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ALLISTER ANDREW TEIXEIRA DIAS “DRAMAS DE SANGUE” NA CIDADE: PSIQUIATRIA, LOUCURA E ASSASSINATO NO RIO DE JANEIRO (1901-1921)

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Academic year: 2019

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Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde

ALLISTER ANDREW TEIXEIRA DIAS

“DRAMAS DE SANGUE” NA CIDADE: PSIQUIATRIA, LOUCURA E ASSASSINATO NO RIO DE JANEIRO (1901-1921)

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ALLISTER ANDREW TEIXEIRA DIAS

“DRAMAS DE SANGUE” NA CIDADE: PSIQUIATRIA, LOUCURA E ASSASSINATO NO RIO DE JANEIRO (1901-1921)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – Fundação Oswaldo Cruz, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências.

Orientadora: Dr (a) Dilene Raimundo do Nascimento

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3 Ficha catalográfica

D541

Dias, Allister Andrew Teixeira

“Dramas de sangue”: na cidade: psiquiatria, loucura e assassinato no Rio de Janeiro (1901-1921) / Allister Andrew Teixeira Dias. - Rio de Janeiro : s.n. 2010. 191 f.

Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde)-Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, 2010.

Bibliografia: p. 181-191

1. Psiquiatria. 2. Hospitais Psiquiátricos 3. História. 4.

Criminologia. 4. Medicina do Comportamento 5.Rio de Janeiro 6. Brasil.

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ALLISTER ANDREW TEIXEIRA DIAS

“DRAMAS DE SANGUE” NA CIDADE: PSIQUIATRIA, LOUCURA E ASSASSINATO NO RIO DE JANEIRO (1901-1921)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – Fundação Oswaldo Cruz, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências

Aprovado em 22 de julho de 2010

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________ Prof.Dr. Dilene Raimundo do Nascimento (FIOCRUZ-COC) – Orientador

______________________________________________________________

Prof.Dr. Fernando Sérgio Dumas dos Santos (FIOCRUZ-COC)

___________________________________________________________________ Prof.Dr. Luis Antônio Coelho Ferla (UNIFESP)

Suplentes:

______________________________________________________________

Prof.Dr. Cristiana Facchinetti (FIOCRUZ - COC)

___________________________________________________________________ Prof.Dr. Anna Beatriz de Sá Almeida (FIOCRUZ-COC)

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Agradecimentos

“Quando o amor sobe, gratidão vem.” (Sri Sri Ravi Shankar). E sentir gratidão faz bem. Primeiramente, agradeço a FIOCRUZ e a CAPES pela bolsa de estudos concedida durantes os dois anos de mestrado. A FIOCRUZ, especialmente, pela oportunidade do mestrado. Agradeço muito a minha orientadora, Dilene Raimundo do Nascimento pelas conversas, orientações, dicas, ensinamentos e conhecimentos, paciência, pelas oportunidades abertas, pela amizade, e tudo no melhor clima possível. Obrigado por acreditar no meu trabalho, na minha escrita e na minha História.

Agradeço aos professores/pesquisadores da pós: Gilberto Hochman, pela “História da Saúde”, Luiz Otávio e Nara, pela “História das Ciências”, Robert Wegner e à professora Dominick pela “Teoria”, a Ana Venâncio e Flávio Edler pela “História da Psiquiatria”. A professora Bella, pela “História das doenças”. Com eles aprendi muito. Agradeço muito a Fernando Dumas e Magali Engel pelas conversas, críticas e pela qualificação, que fez de duas dissertações uma. À professora Cristiana Facchinetti por todas as idéias que tem produzido. Ao professor Luis Ferla pela participação na Banca de Defesa e pelas idéias.

Lá de trás, da graduação, agradeço muito a professora Laura Maciel pela História, em todos os seus aspectos, que, com ela, conheci um pouco mais. Agradeço ao professor Norberto Ferreira que falou de fontes, metodologia, pesquisa, literatura etc. Procurei ouvi-lo com atenção. Ao professor Mario Jorge e à professora Marta Abreu, pela beleza e o amor pelo ensino, não obstantes todas dificuldades. Muitos professores da minha vida mereceriam agradecimentos, mas não é possível inundar essas poucas páginas.

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SUMÁRIO

Pág

Resumo

10

Abstract

11

Abreviaturas

12

Introdução

13

Capítulo I: Espaços e instituições da psiquiatria, no Rio de Janeiro, do

início do século XX.

20

I.1. A Polícia e o Serviço Médico-Legal 21

I.2. O Pavilhão de Observações 27

I.3. O Hospício Nacional de Alienados 38

I.4. A “Seção Lombroso” e o Manicômio Judiciário 56

Capítulo II: Fora do Hospício, nas mãos da polícia: o caso Carletto

(década de 1900).

60

II.1. Imprensa, polícia e Carletto em cena. 63

II.2. “Carletto sofre das faculdades mentais”? Médicos em cena: o parecer médico-legal e a prática psiquiátrica na Polícia. 77

Capítulo III: Dentro do Hospício: os casos Alfredo e Edson (década de

1910)

109

III.1. “A golpes de pá matou o companheiro de quarto”: vida, “loucura” e crime de Alfredo. 111

III.2. “Recusado pelo hospício, tornou a casa e matou a esposa”: vida, “loucura” e crime de Edson 115

III.3. A prática psiquiátrica no Pavilhão de Observações e no Hospício Nacional de Alienados na década de 1910. 118

III.4. Notas sobre algumas experiências e sentidos da “loucura assassina”. 130

Capítulo IV: Diagnósticos psiquiátricos em debate

136

IV.1. A simulação de Carletto e a simulação de loucura na psiquiatria brasileira, do início do século XX. 138

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9

IV.3. Degeneração, alcoolismo e crime “passional” 163

Considerações Finais 171

Fontes Primárias 174

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10

RESUMO

(11)

11

ABSTRACT

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12

Lista de Abreviaturas

1. P.O. – Pavilhão de Observações;

2. H.N.A. – Hospício Nacional de Alienados;

3. F.M.R.J. – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; 4. H.P.II. – Hospício de Pedro II;

5. M.J.N.I – Ministério (ou Ministro) da Justiça e Negócios Interiores; 6. M.J. - Manicômio Judiciário;

7. I.P.U.B – Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil; 8. A.N – Arquivo Nacional;

9. GN – Gazeta de Notícias; 10. CM – Correio da Manhã; 11. JC – Jornal do Comércio; 12. B.N – Biblioteca Nacional;

13. A.N.M – Academia Nacional de Medicina;

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Introdução

A intenção inicial desse estudo de mestrado era traçar uma investigação abrangente da experiência da loucura e do internamento psiquiátrico no Rio de Janeiro, na sua principal instituição, o Hospício Nacional de Alienados (H.N.A.), tendo em vista a importância do saber psiquiátrico nas discussões acerca de ideais de indivíduo para a construção da nação, marcantes no Brasil do início do século XX (Facchinetti, 2005; Paula, 2006; Cunha, 1986; Engel, 1998). Entretanto, vários fatores levaram à reformulação do tema, dos objetivos e fontes de pesquisa. Trabalhar com a maior parte da documentação clínica do HNA não foi possível1, e o ideal de reconstruir um conjunto mais amplo de experiências acabou ficando para outra oportunidade.

Tendo em vista isto, esta dissertação pretende investigar algumas práticas, saberes, teorias e categorias psiquiátricas em jogo em casos que envolveram loucura, assassinato e simulação de loucura, no Rio de Janeiro, do início do século XX. Os palcos principais destes casos e das problemáticas deles decorrentes foram as instituições nas quais este saber estava presente: o Serviço Médico-Legal da Polícia, o Pavilhão de Observações do Hospício Nacional de Alienados, o Hospício Nacional de Alienados e a sua Seção Lombroso, embrião do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro. Tentamos, todavia, não esquecer a experiência dos sujeitos enredados pela psiquiatria, suas trajetórias e vivências, percepções e sofrimentos, bem como a participação de outros atores nesses casos, como a imprensa e literatos.

Escolhemos as décadas de 1900, 1910 e início da década de 1920, como nosso recorte temporal por três aspectos principais: primeiro, é dentro deste período que se desenrolaram os casos de crime-loucura e simulação de loucura aqui narrados e escolhidos como portas de entrada para discutir a psiquiatria. Segundo, este período é considerado por alguns autores, como Engel (2001) e Cunha (2003), como um período rico em lutas pela consolidação social e científica da psiquiatria, pelo menos nos principais centros urbanos do país. Por fim, os anos de 1901 e 1921 representam, no meu entender, boas balizas institucionais para a psiquiatria: em 1901 começam a ser mais latentes as questões e conflitos, os quais perpassarão todo o período sob foco, no âmago da psiquiatria e que muito diz respeito à sua prática e às suas conexões com a sociedade; e,

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14 em 1921, começa a funcionar o Manicômio Judiciário, que demarca a “sedimentação da psiquiatria forense”, passando esta instituição a monopolizar as perícias psiquiátricas em questões penais (Maciel, 1999).

Tendo em vista o que foi dito, tentamos, por um lado, a partir das questões que os casos selecionados evocaram, compreender alguns dos principais influxos sócio-culturais sobre a prática e saber psiquiátricos produzidos nos espaços já citados. Por outro, buscamos situar os conflitos e questões internas à psiquiatria, analisando sua heterogeneidade, as diversas matrizes teóricas e práticas em jogo; demarcando dissensos acerca de categorias. Os casos aqui focados, embora com elementos bem diversos, trazendo questões diferentes, possuem alguns ingredientes comuns, como a prática do crime de homicídio, a intervenção da imprensa, a comoção pública, o trágico e o intercurso do saber médico-psiquiátrico. É importante, nesse momento, justificar nossa escolha por casos particulares.

Consideramos que o estudo mais aprofundado de casos particulares permite compreender as principais características da psiquiatria, em dado contexto histórico, suas problemáticas internas, mas também algumas de suas interlocuções sociais e culturais. Cunha (1986, p.114) demarca bem as possibilidades nesse “descer à abordagem dos casos”. A análise de casos revela

“o quadro doloroso, pessoal e intransferível, indissociável de histórias de vida, e cuja redução a estatísticas ou generalizações teóricas deixaria perder a própria riqueza da fonte (...) Esta só pode ser compreendida quando referenciada à experiência individual e também desta maneira deve ser incorporada à problemática histórica (Cunha, 1986, 121).

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15 seu processo de legitimação social e alargamento das categorias definidoras do patológico. Além disso, para Wadi (2006, p.304), um “caso exemplo (não exemplar)”, marcado por um ato drástico de transgressão, traz a tona o estado, as possibilidades e os limites da disseminação social de preceitos formulados e difundidos pela psiquiatria.

A análise de casos, da natureza dos que serão nesta investigados nessa dissertação, ajudam a elucidar, também, as disputas e/ou alianças tecidas entre médicos, juristas e outros agentes sociais (como a imprensa), em torno da verdade sobre os atos praticados (Engel, 2001; Harris, 1993). Cada vez mais, os psiquiatras e médicos legistas da polícia se concentraram em diversas formas de transgressões, infrações, delitos, contravenções, sendo chamados pela justiça, a se posicionarem sobre o estado mental de certos criminosos. Passam a contribuir, fortemente, com seus relatórios e pareceres sobre o estado ou sanidade mental, para as definições de penas.

É necessário situarmos alguns referenciais teóricos relevantes nesse estudo. Pensamos o saber e prática psiquiátricos, nas suas dimensões sócio-culturais, informados por pressupostos da história social e cultural que têm se debruçado sobre o tema, principalmente, nas suas intercessões com a questão do crime (Cunha, 1986 e 1990; Engel, 1998, 2001a; Paula, 2006; Maciel, 1999; Wadi, 2006a, 2009). Assim, a construção da noção científica de “doença mental” é totalmente influenciada (e influi) pela complexidade de aspectos, presentes numa dada realidade social (Engel, 1998; Cunha, 1986; Costa, 1976; Rivera-Garza, 2001; Sadowsky, 2000; Huertas, 2001a; Wadi, 2009; Carrara, 1998; Harris, 1993; Rosenberg, 1992). Nessa perspectiva, Eric V. Young (2001, p.12) aponta que este tipo de estudo pode trazer aspectos esclarecedores de uma dada sociedade, revelando crenças e valores, muitas vezes, “encobertos”. Cunha (1986, p.115), de forma muito próxima, diz que os “processos de loucura”, encerrados nos asilos, remetem diretamente à lógica social circundante.

Acreditamos ser impossível não levar em conta a produção intelectual de Foucault sobre a psiquiatria e a loucura. Suas análises que tocam em tais temas 2 são atuais e muito relevantes, constituindo fontes de reflexão e diálogos constantes. Procuramos, todavia, não utilizar as ferramentas analíticas e as reflexões de Foucault de forma “mecânica” (Armus, 2002a, p.53), hiperdimensionando o poder médico na sua força de moralização coletiva e

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16 de disciplinamento dos corpos 3. Buscamos fugir da dicotomia “foucaultiano” X “antifoucaultiano”, pouco profícua em termos de história da psiquiatria (Huertas, 2001a, p.18), levando em conta algumas proposições de Foucault com relação à questão da “subjetivação” (Foucault, 2006a), do “poder psiquiátrico” (Foucault, 2006c) e do “exame psiquiátrico” (Foucault, 2001), mas sempre mesclando-as com outros pontos de vista e com as problemáticas específicas apresentadas pelos casos.

Nesse sentido, entendemos que os psiquiatras, embora produzam discursos e práticas voltados para o “autocontrole” e a “ordem social”, também o fazem visando produzir conhecimentos, afirmar-se socialmente e minorar o sofrimento de muitos indivíduos. Na face do controle social, derivada deste tipo de poder, predominam a “persuasão e a subjetivação da norma”, produzindo um “regime de verdade” inscrito em suas “nosologias, classificações, etiquetas diagnósticas e propostas terapêuticas e profiláticas” (Huertas, 2009, pp.40-41). Segundo o próprio Foucault (2006a, p.162-163), o que dá à prática psiquiátrica “garantias de verdade” são seus discursos clínicos e classificatórios: o entendimento da “loucura” como uma “série de doenças”, com sua sintomatologia, evolução, diagnósticos e prognósticos peculiares.

No que tange a questão da ligação da loucura com o crime, como muito bem indica Carrara (1998), a grande dificuldade, para quem estuda o tema é “deslindar o nó em torno do qual se enrolavam diferentes profissionais e diferentes teorias” (Carrara, 1998, p.218). O interesse historiográfico num crime de assassinato pode dar-se por vários motivos, como o policial, o jurídico, ou pelos valores sociais que eles podem evocar (Fausto, 2009). Há, tanto no âmbito da psiquiatria como no da justiça, uma “necessidade obsessiva para se encontrar a razão que o desvende (o homicídio, suas motivações)” (Engel, 2001a, p. 98; Foucault, 2001 e 2006c; Carrara, 1998). Uma gama de atores sociais, antes da medicina, aciona os elementos ao seu dispor para estabelecer tais acontecimentos, mas, no contexto em questão, o olhar especializado tende a tomar a questão para si. As linhas de investigações historiográficas atuais, que se debruçam sobre a relação crime-loucura, começam a vê-la como um espaço privilegiado para a compreensão da trajetória do saber e da prática psiquiátrica. Casos de crime, com grande repercussão social, permitem ver, por outros ângulos, as “estratégias de legitimação científica e social da psiquiatria” (Dièguez, 2004, p.95; Campos, Martínez-Perez, Huertas, 2001; Campos, 2003; Darmon, 1991;

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17 Harris, 1993). No que diz respeito aos médicos, participar de casos assim significava dar certa visibilidade ao seu saber e prática (Antunes, 1999, p.35).

Para realizar o que nos propomos, investigamos três tipos de fontes principais. Estudamos textos médicos-psiquiátricos: de psiquiatras estrangeiros, no intuito de situar algumas idéias principais utilizadas no Brasil, ou ainda, para a melhor compreensão de certos temas ou questões do desenvolvimento histórico do saber psiquiátrico; e de psiquiatras, médicos-legistas e juristas brasileiros. Estes últimos textos subdividem-se em cinco tipos: “Manuais e Tratados de Psiquiatria, Psicopatologia Forense e Medicina Legal”4; textos escritos por psiquiatras e/ou médicos legistas, publicados em periódicos especializados 5; livros e outros tipos de escrito; algumas atas de reuniões da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, nas quais, seus membros discutiam casos, diagnósticos etc; e algumas teses, defendidas na F.M.R.J, que versavam sobre temas pertinentes às questões surgidas com a investigação dos casos.

O segundo tipo de fonte médica, com a qual trabalhamos, é a documentação clínica propriamente dita. No primeiro caso estudado, a nossa fonte principal de análise foi um parecer médico-legal psiquiátrico assinado por médicos legistas da polícia. No geral, estes pareceres são mais ricos que as “fichas de observação de pacientes”, sobre as quais falaremos em seguida. Como afirma Huertas (2001, p.27), os “informes periciais” são fontes de “primeira ordem” para a história da psiquiatria, da medicina legal, da psiquiatria forense e da criminologia.

Por fim, nos dois outros casos estudados, investigamos livros de observações de pacientes de instituições psiquiátricas. Estas fontes permitem uma visualização mais de perto da operação da prática médica, da relação teoria-prática e das polêmicas e incongruências intrínsecas a elas. São registros muito ricos em informações históricas, a respeito do conhecimento científico e sua ação concreta, mas também sobre os pacientes6. Segundo Cláudio Bertolli (1996), dos prontuários, por um lado, se apreende observações médicas naquilo em que se atrelam a valores do seu tempo e lugar social, construindo

4 Estes “Manuais” eram provavelmente muito utilizados, principalmente por estudantes e juristas, tendo grande importância na formação de novos quadros de médicos psiquiatras e legistas. Como chama atenção Ferla (2009, p.84), manuais dessa natureza são “espaços oficializadores da teoria científica”.

5 O periódico no qual mais buscamos estes tipos de escritos foram os Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, periódico da Sociedade de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, fundada por Juliano Moreira e Afrânio Peixoto em 1905.

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18 “pacientes padrões”, “estereótipos”, “estigmas” e assim as próprias “entidades mórbidas”. Por outro, destes testemunhos vêm à tona a fala dos pacientes, obviamente filtradas e traduzidas pelo saber médico. Já para Facchinetti (2004, p. 233; 2008), estes documentos clínicos permitem visualizar os “processos diagnósticos e terapêuticos” das instituições psiquiátricas. A partir deles, é possível acompanhar transformações conceituais 7. Enfim, uma documentação que tende a mostrar, nas situações concretas, como se “produzem os diferentes tipos de controle” (Facchinetti, 2004, p. 296), as marcas identitárias e os rótulos patológicos (idem, p.305).

Dividimos a dissertação em quatro capítulos. No primeiro, situamos aquelas que foram, no nosso entendimento, as principais instituições da psiquiatria, no Rio de Janeiro, do início do século, mencionadas no início dessa introdução. Para tanto, recorremos a uma documentação composta por textos médicos, notícias de jornais e documentação burocrática: relatórios anuais, legislação pertinente, ofícios, avisos e despachos, trocados entre os responsáveis por estas instituições. A discussão que subjaz este capítulo é aquela que diz respeito ao hiperdimensionamento destas instituições como “instituições totais” (Goffman, 1974), altamente racionalizadas e com forte “êxito político”, no que concerne ao seu papel nas engrenagens do controle social (Huertas, 2009, p.28). Tentamos problematizar esta perspectiva, que acaba por transformar os discursos em realidades concretas, procurando perceber suas dificuldades estruturais, conflitos internos, dilemas cotidianos, além de resistências e críticas a partir de outros atores etc8.

No segundo capítulo, narramos e analisamos o caso de Carletto, consagrado na memória como um dos mais famosos criminosos da história do Brasil republicano (Bretas, 2006; Freire, 1990). Carletto foi acusado e condenado pelo célebre “Crime da Rua da Carioca”, no qual foram assassinados dois italianos: Paulino e Carluccio. Procuramos avaliar e discutir, primeiramente, a repercussão social desse crime, com a entrada em cena de Carletto como principal suspeito, a atuação da polícia e da imprensa9, bem como, a imagem de Carletto, construída pela imprensa e pela literatura. Em seguida, tomamos o caso de Carletto como porta de entrada privilegiada para analisar a prática psiquiátrica, posta em jogo, por médicos legistas da polícia, focando os conhecimentos psiquiátricos e

7 De igual maneira, Huertas (2001, p.14), acredita que estas “histórias clínicas” são espaço para a identificação de transformações no âmbito do saber, revelando passagem de referenciais, bem como as orientações e os “marcos teóricos metodológicos”.

8 Cunha, 1986; Engel, 2001a, 2003; Wadi, 2002; Jabert, 2005; Oda e Dalgalarrondo, 2005; Zulawski, 2004; Rivera-Garza, 2001.

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19 injunções morais que o perpassaram e a questão que viria fortemente à tona, no âmbito deste saber com o caso de Carletto: a questão da simulação de loucura.

No terceiro capítulo, narramos e analisamos os casos de Alfredo e de Edson 10, indivíduos, de origem social popular, que se enredaram nas malhas da psiquiatria, ao confessarem-se culpados de crimes de homicídio. Depois de narrarmos seus crimes e aspectos importantes de suas experiências, procuramos, analisar a prática psiquiátrica vigente no Pavilhão de Observações (ou Instituto de Neuropatologia) e no Hospício Nacional de Alienados (principalmente na sua “Seção Lombroso”), assim como seus principais condicionamentos sócio-culturais. No quarto e último capítulo, primeiro, debruçamo-nos, numa perspectiva mais conceitual, sobre os diagnósticos psiquiátricos acionados nos casos de Carletto e de Alfredo: aprofundamos a análise sobre a questão da simulação de loucura e discutimos a epilepsia, a demência precoce, a psicose sistematizada progressiva e a parafrênia. Abordamos, do caso de Edson, a questão do alcoolismo, da degeneração e do crime passional, comentando por último sobre o julgamento deste.

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20

Capítulo I

Espaços e instituições da psiquiatria, no Rio de Janeiro,

do início do século XX

Nesse primeiro capítulo estudaremos os principais espaços e instituições da psiquiatria no Rio de Janeiro no alvorecer do século XX 11. Primeiro analisaremos a atuação da polícia na questão da loucura na cidade com ênfase no seu Serviço Médico-Legal, onde os suspeitos de alienação mental que vagavam nas ruas e/ou eram delatados como tais iam ter seu primeiro exame mental; foram médicos deste setor da polícia que fizeram o exame mental de Carletto, caso analisado no capítulo II. Em seguida, estudamos parte da história do Pavilhão de Observações do Hospício Nacional de Alienados (ou Pavilhão de Admissão ou Instituto de Neuropatologia), por onde passaram todos os suspeitos de alienação trazidos ao Hospício Nacional de Alienados pela polícia, com ênfase na atuação de Henrique Roxo chefe do P.O na maior parte do início do século e nas vivências de Lima Barreto, nesse espaço.

Depois, descreveremos e analisaremos algumas questões relevantes da história institucional e cotidiana do principal lócus de conhecimentos e assistência psiquiátricos da cidade na Primeira República: o Hospício Nacional de Alienados. Por último, lançamos luz sobre alguns aspectos importantes da história da “Seção Lombroso” do H.N.A e do início do funcionamento do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, locais reservados aos “loucos delinqüentes”, por onde passaram os sujeitos cuja trajetória investigamos no capítulo III. No decorrer desse capítulo, os testemunhos do escritor Lima Barreto sobre estas instituições, produzidos de um lugar de fala específico e diferenciado, serão sempre cruzados e contrastados com os outros testemunhos utilizados como fontes de acesso à história destas instituições.

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21

I.1. A Polícia e o Serviço Médico-Legal.

A Polícia do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX colocava firmemente em prática o princípio da “suspeição generalizada” (Chalhoub, 2001), como com muita acuidade percebeu Lima Barreto:

“A polícia, não sei como e porque, adquiriu a mania das generalizações, e as mais infantis (...) todo o cidadão de cor há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transportáveis em carros blindados” (Barreto, 1986, p.49).

E foi no carro-forte da polícia, uma “carriola pesadona que nem uma nau antiga”, “almanjarra de ferro e grades”, na qual vai o preso numa “espécie de solitária pouco mais larga que a largura de um homem, cercado de ferros por todos os lados”, sem ter onde segurar e que “bate com o corpo em todos os sentidos, de encontro às paredes de ferro” correndo o risco de “partir as costelas” (idem, p.50), que o homem Lima Barreto chegou ao Hospício Nacional de Alienados. Assim como ele, muitos outros “loucos” passaram pelas mãos da polícia e seus carros-fortes, no início do século XX. Era nessa “masmorra ambulante, pior do que masmorra, do que solitária”, neste “carro feroz” onde é “tudo ferro” e “se vem sentado, imóvel (...) aos trancos e barrancos de seu respeitável peso e do calçamento das vias públicas” (Barreto, 1981, p.137) 12, que a policia fazia, muitas vezes, o transporte dos “loucos” recolhidos na rua para o Hospício e outros estabelecimentos da Assistência a Alienados do Distrito Federal 13.

A polícia, no início do século XX, estava plenamente vinculada à questão da loucura na cidade (Engel, 2001a; De Paula, 2005) 14. Com um papel de “garantidora da ordem pública”, esta instituição ligava-se à questão da “assistência pública”, entendendo-se aí a remoção e encaminhamento devido a doentes, alienados ou doentes de uma forma geral, obrigação que já era muito questionada, no início do século XX, pelos próprios Chefes de Polícia (Bretas, 1997, p.64-65) 15. Segundo Bretas (idem, p.99), a atuação

12 Conto de Lima Barreto (Barreto, 1981), “Como o Homem Chegou” (na coletânea Nova Califórnia), escrito pelo literato logo que saiu da sua primeira internação, em 1914 (Engel, 2003).

13 A partir de novembro de 1907, quem passou a fazer o transporte dos alienados foi um setor dentro da polícia, a “Assistência Policial”, em “carros especiais” (Instruções para o Serviço da Assistência Policial, Boletim Policial, nº 7, novembro de 1907, p.3).

14 Para informações da relação da polícia com a questão da alienação, no Rio Grande do Sul, ver Wadi (2002); no Espírito Santo, Jabert (2005) e no México, Rivera-Garza (2001).

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22 “assistencial” era “uma das principais tarefas desempenhadas pela polícia”, embora isso tenha decaído muito no período estudado.

Investigando a seção “Notícias Policiais” (entre 1907 e 1920), do periódico da polícia, Boletim Policial 16, percebemos que por um trimestre, o número de indivíduos, enviados pela polícia ao Pavilhão de Observações do Hospício Nacional de Alienados, variava de 180 a 300 indivíduos. Por mês, o número variava de 65 a 108 indivíduos. Na maioria das vezes, a polícia era chamada pelas pessoas para conduzir os “loucos” para a Repartição Central, onde aqueles passavam por exames no Serviço Médico-Legal. Eram casos de “ação imediata”, rapidamente saiam das mãos da polícia (Bretas, 1997, p.128), indo para a Assistência a Alienados (P.O e H.N.A).

Na lida com os “loucos” nas ruas, ao que tudo indica, as autoridade policias superiores tentavam prescrever para os policiais, em atividade nas ruas, uma conduta mais branda. Muitas idéias práticas de policiamento são sugeridas nas páginas do Boletim Policial. No 3º número do periódico, de julho de 1907, propunham-se diretrizes para o “cuidado com os loucos”:

Os loucos mesmo furiosos irritam-se mais quando são maltratados: assim, convém ser moderado com eles, usando de calma e prudência e

conduzindo-os com jeito e humanidade. (Boletim Policial, Ano 1, 3,

julho de 1907, p.21)

A atuação da polícia, no cotidiano da cidade, era significativa, como aparato importante no combate a “desordem” e aos “maus costumes”. E a loucura era vista como uma grande “desordem”. Por exemplo, no ano de 1920, quando da visita do rei e da rainha da Bélgica à cidade, a polícia fez uma forte campanha de intervenção e moralização, “efetuando prisões e expulsando as prostitutas das pensões no centro da cidade” (Caulfied, 2001, p.130). O Chefe de Polícia dava ordem de prisão para prostitutas pobres, removendo-as para áreas mais marginais e com forte controle policial, como o Mangue na Cidade Nova (idem, p.136). A loucura, assim como a prostituição, era algo que deveria ser reprimido e excluído do espaço urbano.

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23 Porém, o que mais interessa aos propósitos deste estudo, é o que ocorria dentro da polícia, onde também se praticava a psiquiatria como uma sub-área da Medicina Legal. Em 1856, o decreto 1740 criou “junto a Secretaria de Polícia da Corte um seção de assessoria médica”, com dois médicos efetivos (Peixoto, 1914, p.540) 17. Em junho de 1890, o número de médicos legistas da polícia aumentou para seis; entretanto, é em abril de 1900, pelo decreto 3640, pelo qual se reorganiza o serviço policial da cidade, que o nome da seção muda para “Gabinete Médico-Legal” (Bretas, 1997), sendo, a partir de então, incumbência dos médicos legistas da polícia a função de examinar “indivíduos suspeitos de alienação mental, apreendidos na via pública ou detidos nas prisões, antes de serem recolhidos ao H.N.A” (Peixoto, 1914, p.541) 18.

Ainda segundo Peixoto (1914), em meados da década de 1910 professor de medicina legal da F.M.R.J e diretor do Serviço Médico-Legal da Polícia, várias críticas pipocavam sobre os serviços médico-legais da polícia, quando, ele próprio consegue a aprovação do decreto 4864, de 15 de junho de 1903. Segundo o Chefe de Polícia na época, A. Cardoso de Castro, o regulamento do Serviço Médico-Legal foi feito por Afrânio Peixoto com base nas mais “adiantadas lições de ciência moderna” (Relatório do Serviço Médico-Legal, 1904-1905, p.152). Com o decreto 6440 de 30 de março de 1907, criou-se o Serviço Médico-Legal da Polícia, organizado e dirigido pelo próprio Peixoto. Segundo Bretas (1997, p.67), este Serviço era um “órgão autônomo na Secretaria de Polícia”, que os poderes públicos, a imprensa e a intelectualidade interessada em questões científicas, atribuíam muita importância. Mesmo autônomo, o Serviço, contudo, estava “diretamente ligado ao chefe de polícia” (Paula, 2006, p.102). Nesse sentido, vale ressaltar, seguindo Bretas (1997, p.43-44), que o governo republicano e boa parte da intelectualidade da capital deram ênfase na reforma e modernização da instituição policial 19.

Com o decreto de 1907, o número de peritos médicos foi aumentado para doze, permitindo uma maior especialização dos mesmos. Esse número já era considerado insuficiente, em 1910, pelo Chefe de Polícia (Relatório do Serviço Policial, 1910-1911, p.72) por conta da demanda de exames diários. Os médicos do Serviço Médico-Legal da Polícia da Capital faziam, então, na Repartição Central da Polícia (Bretas, 1997, p.128),

17 Recorremos, aqui, ao histórico que Afrânio Peixoto faz da medicina legal no Brasil no seu “Elementos de Medicina Legal” (Peixoto, 1914), e num texto seu publicado no periódico da polícia, o Boletim Policial, na sua edição inaugural, intitulado “Serviços Médico-Legais” (Peixoto, 1907).

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24 como já estabelecido desde 1900, os exames prévios em indivíduos suspeitos de alienação recolhidos, pela polícia nas ruas. Peixoto (1907, p.10) esclarece que os moldes do exame médico-legal de alienados, na polícia do Rio de Janeiro, foram baseados no regulamento português. Todavia, pouco sabemos sobre as condições em que eram realizados tais exames; podemos supor que eles eram extremamente rápidos e sucintos; isto porque, no geral, se acreditarmos nas palavras do psiquiatra Henrique Roxo (Roxo, 1921), as guias que vinham da polícia para o P.O identificando os pacientes, e dando as primeiras informações sobre suas moléstias, eram bastante “omissas”.

Uma Comissão de Inquérito constituída pelo M.J.N.I, em 1902, para avaliar as condições da Assistência a Alienados (da qual falaremos de forma mais detalhada na parte seguinte), constatava a falta destas guias, ou quando existiam, eram parcas em informações. Segundo Roxo (1921, p.59), a guia policial nada esclarecia, quando era sequer preenchida: “O Comissário 20 de Polícia recebe o doente em desatinos, de nada mais indaga e o remete com uma guia omissa para o Hospício” (grifos do autor). A pesquisa que fizemos nos Livros de Observação do P.O corrobora esta afirmativa; nem sempre encontramos referências a estas guias nas observações 21.

Aqueles indivíduos, cujo resultado do exame de alienação era positivo na polícia, iam encaminhados para mais um exame no Pavilhão de Observações do Hospício Nacional de Alienados. Só depois da confirmação da alienação, nesta instituição, é que ingressariam no Hospício, em alguma de suas seções, sobretudo as “seções de indigentes” – “Seção Pinel”, para os homens, e “Seção Morel”, para as mulheres.Um informe constante no periódico da polícia, o Boletim Policial, de dezembro de 1907, indicava que o Serviço Médico-Legal

Compõe-se atualmente de uma parte exercida nas delegacias (corpos de delito, exame de sanidade e validez) (...) e de outra parte, na Repartição Central, à Rua do Lavradio, onde vão ter os loucos indigentes do Distrito

Federal que, depois do exame, são enviados ao H.N.A.(Boletim Policial,

Ano 1, nº8, dezembro de 1907, p.10)

Este Serviço era um importante lócus da prática em medicina legal da cidade 22. A prática da Medicina Legal realizada no Serviço Médico-Legal, aplicada à questão da

20 Segundo Marcos Bretas (1997, p.22, 31 e 32), os Comissários eram funcionários da polícia de nível médio e que faziam plantões de 24 horas nas delegacias. Tal cargo entrou em vigor com a reforma de 1907. Aspecto de uma iniciativa de profissionalização da polícia, os Comissários constituíam uma parcela intermediária dos seus quadros.

21 Para um modelo dessas guias, ver os Anexos da dissertação de mestrado de Paula (2006).

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25 alienação mental, era crucial para o cumprimento do artigo 27º e 29º do Código Penal Brasileiro de 1890 e 91º do Código Civil23. A autoridade do perito, neste assunto, deveria ser inquestionável, na medida em que somente ele poderia dar um diagnóstico que orientasse a medida sócio-jurídica.

Como esclarece o próprio Peixoto (1914, p.132), um exame médico-legal de alienação mental pode ser decorrente de um “motivo civil-criminal”, sempre pedido por autoridade (e no qual os peritos devem escrever um relatório), com o intuito de verificar responsabilidade e capacidade de um sujeito – como foi o caso do italiano Carletto, que será analisado no capítulo II. Ou pode decorrer de um “motivo de ordem administrativa”, mais comum, “para fazer internar em estabelecimentos especiais os indivíduos doentes” (idem) e que é incumbência da polícia – como foi o caso de Alfredo e Edson, conteúdo do capítulo III.

Os peritos da polícia teriam um papel fundamental quando estabeleciam seus diagnósticos: poderiam evitar uma “seqüestração indevida”. Nesse ponto, o decreto 6440 de 30 de março de 1907 passou a reger o exame médico-legal dos alienados no Serviço Policial do Distrito Federal. O seu artigo 90º estabelecia todos os aspectos que deveriam estar contidos no exame na polícia: autoridade que pediu o exame, questões judiciais, história do caso (dados de identificação do indivíduo), anamnese (antecedentes familiares, vida pregressa), exame direto e somatório. No exame direto o médico deveria atentar para vários aspectos. Tais aspectos, na sua multiplicidade, denotavam a influência de várias perspectivas dos pensamentos médico, psiquiátrico e antropológico ocidental do período.

Primeiramente, deveria se atentar para aspectos gerais: atitude, apresentação, fisionomia, expressão, mímica falada e atuada. Em seguida, a aspectos somáticos: altura, corpulência, vícios de conformação, forma da cabeça, deformações, assimetrias na face e no corpo, temores, cicatrizes, prognatismo, olhos, língua, boca, nariz, sensibilidade, motilidade, reflexo, fala, escrita, tatuagens, problemas em qualquer órgão, etc. Por fim, vinha o exame mental, o qual deveria se caracterizar por interrogatório e observações

Edler, 2001, p. 66). O ensino de Medicina Legal se dava exclusivamente na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e não no Serviço Policial como queria Peixoto (1914, p.546). Para o catedrático de Medicina-Legal da F.M.R.J, Agostinho de Souza Lima, no seu “Tratado de Medicina-Medicina-Legal”, a medicina-legal contribui para a “manutenção da harmonia social”, ajudando na “garantia dos direitos e deveres comuns dos cidadãos” (Lima, 1904, p.6). Ela representaria, para Lima, uma “invasão” necessária e legítima da medicina no âmbito do direito.

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26 atentas a todos os atos e palavras do suspeito de alienação: noção de tempo e espaço, “confusão de espírito”, “alheiamento do mundo exterior”, humor, excitação, depressão, angústia, associação de idéias, delírios e alucinações (seus conteúdos), mudanças de personalidade, atenção, inteligência, “volubilidade”, “incoordenação de idéias”, “correspondência entre idéias atuais e educação recebida”, memória, nutrição, sono, auto-intoxicações, etc. O somatório sintetizaria aquilo que denuncia a doença, um juízo sobre a presença ou não de alienação, “prejulgamento, se possível, do estado no momento do crime” e, por último, uma “dedução diagnóstica”, firmando a “forma nosológica” da qual padeceria o indivíduo (Decreto 6440 de 30 de março, de 1907).

Segundo Bretas, nas estatísticas oficiais da polícia (constantes no Anuário Estatístico da Polícia da Capital Federal), a média era de “mais de três pessoas recolhidas nas ruas da cidade diariamente para exame de sanidade mental”, sendo sempre mais de 85% desses indivíduos considerados alienados. Na investigação que fizemos dos Relatórios do Serviço Policial de 1901 a 1922, constantes nos relatórios anuais enviados pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores ao Presidente da República, percebemos um significativo aumento no número de exames de alienação mental feitos na polícia. Se em 1901 foram feitos 640 exames, em 1903 já eram 831 e, em 1906, 891. Em meados da década de 1910, em 1914, por exemplo, o número de exames foi de 1351, chegando em 1922 a 1600 exames. Corroborando isso, no Relatório da Assistência a Alienados de 1912-1913 (Relatório da Assistência, 1912-1913, p.64), Juliano Moreira, diretor desta instituição por praticamente todo o período estudado, informava que o Chefe de Polícia pedia desesperadamente o fim do envio de “novos doentes” das diversas delegacias para a central de polícia, que, segundo ele, “não dispunha de local onde alojar” tantos “insanos”.

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I.2. O Pavilhão de Observações 24

Ao chegar ao Pavilhão de Observações do H.N.A, Vicente Mascarenhas, personagem do romance inacabado de Lima Barreto, “O Cemitério dos Vivos”, é despido “à vista de todos”, recebe uma roupa da “casa”, uma breve refeição e é encaminhado para o “quarto forte”, que compartilhou com quatro indivíduos (Barreto, 1986, p.50). Na manhã seguinte, a primeira tarefa foi o trabalho de limpeza do “quarto-forte”, “calçado com uns chinelos encardidos que haviam sido de outros, com umas calças pelos tornozelos, em mangas de camisas” (idem, p.52). Em seguida, passa novamente pela vergonha do nu coletivo no banho 25.

No depoimento de Lima Barreto, este Pavilhão de Observações era uma

“(...) dependência do hospício a que vão ter os doentes enviados pela polícia, os tidos e havidos por miseráveis e indigentes, antes de serem

definitivamente internados (...) com uma organização sui generis, [este

pavilhão] depende do hospício, da polícia e da Faculdade de Medicina, cujo lente de Psiquiatria é seu diretor, sem nenhuma dependência ou subordinação ao hospício” (Barreto, 1986, p. 49 e 79).

O caráter do P.O. não passaria despercebido da ótica arguta de Barreto, como um espaço que conjuga três instituições – a Polícia, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e o H.N.A -, mas que, ao mesmo tempo, possuía certa autonomia. Para o literato, uma vez dando entrada nele muito poucos escapavam, já que seus médicos tinham “horror à responsabilidade” de conceder alta. De toda a instituição, foi o lugar que provocou os maiores horrores ao escritor. Por que? Tentaremos responder esta questão no final dessa parte.

O surgimento do Pavilhão, no início da década de 1890, pode ser inscrito no processo de reformas pelo qual passava a Assistência a Alienados 26, iniciado a partir da proclamação de república, mas também nas mudanças que se operavam na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O decreto 7247 de 19 de abril de 1879 aumentou o número de disciplinas da F.M.R.J para 26 (Ferreira, Fróis e Edler, 2001, p. 68). Dentre as novas

24 Esta parte baseia-se em um trabalho apresentado em co-autoria no primeiro semestre do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação: Munoz, P.F de e Dias, A.A. Teixeira. “Suspeitos em Observação”: o Pavilhão de Observação do Hospício Nacional de Alienados (1894-1938) in: XIII Encontro Regional de História ANPUH-RIO, Identidades. Seropédica. 2008.

25 Ver a descrição destes rituais de “despersonificação” feitas por Goffman (1974) e Ignatieff (1987, pp.185-188).

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28 cadeiras criadas encontrava-se a de Clínica Psiquiátrica e Moléstias Nervosas, incluída na “Seção de Ciências Médicas” 27. Tal reforma veio no bojo de um processo de afirmação da perspectiva da especialização e do ensino prático da Medicina. O ensino médico tinha que agregar, para os propositores desta nova perspectiva, o princípio da especialização, privilegiando os novos objetos médicos desenvolvidos ao longo do século XIX – como o mental; ao mesmo tempo, precisava de espaços para o exercício prático dessa especialidade. Este é um momento no qual se estabelece um “novo consenso” acerca da importância de se “reunir em uma instituição as atividades de ensino e pesquisa” (idem, p.74). Nesse sentido, o significado do Pavilhão pode ser compreendido. Ele é a materialização do princípio do ensino prático no âmbito de uma clínica nova e particular, a psiquiatria. Seria, aos moldes dos pavilhões de admissões franceses, como porta de entrada de um grande hospício, o melhor lugar possível para o exercício prático de uma nova especialidade.

Não se pode esquecer também a atuação de Teixeira Brandão para a constituição desse espaço. Como lente de Clínica Psiquiátrica da F.M.R.J e Diretor da Assistência a Alienados, como passou a ser no início da década de 1890, nada mais simples do que tentar articular as duas instituições: a reflexão teórica da F.M.R.J com a prática asilar do H.N.A. Foi Brandão quem concebeu uma “seção de observação preliminar dos doentes” quando em 1886 tornou-se Diretor do ainda Hospício de Pedro II: a grande leva de doentes e casos interessantes serviria ao ensino de psiquiatria na Faculdade (Engel, 2001a, p. 135).

O P.O. do Hospício Nacional de Alienados foi criado com o art. 26 do Decreto nº 896, de 29 de Junho de 1892: “No Hospício Nacional [...] haverá um pavilhão destinado aos doentes em observação, pelo qual transitarão todos os doentes gratuitos que tenham de ser admitidos”. Segundo o art. 28º, do mesmo decreto, as admissões dos indigentes seriam realizadas mediante a “ordem do Ministro do Interior ou de requisição do Chefe de Polícia da Capital Federal”. Com o decreto 1159, de 7 de outubro de 1893 (artigo 2º), o P.O, que contudo ainda não existia, tornava-se oficialmente parte do Assistência a Alienados do Distrito Federal.

As requisições para o ingresso de pacientes, por sua vez, deveriam conter documentos que justificassem a loucura. Porém, a regulamentação definitiva das requisições policiais só ocorreria, como vimos na parte anterior, em 1907, com o decreto

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29 6.440, de 30 de março, quando os médicos legistas da polícia fariam um exame preliminar e, somente, depois os doentes seriam enviados ao hospício com uma guia policial. Na prática, contudo, a questão era mais complicada.

Em uma ata de reunião da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, do dia 27 de maio de 1915, ao ser apresentado o caso de P.L.M, branca, brasileira, solteira, 34 anos, e com entrada no Pavilhão de Observações no dia 12 de maio de 1915, diagnosticada com “delírio de imaginação”, publica-se o conteúdo de sua guia policial na íntegra:

“Mandada a exame por sofrer das faculdades mentais com mania de grandeza, dizendo-se detetive e pertencer, há oito meses, ao corpo de segurança e, ao mesmo tempo, trabalhando para o Ministério do Exterior onde diz ter descoberto grandes desfalques, assim como em outras repartições públicas. É vista constantemente pelas ruas, sempre apressada, excitada, ouvindo, segundo diz, alusões à sua pessoa e a pessoas de sua família. Convém ser observada no H.N.A” (Atas, S.B.P.N.M.L, sessão de 27 de maio de 1915, p.269)

Percebemos que esta guia, embora não completamente omissa, como Roxo dizia ser, informava bem pouco sobre o paciente, parecendo muitas das informações colhidas não de um exame direto. Depois de ingressos no P.O, os suspeitos de alienação mental deveriam ficar provisoriamente alojados; a admissão no H.N.A só ocorria depois de serem observados, segundo o decreto 3244 (artigo 27, de março de 1899), “tantos dias quanto necessário para o diagnóstico”, quando seria apresentado um parecer ao diretor do Hospício Nacional sobre o estado mental dos enfermos. Constatada a alienação mental, o doente seria matriculado no Hospício Nacional.

O pavilhão foi inaugurado em maio de 1894, na parte central do complexo do Hospício Nacional de Alienados. Os primeiros pacientes deram entrada somente na segunda quinzena de maio, quando a instituição passou a funcionar, com um anfiteatro para aulas, um local de residência para estudantes e duas seções para os pacientes, construídas paralelamente ao prédio central da administração, denominadas Magnan para mulheres e Meynert para Homens 28.

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30 O decreto 2467 de 19 de fevereiro de 1897 estabelecia a exclusividade do espaço para as aulas da clínica psiquiátrica e moléstias nervosas (artigo 41). Colocava também a subordinação “provisória” do serviço econômico da instituição a “cargo do diretor do H.N.A” (artigo 42) 29 e a incorporação do lente de psiquiatria ao pessoal da Assistência, garantindo a este os proventos dos dois cargos . Mesmo com essa subordinação, o P.O. era em grande medida autônomo, autonomia que saltou aos olhos de Lima Barreto. O decreto 3244 de 29 de março de 1899 (no seu Capítulo 4 – Do Pavilhão de Observações) formalizou o lente como médico efetivo do H.N.A.

Assim, o Pavilhão conjugaria a dupla função de triagem dos pacientes e de ensino. Como mostra Venâncio (2003), as aulas de formação para os candidatos à especialidade psiquiátrica eram ministradas no Pavilhão para alunos do sexto ano da Faculdade de Medicina. A disciplina, contudo, era muito pouco freqüentada. O psiquiatra Carlos Penafiel informava em texto de 1913 que o ensino de psiquiatria era facultativo e muito pouco freqüentado (Penafiel, 1913, p.166). Acompanhando os relatórios da F.M.R.J nas duas primeiras décadas do século, percebemos exatamente isso 30.

Teixeira Brandão assumiu as funções enquanto diretor do Pavilhão de Observação já no seu início, saindo de 1897 até 1899, sendo substituído, interinamente, por Márcio Néry. O seu retorno à direção do Pavilhão de Observação foi marcado por novas ausências, quando Teixeira Brandão foi eleito deputado federal. Brandão foi substituído por Henrique Roxo, entre 1904 e 1907 e, novamente, entre 1911 e 1921 , quando Roxo passou a ocupar a Cadeira de Moléstias Mentais definitivamente, após a morte de Teixeira Brandão (Venâncio, 2003).

Ao longo dos anos, o Pavilhão de Observação ganhou novas dependências. Em 1898, foi autorizada a instalação de um gabinete eletro-terápico, já em funcionamento em 1902 (Relatório da Assistência, 1902, p.252). No mesmo ano funcionavam na instituição um Gabinete Histo-químico, um “quarto-forte”, um banheiro para “banhos quentes” e uma enfermaria (idem). No ano de 1904 possuía uma sala para hidroterapia, salas de aula, dois pátios e anexos destinados à prática da ginástica e da balneoterapia (Relatório da Assistência, 1905, p.57). Em 1908 foi cumprida a determinação do art. 3º do decreto 5125 de 1904, com a criação de um ambulatório para consultas externas (Relatório da

29 Vale ressaltar que até 1911 há sempre a referência ao estabelecimento futuro de instruções especiais e autônomas para reger o serviço administrativo e econômico do P.O, tirando-o da subordinação financeira do H.N.A. Contudo, não encontramos nenhum regimento próprio do P.O.

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31 Assistência, 1908, p.131). Essas consultas seriam realizadas, na presença dos alunos, pelo lente da clínica psiquiátrica nos dias designados pelo programa da Faculdade de Medicina (idem). Em 1911, por determinação do art. 45 do decreto 8834, foi criado o Instituto de Neuropatologia, desmembrando o P.O em três unidades: o pavilhão de admissão, o de doenças nervosas (onde ficariam internados os doentes que “tiverem lesão do aparelho nervoso” – artigo 45) e do de psicologia experimental (Relatório da Assistência, 1912-1913, p. 64).

Em 1927, o Instituto de Neuropatologia foi transformado em Instituto de Psicopatologia “Teixeira Brandão”, composto pelo pavilhão de admissão, com suas duas seções, Meynert e Magnan, e pelo setor de moléstias nervosas “Torres Homem” e o do Pavilhão “Henrique Roxo” (Relatório da Assistência, 1928, p.237). Quando o H.N.A. foi visitado pela Comissão de Inquérito sobre a Assistência a Alienados no início do ano de 1903, o P.O. foi considerado pelos seus relatores como um dos melhores espaços do Hospício, sendo caracterizado pela “ordem e pelo asseio” (Relatório da Comissão de Inquérito, 1903, p.12). Acompanhando os relatórios da Assistência relativos às décadas de 1910 e 1920 identificamos, na voz de Juliano Moreira, Diretor da Assistência e do H.N.A, o refrão da superlotação do P.O. Juliano Moreira afirmava em 1923, acerca do P.O:

Construído que foi há cerca de três décadas, necessita de ser ampliado, pois não comporta o crescente número de pacientes que nos são diariamente enviados pelo Gabinete Médico-Legal. Para atender as necessidades do ensino há por vezes vantagem em reter alguns doentes, além do prazo de quinze dias. Atualmente não é isso possível, porque as novas remessas de pacientes obrigam a enviar os outros para o hospital (Relatório da Assistência, 1923, p.96)31

Juliano Moreira encerra pedindo ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores a “modernização do Pavilhão”, que chamou de um “ato de verdadeira benemerência” (idem). Ao que tudo indica, porém, nada ou muito pouco foi feito nesse sentido.

Na década de 1930 o P.O passou a ter suas seções englobadas no Instituto de Psicopatologia. Como catedrático de Clínica Psiquiátrica, Henrique Roxo também ocupava a direção do Instituto – acumulação de cargos regulamentada em 27 de agosto de 1919 pelo Supremo Tribunal (Roxo, 1942). No bojo do governo Vargas, com o decreto 24 de 29 de novembro de 1937, seguindo a determinação do art. 45º da Constituição de 37,

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32 foi vedada a acumulação de cargos públicos remunerados da União, dos Estados e dos Municípios (idem). Dessa forma, os dois cargos ocupados por Henrique Roxo passaram a ser inacumuláveis. Com isso, Roxo optou pela carreira acadêmica à frente da clínica psiquiátrica. Henrique Roxo diria em 1942:

“Compreendendo bem que não poderia dar aulas de Clínica, sem que tivesse os doentes, ofereceu-se para continuar a fazer o mesmo serviço, gratuitamente, sem proventos de qualquer espécie” (Roxo, 1942, p.5).

Um ano depois, o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (I.P.U.B) foi criado, pelo decreto lei 591 de 3 de agosto de 1938, que transferiu “para a Universidade do Brasil o Instituto de Psicopatologia do Serviço de Assistência a Psicopatas do Distrito Federal”, para “constituir o seu Instituto de Psiquiatria”, destinado ao ensino, ficando a sua direção a cargo do professor Catedrático da Clínica Psiquiátrica, Roxo. Segundo Venâncio (2003), o IPUB tinha os moldes do Instituto de Psiquiatria de Munique, criado pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin .

O acervo do Pavilhão de Observação, presente no I.P.U.B, não destruído pelo tempo e pelo descuido, é composto pelos Livros de Registro de entrada e saída de pacientes; por uma caderneta de fórmulas do Dr. Henrique Roxo e pelos Livros de Observação Clínica, no qual, geralmente, existem documentos anexos, tais como, notas de jornal, correspondências e exames diversos. São estes últimos que aqui interessam como a fonte mais rica de pesquisa, da prática e do saber psiquiátrico do Rio de Janeiro deste período. Os casos que serão analisados no capítulo 3 foram encontrados na pesquisa nestes livros.

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33 antropométricos, peso do paciente, exames anexados, forma do crânio, marcha da moléstia e tratamento, e data de saída.

Podemos ter uma razoável noção de como se davam os exames mentais no P.O a partir de alguns escritos daquele foi seu Diretor por mais tempo: Henrique Roxo (Roxo, 1921). Aquele que efetuava o exame, o próprio lente, algum assistente ou interno, que deveriam ser presença constante na instituição, deveria perguntar, num exame indireto, o porquê de ter vindo o suspeito de alienação ao hospício e quem o mandou, o que fazia da vida, etc. Os parentes, casos acompanhassem o suspeito, deveriam ser inquiridos sobre o histórico de doenças mentais na família, da presença de sífilis ou alcoolismo nos progenitores, de como foi a infância e a puberdade do suposto doente e o que ele vinha fazendo 32.

A investigação do doente deveria começar por um exame psicológico, de compreensão, por parte do médico ou interno, do pensamento do doente. Em seguida, um exame direto deveria ser realizado em duas partes, inspeção e interrogatório. A inspeção atentaria para a apresentação, o olhar, as roupas, desalinho, agitação motora, face, mímica e fala. No interrogatório, a observação recairia no conteúdo da narrativa do doente, na memória, presença de delírios, alucinações, problemas de percepção, afetividade e vontade, com perguntas sobre tudo que pudesse elucidar um diagnóstico, principalmente sobre o que ocorreu antes do internamento (Roxo, 1921, p.64).

Numa fase seguinte de investigação, viriam os “exames morfológicos”: observação do crânio sob vários ângulos; percussão craniana; observação das orelhas, olhos, narizes, dentes, tórax e membros; deformações raquíticas, presença de mamas em homens e ausência em mulheres; pouco pelos nos homens; ausência ou junção de membros ou polidactilia; anomalias nos órgãos genitais; presença de manchas (indicativas de sífilis) e cicatrizes. Tudo isso complementado por um exame médico detalhado para ver o funcionamento dos órgãos principais da economia orgânica e da sensibilidade, motilidade e reflexos. No sentido de tentar dar precisão e objetividade a psiquiatria, Roxo sugeria a análise da duração dos atos psíquicos dos alienados, a partir do “chonoscópio de Hipp”. Os atos psíquicos dariam informações importantes sobre o “pensamento e vontade”. Encerrando a investigação, encaminha-se o doente para exames laboratoriais: urina, sangue, líquido céfalo-raquiano e reação de Wassermann (para identificar a sífilis).

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34 Dentre os inumeráveis casos encontrados nos Livros de Observação de Pacientes do P.O, selecionamos um caso extraordinário no sentido de elucidar pontos de tensão nas relações do saber e da prática psiquiátrica com o mundo social circundante, sobretudo com pessoas e concepções de fora de seus lócus científicos. Com isso, priorizamos dar um exemplo do embate da psiquiatria com outras formas não biomédicas de entender a loucura. Tal opção inscreve-se numa perspectiva interpretativa mais ampla de buscar entender e dar espaço a “historia das práticas e concepções acerca da loucura produzidas e\ou vivenciadas fora do campo científico” (Engel, 2001 B, p. 126), cujo propósito é questionar o pressuposto construído e difundido pela própria ciência segundo o qual a “medicalização da loucura seria a única forma correta de se conceber e se lidar com a loucura” (idem). Além disso, outra face importante dessa proposta interpretativa é dar voz ao paciente e suas experiências de sofrimento e suas interações com os saberes e práticas cientificas (Cunha, 1986, Wadi, 2003, Engel, 2001) 33.

Para essa breve discussão foi selecionado o bem conhecido internamento de Lima Barreto 34. Na sua primeira entrada no HNA, em 18 de agosto de 1914, permaneceu dez dias no Pavilhão de Observação e mais de um mês e meio na “Seção Calmeil” (seção de pensionistas). Na segunda ocasião em que deu entrada no H.N.A, ficou só um dia no P.O., três dias na “Seção Pinel” (seção de “indigentes” do sexo masculino), indo em seguida, novamente, para a “Calmeil”, onde ficou pouco mais de um mês.

Internado duas vezes no HNA, e, portanto, passando duas vezes pelo Pavilhão de Observação (1914 e 1919), deixaria registradas as suas impressões, nada boas por sinal, do P.O. Junto com a “Seção Pinel”, e talvez até mais que ela, era para ela o pior lugar do hospício, onde o interno – entrando como indigente e pelas mãos da polícia – estava mais submetido à arbitrariedade médica. Versão que destoa bastante dos testemunhos deixados em documentos oficiais, que tendem a exaltar o Pavilhão.

Interessa, aqui, colocarmos lado a lado o escritor (em boa parte cético com relação à psiquiatria, suas idéias, métodos e instituições) e um dos mais eminentes psiquiatras

33Das investigações recentes que dão relevo à fala do internado, devemos destacar trabalho de Santos (2005) que dá conta de três narrativas (em espaços e épocas distintas) reveladoras de sensibilidade sobre a loucura, duas das quais de dentro do Hospício.

(35)

35 brasileiros do período, Henrique Roxo 35. Trata-se de um encontro, no qual cada um produziu uma analise sobre o outro: Roxo num lugar social hierarquicamente superior de médico perante um mero paciente; Barreto, embora literato conhecido, estaria destituído, como paciente psiquiátrico, de poder sobre si, em espaços onde imperaria:

“a manipulação dos corpos e da mente como se estes não manifestassem vontades próprias (...) o despojamento total dos direitos de cidadania e

humanidade”(Engel, 2003, p. 80).

Com a sua escrita, “uma escrita de si” (Santos, 2005), Barreto afirmou seu próprio discurso (Resende, 1993). Parafraseando um grande historiador brasileiro, trata-se aqui da história de um encontro entre um psiquiatra e um literato “louco” numa instituição na “encruzilhada de muitas histórias” (Chalhoub, 1996).

Roxo, nas suas observações clínicas relativas à primeira entrada de Lima Barreto no Pavilhão, feitas entre os dias 18 e 27 de agosto de 1914, como de costume, no campo Inspeção Geral das fichas de observação afirmou a existência no paciente de estigmas físicos de degeneração 36. Uniu essa informação à hereditariedade mórbida de Lima Barreto, com uma mãe que morreu de tuberculose e um pai vivo, mas neurastênico. A hereditariedade era colocada relativamente em xeque pelo personagem Vicente Mascarenhas, no “Cemitério dos Vivos”:

“Havia ali, por força, uma ilusão científica, um exagero, senão uma verdadeira imperfeição (...) Apela-se para a hereditariedade que tanto pode ser causa nestes como naqueles; e que, se ela fosse exercer tão despoticamente o seu poder, não haveria um só homem de juízo na terra.” (Barreto 1988, p.39, 69, 74).

O diagnóstico atribuído ao escritor por Roxo foi o de alcoolismo. Discutiremos este diagnóstico no capítulo IV, quando falarmos do caso de Edson.No momento, cabe dizer que Roxo era um entusiasta da Psiquiatria. No fim de sua carreira, proclamava a vitória da medicina sobre loucura, com a cura das diversas formas de doença mental (Roxo, 1942, pp.6-7). Exaltava os “avanços” nos tratamentos:

35 Mesmo mencionando abertamente o médico que observou Lima Barreto no Pavilhão não estamos infringindo a lei que rege pesquisas com documentação médica no Brasil. Isto porque a documentação médica relativa ao caso de Lima Barreto foi publicada por Francisco de Assis Barbosa, biógrafo de Lima Barreto (Barbosa, 2002). Barbosa publicou todas as observações clínicas sobre Lima, de Roxo e outros médicos do H.N.A.

(36)

36 “Insulinoterapia pelo método de Sakel, convulsoterapia pelo cardiazol (método de meduna), eletro-choque, piretoterapia, malarioterapia, vitaminoterapia, tratamento por extratos fluidos de plantas medicinais

brasileiras, psicoterapia, fisioterapia, etc”(idem)

Admirava o auxílio do Laboratório e de várias outras tecnologias médicas e principalmente, as pesquisas que, no seu entender, cada vez mais comprovavam

“(...) as alterações bioquímicas que nas psicopatias existem (...) solucionando problemas obscuros de química biológica, demonstrando quais as alterações anátomo ou histopatologicas existem nas doenças mentais” (idem, p. 9).

Lima Barreto, por outro lado, como o bom questionador, afirmava que “uma explicação da loucura não há”(Barreto, 1986, p. 8). Às categorizações e definições do alienismo, Lima Barreto contrapunha a imagem da loucura como um “mar insondável” (idem, p.19), um fenômeno humano extremamente vivo e plural - “ela se apresenta como as árvores, arbustos e lianas de uma floresta: é uma porção de coisas diferentes” (idem, p.57) - e de cujo conhecimento sólido a ciência atual estaria muito distante. Julgava ser a psiquiatria prepotente ao querer dizer saber tudo sobre algo dessa natureza. Não concebia, desta maneira, “uma explicação da loucura, mecânica, científica, atribuída à falta ou desarranjo de tal ou qual elemento ou órgão da nossa natureza” (idem, p.16). É uma reflexão que tocava no cerne da psiquiatria que se queria então, explicando a causa das doenças mentais por aspectos orgânicos.

Quanto à possibilidade de cura, esta seria ainda mais inatingível na instituição asilar. O hospício era para Lima Barreto um “cemitério de vivos”, uma “ilha na cidade”, um simples “meio através do qual a sociedade viabiliza uma atitude de isolamento e exclusão da loucura” (Engel, 2003). O “sequestro”, o isolamento e a exclusão nesta “sombria cidade de lunáticos” (idem) era uma reatualização “numa roupagem moderna, da reclusão dos tempos obscuros” (Engel, 2003), sem qualquer potencialidade terapêutica. E aqui chegamos à avaliação da dimensão mais importantes desta instituição: seu sentido de exclusão/reclusão de pessoas. A ciência pode se querer avançada, moderna, mas, para Lima Barreto, ainda “emprega o processo da Idade Média: a reclusão” (idem).

Creio ser importante transcrever, neste momento, parte da observação feita por Roxo na parte Comemorativos Pessoais e de Moléstias, onde analisava Lima Barreto:

(37)

37 media, moderna e contemporânea (...) Cita seus autores prediletos que são – Bossuet, Chateaubriand “católico elegante”, Balzac, Taine, Daudet;

diz que conhece um pouco de francês e de inglês. Com relação a estes

escritores fez comentários mais ou menos acertados; em suma é um individuo que tem algum conhecimento e inteligência para o meio em

que vive.” (grifo meu).

Roxo via Lima Barreto como alguém com “algum conhecimento” e “inteligência”. Como parece claro, Roxo demonstra todo o senso de superioridade que um médico, como ele e na sua posição, deveria colocar diante de um paciente em vias de internação. A “arrogância” de Roxo não passaria despercebida por Lima Barreto que, por ocasião de sua segunda internação, considerou Roxo, um

“(...) desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério – que mistério – que há na especialidade que professa” (Barreto, 1986, p.2).

Não foi a toa que Lima Barreto achou o P.O o pior lugar do Hospício. Roxo entendia que a ciência psiquiátrica deveria buscar precisão e objetividade. O saber psiquiátrico, para Roxo, “deveria ser construído em torno de seus próprios princípios e regras” (Paula, 2006, p.123). A prática psiquiátrica, seguindo um método indiciário 37, deveria buscar todo e qualquer sinal de doença mental, nos mais variados aspectos possíveis, no corpo e na fala. Assim, para o psiquiatra, a verdade estaria muito mais na “neurofisiologia”, nas “descobertas” da anatomia e histologia patológica, na “sinergias da funcções” orgânicas, nos esclarecimentos laboratoriais 38 , no “funcionamento das células nervosas” e na psicanálise (Roxo, 1919), do que em “doutrinas filosóficas controversas” ou numa “miscelânea de idéias metafísicas” (Roxo apud Paula, 2006, p.123; Roxo, 1921, pp.7, 8 e 11). A cientificidade da psiquiatria, para Roxo, residiria na junção da psicanálise (ou “psicoscopia”) com os ensinamentos da anatomia e da fisiologia (Roxo, 1921, p.10).

37 Segundo Foucault (2004), a psiquiatria, com Pinel, funda-se na tradição anátomo-patológica. Cabanis, um dos grandes representantes dessa tradição, em texto de fins do século XVIII, entendia que o conhecimento médico das patologias era necessariamente “indireto, indiciário”, já que “o corpo vivo era, por definição, inatingível” (Ginzburg, 1989, p.166).

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