.

Tanto no campo como na cidade houve uma desatenção por parte do governo salazarista e da igreja no que tange a falta de emprego, educação. Havia uma opressão para com as classes populares.

De 1926 até 1974, Portugal vive um período de estagnação, visto que seu povo foi oprimido pela política totalitária de Salazar. O ato criativo passa a ser censurado, e muitos dos escritores da época, sofrem sanções e têm sua obra apreendida e destruída. (ROANI, 2004, p. 15-32)

É esse cenário que impulsionará as idéias de denúncia e de crítica social dos neo-realistas, e Fernando Namora, representante dessa ideologia, insere-se nesse movimento literário que sofre grande influência da ideologia marxista.

Dentro dessa temática de indignação com as injustiças sócias, Fernando Namora, publica Casa de Malta, Minas de San Francisco, A Noite e a Madrugada.

Sara Moreira

Supervisora de Acesso

Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

(43)

Domingo à tarde relaciona-se ao exercício da medicina, e é desse lugar que o autor reflete sobre a carreira médica, sobre a doença e o doente, sob as condições de isolamento em que vivem os médicos, o sofrimento, a dor, e a morte presentes nesse contexto.

Além disso, Jorge e Clarisse, heróis do romance, não só tem uma relação de amor homem-mulher/médico-paciente, mas representam a sociedade portuguesa no período salazarista.

Numa leitura política social, podemos inferir que Jorge e Clarisse representam o povo português. Clarisse, representa a negação da sociedade vigente devido ao seu comportamento desbravado, caracterizado pelo enfrentamento das situações retratadas no romance. Jorge, ao contrário, representa a aceitação dessa sociedade, doente, criada pelo movimento salazarista.

Dentro desta leitura sociológica, o hospital representa o próprio estado português, dentro das esferas políticas “assistência médica gratuita” (NAMORA, 1971, p.13) e religiosas, era considerado um “santuário” (ibid, p.20).

Assim, Fernando Namora .“tem por objecto a descoberta e a compreensão de outras sociedades diferentes das que foram descritas pelas gerações anteriores”.

(CHALENDAR, 1979, p.153), revelando no seu movimento artístico ou literário o

objetivo de desnudar e denunciar as estruturas sociais vigentes.

(44)
(45)

2.1.3. Contexto da pesquisa: o romance

O autor subdvidiu o romance Domingo à tarde em três partes. Essas partes não são autônomas, relacionam-se entre si, estabelecendo sentido. A primeira parte inclui os capítulos I ao IX. A segunda parte, os X a XVII e a terceira parte, os XVIII a XX.

O narrador interage com o leitor por meio de marcas lingüísticas durante todo o desenvolvimento da narrativa e o recurso de construí-la em primeira pessoa promove o envolvimento da personagem com os acontecimentos narrados, como uma rememoração do passado.

Vemos tudo através da perspectiva da personagem, que, arcando com a tarefa de “conhecer-se” e expressar esse conhecimento, conduz os traços e os atributos que a presentificam e presentifica as demais personagens. (BRAIT, 2004, p. 61)

O contexto sócio-histórico-cultural, nesse corpus, reflete, esteticamente, a ideologia e os conflitos humanos reinantes em várias situações de interação, nos diferentes espaços e tempos que constituem as fases do relacionamento: no hospital, num dancing, na pensão da dona Eufrásia, num quarto de hotel.

(46)

2.1.3.1 A subdivisão do corpus em três partes12

O romance Domingo à tarde está dividido em três partes, assim optamos por manter essa divisão, na síntese que apresentamos.

a) Primeira parte

A engrenagem de todos os dias (“Oh, às vezes sufoco!” – gania de tempos a tempos a gorducha monitora da clínica. – “Sair daqui por uns meses, nem que fosse para o sertão! E o que me enfurece é saber que as outras pessoas julgam que esta vida é emocionante!”)

(NAMORA, 1971, p. 43)

O narrador no decorrer da narrativa expõe suas impressões sobre a prática médica desenvolvida em Lisboa, rememorando o passado e dando significado, por meio de suas interações, às sua lembranças.

Refere-se à falta de tempo que os médicos tinham para si e para a sua família. Lembra-se de Lúcia, médica e sua assistente:

Eu passava muitas horas no hospital, para lá de todos os horários. Até certo ponto, já que não tinha família na cidade, era ali o que Lúcia chamava o meu “santuário” (ibid, 20).

12Sempre que, a partir deste ponto do trabalho, a citação contiver apenas a indicação de referência

(47)

Descreve a solidão dos médicos, e a importância do “outro” nesses momentos. Em Domingos á tarde, Lúcia, representava o “outro”. Ela estava sempre presente, solidária:

Por vezes, quando a noite nos encontrava ainda no hospital – as noites do hospital oprimiam, esvaziavam-nos até que viesse aquele silêncio de pedra, livoroso e gelado, dos prenúncios da madrugada -, Lúcia estendia uma frase ou os seus dedos ternos para a minha solidão. (ibid, p. 19).

O narrador,reproduz o diálogo que teve com Clarisse, uma de suas pacientes. Ele descreve o clima sombrio, no hospital, devido à constante presença da morte e da dor. E é por meio desse processo de interação, que o narrador se posiciona em relação ao outro e a si próprio:

- Repare, Clarisse: nenhum de nós (nem eu, com a tal segurança que a ofende...) põe na morte a sua assinatura. A morte é-nos tão fortuita e ilógica (ilógica para cada um que se interroga) como muitos acontecimentos da nossa vida. (ibid, p. 58)

Jorge lembra-se de uma conversa descontraída com o médicos, no café do hospital. Romualdo, médico seguro, perguntara-lhe, se já havia reparado como os pacientes iniciam o relato de suas queixas. Naquele momento Jorge não o escutara, no entanto, ao interagir com Clarisse, as palavras de Romualdo passam a ter outro significado para Jorge. Ele experimenta a sensação de impotência diante das diversas reações apresentadas pelos doentes, ao perceberem o inevitável desfecho: o “rebanho à espera da matança”:

(48)

ninguém se dar ao incómodo de a estorvar. Só meu pai poderia morrer desse modo. (ibid, p. 64)

Como resultado dessas interações, Jorge observa a dureza do olhar dos parentes e dos outros pacientes, frente a mais uma perda. Ele avalia a dor, que os “outros” sentem diante do inevitável, a morte.

Soube então que a doente tinha morrido. Senti-me, de repente, sem forças para qualquer actividade. Andei de um lado para o outro. Na sala de espera um rosto vagamente conhecido; pertencia, sem dúvida, à família da morta. A mulher recostou-se, fitando-me com os olhos vazios e esbranquiçados. Mas reparei-lhe sobretudo na boca: dava-me a idéia de que esquecera o modo como é feito um sorriso. A linha dura que a desenhava parecia decisiva, uma lasca de pedra. (ibid, p. 51)

Jorge precisava quebrar a frieza daquele momento. Ele não queria conviver com a dor e a tristeza, sempre presentes naquele ambiente hospitalar. Buscava, então, refúgio fora do hospital. Algumas vezes, dirigia-se para os cafés da cidade, outras, caminhava pelas ruas:

A rua é uma boa coisa. Sobretudo vadiar por aí, sem destino. Isso acontecia-me muitas vezes. Nem sempre com prazer, pois era freqüentemente o aguilhão da angústia a impelir-me para a vadiagem. (ibid, p. 37)

Assim, o texto nos remete aos diferentes enfrentamentos da doença, pois percebemos, pela voz do narrador, que os pacientes experimentavam reações diversas:

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a poetisa, posto o rumor da sua gloriosa adversidade a circular, vestira , convictamente, o papel de desditosa, propondo ao marido que se fosse adaptando à sua iminente situação de viúvo, quartos separados e, logo depois, vidas à parte. Passava os dias num café, a beber, a consumir-se por dentro e a escrever poemas. (ibid, p. 48)

• outros amavam intensamente:

A velhota ricaça que eu internara numa clínica. No último Natal oferecera centenas de presentes. Escrevia montes de cartas, todos os dias, mesmo a desconhecidos. O importante era que viessem agradecer-lhe, Vê-la, que, durante alguns minutos, ao pensarem nela, a fizessem viva. (ibid, p. 46)

• e outros procuravam se informar sobre as novas técnicas descobertas pela ciência em prol da cura do seu mal:

Quando esses doentes voltavam – e voltavam sempre -, tinham lido livros, consultado outros médicos, e discutiam já as notícias sobre as novas e milagrosas drogas para o seu caso. (ibid, p.46)

(50)

Nessa tônica, percebemos também, o movimento entre Jorge e Clarisse, que procuram estar sempre à escuta um do outro, mas ainda incertos daquilo que um e outro desejam. Clarisse deixa o hospital e termina, assim, a primeira parte do romance.

b) Segunda parte

- Veio procurar a doente ou a mulher?(ibid, p. 88)

O narrador, estrategicamente, descreve como foram longas e chuvosas as semanas que se passaram após a saída de Clarisse do hospital. Sentia-se perturbado ao ouvir o nome de Clarisse. Resolve procurá-la em um dancing existente na cidade. A partir desse acontecimento, começa a transformação pessoal de Jorge:

Na manhã seguinte, a cama de Clarisse, na enfermaria, tinha mudado de dono. Ela cumprira o que me havia anunciado. Toda a enfermaria, de súbito me pareceu deserta e a minha missão, ali, sem objetivo. (ibid, p. 74)

que se concretiza no encontro de ambos em um dancing na cidade:

Olhei para trás, vi-a ainda à entrada do dancing. As dobras transparentes do vestido ondulavam como asas de seda à aragem que viera estremecer a noite pasmada. Pareceu-me irreal. Como irreais, de uma irrealidade louca e dolorosa, foram as horas que se seguiram. (ibid, 88)

(51)

Clarisse quer apenas “um pouco de amor” (ibid, p. 95), isto é, quer ser tratada como mulher; necessita de um pouco de amor, não quer ser mais um simples “caso“ do hospital, quer ser apenas uma mulher:

Não quero ouvi-lo falar mais naquilo que vocês gulosamente chamam o meu “caso”. O hospital está cheio de ”casos”. (ibid, p. 97)

Quando Jorge e Clarisse passam a viver juntos, num apartamento alugado numa das zonas mais recolhidas da cidade, percebemos que tanto um como outra estão confusos, sentem medo do dia seguinte e da solidão. Eles aproveitam todos os momentos , passeiam, conhecem pessoas, cantam, dançam, vivem num frenesi estonteante. Esses momentos, às vezes, são quebrados, pela insegurança de Clarisse a respeito dos sentimentos de Jorge:

Tu, ele, todos. – Fez seguir essas palavras de um longo momento de expectativa. – E eu, afinal, só queria saber se achas que viverei o bastante para... para que possas sentir alguma coisa por mim? (ibid, p. 112)

Percebemos a perturbação de Jorge: ora ele é o homem que vive e ama, ora é o profissional que conhece a evolução e as conseqüências da doença:

- Está bem, Clarisse, mas preferia que os aproveitasses para repousar.

- Oh, este homem! Contigo, a gente nunca sabe de que lado vai chover. Pois vou prevenir-te: Não farei repouso. Não farei coisa nenhuma, ou antes: farei o possível para que estes dias tenham um significado. (ibid, p. 153)

(52)

pois Lúcia, sua assistente, o substituía gradualmente. Lúcia o censura pelo desatino, pois seu relacionamento com Clarisse refletia negativamente em sua vida profissional.

Censurava-me o desatino, sim, mas na medida em que se reflectia no meu desleixo profissional. (ibid, p. 136)

Apreendemos essa tensão nos discursos introspectivos de Jorge, como quando visita a casa em que viveu Clarisse, e se apercebe das diferenças sociais e de valores entre ele e ela:

- Pronto, aí tens. Isto é um baldio. – Teve um riso oco com a agudeza terrível de uma guinada. – Bem te preveni que a Clarisse viveu dias em que apetece deixar as ervas cresceram à nossa volta, como nos baldios. Percebes o que quero dizer? [...] – Assim está mais certo. Fico mais pequenina junto de ti. Do meu verdadeiro tamanho. (ibid, p. 147)

(53)

c) Terceira parte

Mandei-lhe, ao hotel, o primeiro ramo de flores que, até aí, oferecera a uma mulher. (ibid, p. 176)

Na terceira parte, ao se espelhar no “outro”, Jorge se questiona, se auto-avalia, e se angustia. Jorge conscientiza-se que a vida não se resumia apenas ao hospital. Ele necessitava passear, amar e viver como qualquer outra pessoa.

Nesse capítulo descobre as razões pelas quais lutava. Percebe que para se sentir vivo é preciso amar. E é esse amor, que o fez mudar.

A minha reacção era tão intensa e caótica que poderia supor-se que só naquele momento a verdade me fora revelada. Achei-me algemado dentro daquele quarto avulso, repugnante como uma alcova de aluguer, que me separava de todas as armas que poderiam ainda estorvar o desfecho, adiando-o. Fechado num cárcere. Agora, porém, as coisas surgiam-me honestamente esclarecidas: eu não era apenas o médico compadecido, era um homem com uma luta malograda mas definida, sabedor das razões por que lutava.. (ibid, p.163)

Essa descoberta faz com que procure o Guedes, mesmo contrariando todos os seus princípios, pois Guedes era considerado um “fuinha”.

Aliás, repretia pra mim, o que estava em causa era a sorte de Clarisse e não os meus brios. (ibid, p. 171)

(54)

Mandei-lhe, ao hotel, o primeiro ramo de flores que, até aí, oferecera a uma mulher. (ibid, p. 176)

Começa a encontrar sentido na vida, convivendo com Clarisse, mas esse sentido parece se esvair quando ela morre. Jorge compreende que não se pode estar só.

(55)

2.1.3.2. As personagens

Aprendi toda essa história violentando-lhe os monossílabos. Esteve a fitar-me algum tempo em silêncio e tive a impressão, aliás repetida com a maioria dos doentes, de que ela experimentava uma secreta e jubilosa surpresa em verificar o pouco, que, afinal, tinha para me dizer . Um dos meus assistentes ia preenchendo a ficha e tomando notas sobre o interrogatório. Ela, desconfiada, franzia as sobrancelhas, dando muito mais importância a esse misterioso relatório, que não poderia vigiar, do que aos trejeitos que eu repetia com a boca, fazendo rodar o cigarro, quase mastigado, com a ponta da língua, enquanto lhe explorava demoradamente certas regiões do corpo. (ibid, p. 27)

Em nosso corpus, a condução da narrativa é feita por um narrador em primeira pessoa, que comenta os acontecimentos e as personagens com as quais ele, como personagem, interage.

À medida que a narrativa vai se desenrolando, a caracterização da “vida” de Jorge é marcada lingüisticamente pelos comentários (discurso indireto livre) do narrador:

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Em Domingo à tarde, o texto narrativo vai delineando o perfil de outros personagens, importantes na mudança de valores e na transformação de Jorge, em especial Clarisse: doente “jovem de cabelos bravios”, cujo olhar era de “descaso e zombaria” (ibid, p. 26), e que não tinha noção da gravidade de sua doença.

A enferma era uma jovem de cabelos bravios, que pareciam ter crescido sem que ninguém os estorvasse. E nem só os cabelos eram bravios: ela olhava-nos sem qualquer espécie de precaução e no fundo das pupilas havia uma zombaria a roçar pelo descaro. (ibid, p. 26)

Mantendo-se como um observador, o narrador apresenta-se como sendo o médico Jorge, dono de uma personalidade desagradável. Ele clinica no Serviço de Doenças Malignas, evitado por outros profissionais, por tratar de uma doença que destrói e tira toda e qualquer chance de vida dos doentes.

Ao seu lado, trabalha Lúcia, jovem médica amorosa, dedicada e com grande habilidade no trato com os pacientes. É sua assistente e companheira, nos momentos de solidão e cansaço no hospital.

Nesse contexto, movimentam-se também outras personagens como um médico “coscuvilheiro”, o Guedes, “safado” e que “de todos tirava proveito”, (ibid, p. 35) e o médico Romualdo, “seguro” (ibid, p. 61) e que tinha ares de sacerdote.

(57)

Capítulo 3: Análise: alguns recortes

Para análise do corpus foi de grande valia os conceitos de Bakhtin e do discurso do outro, por possibilitar a apreensão das diversas vozes que circulam em nosso corpus.

O conceito bakhtiniano de vozes possibilitou a compreensão ativa do tempo histórico em que se desenvolveu a estória, já que Bakhtin utiliza o texto literário não só para compreender algumas questões teóricas, mas também para debater temas de sua época.

(58)

3.1. Os discursos dos outros, no discurso do narrador

3.1.1. A interação médico-paciente: diante de si mesmo e diante dos outros

Talvez o filme nos ensine a ser gente. Gente de verdade. Com os mesmos interesses e fraquezas dos outros. (ibid, p. 22)

Em diferentes situações de produção, circulação e recepção dos discursos do narrador, ora ele dialoga consigo mesmo, com suas rememorações e suas valorações sobre o mundo que o cerca, ora interage com interlocutores discursivos exteriores a ele mesmo, dos quais ele é o porta-voz e, ao mesmo tempo, o intérprete.

Logo no início do primeiro capítulo, descreve a si próprio sob a ótica de olhos alheios. O narrador internaliza, para o “eu”, o julgamento de valor do “outro”:

Nos outros não admitia, pois é o riso o que particularmente me ofende nos medíocres. Poderiam, enfim, julgar-me um snobe ou um torturado. (ibid, p.11)

Ao iniciar o segundo capítulo, descreve Lúcia como “insignificante”, com “ar pasmo perpétuo”. No entanto, as interações do dia-a-dia transformam a avaliação que o narrador tem de Lúcia. O que julgava ser “devoção”, passa a ser “competência”.

(59)

E, também eu reconhecia, sem que isso me redimisse, que a

minha enfatuada aridez era uma espécie de enxerto bastardo que, como as células vorazes dos tumores, digeriria insidiosamente o que em mim havia de confiado e espontâneo.(ibid, p. 16)

Os “espaços sociais” interferem nas atitudes de Jorge, a quem o narrador dá voz, por meio do discurso indireto livre. Na avaliação dele, a “frieza”, “o sofrimento”, “a dor,” eram reflexos do ambiente hospitalar, mas este seria a sua última oportunidade de diálogo humano:

Que espécie de aridez? E pus-me a pensar que o hospital era a minha única ou última oportunidade de diálogo humano. Que seria de mim sem essa oportunidade, embora lhe resistisse (ibid, p. 50)

[...] cheguei ao hospital, pesando-me nos olhos todo o denso rescaldo da insónia e das emoções (ibid, p. 88)

Sempre dando voz a Jorge, por meio do discurso indireto livre, o narrador o descreve a tentar “espairecer”, caminhando pela rua:

A rua é uma boa coisa. Sobretudo vadiar por aí, sem destino. Isso acontecia muitas vezes. Nem sempre com prazer, pois era freqüentemente aguilhão da angústia a impelir-me para a vadiagem (ibid, p. 38).

Em outras ocasiões, o médico dirige-se ao café do hospital ou ao dancing que fica na cidade. No entanto, a sua “insociabilidade” está presente:

(60)

No dancing, procura a mulher e, necessita desse “outro” para se encontrar. O diálogo, a voz de Clarisse se expressa em discurso direto, e o comentário do narrador dá voz a Jorge em discurso indireto livre:

- Veio procurar a doente ou a mulher?

[...] Ela não podia saber o quanto a sua pergunta me perturbava e também não compreenderia o absurdo de qualquer das respostas.

- E entrou também por acaso, não é isso que vai dizer-me?

Mente! É um reles mentiroso. (ibid, p. 88)

A relação com os “outros” faz com que Jorge re-elabore certos conceitos. Aquele que não entendia de mulheres, passa a percebê-las.

- Gosto de flores, ainda não to disse. E gosto doidamente de flores lilases.

Eu, porém, já dera por isso(ibid, p.113).

[A relação Jorge / Clarisse será mais explorada no tópico 4.3, uma vez que a história gira em torno dela, a quem o narrador dá voz, em discurso indireto livre:

quem deveria ter escrito esta narrativa era Clarisse,

porquanto é dela, e só dela, que iremos falar (o que direi

(61)

3.1.2 A recuperação, pelo narrador, da figura do médico Jorge e as

transformações sofridas durante as interações

Nunca sentira, até aí, tão funda e maciça inutilidade. Clarisse tinha razão. Qual era o meu papel junto dela e dos outros? Com que argumento válido, leal e justo os encarcerávamos? Pois não era tão pouca a vida, a vida deles, e tão imensa, urgente e legítima a fome de a viver? Ia decidir, de vez, mudar de serviço. Nenhum espertalhão me seguraria mais ali. (ibid, p. 74)

Guiado pela voz do narrador, o romance escrito em primeira pessoa cria um efeito de aproximação entre o mundo ficcional construído e o leitor, de modo a evidenciar as marcas lingüísticas que denotam a interação e o dialogismo constitutivo de todo enunciado.

O tempo, na narrativa, é marcado por expressões como “Nesse tempo” (ibid, p.11), “foi nessa época” (ibid, p.18) ou “mais tarde” (ibid, p.30), que recuperam as lembranças de Jorge.

A imagem que o narrador dá de si é o de fio condutor do romance. Há um afastamento, mas sem muito distanciamento, entre o narrador e o protagonista Jorge, e as ações desse último são “julgadas” pelo primeiro. Temos a impressão de que o narrador se dissocia da personagem que é ele mesmo.

(62)

A tensão entre esse “eu” subjetivo e o “outro” Jorge do mundo exterior é criada na obra, por meio das palavras representadas do “outro”, naquele mundo, e marcam a fusão entre narrador e protagonista. Ele se representa a si mesmo:

se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a presença delas me era insuportável (ibid, p. 11)

O narrador se apresenta como um “eu” “insociável”, que sofre transformações a partir das interações, de conflito ou de concordância, com vários outros “tus”, em diferentes ambientes sócio-culturais: com Clarisse, com Lúcia, com Guedes, com Romualdo, com Dona Eufrásia, com o hospital, com o café, com o dancing, com os passeios bucólicos, etc., como está discursivamente, mostrado na narrativa.

O narrador avalia a si mesmo, criando um jogo entre o presente e o passado, num efeito de proximidade e distanciamento. Ao fazer esta reflexão, ele assimila palavras, isto é, a reação e a voz dos “outros” (em discursos citados) e, ao re-elaborá-las, expressa um tom valorativo de censura a si mesmo, caracterizado no texto por palavras como “arrogância”, “aspereza”, “exibicionismo”. No caso da palavra “aspereza”, ele aplica ainda o qualificativo “gratuita”, criando uma intensificação de seu caráter negativo. “Exibicionismo” aparece como uma explicação das outras palavras destacadas e como sua conclusão ou arremate:

Penso ainda, muitas vezes, e apesar de tudo o que se passou, no significado dessas minhas ondas de fastio,

arrogância e aspereza.Aspereza gratuita – que se poderia resumir, com mais rigor, nesta palavra que hoje, após os acontecimentos que me fizeram revelar muitas coisas dos outros e de mim próprio, deveria envergonhar-me:

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O narrador dá voz à Clarisse, às vezes em discurso indireto livre, outras, em discurso direto, como se vê a seguir.

Quem deveria ter escrito esta narrativa era Clarisse, porquanto é dela, e só dela, que iremos falar (o que direi de mim é, afinal, pretensioso e abusivo)

[...]

Chamo-me Clarisse e vou morrer. Mas, entretanto, conheci um tipo que era médico e resolvera os seus problemas de consciência escolhendo uma especialidade cujos clientes não tinham um migalho de esperança à sua frente.” (ibid, p. 14)

No entanto, ao mesmo tempo, ele questiona as palavras que põe na boca de Clarisse:

Um começo bonito, embora suspeite que Clarisse nunca o teria preferido. (ibid, p. 14)

“um começo bonito” é a avaliação do narrador, enquanto “embora suspeite que Clarisse nunca o teria preferido” é avaliação que ele faz a partir do que acha que seria o ponto de vista de Clarisse.

(64)

um tipo que era médico e resolvera os seus problemas de consciência escolhendo uma especialidade cujos clientes não tinham um migalho de esperança à sua frente (ibid, p. 14).

No entanto, em função da interação com Clarisse, Jorge vai começando a mudar, transformado pelo olhar avaliativo dela (“com irritada decepção”), em um médico mais humano, mais preocupado com os dramas que o rodeavam

Suspeitei algumas vezes que ela me reconhecia, com irritada decepção, que talvez a minha dureza fosse um disfarce, que por debaixo desta crosta enfatuada sangrava a minha tímida adesão aos dramas que me rodeavam..( ibid, p. -32)

O narrador se coloca em primeira pessoa, marcando sintaticamente sua voz e sua subjetividade ao enunciar o verbo “suspeitei” e o pronome pessoal “me”. Ao dialogar com seus “outros”, há uma relação conflitante que leva a uma re-significação do sujeito, dado que sua constituição vem do encontro entre pelo menos dois “eus”, o do narrador e o do médico:

Escrevo estas recordações com um mal-estar que não tenhocapacidade para definir. [...] seria bem melhor, nem que fosse por pudor, guardá-las para mim. (ibid, p. 55)

Referências

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