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(Re)escrever a história (re)contar os fatos: a experiência em Diário da queda, de Michel Laub

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Academic year: 2020

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DOI: http://dx.doi.org/10.18226/19844921.v12.n27.04

(Re)escrever a história e (re)contar os fatos: a experiência em

Diário da queda, de Michel Laub

(Re)writing history, (re)telling the facts: experience in Diário da queda, by Michel Laub

Milena Alves Borba*

Alfeu Sparemberger**

Resumo

Este artigo analisa a tessitura da escrita do Diário da queda (2011), de Michel Laub, que articula o trabalho do narrador com a memória dos seus ascendentes. Eles, pai e avô, deixaram um diário/caderno como um legado. O narrador reinterpreta esse legado, juntamente com a sua memória individual, passada e presente. Assim, age como um arqueólogo do seu passado (Benjamin) para extrair uma verdade, uma experiência (Erfahrung), esculpindo seu próprio futuro. A compreensão do espaço da topografia arqueológica (ao lado da experiência extraída da memória dos ascendentes) é analisada por meio dos conceitos de trauma, memória e pós-memória. Verificou-se no diário do narrador, assim, uma redenção da ruína das memórias como maneira de redimir o passado.

Palavras-chave

Michel Laub. Diário da queda. Memória. Pós-memória. Experiência.

Abstract

This article analyzes the writing process of Diário da Queda (2011), by Michel Laub, which articulates the role of the narrator with the memory of his ascendants. The ascendants, father and grandfather, left a diary/notebook as a legacy. The narrator interprets this legacy, alongside his own individual memory, past and present. Thus, he acts like an archeologist of his past (Benjamin) to extract a truth, an experience (Erfahrung), sculpting his own future. The understanding of the archeological topography space (next to the experience extracted from the memory of the ascendants) is analyzed through concepts of trauma, memory and postmemory. It was found, in the diary of the narrator, redemption from the ruins of memory as a way to redeem the past.

Keywords

Michel Laub. Diário da queda. Memory. Postmemory. Experience.

* Universidade Federal de Pelotas (UFPel). ** Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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Introdução

Pensar em memória é pensar em marcas, impressões e inscrições, fixadas e justapostas no tempo e entre as pessoas. É também trazer o passado para o presente e vice-versa; é recordar e esquecer. Essa operação da memória é o nó da tessitura do Diário da queda (2011), de Michel Laub; é o procedimento da escrita do narrador do Diário, que está constituído pela memória do seu avô, ex-prisioneiro de Auschwitz, e pela pós-memória do seu pai, que “descreve a relação que a geração posterior àquela que testemunhou traumas culturais e coletivos carrega acerca da experiência daqueles que vieram antes” (HIRSCH, 2008, p. 106-107 apud SELIPRANDY, 2015, p. 124-125).Destas memórias resulta o torpor estrutural do diário do narrador-personagem criado por Laub. A memória de terceira geração desse narrador é a transmissão da memória do seu pai, que é constituída pela lembrança da memória do seu pai, avô do narrador, que foi prisioneiro da Shoah, e que não deixou testemunho sobre o que passou em Auschwitz.

Sobre essa incapacidade de verbalizar a experiência traumática, Dori Laub (1995, p. 65 apud SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 67) formula a ideia da “impossibilidade de narração”, pois, segundo o psiquiatra, quem esteve nos campos de concentração alemães não teria condições de afastar-se de um evento tão contaminante para poder gerar um testemunho lúcido e íntegro, uma vez que o próprio grau de violência impediria o testemunho acontecer. Assim, “[...] a impossibilidade da narração advém do ‘excesso’ de realidade com o qual os sobreviventes haviam se defrontado” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 79).

Essa impossibilidade de narração é transmitida pelo avô do narrador-personagem ao seu pai, que tentará reconstruir as memórias do seu pai (avô do narrador), apoiadas pela memória coletiva que “reflete a imagem que uma sociedade ou um grupo dentro da sociedade querem dar de si mesmos” (TODOROV, 2002, p. 155).Dessa maneira, procura preencher o vazio de sentido entre o vivido e o esperado, recuperando e transmitindo para o seu filho, por meio de um automatismo informativo, as memórias cruéis dos acontecimentos de segregação e de injustiça a que foram submetidos os judeus. A memória da terceira geração do narrador-personagem, porém, ressignificará, por meio do seu diário, as memórias anteriores e assim também seu presente, numa relação dialética entre passado e presente, em que o choque

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dessas temporalidades propicia novas contestações1de significado, que promete a libertação da inviabilidade da experiência para si e para a geração seguinte.

O legado de Auschwitz e a transmissão do inarrável: o avô

O avô chegou ao Brasil “num daqueles navios apinhados, o gado para quem a história parece ter acabado [...] e resta apenas um tipo de lembrança que vem e volta e pode ser uma prisão pior aquela onde você esteve” (LAUB, 2011, p. 8). Nos últimos anos da sua vida, o avô passava o dia trancado no seu escritório. Após o seu suicídio foi descoberto o que ele fazia ali, debruçado sobre papéis que revelavam não o que foi para ele ter um filho após ser prisioneiro em Auschwitz, nem o que passou em Auschwitz, nem sobre a sua viagem/exílio para o Brasil, nem como tinha sido sua vida entre o intervalo de ter nascido e o dia em que teve um número tatuado no braço, mas revelava, sim, o registro do que deveria ter sido ou o que ele gostaria que tivesse sido e não foi.

Quando o pai do narrador-personagem manda traduzir os livros deixados pelo avô, acreditava que ali encontraria os motivos de dito suicídio: Auschwitz. Depara-se, entretanto, exatamente com o contrário.

Para Dori Laub (1995, p. 65 apud SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 140), “esse colapso do testemunho é precisamente [...] o que é central na experiência do Holocausto”.

Primo Levi também destacou em diversas oportunidades esta impossibilidade do testemunho. Ele afirmava que aqueles que testemunharam foram apenas os que justamente conseguiram se manter a uma certa distância do evento, não foram totalmente levados por ele como o que ocorreu antes de mais nada com a maioria dos que passaram pelos campos e morreram, mas também com aqueles que eram denominados de Musulmänner dentro do jargão do campo, ou seja, aqueles que haviam sido totalmente destruídos em sua capacidade de resistir. Os que ocuparam algum local na hierarquia do campo quer por conta de suas relações políticas ou por causa de seu conhecimento técnico (o caso do próprio químico Levi), estes puderam testemunhar, mesmo que não de forma integral, já que a distância deles também implicou uma visão atenuada dos fatos. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 68)

De acordo com o narrador do Diário da queda (2011), há diferentes maneiras de interpretar os cadernos do seu avô:

1 “[...] Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o

passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação” (BENJAMIN, 2006, p. 505).

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 64 Uma delas é considerar que não é possível ele passar anos se dedicando a isto, uma espécie de tratado sobre como o mundo deveria ser, com seus verbetes intermináveis sobre a cidade ideal, o casamento ideal, a esposa ideal, a gravidez dela que é acompanhada com diligência e amor pelo marido, e simplesmente não tocar no assunto mais importante de sua vida. (LAUB, 2011, p. 40)

Tal tratado, de como o “mundo deveria ser”, representa a inviabilidade da experiência humana de se reconstruir o passado traumático como ele foi de fato. Como explica Bohleber (2000, p. 831 apud SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 143), o trauma é caracterizado pelo enfraquecimento da capacidade de organização dos traços mnemônicos nos representantes objetais na nossa mente, ou seja, nas palavras de Seligmann-Silva (2002, p. 143), “ocorre uma clivagem interna: os fatos vividos não são reconhecidos como parte integrante do ego. Há uma falha na capacidade de representação interna. Ocorre um registro, mas não a representação [...]”. Assim,

As primeiras anotações nos cadernos do meu avô são sobre o dia em que ele desembarcou no Brasil. Já li dezenas desses relatos de imigrantes, e a estranheza de quem chega costuma ser o calor, a umidade, o uniforme dos agentes do governo, o exército de pequenos golpistas que se reúnem no porto, a cor da pele de alguém dormindo sobre uma pilha de serragem, mas no caso do meu avô a frase inicial é sobre um copo de leite. (LAUB, 2011, p. 24)

A seguir meu avô passa para porto, bagagem, Sesefredo, e não é difícil perceber que os registros obedecem à ordem na qual ele se deparou com cada um desses lugares, objetos, pessoas e situações. Dá para acompanhar a sequência como uma história, mas, porque os verbetes são evidentemente mentirosos, num tom grosseiramente otimista, isso é feito de maneira inversa: meu avô escreve que não há notícia de doenças causadas pela ingestão de leite, que o porto é o local onde

se reúne o comércio ambulante que trabalha sob regras estritas de controle fiscal e higiene, e não é difícil imaginá-lo no cais, depois de ter comido os últimos pedaços

do pão endurecido que foi seu único alimento durante a viagem, tomando seu primeiro copo de leite em anos, o leite do novo mundo e da nova vida, saído de um jarro conservado não se sabe onde, como, por quanto tempo, e em poucas semanas ele quase morreria por causa disso. (LAUB, 2011, p. 25, grifo do autor)

Eis que, como destaca Levi (1990, p. 5), “a história do Lager2 foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão” (apud SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 28). Resulta interessante notar que a questão tratada aqui, sobre a capacidade de testemunhar, é trazida pelo diário do narrador-personagem quando menciona que:

2 Palavra alemã que designa campo de concentração e extermínio, muito utilizada nos ensaios e artigos

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 65 Dos seiscentos e cinquenta judeus deportados para Auschwitz junto com Primo Levi, seiscentos e trinta e oito morreram em menos de um ano. Dos doze que sobraram, Primo Levi foi o único a escrever um livro, É isto um homem? Ao contrário do meu avô, ele se preocupou em registrar cada detalhe da rotina do campo, desde a chegada, em 1944, até a libertação pelo Exército Vermelho já no fim da guerra. (LAUB, 2011, p. 76)

Então, pode-se inferir que os verbetes “evidentemente mentirosos, num tom grosseiramente otimista” (LAUB, 2011, p. 25) escritos pelo avô, revelam a capacidade paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão de quem tateou o seu fundo. Por isso, quando o narrador-personagem de o Diário da Queda (2011) leu os cadernos do avô, afirmou: “quando li o material é que finalmente entendi o que ele havia passado (LAUB, 2011, p. 15).

Outra questão central que assombra o sobrevivente do Lager “é o sentimento paradoxal da culpa da sobrevivência” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 65); esse sentimento é vivenciado pelo avô, uma vez que, como informa seu neto, “Do ramo da família do meu avô morreram todos em Auschwitz” (LAUB, 2011, p. 30) e, ainda mais,

Meu avô perdeu um irmão em Auschwitz, e outro irmão em Auschwitz, e um terceiro irmão em Auschwitz, e o pai e a mãe em Auschwitz, e a namorada que tinha na época em Auschwitz, e ao menos um primo e uma tia em Auschwitz, e sabe-se lá quantos amigos em Auschwitz, quantos vizinhos, quantos colegas de trabalho, quantas pessoas que estariam mais ou menos próximas se ele não tivesse sido o único a sobreviver e embarcar para o Brasil e passar o resto da vida sem dizer o nome de nenhuma delas. (LAUB, 2011, p. 99)

Embora o avô se esforçasse por construir um mundo fictício ideal que o protege-se das vivências do mundo como ele é e da real experiência empírica relacionada às memórias do Lager, elas permanecem escondidas em “latência”, e essa latência pode demorar décadas até a neurose traumática brotar (BOHLEBER, 2002 apud SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 141). Este é o caso da situação em que o avô começa a gritar até que a sua esposa chama dois enfermeiros e, a partir daquele dia, ele passa a tomar remédios que terminaram com os gritos, mas não fizeram muita diferença porque ele continuou o tempo todo isolado (LAUB, 2011, p. 80). Por outro lado, a latência do vivido no Holocausto também se vê apresentada nos verbetes escritos pelo avô que tratam de higiene, em detrimento de qualquer registro realista do que ocorreu. Sabe-se, por meio dos variados registros e testemunhos deixados pelos sobreviventes, que a falta de higiene dos campos de concentração alemães eram as piores possíveis.

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 66 Gravidez –condição em que a esposa passa meses sem doenças e nem sofre riscos tais como doenças no útero ou pressão alta. A esposa descobre a gravidez e comunica imediatamente ao marido para que ele tome a decisão consequente: ter o filho ou não ter o filho? Uma decisão que é tomada sem hesitação por ele porque coroa a expectativa de uma nova vida que foi planejada por ele desde sempre, seu desejo mais profundo de continuidade e doação amorosa. A gravidez da esposa é observada com alegria por ele, acompanhada com diligência e amor por ele e confirma a sorte que ele sempre teve na vida. Na gravidez da esposa ela é orientada pelo médico e pelo marido para que durante a gravidez sejam adotados procedimentos os mais rigorosos de higiene com o uso de álcool e desinfetante na casa, sabão nas roupas, vassoura e esfregão, e panos de várias espécies. A única preocupação da esposa durante a gravidez deve ser cuidar de que o marido possa ter tranquilidade no momento em que ele deseja ficar sozinho no quarto ou no escritório. (LAUB, 2011, p. 79)

A negação do avô em fazer um registro que represente o que aconteceu em Auschwitz, ou ainda sobre o trauma e o que aconteceu posteriormente, são a própria manifestação do trauma representado pela oposição de significados por meio de um mundo idealizado pela higiene. A tranquilidade e o desejo de continuação da vida mediante um filho, constituem o seu mecanismo de defesa em que a

[...] reação ao traumático, à medida que rompe as ligações, incide diretamente e imediatamente sobre a consciência e sobre as fronteiras entre as instâncias psíquicas [...] A ruptura promovida pelo trauma questiona dolorosamente no sujeito a continuidade do si mesmo, a organização de suas identificações e ideais, o emprego dos mecanismos de defesa, a coerência de sua forma pessoal de sentir, de atuar e de pensar. (HELLER; MARTINS COSTA, 2005, p. 415)

O próprio Primo Levi (1988, p. 7, apud SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 65) expressou, sobre esse fato, no prefácio de É isto um homem, que “A necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares”. O testemunho seria, portanto, uma atividade elementar, no sentido de que dela depende a sobrevida daquele que volta do Lager. A possibilidade de libertar-se do trauma por meio da sua narração é, no entanto, posta em xeque pelo narrador do Diário da queda (2011), uma vez que, para ele,

A morte começa de muitas maneiras, e não sei se meu avô chegou a perceber isto, a semente, o marco zero a partir do qual passou a não interessar que ele sobrevivesse a Auschwitz nem sei como, e saísse de lá nem sei em que estado, e se recuperasse na Polônia ou na Alemanha ou não sei nem onde, e desse um jeito de embarcar para o Brasil superando não sei nem que tipo de problema, porque a partir dali estava mais ou menos decidido que ele passaria o resto de seus anos da mesma forma que Primo Levi. A única diferença é que, em vez de ter uma vida familiar aparentemente comum e décadas depois se jogar de uma escada, ele teve uma vida familiar aparentemente comum e décadas depois começou a escrever aqueles cadernos. (LAUB, 2011, p. 77)

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Após o supracitado, evidencia-se que os cadernos do avô representam o legado inarrável de Auschwitz, daquele que retornou morto em vida do campo de concentração alemão. A possibilidade de testemunhar de Primo Levi, no entanto, também não o libertou do legado do Lager, pois, mesmo para ele, “membro deste grupo de paradoxais ‘privilegiados’ dentro do inferno, a realidade do campo permaneceu como uma cripta [...]”; cripta estaque suas palavras atingiram com força, mas nunca conseguiram quebrar, o que talvez esteja na origem do próprio suicídio de Primo Levi (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 82).

Dentre as sínteses levantadas por Bohleber (2002, p. 814 apud SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 141) sobre as consequências dos estudos de sobreviventes para a teoria do trauma, há uma que explica que os traumas sofridos, que foram além da capacidade de elaboração dos sobreviventes, marcam a geração seguinte, sobretudo nos casos em que os pais protegeram-se do trauma negando-o e silenciando sobre ele. Dito isso, pode-se concluir que a ação de narrar e ser ouvido tira o sobrevivente da situação de alteridade, uma vez que a narrativa funcionaria como uma ponte entre o sobrevivente e “os outros”; ponte essa que inexiste para o avô, motivo pelo qual fica ilhado no seu escritório até seu suicido, deixando, ao seu filho, a tarefa de tirá-lo da alteridade.

A pós-memória da segunda geração: o pai

Pensar na memória dos filhos daqueles que estiveram no Holocausto remete ao conceito de pós-memória introduzido por Marianne Hirsch, o qual ocupa um lugar predominante nas questões em torno dos estudos sobre o Holocausto. Hirsch (2008, p. 106-107 apud SELIPRANDY, 2015, p. 124-125) define a pós-memória como

[...] a relação que a geração posterior àquela que testemunhou traumas culturais e coletivos carrega acerca da experiência daqueles que vieram antes, experiências que eles “lembram” apenas por meio das histórias, imagens e comportamentos em meio aos quais cresceram. Mas essas experiências lhes foram transmitidas de modo tão profundo e afetivo que parecem constituírem memórias de próprio direito. A conexão da pós-memória com o passado não é, portanto, de fato mediada pela lembrança, mas pelo investimento imaginativo, pela projeção e criação.

Escolheu-se, aqui, a noção de pós-memória para falar da memória do pai do narrador do Diário da queda, justamente porque concebe a ideia de uma herança familiar, posteriormente sendo ampliada em termos de narrativas pela segunda geração, e por ser seu principal contexto ser o Holocausto, que teria gerado um

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repertório de ausência. Ou seja, ela está na incapacidade do relato da memória desses traumas pela geração que os viveu, e que passam a outra geração sucessora, representada, nesta análise, pelo pai do narrador, que não teve objetivamente contato com o trauma, mas passa a vivenciá-lo como se fosse dele. Neste sentido, alerta o narrador-personagem do Diário da queda:

Meu pai cresceu como filho do meu avô, e não vou repetir os argumentos da medicina e da psicologia e da cultura que demonstram o quanto um modelo assim pode ser danoso, a figura paterna que fez o que fez, que largou o filho da maneira como largou, então imagino o peso para o meu pai de coisas simples [...]. (LAUB, 2011, p. 115)

A pós-memória, assim, seria um testemunho por adoção, posto que a vítima/testemunha direta é incapaz, por motivos traumáticos, de narrar. Então, “é a natureza atrasada de memória traumática que alimenta a sua transmissão e adoção” (HISRCH, 2008, p.10 apud CARMO, 2015, p. 182) pelo segundo grupo geracional:

Meu avô nunca falou sobre Auschwitz, e restou ao meu pai mergulhar naquilo que Primo Levi escreve a respeito: os homens que roubam a sopa uns dos outros em Auschwitz, os homens que mijam enquanto correm porque não há permissão para ir ao banheiro durante o expediente em Auschwitz, os homens que dividem a cama com outros homens e dormem com o rosto nos pés desses outros homens e torcem para que eles não tenham pisado no chão por onde passam os que têm diarreia, e a capacidade de Primo Levi em dar dimensão ao que era acordar e se vestir e olhar para a neve no primeiro dia de um inverno de sete meses em que se trabalha em jornadas de quinze horas com água pelos joelhos carregando sacos de material químico ajudou meu pai a justificar os últimos anos do meu avô. (LAUB, 2011, p. 80-81)

Em relação ao trauma sofrido pelos sobreviventes do Holocausto, Werner Bohleber (2000, p. 814 apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 69) chama a atenção para o fato de que “os traumatismos sofridos foram além da capacidade de elaboração dos sobreviventes e vieram a marcar a geração seguinte”. Por esse motivo, o pai do narrador apega-se aos documentos sobre o Lager e a tradição judaica que o ajudariam a, por um lado, compreender o trauma pelo qual passara seu pai, que também justificaria o motivo da sua ausência por meio do isolamento e o seu eventual suicídio; de outra parte, iria contra o apagamento da memória da Shoah, pois,

Basta um clique, e está lá escrito que não há fotos ou plantas arquitetônicas das câmaras. Que não havia razão para matar prisioneiros que estavam trabalhando para os alemães. Que não havia por que diminuir a capacidade de campos que produziram carvão, borracha sintética, componentes químicos, armas e combustíveis, e o impulso que isso deu à economia do país beneficiando empresas

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 69 como a BMW, a Daimler-Benz, o Deutsche Bank, a Siemens e a Volkswagen. (LAUB, 2011, p. 106-107)

Seligmann-Silva (2008, p. 75) destaca, conforme Hélène Piralian (2000), que o desafio do testemunho do genocídio negado, “que assim matou duas vezes suas vítimas e continua a assassiná-las simbolicamente, é o de se construir em termos coletivos espaços para além do desejo da vingança, da parte dos descendentes das vítimas” e, por meio desse espaço denegação, os filhos também conseguiriam tirar seus pais desse lugar de alteridade que, por sua vez, também é representado pela impossibilidade de narrar: “Apenas deste modo ela [Hélène Piralian] crê que se poderia finalmente proceder ao trabalho de luto, que até o momento foi travado e impedido por conta da negação” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 74).

Desta maneira, o pai do narrador do Diário da queda, a fim de reivindicar a memória do seu pai e poder começar o trabalho de luto, mobiliza uma memória a respeito da Shoah para transmiti-la ao seu filho:

Meu pai é um leitor bastante razoável. Apesar disso, não lembro de ele ter citado mais do que dez livros durante a minha adolescência. Talvez não mais que cinco. Lembro de um apenas, É isto um homem?, que ele leu numa edição importada, porque ele vivia repetindo as descrições sobre o funcionamento de um campo de concentração, as noites em que Primo Levi dormia dividindo a cama com um relojoeiro, as histórias sobre números altos e baixos, tarefas, uniformes, sopa. (LAUB, 2011, 40-41)

E, ainda:

Meu pai falava muito na Alemanha dos anos 30, em como os judeus foram enganados com facilidade, e era fácil achar que uma casa invadida era um evento isolado, que o ataque a uma ótica ou ferragem cuja porta amanhecia com uma estrela pintada era obra de um bando qualquer de vândalos, porque se você tem negócios e paga impostos e gera empregos e vive confortavelmente adaptado ao país onde nasceram seus parentes até o terceiro grau de ascendência não vai querer imaginar a hipótese de perder tudo, e da noite para o dia embarcar num navio, você com a roupa do corpo rumo a um lugar onde não conhece nada dos costumes, da política, da história. (LAUB, 2011, p.26)

Segundo Hirsch (2008, p. 109 apud SELIPRANDY, 2015, p. 115), a “pós-memória não é idêntica à “pós-memória: ela é ‘pós’, mas, ao mesmo tempo, aproxima-se da memória em sua força afetiva”. Para a autora, “a quebra na transmissão resultante de eventos históricos traumáticos necessita de formas de rememoração que reconectem e reencarna em (reembody) um tecido de memória intergeracional que foi rompido pela catástrofe” (HIRSCH, 2008, p. 110 apud SELIPRANDY, 2015, p. 115).

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Visto isso, o pai precisaria de um elo palpável para a transmissão da memória e da identidade judaica. Esse elo seria seu filho, que também representaria uma quebra resultante do evento histórico e traumático, entendido aqui como a ausência de memória e de uma identidade. Recorde-se que o pai somente passa a se interessar pelo assunto por causa da morte do seu pai e, como relata o seu filho/narrador,

porque religião não é algo em que você pense aos catorze anos, mesmo que essa religião tenha a carga histórica e cultural do judaísmo, e mesmo que meu pai soubesse que a recusa do meu avô em tratar do tema desde sempre não tinha sido apenas um capricho, uma questão de gosto de um homem adulto que se interessa pelo que quiser, mas o sintoma de algo provavelmente visível na maneira de ele ser, de se mostrar diante da mulher e do filho e de todos (LAUB, 2011, p. 30-31). Meu avô não escreveu nada sobre judaísmo. Nenhum comentário sobre a conversão da minha avó. Nenhuma descrição das tentativas dela de entender a religião depois de se converter, os livros que ela leu, as idas dela à sinagoga sem que ele jamais a acompanhasse, as perguntas que ela fez sobre o tema sem que ele jamais desse mais que uma resposta lacônica. É possível que meu pai não tenha ouvido nenhuma frase dele a respeito quando criança, e muito poucas até completar catorze anos, uma explicação ou pista eventual sobre qualquer traço de identidade que o diferenciasse do mundo ao redor, os vizinhos, os colegas da escola, os professores, os locutores de rádio, os personagens de filme, as pessoas que meu pai via da janela do ônibus andando de um lado para outro e que nunca perderam um minuto da vida pensando nisso. (LAUB, 2011, p. 30).

Destaca-se, dos trechos supracitados, a ausência da identidade judaica e a necessidade do pai de reavivá-la por meio do filho, pois seria este o vetor da insistência do pai para que o seu filho permanecesse na escola para judeus e, assim, não passasse pela mesma situação de marginal, isto é, ser apontado como o outro, o diferente. De qualquer maneira, todavia, o pai cai na encruzilhada da alteridade, uma vez que também estaria impondo uma identidade para o seu filho: você é nós (judeus) e não eles.

Eu não tive oportunidade de estudar numa escola como a sua, o meu pai disse. A vida inteira eu estudei em escolas onde não havia judeus. Eu era o único judeu entre quinhentos alunos, ele disse, e você não sabe o que é estudar todo dia sabendo que a qualquer momento alguém vai lembrar disso. Alguém um dia olha torto para você e a primeira coisa que vê é isso. Não adianta você ser amigo de todos porque eles sempre falarão disso. Não adianta ser o melhor em tudo porque eles sempre esfregarão isso na sua cara. (LAUB, 2011, p. 43).

Fernando Seliprandy (2015, p. 125) destaca a insistência de Hisch (2008, p. 111) em afirmar que a “pós” é ainda memória, “justamente porque fica assim destacada ‘essa presença da experiência corporificada (embodied) no processo de transmissão’, sinalizando um laço afetivo com o passado, precisamente o sentido de

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uma ‘conexão viva’ corporificada (embodied ‘living connection’)”. Ainda conforme o autor (2015, p. 11, 112), temos que:

Quando se dedica ao pressuposto familiar da noção de pós-memória, Hirsch segue ancorando seus argumentos em ideias ligadas ao corpo e à corporificação. Ela escreve: “A linguagem da família, a linguagem do corpo: atos de transferência não verbais e não cognitivos ocorrem mais claramente dentro de um espaço familiar, frequentemente na forma de sintomas” (HIRSCH, 2008, p. 112). Mas [...] essa memória corpórea – pode-se dizer mesmo somática – tem também um sangue: “A perda da família, do lar, de um sentimento de pertencimento e segurança no mundo ‘sangra’ de uma geração para a outra […]” (HIRSCH, 2008, p. 112). No fundo, para Hirsch, o ambiente familiar é o lugar privilegiado de superação das distâncias em nome da identificação.

A corporificação da memória por parte do pai é representada de diversas maneiras: repetindo as descrições sobre o funcionamento dos campos de concentração, falando sobre a Alemanha dos anos 30, sobre como os judeus foram enganados e lembrando tudo aquilo que tinha aniquilado o seu pai a ponto de repetir também a ausência física do mesmo, posto que, no pouco tempo que tinha após o trabalho para compartilhar com o seu filho, ficava repetindo as mesmas histórias, como se fossem uma espécie de mantra que permitisse libertá-lo do rastro do trauma que o assombrava.

[...] eu falava muito pouco com o meu pai. Ele chegava em casa à noite, exausto, e eu já tinha jantado e na maioria das vezes estava dormindo. Se eu fosse contar o tempo que passávamos juntos por semana não daria mais que algumas horas, e como nessas horas estavam incluídos os discursos sobre os judeus que morreram nas Olimpíadas de 1973, os judeus que morreram em atentados da OLP, os judeus que continuariam morrendo por causa dos neonazistas na Europa e da aliança soviética com os árabes e da inoperância da ONU e da má vontade da imprensa com Israel, é possível que mais da metade das conversas que ele teve comigo girassem em torno desse tema. (LAUB, 2011, p. 36)

A corporificação da memória do avô na memória do pai está, também, representada pelo seu Alzheimer; a doença retrata a perda da identidade individual, identidade que o avô perdeu em Auschwitz, onde foi reduzido à condição de coisa sem rosto, a um algo desumanizado, um número. Essa corporificação do apagamento identitário relacionado à situação dos judeus no campo de concentração, vê-se também representada na seguinte cena:

[...] para não correr o risco de fazer uma visita de domingo e de se deparar com o pai resumido àquele pijama azul, a figura de cabelo curto e o lençol e o olhar de quem não sabe mais o que é uma câmera, uma fotografia, como um bebê diante de

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 72 um espelho sem noção ainda de que no reflexo está a imagem que temos e teremos de nós mesmos até que tudo comece a mudar. (LAUB, 2011, p. 68)

Nesse trecho, percebe-se a semelhança entre um prisioneiro do Lager e um paciente com Alzheimer. A ideia de olhar para as coisas e não mais reconhecê-las, assim como olhar para si mesmo e não se reconhecer mais, relaciona-se diretamente à noção de identidade apagada pelo regime nazista e pela impossibilidade de narrar, corporificada no Alzheimer.

[...] meu pai perdendo um pouco do que qualquer um de nós reconheceria como algo único dele, e de manhã ele acorda sem saber o nome de uma cidade, e na outra se um animal voa ou nada ou se arrasta, e numa terceira a marca do próprio carro e como se usa o acelerador e o freio, e de repente ele não sabe há quantos anos está casado com a minha mãe e nessa tarde de inverno tomando chá e distraída com o relógio de parede que marca cinco horas ela percebe que ele não faz ideia de quem é e do que está fazendo ali. (LAUB, 2011, p. 144)

Como já assinalado, a pós-memória, contudo, também representa “a quebra na transmissão resultante de eventos históricos traumáticos” e, para isso, “necessita de formas de rememoração que reconectem e reencarnem (reembody) um tecido de memória intergeracional que foi rompido pela catástrofe” (HIRSCH, 2008, p. 110, apud SELIPRANDY, 2015, p. 115). A pós-memória aprimora as interpretações de memória ao assinalara possibilidade de ruptura com a herança. A outra maneira de ruptura com a herança da memória do avô acontece a partir da briga do pai com o seu filho/narrador, pelo desejo de mudar-se para uma escola não judaica:

Na briga que tivemos por causa da nova escola, eu disse a meu pai que não estava nem aí para os argumentos dele. Que usar o judaísmo como argumento contra a mudança era ridículo da parte dele. Que eu não estava nem aí para o judaísmo, e muito menos para o que tinha acontecido com o meu avô. Não é a mesma coisa que dizer da boca para fora que se odeia alguém e deseja a sua morte, e qualquer pessoa que tenha um parente que passou por Auschwitz pode confirmar a regra, desde criança você sabe que pode ser descuidado com qualquer assunto menos esse, então o impulso que meu pai teve ao ouvir essa referência era previsível, ele dizendo repete o que você falou, repete se você tem coragem, e eu olhando para ele fui capaz de repetir, dessa vez devagar, olhando nos olhos dele, que eu queria que ele enfiasse Auschwitz e o nazismo e o meu avô bem no meio do cu. (LAUB, 2011, p. 49-50)

A partir dessa ação de violência verbal que termina em violência física, dá-se o primeiro contato físico mais próximo que pai e filho têm em 13 anos, embora tal aproximação não aconteça da melhor maneira, mas abre espaço para um “acordo tácito”: o filho passa a respeitar a memória de Auschwitz e o pai aceita a mudança do

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filho para uma escola não judaica e a sua autonomia. Esse movimento assinala uma ruptura com o legado afetivo negativo que o pai herdara do avô.

A relação com o meu pai mudou no dia seguinte à nossa briga, na conversa que tivemos sobre o meu avô, os cadernos e Auschwitz, na qual entendi que não deveria mais brincar ou ser descuidado com esse tema. Era algo que eu deveria respeitar tanto quanto ele respeitava meu direito de estudar numa escola nova, e a partir desse acordo tácito os momentos que passei com ele ficaram na memória de forma diferente [...]. (LAUB, 2011, p. 84)

Finalmente o pai ensaia uma ruptura final contra o legado da memória inarrável, que o defronta corporificado em si pelo Alzheimer, começando o mesmo projeto do seu pai, mas pelo caminho oposto. Tal movimento, contudo, repete o mesmo isolamento do seu pai, como conta o narrador do Diário:

[...] eu não poderia me opor ao que virou a grande distração do meu pai: as horas no escritório como o meu avô, um projeto mais ou menos como o do meu avô, um livro de memórias com os lugares aonde meu pai foi, as coisas que ele viu, as pessoas com quem falou, uma seleção dos fatos mais importantes da vida dele durante mais de sessenta anos. (LAUB, 2011, p. 93)

O ensaio final refere-se a esse diário, em que registra suas memórias antes do inevitável esquecimento gerado pela doença, e pelo caminho oposto, porque, enquanto o avô deixou as memórias “de como o mundo deveria ser”, o pai deixa as memórias de “como as coisas foram de fato”. Apesar disso, “ambos são como que textos complementares que partem do mesmo tema, a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, o meu avô imobilizado por isso, o meu pai conseguindo ir adiante apesar disso” (LAUB, 2011, p. 146). Nas memórias do pai, que são dirigidas ao seu filho, ele relata o desejo de esquecer o trauma, ou de parar de falar disso e começar e narrar uma nova história:

[...] Eu tinha muita raiva de muita coisa, muita vergonha, mas como disse antes eu não quero mais falar sobre isso. Tem uma hora que você cansa de pensar nisso. A vida de ninguém é só isso. Olha a minha idade agora, olha o que está acontecendo comigo. Vale a pena remoer isso? Sofrer por isso? Será que tanto tempo depois eu ainda conseguiria chorar por isso? Ou sentir alguma coisa por causa disso? Eu prefiro então lembrar de outras coisas, eu ali nomeio do salão com ela. Eu não estava mais nervoso. O pior momento tinha passado. Acho que a história toda começou ali. Pelo menos a história que vale. A que eu quero contar nesta carta, ou neste livro, leia como você quiser. Tudo o que tenho para dizer começa ali, eu segurando a sua mãe sem dizer nada num salão de baile. (LAUB, 2011, p. 146)

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 74 Não há como ler as memórias do meu pai sem ver nelas o reflexo dos cadernos do meu avô. Não só porque ambos resolveram passar seus últimos anos entregues ao mesmo tipo de projeto, e seria ridículo argumentar que isso aconteceu por acaso, mas porque em pontos muito específicos os registros dos dois são opostos. (LAUB, 2011, p. 132)

O termo “reflexo” sugere a imagem de espelhamento, em que se vê uma mesma imagem que se apresenta invertida; muda a rotação, mas o signo continua o mesmo. Logo, por mais que a pós-memória apresente a possibilidade de quebrar coma herança do trauma, seja por meio de uma narração ou de uma mudança de comportamento, mesmo assim continua o trauma como um reflexo, aqui corporificado no isolamento, na ação da escrita, na oposição da imagem paterna, que se deseja deixar como memória ao filho, e pelo Alzheimer.

O arqueólogo: o narrador

Utiliza-se aqui a metáfora do arqueólogo para tratar a ação da escrita da memória do narrador do Diário da queda, uma vez que esse escava nas memórias deixadas pelos cadernos do seu pai e avô para recordar e, assim, trazer ao presente um passado que permite ressignificar ambos os tempos e construir uma história nova, passada e pressente, que também é a sua história. Então, parte-se da ideia de Walter Benjamin, extraída de um dos seus fragmentos de “Imagens do pensamento” (1987) em que deixa uma “espécie de cartilha de arqueólogo do seu passado” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 403):

A linguagem tem indicado inequivocamente que a memória não é um instrumento para exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do passado soterrado deve agir como um homem que escava. [...] não deve temer voltar ao mesmo fato, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois os “fatos” nada são além de camadas que apenas a exploração mais cuidadosa entrega aquilo que recompensa a escavação. Ou seja, as imagens que, desprendidas de todas as conexões, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador. (BENJAMIN, 1987, p. 239)

O narrador criado por Laub parte, como todo arqueólogo, de um lugar topográfico, que o fará escavar as memórias soterradas do seu pai, avô e as dele. Esse ponto é o Alzheimer do pai, posto que é a partir dessa instância que o narrador sente a necessidade de escavar nas memórias soterradas, visto que a doença representaria o esquecimento da história familiar, pois “[...] eu já adulto, já tendo saído de casa, já tendo mudado de cidade e me tornado outra pessoa: João, meu avô,

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Auschwitz e os cadernos, eu só fui pensar em tudo isso de novo quando recebi a notícia da doença do meu pai” (LAUB, 2011, p. 53).

O diário do narrador está composto por diferentes blocos estilhaçados. Esses blocos compõem as camadas do Diário da queda, o torso do colecionador.

[...] aquilo que alguém viveu, é, no melhor dos casos, comprável à bela figura à qual, em transportes, foram quebrados todos os membros, e agora nada mais oferece a não ser o bloco precioso a partir do qual ele tem que esculpir a imagem do seu futuro. (BENJAMIN, 1987, p. 41-42)

Assim são apresentadas as memórias do narrador, por pontos fragmentados, por momentos ilhados, sem uma sucessão cronológica linear, mas, sim, o espaço das camadas geológicas que sustentam o Diário da queda. Adentrando-se nessas camadas, encontra-se o fóssil da queda de João. O narrador-personagem diz nos seus escritos que “se eu tivesse que contar algo meu, começaria com a história do colega que caiu na festa” (LAUB, 2011, p. 15). A queda de João, que não era judeu, dá-se durante o seu Bar Mitzvah e é o resultado de uma agressão coletiva por parte dos seus colegas judeus. Nesse grupo encontrava-se o narrador. Como tradição do Bar Mitzvah, é “[...] comum jogar o aniversariante para o alto treze vezes, um grupo o segurando nas quedas, como numa rede de bombeiros – nesse dia a rede abriu na décima terceira queda e o aniversariante caiu de costas no chão” (LAUB, 2011, p.10). Essa situação faz com que o narrador rememore a sua condição de judeu, que se encontrava adormecida sob os escombros da sua história. Ao revirar esses escombros, ele passa a entender sua condição de judeu não como oprimido, mas como opressor. O narrador do Diário relata que, após a queda, João fratura uma vértebra e, por esse motivo, fica afastado da escola; então, busca estreitar laços de amizade com João e, assim, começa sua expedição arqueológica, tentando, concomitantemente, encontrar a si mesmo. Nessa expedição, João é ressignificado pela sua condição de vítima ao ambiente ao qual está inserido, tanto por não ser judeu quanto por ser de uma classe diferente.

A escavação da memória inverte a história do discurso antissemita, uma vez que a insistência por parte dos professores volta-se contra João, que passou a carregar o peso de não ser judeu e, assim, fica marcado como aquilo que deve ser repudiado.

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 76 Porque é claro que eu usava aquelas palavras também, as mesmas que levaram ao momento em que ele bateu o pescoço no chão, e foi pouco tempo até eu perceber os colegas saindo rápido, dez passos até o corredor e a portaria e a rua e de repente você está virando a esquina em disparada sem olhar para trás e nem pensar que era só ter esticado o braço, só ter amortecido o impacto e João teria levantado, e eu nunca mais veria nele o desdobramento do que tinha feito por tanto tempo até acabar ali, a escola, o recreio, as escadas e o pátio e o muro onde João sentava para fazer o lanche, o sanduíche jogado longe e João enterrado e eu me deixando levar com os outros, repetindo os versos, a cadência, todos juntos e ao mesmo tempo, a música que você canta porque é só o que pode e sabe fazer aos treze anos: come areia, come areia, come areia, gói filho de uma puta. (LAUB, 2011, p. 22)

Há, no entanto, um elemento fundamental levantado pelo narrador, que é o fato de João ser pobre. Isso possibilita que o narrador mostre o quanto seu colega sofre por estar inserido em um colégio ao qual não pertence enquanto classe social: “João usava sempre a camiseta amassada. Eu nunca o vi usando uma camiseta de marca. Esse foi o meu presente que minha mãe comprou para ele” (LAUB, 2011, p. 54). A escola particular à qual eles iam na sua adolescência

tinha tradição de botar alunos nas melhores faculdades, e dali haviam saído industriais, engenheiros, advogados. O pai de João achava que valia o sacrifício de matricular o filho num lugar tão caro: havia um programa de bolsas, e ele acabou ganhando oitenta por cento de desconto na mensalidade. Mesmo assim tinha de se desdobrar para pagar a quantia restante e mais uniforme, material didático, transporte. (LAUB, 2011, p. 16)

Este é o motivo que leva o pai de João a vender algodão-doce no parque, pois o salário de cobrador de ônibus não era suficiente. Há mais um fator de complicação: ele criou o seu filho sozinho depois do suicídio da mãe antes dos 40 anos. São várias as desigualdades socioeconômicas enfatizadas não somente entre João e o narrador, mas também entre o primeiro e todo o restante dos colegas. Todos os colegas já tinham feito seu Bar Mitzvah, usavam talid e eram chamados para rezar junto com os adultos, e depois ofereciam um almoço ou janta, em geral num hotel de luxo (LAUB, 2011, p. 10). Na festa de João, porém, “não havia mais que um bolo de chocolate e pipoca e coxinhas e pratos de papel” (LAUB, 2011, p. 12). Além do mais, “não foi num hotel de luxo, e sim num salão de festas, um prédio que não tinha elevador nem porteiro porque o aniversariante era bolsista e filho de um cobrador de ônibus que já tinha sido visto vendendo algodão-doce no parque” (LAUB, 2011, p. 11).

O narrador relata, ainda, que se ele falasse “hoje” com os colegas envolvidos na a queda de João, é possível que nenhum deles lembrasse do fato com detalhes ou os motivos que os levaram a planejar a agressão. Isso porque “as conveniências

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sociais e as regras de etiqueta e a autoimagem que cada um construiu ao longo dos anos posteriores criaram os mecanismos de defesa que impedem a memória de registrar algo do gênero (LAUB, 2011, p. 50-51). Além do mais,

É possível que isso se estenda a todos que tinham alguma relação com a escola, os colegas, os pais dos colegas, a coordenadora, os professores, e que eles cheguem mesmo a dizer que a minha versão da história é distorcida, um registro falso influenciado pelo sentimento da época, [...] porque é até ridículo pensar que nos anos80 uma escola judaica de Porto Alegre pudesse abrigar esse tipo de coisa, um lugar frequentado por filhos de comerciantes e donos de fábricas e profissionais liberais que a vida toda conviveram com não judeus, e não há notícias de discriminação contra judeus na Porto Alegre daquela época, nenhum clube que não aceitasse judeus, nenhum político que falasse mal de judeus, ninguém que diante da família ou de amigos ou de clientes tivesse coragem de dizer qualquer coisa contra judeus, então não faz sentido pensar que o contrário pudesse acontecer também,[...]. (LAUB, 2011, p. 51)

Ao denunciar o mecanismo de defesa que essa camada da classe dominante alimenta por meio da aparente convivialidade, denuncia também o respeito à etiqueta de banir o invasor. Dessa maneira, na sua topografia (diário) arqueológica, o narrador vai escovando a história a contrapelo, na ideia benjaminiana do conceito, subvertendo a partir do presente a racionalidade contemplativa das narrativas do progresso, cujos representantes identificam-se “afetivamente com as classes dominantes”, como ele expõe na 7ª tese sobre o conceito de história, pois, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura (BENJAMIN, 2005, p. 70). Conforme o exposto, João representa a quebra da não possibilidade de o contrário acontecer: a quebra dessa possível convivialidade homogênea entre classes diferentes.

A dimensão colossal de Auschwitz, com seus milhões de vítimas, contrapõe-se à queda de João, uma vez que ele é a única vítima do tempo presente do narrador. Retomando-se, conforme Benjamin (1987, p. 202), a ideia da “fórmula famosa” de Villemessant, o fundador do Fígaro, sobre a caracterização da essência da informação, ele afirma o seguinte: “Para meus leitores”, costumava dizer, “o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madrid” (BENJAMIN, 1987 p. 202). É o que o conjunto de citações a seguir revela:

Se na época perguntassem o que me afetava mais, ver o colega daquele jeito ou o fato de meu avô ter passado por Auschwitz, e por afetar quero dizer sentir intensamente, como algo palpável e presente, uma lembrança que não precisa ser evocada para aparecer, eu não hesitaria em dar a resposta. (LAUB, 2011, p. 13)

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 78 [...] comecei a ter vergonha de ter gritado gói filho de uma puta, e isso se misturava com o desconforto cada vez maior diante do meu pai, uma rejeição à performance dele ao falar de antissemitismo, porque eu não tinha nada em comum com aquelas pessoas além do fato de ter nascido judeu, e nada sabia daquelas pessoas além do fato de elas serem judias, e por mais que tanta gente tivesse morrido em campos de concentração não fazia sentido que eu precisasse lembrar disso todos os dias. (LAUB, 2011, p. 37)

[...] de algum modo meu pai era responsável pelo que aconteceu com João, aquelas histórias todas sobre o Holocausto e o renascimento judeu e a obrigação de cada judeu no mundo de se defender usando qualquer meio, o inimigo que você nunca deixará de enfrentar, em quem você nunca mais deixará de pensar porque agora ele está numa cadeira de rodas. (LAUB, 2011, p. 70)

A contraposição ocorre pela “queda da experiência” provocada pelo automatismo de contar a história da tragédia de Auschwitz, tanto pelo pai do narrador, motivada pela falta do testemunho oral do seu pai, quanto pelos seus professores do colégio.

[...] uma escola judaica é mais ou menos como qualquer outra. A diferença é que você passa a infância ouvindo falar de antissemitismo: há professores que se dedicam exclusivamente a isso, uma explicação para as atrocidades cometidas pelos nazistas, que remetiam às atrocidades cometidas pelos poloneses, que eram ecos das atrocidades cometidas pelos russos, e nessa conta você poderia botar os árabes e os muçulmanos e os cristãos e quem mais precisasse, uma espiral de ódio fundada na inveja da inteligência, da força de vontade, da cultura e da riqueza que os judeus criaram apesar de todos esses obstáculos. (LAUB, 2011, p. 10-11)

Dessa maneira, a experiência (Erfahrung) dá lugar à vivência (Erlenbis) como resultado de uma interiorização psicológica. Assim, as histórias simplesmente esgotam-se. Essa queda da narração está ligada, justamente, ao desaparecimento ou ao esquecimento da habilidade de intercambiar experiências. Benjamin, então, questiona (1987, p. 144):

Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?

A escovação da história a contrapelo não termina por aqui; há ainda mais uma subversão dos fatos que acontece quando o narrador-personagem sai da escola privada de tradição judaica para a pública, na qual será colega de João. Na escola nova existem algumas diferenças, como a maneira de tratara questão do Holocausto, “eventualmente citado entre os capítulos da Segunda Guerra, e Hitler era analisado pelo prisma histórico da República de Weimar, da crise econômica dos anos 30, [...]”

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(LAUB, 2011, p. 64), e o fato de João ter contado para os colegas o ocorrido no seu Bar Mitzvah, o que propicia uma inversão dos papéis entre os dois adolescentes, permitido, também, pelo novo espaço público, onde surgem novas agressões e novas narrativas, ou seja, nesse espaço quem passa a ser tratado de forma hostil é o narrador, pois, na análise dele, temos que: “[...] agora ele [ João] era mais forte que eu e tinha mais amigos e eu era o único judeu no prédio [...]” (LAUB, 2011, p. 88). A transposição dos papéis, que ocorre com a passagem do privado para público, remete à metáfora da biblioteca proposta por Hugo Achugar em seu livro de ensaios La biblioteca en ruinas: reflexiones culturales desde la periferia. Para o autor, tanto a biblioteca pública quanto a privada é “o cemitério dos que não possuem voz, sua morte definitiva” (1994, p. 14, tradução nossa).3 “Toda biblioteca como todo museu, escolhe, olvida, classifica, arquiva, celebra, (ACHUGAR, 1994, p. 14, tradução nossa).4 Ainda conforme o autor:

A biblioteca privada expõe uma sórdida experiência pessoal, a pública [...] expõe a barbárie cometida pela comunidade hegemônica. [...] A biblioteca pública é uma ilusão, uma falaz utopia da democracia. [...] A biblioteca privada, a ilusão do poder e um modo de solipsismo. (ACHUGAR, 1994, p. 14, tradução nossa)5

Em cada biblioteca, como destaca Achugar (1994, p. 20), existe a infiltração da voz transgressora que permite denunciar a ilusão tanto da esfera privada quanto da pública, representadas aqui pelos respectivos colégios e pela transposição dos papéis, quando a consigna “Dividir é reinar” não é equivalente a reconhecer a diferença. A diferença, desde a voz imperial, é sinônimo de apartheid, é sinônimo da repressão e do silenciamento (ACHUGAR, 1994, p. 22, tradução nossa).6 Então, na escavação arqueológica do narrador, em que ressignifica os fósseis do passado no presente, observa-se que, independente do círculo em que um indivíduo está inserido, sempre há a possibilidade de perseguição daquele que é diferente; não há lugar para a outra narrativa. Tal constatação/observação também é compreendida pelo narrador do Diário, e é isto que o conduz, inclusive, a compreender a inversão dos papéis, pois

3 “La biblioteca es el cementerio de los que no tienen voz, su muerte definitiva”.

4 “Toda biblioteca como todo museo, elige, olvida, clasifica, archiva, celebra. La biblioteca”.

5 “La biblioteca privada dice de una sórdida historia personal. La pública, […] dice de la barbarie

cometida por la comunidad hegemónica. […] La biblioteca pública es una ilusión, una falaz utopía de la democracia. […] La biblioteca privada, la ilusión del poder y un modo del solipsismo”.

6 “La consigna ‘Dividir es reinar’ no es equivalente a reconocer la diferencia. La diferencia desde la voz

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ele, em nenhum momento, julga a João; ao contrário, age como observador e analisa a situação.

Por meio da sua topografia arqueológica, o leitor do Diário da queda vai conhecendo os fósseis da queda da vida do narrador, significados pela perda da transmissão da memória bloqueada pela experiência do avô e o Alzheimer do pai, pelas sucessões de quedas: a do avô por meio do suicídio e a do pai pela tentativa de justificar o suicídio do seu pai pela automatização das informações sobre a tragédia de Auschwitz e seu eventual Alzheimer, e a queda de João, que representa o trauma particular do narrador-personagem. Esses estilhaços compõem o signo da “inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares”. A inviabilidade expressa a gravidade da condição histórica atual, que pede redenção. Mediante a retomada de um passado esquecido, constitui o necessário de uma forma atual, que propicia a redenção dos indivíduos da inviabilidade da experiência humana. Para que tal libertação aconteça, no entanto, explica Michael Löwy (2005, p. 52), a respeito da 2ª tese sobre o conceito de história de Walter Benjamin, é necessária a “rememoração integral do passado, sem fazer distinção entre os acontecimentos ou os indivíduos ‘grandes’ e ‘pequenos’. Enquanto os sofrimentos de um único ser humano forem esquecidos, não poderá haver libertação”. Por isso, o narrador-personagem, criado por Laub, age como um colecionador de torsos, um arqueólogo que não perde os detalhes dos acontecimentos, ou os indivíduos “grandes” e “pequenos”, de que extrai camadas geológicas. Assim, ele estimula novos sentidos interpretativos que lhe permitem compreender como ocorreu o processo de empobrecimento da experiência e consegue superá-los.

A superação surge ao final, quando, já livre do alcoolismo, graças a sua escavação arqueológica, que lhe permitiu a mudança por meio da análise dialética do passado/presente ou, outrora/agora,7 pela interpretação dos acontecimentos que o levara a beber, liberta-se do continuum da história: “eu comecei a beber aos catorze anos, depois que mudei de escola junto com João” (LAUB, 2011, p. 99); “Aos catorze anos eu sentei na cama com a garrafa de uísque que tinha pego no armário porque sabia que o meu avô nunca deixou de pensar em Auschwitz (LAUB, 2011, p. 99).

7 “Não é preciso dizer que o passado esclarece o presente ou que o presente esclareça o passado.

Uma imagem, pelo contrário, é aquilo em que o Outrora encontra o Agora num relâmpago para formar uma constelação.” (BENJAMIN, 2006, p. 504).

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ANTARES, v. 12, n. 27, set. 2020 81 Depois da briga que tive com meu pai aos treze anos, todas as vezes em que agredi alguém fisicamente eu estava bêbado. A minha terceira mulher era a primeira a saber disso, e não foi por outro motivo que a condição do ultimato dela foi para que eu parasse de beber. [...]. (LAUB, 2011, p. 142)

Então, é a partir da compreensão dos fatos do passado e de como eles ainda se manifestam no presente, e diante da gravidez da sua companheira atual, que visualiza a possibilidade de romper com a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares e a traçar uma nova história, pois, para o narrador

Ter um filho é deixar para trás a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, como se perdesse o sentido falar sobre as maneiras como ela se manifesta na vida de qualquer um, e as maneiras como cada um tenta e consegue se livrar dela, e comigo tudo se resume ao dia em que simplesmente deixei de beber [...]. (LAUB, 2011, p. 150)

Löwy (2005, p. 52), todavia, adverte: “A redenção não é inteiramente garantida, ela é apenas uma possibilidade muito pequena que é preciso saber agarrar”, pois, ainda conforme Löwy (2005, p. 53), a redenção não é somente uma questão de memória, mas, antes de tudo, “trata-se de ganhar a partida contra um adversário poderoso e perigoso”, que, neste caso, é a inviabilidade da experiência. Visto isso, o narrador-personagem decide deixar para seu filho, como herança, o diário da sua experiência, para que ele mesmo “leia e tire suas próprias conclusões”.

[...] mas você olha para mim e sabe intuitivamente o que está por trás de cada uma de minhas palavras, o que significa a pessoa na sua frente, meu avô diante do meu pai, meu pai diante de mim, eu agora e a sensação que acompanhará você enquanto os anos passam e também começo a esquecer todo o resto, o que a esta altura não é mais alegre nem triste, bom ou ruim, verdade ou mentira no passado que também não é nada diante daquilo que sou e serei, quarenta anos, tudo ainda pela frente, a partir do dia em que você nascer. (LAUB, 2011, p. 151)

Vê-se, diante do exposto, que é por meio da redenção dos estilhaços fragmentados que o narrador encena, com o seu Diário, a possibilidade de se redimir e redimir a geração seguinte da inviabilidade da experiência humana: “Não vou estragar sua vida fazendo com que tudo gire em torno disso. Você começará do zero sem necessidade de carregar o peso disso” (LAUB, 2011, p. 151).

Considerações finais

O Diário da queda é construído pela aplicação do método arqueológico da coleta de rastros e indícios que indicam uma ruptura do sistema linear e cronológico,

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estruturado a partir de fragmentos numerados em sequência e reunidos em blocos com os seguintes títulos: Algumas coisas que sei sobre o meu avô; Algumas coisas que sei sobre o meu pai; Algumas coisas que sei sobre mim; Notas (1); Mais algumas coisas que sei sobre o meu avô; Mais algumas coisas que sei sobre o meu pai; Mais algumas coisas que sei sobre mim; Notas (2); Notas (3); A queda. Após a leitura do Diário vê-se que os títulos não apresentam, de fato, o que será encontrado nos seus respectivos blocos, vale dizer, não há uma separação das memórias conforme se espera dos títulos. As memórias dos blocos misturam-se numa dialeticidade das diferentes memórias, que lembra a operação da espontaneidade do pensamento/memória, que é marcado pela relação entre o lembrar e o esquecer.

O narrador, criado por Laub, volta aos limiares da adolescência, recupera as vivências do seu pai e avô, representadas pela inviabilidade da experiência humana, e as confronta com a sua memória, integrando o individual ao coletivo, e, assim, por meio da ressignificação do passado no presente e vice-versa, renova/cria uma experiência única (Erfahrung), que propicia a redenção dos estilhaços das vivências anteriores, que redime a ele e a geração seguinte da impossibilidade da experiência humana. Dessa forma, deixa para seu filho, que está por vir, o torso mais precioso da sua coleção: o seu Diário da queda, que é a escrita da escovação da história a contrapelo, em que o narrador dá voz até àqueles privados de narrativas. Observa-se, na narrativa do Diário, uma postura política na construção não só dos fatos narrados, mas também da tessitura do seu diário, em que não somente subverte as possíveis representações das verdades, mas, igualmente, subverte o próprio gênero textual do diário, pois o que se espera de uma narrativa autobiográfica característica do gênero diário, é uma hierarquia cronológica, e aqui se apresenta exatamente o contrário. O relato não resulta de uma linearidade temporal; longe disso, dá-se no espaço como uma topografia, como uma constelação da retórica em que é construído o momento da lembrança de (re)contar os fatos, e que, do mesmo modo, significa-se como uma posição política contra o enquadramento positivista do progresso.

Referências

ACHUGAR, Hugo. La biblioteca en ruinas: Reflexiones culturales desde la periferia. Montevidéu, Uruguai: EdicionesTrilce, 1994.

BENJAMIN, W. Imagens do pensamento. In: Obras Escolhidas. II – Rua de Mão Única. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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Recebido em: 13/06/2020 Aprovado em: 24/08/2020

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