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Espaço e tempo: relações simbolizantes na <i>Gradiva</i> de Jensen

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Academic year: 2020

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NA GRADIVA D E JENSEN

Suely Maria de Paula e Silva LOBO1

• RESUMO: Este trabalho apresenta uma leitura do texto Gradiva - uma fantasia

pompeiana, de Wilhelm Jensen, enfatizando as relações espaço/tempo/linguagem e

suas possibilidades como elemento mediador na reconstrução de uma identidade e de uma realidade pessoal.

• PALAVRAS-CHAVE: Identidade; espaço; tempo; simbolização; inconsciente.

Podes expulsar a Natureza com um forcado, mas ela sempre retornará.

(Horácio, Epístolas I , 10, 24)

O romance Gradiva - uma fantasia pompeiana, escrito por W i l h e l m Jensen, (1837-1911), romancista e dramaturgo alemão, não causou impressão especial quando

de sua p u b l i c a ç ã o em 1903, e nem sequer f o i considerado um trabalho marcante e significativo no contexto literário daquele fim/começo de século.

A inspiração para essa obra surgiu da atração de Jensen por um relevo grego em m á r m o r e , "Gradiva", pertencente ao Museu Chiaramonti, do Vaticano, mas a difusão, tanto dessa imagem de mulher quanto do p r ó p r i o l i v r o de Jensen, deveu-se, principalmente, à leitura desse romance por Freud e ao estudo que o mesmo lhe consagrou.

Em ocasiões diversas, Freud j á havia demonstrado grande interesse pela arqueologia, no que diz respeito, essencialmente, ao paralelismo possível entre o procedimento arqueológico e o método psicanalítico. Já havia, também, revelado sua fascinação por

Pompeia,

cidade que visitara em

1902.

Assim, ao ter nas mãos o livro de Jensen, interessou-se em estabelecer, uma vez mais, uma conexão entre um lugar - Pompeia - evocativo de elementos ligados a processos de soterramento/escavação e o procedimento psicanalítico, ligado a questões de recalcamento (soterramento) e de escavação pela análise.

A o publicar, em 1907, o estudo "Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen", Freud transformou esse romance em uma celebridade e deu-lhe uma popularidade que se estendeu para além das fronteiras da literatura. A história de u m j o v e m a r q u e ó l o g o na conturbada busca de si mesmo e da mulher amada ganhou um alcance certamente jamais imaginado por Jensen. Pois, a partir da p u b l i c a ç ã o do estudo de Freud, seu l i v r o passou a influenciar uma elite intelectual formadora de opinião, e a imagem de Gradiva - a j o v e m de vestes e s v o a ç a n t e s , sandálias e andar gracioso e sedutor - incorporou-se ao i m a g i n á r i o de uma é p o c a e f o i difundida por meio de

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outras formas artísticas. Foi pintada por Salvador Dali e por A n d r é Masson e deu nome a uma galeria de arte surrealista inaugurada, em Paris, por A n d r é Breton.

O trabalho sobre o livro de Jensen foi o primeiro estudo sistemático de uma obra literária completa publicado por Freud, e, nele, o autor d á visibilidade e concretude ao objeto teórico construído por suas pesquisas. Sem que se torne uma leitura redutora, o estudo freudiano demonstra de que modo esse romance pode ser lido como um caso clínico, contendo o desenrolar de um problema e sua cura.

N ã o é esse, entretanto, o objetivo da leitura aqui apresentada. Nela, procura-se desenvolver uma reflexão sobre relações de e s p a ç o , tempo e linguagem e sobre seus efeitos quando os mesmos perfazem a função de elementos estruturantes que se configuram como espaços mediadores na busca de identidade. Procura-se, ainda, enfatizar a instigante questão do espaço físico como representativo de espaços mentais no processo de desconstrução/reconstrução do relacionamento do personagem Norbert com seu corpo e seu tempo.

Uma escultura em gesso, cópia de u m relevo em m á r m o r e de propriedade de um museu de antigüidades em Roma, é colocada por Norbert Hanold no seu escritório na Alemanha. O relevo, que representa uma j o v e m caminhando, vai pouco a pouco exigindo um tempo e uma atenção cada vez maiores de Norbert, j o v e m a r q u e ó l o g o . Passa ele, e n t ã o , a colocar seus conhecimentos científicos a serviço da busca de explicações que possam revelar a r a z ã o do impacto da escultura sobre seu intelecto e sua i m a g i n a ç ã o . N o entanto, confundido cada vez mais por estranhos sentimentos, o j o v e m cientista decide, subitamente, realizar uma viagem à Itália. A partir daí, uma rede de l e m b r a n ç a s , o b s e s s õ e s , temores, d ú v i d a s e perguntas passa a ser tecida em torno de Norbert e sua figura de m á r m o r e / g e s s o . Buscando respostas em outro e s p a ç o e outro tempo, o a r q u e ó l o g o c o m e ç a a desenterrar seu próprio passado e a recontar sua própria história.

E intenção deste trabalho comentar sobre as maneiras como isso se d á , sobre a dinâmica do espaço no percurso de Norbert em sua evasão no tempo, sobre o mergulho no delírio e a posterior reconstrução de u m mundo de identidade e realidade.

A Perda do Corpo

A o se proceder ao exame detalhado da personalidade de Norbert Hanold, nota-se que sua disposição para atender aos apelos vindos da tradição familiar funciona, de certa forma, como um elemento paralisador no processo de desenvolvimento de sua personalidade. A o se dedicar com fervor à idéia de dar continuidade ao nome feito por seu pai no campo da ciência, Norbert abdica pouco a pouco de uma vida pessoal e, mais que isso, de toda sua vida afetiva. O sentido de sua existência passa a ser exprimido tão somente através de sua ligação com o m á r m o r e e o bronze que se tornam a única via de acesso ao e s p a ç o por ele habitado.

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A c o m p a r a ç ã o que ele mesmo estabelece entre sua vida e a do c a n á r i o na casa em frente é reveladora de dois aspectos de suma importância. O primeiro deles reforça, inquestionavelmente, a certeza de que Norbert vive em u m mundo de limites muito estreitos. O segundo revela a idéia de que o j o v e m arqueólogo, embora habitando u m e s p a ç o no qual a linguagem está esvaziada de sentido, n ã o perdeu de todo, ainda, algumas referências bem saudáveis se analisadas do ponto de vista p s í q u i c o . Pois, é capaz de perceber que, assim como a garganta do canário exprime a necessidade de algo que a ave adivinha n ã o possuir, t a m b é m sua i m a g i n a ç ã o faz com ele perceba existir em si um sentimento agudo de falta; e é essa i m a g i n a ç ã o que vai iluminar

cantos desconhecidos de sua mente.

Se analisarmos a origem da palavra imaginação, veremos que a mesma, vinda do latim imago-imaginis, significa representação, imagem, fantasma, recordação. N ã o fica difícil, portanto, detectarmos no sentimento de falta, t ã o pungentemente pressentido por Norbert, a p r e s e n ç a de elementos do inconsciente que, ao aflorar ao consciente, quais fantasmas vindos do passado, funcionam como u m sinal do embate entre o poder do que f o i recalcado e o poder das forças que levaram a esse recalcamento. O sinal, enfim, da luta por uma identidade ainda não de todo abandonada. A o n ã o encontrar, de início, e x p l i c a ç ã o plausível para seu relacionamento obsessivo com a escultura em relevo da mulher a que ele chama de Gradiva, Norbert revela seu desconhecimento da p r e s e n ç a dos fantasmas/recordações/representações em sua vida consciente. N ã o sabe ainda que Gradiva vem dos espaços que ele deixou de habitar, que ela é espelho que reflete a si próprio e seus desejos n ã o realizados. Espelho que reflete seu corpo n ã o habitado e, por isso mesmo, inacessível ao outro.

Sob a ação da censura, o personagem não pode admitir para si mesmo o fato de que a mulher que procura é Z o é e mora na mesma rua que ele. Desloca-se no tempo e no e s p a ç o e fica assim protegido da a m e a ç a da realidade de sua presença. Mas, por esse processo de deslocamento, faz t a m b é m funcionar os mecanismos que acionam a d i n â m i c a e s p a ç o / t e m p o . O e s p a ç o I t á l i a / P o m p é i a / a r q u e o l o g i a desdobra-se inevitavelmente no tempo passado, tempo da história j á vivida, t e m p o / d i s t â n c i a necessários para a r e c u p e r a ç ã o da história e identidade pessoais. A o movimentar-se em espaços t ã o cheios de significação, Norbert entra em uma d i m e n s ã o de mundo que funciona, em última instância, como a porta de entrada para o mundo do desejo e do reconhecimento dos limites do próprio corpo.

O E s p a ç o Mediador

É de suma importância perceber a interrelação e s p a ç o físico/espaço psíquico que passa a existir, com significação cada vez maior, após a chegada de Norbert à Itália. É ela uma relação plena de nuances e de sutilezas mas que, à força de repetição, passa a revelar-se claramente como elemento-chave para a c o m p r e e n s ã o das

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neuroses, dificuldades e e s p e r a n ç a s que presidem as r e l a ç õ e s humanas no contexto escolhido e trabalhado pelo autor.

No mundo de Norbert, as palavras n ã o dizem mais aquilo que deveriam dizer e é do e s p a ç o que ele passa a habitar ao cruzar os p o r t õ e s do Ingresso de Pompeia que v ê m as vozes ecoando aquelas do que jaz esquecido no inconsciente.

De maneira simbólica, c o m e ç a efetivamente após sua passagem pelo Ingresso, o processo terapêutico que leva Norbert a desenterrar e reconstruir o que foi recalcado, soterrado durante os anos de estruturação de sua personalidade. As vozes ouvidas nas pedras de Pompeia v ê m , realmente, do que se encontra para a l é m das fronteiras do consciente mas a m e d i a ç ã o entre a voz que fala e o ouvido que a escuta é feita pelo e s p a ç o . É dele que parece brotar tal som e é ele, como mediador, que faz afinal surgir a fala em Norbert. O " m u r m ú r i o que parecia sair das pedras" (Jensen, 1987, p.41) c o n t é m metaforicamente e em estado de latência a história de Norbert e seus conflitos. O reconhecimento de suas formas ocorre dentro de um percurso que leva o sujeito/paciente a caminhar do e s p a ç o do delírio ao e s p a ç o do corpo reencontrado.

É interessante observar que ao reconhecer em si mesmo u m estado de espírito intermediário entre c o n s c i ê n c i a e inconsciência, é no cruzamento entre o Vicolo di

Mercúrio e a Strada di Mercúrio que Norbert se encontra. Todas as a s s o c i a ç õ e s

ligadas a M e r c ú r i o tornam-no u m elemento extremamente significativo no contexto no qual Norbert está envolvido. Por ser esse o deus das potencialidades e dos caminhos e o patrono dos viajantes, a m e n ç ã o a seu nome enfatiza a jornada que então se inicia em Pompeia e sugere o bom augúrio de sua p r o t e ç ã o . Seu nome grego, Hermes, significa intérprete ou mediador e, para os gregos, por ser ele o mensageiro do c é u e da luz, representava o poder da palavra falada. Como metal, o m e r c ú r i o , por seu caráter fluido e dinâmico, simboliza o inconsciente e representa a capacidade ilimitada de transformação. E ainda apontado como o deus do duplo: corpo e espírito, matéria sólida e líquida. Na sua representação pictórica aparece usando sandálias com asas, o que traz à consideração, a figura de Gradiva, aquela que a v a n ç a "no seu passo leve" (Jensen, 1987, p.46).

E é exatamente aí, na Strada di Mercúrio, que Norbert v ê surgir a mulher de seu delírio. A associação com o percurso que ele está a seguir n ã o pode ser evitada. Pois que, Gradiva, ao aparecer frente a seus olhos, está saindo da casa de Castor e Pólux e se encaminhando para a Casa di Apollo. Castor e P ó l u x s ã o t a m b é m deuses protetores dos viajantes, o que reforça a idéia da caminhada psicológica a que Norbert está sujeito e acrescenta a idéia de que Gradiva é parte da viagem. A p o l o , que é o deus da luz, tem em comum com Mercúrio a associação com a claridade. Sua presença adiciona, porém, um novo elemento: por ser também o deus da cura (é pai de Esculápio, o deus da medicina) sugere o bom termo do percurso do a r q u e ó l o g o .

Se alguma d ú v i d a ainda permanece quanto à i m p o r t â n c i a da r e l a ç ã o e s p a ç o / personagem neste contexto, parece agora razoável eliminá-la. Porque até mesmo os

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animais e as flores - lagartos, borboletas, moscas e papoulas, asfódelos, rosas - que fazem parte da paisagem de

Pompeia,

têm o seu lugar no espaço físico e psicológico de Norbert. Tais elementos tornam-se símbolos repletos de sentido à medida que, como um espelho, refletem a história vivida do sujeito.

N ã o é, pois, surpreendente que o poema Metamorfoses de O v í d i o seja uma referência de certa constância dentro do texto. A m e n ç ã o ao poeta romano que t ã o magnificamente soube misturar em seu trabalho a mitologia, a lenda e a história torna-se parte desse espelho. Reflete, acima de tudo, a instabilidade das formas da Natureza, sua mutabilidade e, principalmente, pelas descrições nas Metamorfoses (a mulher que é transformada em pássaro, as pedras que se tornam pessoas e a j o v e m que se transforma em á r v o r e ) enfatiza a c o r r e s p o n d ê n c i a e s p a ç o f í s i c o / e s p a ç o psicológico aqui analisada. Aponta t a m b é m para aquilo que f o i censurado e jaz recalcado no inconsciente de Norbert: a força de seus impulsos eróticos, seus desejos de origem sexual. E m u m de seus encontros com G r a d i v a / Z o é (exatamente aquele que se d á frente ao afresco de "...um sátiro que, com uma víbora na m ã o , assustava uma jovem bacante") (Jensen, 1987, p.51) ele observa fascinado o "pequeno colchete de ouro" (Jensen, 1987, p.52) que lhe fecha o vestido. A m e n ç ã o ao colchete de ouro ecoa sua m e n ç ã o anterior ao poeta Ovídio e a descrição nas Metamorfoses do colchete polido que fecha a túnica de Atalanta. A figura de Atalanta, a que anda com pés

ligeiros, mistura-se, na c a b e ç a de Norbert, à figura de Gradiva, aquela que avança

("a mitologia, a literatura, a história e a arqueologia se misturavam em sua c a b e ç a " ) (Jensen, 1987, p.49) e ilumina o c o n t e ú d o erótico de sua fantasia e de seu desejo pela mulher que tem o vestido fechado pelo pequeno colchete de ouro.

O Processo Terapêutico

A o encontrar Z o é / G r a d i v a e falar com ela, Norbert, sem o saber faz entrar em cena, de maneira objetiva e palpável, o outro-objeto-do-desejo. O confronto com esse outro torna-se, então, de grande eficácia terapêutica. E importante lembrar que o processo patológico aqui analisado progrediu e se solidificou porque o contato com o

outro foi interrompido em u m dado momento da história do sujeito. O acesso ao

objeto do desejo f o i bloqueado e assim permaneceu. No entanto, o contato com esse objeto através da palavra d á início e continuidade ao processo de r e c u p e r a ç ã o psicológica, ao processo de cura.

Como j á mencionado neste trabalho, elementos físicos da paisagem, entre eles animais e plantas, ganham dimensão simbólica ao se interligarem à história de Norbert. Neste caso funcionam para o leitor como formas de balizamento, de indicadores das várias fases e do progresso de Norbert em direção à cura. Por tal r a z ã o , é significativo proceder-se à análise dos mesmos e procurar o sentido que subjaz a cada u m deles.

Veremos, e n t ã o , que o lagarto é associado à luz e ao sol. Por aparecer tradicionalmente como s í m b o l o da alma que busca a luz ele tem sido t a m b é m

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mencionado como s í m b o l o de ressurreição. A cura da mente delirante significa o renascer para uma vida de claridade e equilíbrio. E m um dos sonhos do a r q u e ó l o g o , Gradiva arma u m laço e apanha u m lagarto. A o tentar libertar-se do sonho, Norbert tenta t a m b é m libertar-se do laço e é socorrido por um p á s s a r o que voa levando o lagarto no bico. Dentro desse sonho agitado, Norbert é, certamente, o p á s s a r o em liberdade, e é, ao mesmo tempo, o lagarto que é libertado: é, enfim, aquele que deixa a escuridão e voa em d i r e ç ã o ao sol. Nesse sentido, é interessante lembrar que Z o é , de quem vem para Norbert parte da luz iluminadora da razão dentro da e s c u r i d ã o do seu delírio, reside, enquanto em Pompeia, no Albergo dei Sole.

Assim como o lagarto, a borboleta vem confirmar a e x i s t ê n c i a da a t r a ç ã o inconsciente de Norbert em d i r e ç ã o à luz. T a m b é m ela é s í m b o l o de r e s s u r r e i ç ã o e traz à tona, uma vez mais, a idéia de transformação j á contida na m e n ç ã o ao poema

Metamorfoses. Tal se dá, j á que o sentido simbólico essencial da borboleta

encontra-se em sua metamorfoencontra-se de ovo a crisálida e d a í ao inencontra-seto alado, que tem na atração pela luz do sol sua característica mais fundamental.

Nesse sentido, pode parecer, à primeira vista, que as moscas n ã o se enquadram nessa função de balizamento. E m diferentes partes da narrativa, Norbert refere-se a elas como terrível flagelo que atormenta o ser humano. N o entanto, em determinado ponto do que temos aqui chamado de processo terapêutico veremos que a r e a ç ã o do personagem é surpreendente pois que foge do seu p a d r ã o regular de comportamento. A o recolher-se para dormir, é perturbado por uma mosca que se p õ e a zumbir em torno de seu nariz. P o r é m , ele a transforma, mentalmente, em uma borboleta a adejar em volta. N ã o se trata aqui apenas de registrar a m u d a n ç a na atitude do j o v e m arqueólogo, mas, principalmente, observar que a mosca, t ã o comumente associada à d o e n ç a , n ã o o atormenta mais. Provavelmente, porque, tendo o processo de cura se iniciado, ela j á não mais funcione como a representação visível da patologia de Norbert. N o Oriente, a mosca representa a alma errante vagando sem descanso, mas, aqui, o personagem j á é capaz de transformá-la na borboleta, simbolizadora de uma forma de ressurreição. Vê-se, então, que a função de elemento indicador da cura, é preenchida pela mosca. Como o lagarto e a borboleta, t a m b é m a mosca vai apontar para o fato de que a alma errante c o m e ç a a encontrar seu caminho em d i r e ç ã o à luz.

E, realmente, significativo observar que ao voltar a Pompeia na m a n h ã seguinte não é pelo Ingresso que Norbert entra na cidade mas pela "Porta di Nola, que n ã o era vigiada" (Jensen, 1987, p.58). A p ó s a transformação da mosca em borboleta, v ê -se que não está t a m b é m tão -seguramente vigiada a porta de entrada para o inconsciente do jovem cientista.

Os sentimentos confusos provocados pela p r e s e n ç a ambivalente da e s c u r i d ã o e da luz revelam-se de maneira i n e q u í v o c a a t r a v é s da p r e s e n ç a das flores na paisagem. Coexistem no mesmo espaço, os asfódelos, as papoulas e as rosas. Norbert,

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em dado momento, colhe e leva consigo u m ramo de a s f ó d e l o s , as flores dos mortos, do mundo subterrâneo, numa visível sugestão de que as vozes do inconsciente e s t ã o sendo ouvidas pelo consciente. A e x i s t ê n c i a ali de campos de papoulas, as flores do sono, do sonho e do esquecimento concretizam a p r e s e n ç a do recalcado da mesma forma que os a s f ó d e l o s sugerem a volta do recalcado ao consciente. S ã o flores que enfatizam a p r e s e n ç a da e s c u r i d ã o e que s ã o complementadas pelas rosas vermelhas, que revelam a e x i s t ê n c i a da luz para a qual caminha Norbert. A s rosas vermelhas são, na mitologia, as flores consagradas a V é n u s . S ã o s í m b o l o s de amor, renascimento e r e g e n e r a ç ã o e, Norbert, ao colher uma b r a ç a d a delas para dar a Z o é / G r a d i v a , mostra, a t r a v é s do e s p a ç o e da a ç ã o físicas o que se passa c o m ele em nível psicológico.

Pode se considerar a Casa dei Fauno como tendo valor s i m b ó l i c o semelhante à q u e l e das rosas. O fauno e o significado erótico que a ele se liga completam a idéia sugerida pelas rosas, mas ao mesmo tempo, mostram como ainda é difícil para Norbert, viver seu próprio corpo. Lembremo-nos que, fechado na gaiola das c o n v e n ç õ e s , ele fez com que ficasse paralisada a d i n â m i c a do seu desejo e com que fosse colocado u m freio em sua vida afetiva. A e v o l u ç ã o de u m processo p s i c ó t i c o tomou e n t ã o o e s p a ç o que deveria ser ocupado por seu corpo. Por tal r a z ã o , o personagem fica profundamente perturbado ao ver u m casal que se beija dentro da Casa dei Fauno. V ê - s e aí q u ã o necessário ainda é que Norbert percorra mais alguns e s p a ç o s antes que possa sair do cativeiro, usar suas asas para voar nas alturas em ar puro e em liberdade, tal qual o pássaro cujo "grito ridente" "ouve" e o qual vê atravessar voando "a cidade em r u í n a s " (Jensen, 1987, p.66).

O Encontro

É na vila de Diomedes que Norbert consegue finalmente terminar seu trabalho

de escavação. N o entanto, é esse o local que, mais que qualquer outro em Pompeia,

faz lembrar a morte. Pois todos os que nele se haviam refugiado haviam sido transformados em cinza. A q u i parece haver uma inversão da c o r r e s p o n d ê n c i a local/ personagem, quer dizer, o personagem que procura a luz/vida vai afinal encontrá-la em local de cinza/morte. Mas, na verdade, a inversão n ã o se d á se se levar em conta que " A villa de Diomedes era assim denominada... porque u m certo Libertus Marcus Arrius Diomedes... aí havia c o n s t r u í d o um t ú m u l o . . . " (Jensen, 1987, p.88).

O t ú m u l o reforça a idéia da morte mas, em contrapartida, o fato de haver sido construído por uma pessoa cujo nome é precedido de Libertus aponta irresistivelmente para a idéia de liberação conseguida após a vivência de u m conflito, de uma cisão interna. E é do túmulo do inconsciente que se originam as formações que irão, finalmente, metamorfosear Gradiva em Z o é , cujo nome significa vida e que traz a Norbert "a r e c o r d a ç ã o de um tempo l o n g í n q u o " (Jensen, 1987, p.93). Podemos ver

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assim o tempo ("tempo l o n g í n q u o " ) e o e s p a ç o (Pompeia, local privilegiado de e s c a v a ç ã o ) perfeitamente integrados. Como perfeitamente integradas estão t a m b é m as figuras de Gradiva e Z o é Bertgang, integração presente até mesmo semanticamente "Pois Bertgang e Gradiva têm o mesmo sentido e querem dizer aquela que resplandece

ao andar" (Jensen, 1987, p.97).

Pode-se dizer que Norbert t a m b é m resplandece ao andar do e s p a ç o / t e m p o presente ao e s p a ç o / t e m p o passado e d a í de volta ao presente, em u m percurso que leva do delírio à r a z ã o . A caminhada no e s p a ç o permite-lhe, enfim, a caminhada no tempo e devolve-lhe, n ã o só "a possibilidade de falar" (Jensen, 1987, p.92) como ainda faz com que volte a ter "olhos na cara, língua na boca, l e m b r a n ç a s . . . " (Jensen,

1987, p.95).

O outro-objeto-do-desejo n ã o é mais o outro-objeto-do-medo. O recalcamento fizera sua tarefa ao inibir o afeto. No entanto, porque determinadas resistências foram superadas, p ô d e o recalcado voltar ao consciente e o afeto ser restaurado. A parceira ali está e Norbert, por ter reencontrado seu p r ó p r i o corpo, é capaz de r e c o n h e c ê - l a : ao ter acesso a si mesmo ele tem t a m b é m o acesso ao outro.

Caminhando sobre as lajes de Pompeia, Z o é , a pedido de Norbert, cruza-lhe à frente "para o outro lado da rua" (Jensen, 1987, p. 102). U m a última vez vê-se aqui o e s p a ç o físico como representativo do p s i c o l ó g i c o : a m o v i m e n t a ç ã o de Z o é de u m para o outro lado da rua funciona como r e p r e s e n t a ç ã o da cura de Norbert, de sua passagem dos caminhos da alienação para aqueles de u m equilíbrio possível. Tal m u d a n ç a se faz registrar, n ã o exatamente na mistura das vozes que ecoam pelo texto e se mostram reveladoras de n í v e i s diversos de e n u n c i a ç ã o e enunciado, mas, especificamente, em um e s p a ç o multidimensional que se faz linguagem capaz de explicar a fascinante complexidade das relações do eu consigo próprio e do eu com o

outro.

LOBO, Suely Maria de Paula e Silva. Space and time: symbolizing relations in Wilhelm Jensen's

Gradiva. Itinerários, Araraquara, n. 15/16, p. 99-107 , 2000.

• ABSTRACT: This work presents a reading ofWilhelm Jensen's Gradiva - uma fan-tasia pompeiana, emphasizing the spatial, temporal and linguistic relations and their possibilities as mediators in the reconstruction of an identity and of a per-sonal reality.

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Referências Bibliográficas

JENSEN, W. Gradiva: uma fantasia pompeiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

Bibliografia

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Referências

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