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Marcelo Santos Matheus ALFORRIAS EM ALEGRETE-RS (1832-1871)

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Marcelo Santos Matheus

ALFORRIAS EM ALEGRETE-RS (1832-1871)

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Marcelo Santos Matheus

ALFORRIAS EM ALEGRETE (1832-1871)

Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso de História - Área das Ciências Humanas,

do Centro Universitário Franciscano, como requisito parcial para aprovação no Curso de

História.

Orientadora: Prof. Ms. Janaina Souza Teixeira

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Marcelo Santos Matheus

ALFORRIAS EM ALEGRETE (1832-1871)

Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso de História – Área de Ciências Humanas, do Centro Universitário Franciscano, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado em História.

___________________________________________ Prof. Ms. Janaina Souza Teixeira – Orientadora (UNIFRA)

___________________________________________ Prof. Drª. Nikelen da Costa Witter (UNIFRA)

___________________________________________ Prof. Ms. Roselâine Casanova Corrêa (UNIFRA)

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Dedicatória

À minha mãe, meus avós e a minha companheira, Clarissa.

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Agradecimentos

Agradeço a professora Janaína pelas sugestões, correções, conversas, enfim, pela rigorosidade na orientação (inclusive em relação aos prazos, sem os quais não funciono).

Ao mestre, no sentido poético da palavra, Farinatti, por exigir sempre complexidade nas análises sociais, e também pela amizade.

Ao colega Max pelas “viagens” teóricas. Aos colegas Leandro e Piruka pelos clássicos no playstation.

À professora Nikelen pelas aulas inesquecíveis. À professora Rose pelas ótimas aulas, onde o debate foi sempre possível. A estas duas docentes, também, por terem aceitado o convite para participar da minha banca.

À minha “tia” Flávia pelas correções e conversas sobre tema. Ao Gustavo pela ajuda com a formatação do texto.

À Clarissa, por me ouvir DIARIAMENTE comentar este trabalho. E por ser mais um grande motivo para eu lutar pelos meus objetivos.

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RESUMO

O presente estudo teve por finalidade analisar o processo de passagem da escravidão para a liberdade, tendo as Cartas de Alforria como principal fonte do corpo documental, no município de Alegrete entre os anos de 1832 e 1871. A metodologia utilizada foi a

quantitativa, baseada nos pressupostos da História Serial. As informações contidas nas manumissões foram, depois de coletadas, dividas em 28 categorias analíticas como, por exemplo, nome do alforriado, a forma que ele chegou a liberdade, data do registro, sexo e cor do liberto - e digitalizadas em uma planilha tipo “Excel for Windows”. A principal influência teórica deste trabalho foi a nova historiografia referente a escravidão no Brasil, que surgiu nos anos 1980 e consolidou-se na década de 1990, a qual entende a ação dos cativos como elemento fundamental para compreensão das relações escravistas, suplantando uma visão historiográfica que via estes indivíduos como agentes passivos no processo histórico. Assim, de acordo com os resultados encontrados a partir da quantificação das manumissões, percebeu-se que, em primeiro lugar, as mulheres eram as que mais alcançavam a liberdade, sendo que dentre elas as crioulas (cativas nascidas no Brasil) eram o maior número. Por outro lado, mais de 50% dos forros chegaram a tal condição pagando ou prestando serviço ao seu senhor por mais algum tempo, o que elimina um caráter benevolente da alforria. Por fim, outra importante constatação foi à presença de um significativo número de indivíduos atuando junto ao liberto para a conquista da liberdade deste.

Palavras-chave: Alegrete; Alforrias; Liberdade.

ABSTRACT

The present study aims to examinate the process of moving from slavery to freedom, through the certificates of freedom as the main source of the document’s body, in the city of Alegrete between the years 1832 and 1871. The methodology used was the quantitative, based on the assumptions of Serial History. The information contained in manumissions were collected, divided into 28 analytical categories such as name, manumitted, the way he achieved the freedom, registration time, sex and color of the freed - and scanned on a worksheet type Excel for Windows. The main theoretical influence of this work was the new historiography on slavery in Brazil, which emerged in the 1980s and was consolidated in the 1990s, which means the action of the captives as key to understanding relations between slaves and masters, supplanting a historiographical view that saw these people as passive agents in the historical process. Thus, according to the results from the quantification of manumissions, it was noticed that, first, women were the group that most reached freedom, and among them the creoles (captive born in Brazil) were the most. On the other hand, more than 50% of the manumitteds reached by condition, paying or providing service to his master for some time, which eliminates a benevolent character of manumission. Finally, another important finding was the presence of a significant number of individuals that worked together for the conquest of freedom for a member of their group.

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Lista de Tabelas

TABELA 1.1 – População de Alegrete segundo o sexo, 1859...33

TABELA 1.2 – População de Alegrete segundo a condição jurídica, 1859 ...33

TABELA 1.3 – População do RS e de Alegrete segundo a condição jurídica, 1872...34

TABELA 1.4 – População escrava de Alegrete segundo o sexo, 1872...34

TABELA 1.5 – Posse de escravos entre os criadores de gado ...35

TABELA 2.1 – Alforriados em Alegrete segundo o sexo – 1835-1871 ...38

TABELA 2.2 - Alforrias em Alegrete conforme o sexo e dividido por décadas, 1835-1871..40

TABELA 2.3 - Alforrias em Alegrete quanto a cor, 1835-1871...42

TABELA 2.4 – Africanos e crioulos nas alforrias de Alegrete, 1835-1871 ...42

TABELA 2.5 – Distribuição das alforrias por décadas, sexo e origem, 1835-1871 ...43

TABELA 2.6 - Formas das alforrias de Alegrete segundo o sexo, 1835-1871...44

TABELA 2.7.1 - Porcentagem das formas de alforrias por décadas, 1835-1871 ...51

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Lista de Figuras

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...10

HISTORIOGRAFIA, ESCRAVIDÃO E LIBERDADE...17

DA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO À INSTALAÇÃO DO MUNICÍPIO DE ALEGRETE...28

Características da população, da economia e da estrutura de posse escrava...32

A LIBERDADE EM NÚMEROS ...37

Gênero dos alforriados ...38

Cor e nacionalidade ...41

Forma da alforria ...44

A FRONTEIRA E A GUERRA COMO OPORTUNIDADES ...56

Por ter ido ao Estado Oriental...57

Guerra e liberdade: o descomprometimento de Alegrete com a causa brasileira ...64

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...71

FONTES ...78

Fontes primárias ...78

Fontes primárias impressas...78

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INTRODUÇÃO

Em 28 de julho de 1832 foi registrada a primeira carta de alforria da vila de Alegrete. A mulata Cipriana Maria de Jesus pagou 12 doblas (moeda antiga, de valor variável) mais a sisa (imposto pago quando da transferência de um cativo) pela sua manumissão a José Antônio da Silva1. Com isso, ela se tornou o primeiro escravo a alcançar a liberdade através da alforria naquele município, prática costumeira tanto no Brasil colonial, quanto no imperial, mesmo sem uma lei específica que a contemplasse.

A carta de alforria foi concedida em 03 de março de 1831, sendo registrada apenas quase um ano e meio depois, provavelmente quando Cipriana efetuou, ou completou, o pagamento. Mesmo pagando pela sua liberdade, ela ficou obrigada a “manter-se obediente, respeitando ao senhor” por mais cinco anos. Como veremos, este tipo de alforria, paga com condição, não foi uma prática muito comum em Alegrete - bastante rara na verdade. Contudo, a complexa negociação que envolveu este processo, esta sim permeou grande parte das manumissões.

A liberdade, que Cipriana conquistou, tem uma longa história, assim como a escravidão. Entretanto, conceitualmente, esta última acompanha a humanidade a mais tempo. A liberdade vinculada a uma igualdade jurídica entre todos os homens, iguais perante a lei desde seu nascimento, e pertencentes a uma coletividade política, esta sim, tem uma história bem mais curta, datando efetivamente de fins do século XVIII, espraiando-se alhures, especialmente nos países ‘ocidentais’ apenas no século XIX, principalmente depois de 18502.

No Brasil, conforme Manoela Carneiro da Cunha3 a alforria4, ou seja, a possibilidade de um cativo alcançar o mundo dos livres, era uma prerrogativa que “competia exclusivamente ao senhor conceder”. Isto pelo menos até 1871, ano da promulgação da Lei do

1 Livros Notariais de Registro Diversos, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 8r, APERS. 2 REIS, João José; SILVA, Eduardo.

Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, 71.

3 CUNHA, Manoela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no

Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.

126.

4 “Liberdade que o senhor dá ao escravo. Do árabe alhorria”. Informação em: FLORENTINO, Manolo. Sobre

minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1881. In: MANOLO, Florentino (org.).

Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005,

p. 361. “Liberdade concedida ao escravo. Do árabe al-hurrya”. Em: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.

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Ventre Livre, que tornou oficial o direito a manumissão ao escravo que conseguisse juntar o valor necessário para a compra da sua liberdade, embora o direito a este pecúlio ainda dependesse da anuência do senhor. Mesmo assim, a conquista da liberdade mediante a carta de alforria foi uma tônica na história brasileira.

Compreender como este processo - a passagem da escravidão para a liberdade, ocorreu em Alegrete, município inserido em uma sociedade com fortes traços sociais e políticos de

Antigo Regime, onde a desigualdade natural entre as pessoas era a norma e “os laços de solidariedade e de submissão” desempenhavam “um papel decisivo no posicionamento dos indivíduos na sociedade”5, é o que busca responder esta pesquisa.

Inicialmente, o objetivo do estudo era encontrar somente os padrões pelos quais os escravos alcançavam a liberdade, através da quantificação das alforrias. No entanto, a riqueza dos textos das cartas de alforria, e o indício de que a manumissão foi, na maioria das vezes, uma conquista coletiva, fizeram com que o objetivo primeiro da pesquisa deslocasse um pouco seu foco. Isto não quer dizer que a quantificação tenha sido deixada de lado, sendo ainda parte fundamental da estrutura do estudo.

Antes, é importante salientar, a manumissão, ou seja, a possibilidade de conquista da liberdade jurídica, não pode ser tratada pelo historiador (tendo este a concepção ou não da liberdade como algo natural) mais de um século após do período estudado, como uma

obsessão de todos os escravos que viveram aquele período - mesmo por que nem todos tinham acesso ou a capacidade para alcançá-la, sob pena de cair no mais completo anacronismo. Como comentam Frederick Cooper, Thomas Holt e Rebecca Scott6 na introdução de seu livro ‘Além da Escravidão’, “a suposição de que a percepção que temos de nossa própria sociedade representa um padrão universal em relação ao qual a escravidão pode ser definida”, além de causar certa “tensão no esquema conceitual” acerca da liberdade, não leva em conta que esta última tinha diferentes significados na Europa e na África.

A alforria era uma possibilidade e um objetivo dentre tantos outros que os cativos vislumbravam para suas vidas (possivelmente o mais desejado e o mais difícil). Não estou com isso repetindo as palavras preconceituosas, segundo os valores atuais, do viajante francês Nicolau Dreys7, o qual afirmava que os escravos tinham um “vago desejo de liberdade”, pois

5 ENGEMANN, Carlos. Da comunidade escrava e suas possibilidades, séculos XVII-XIX. In: MANOLO,

Florentino (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2005, p. 173.

6 COOPER Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J.

Além da Escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 45-46.

7 DREYS, Nicolau.

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“saindo do cativeiro dos brancos, caem no cativeiro mais duro das misérias e dos vícios”, conquistando “uma liberdade que não saberiam usar”. Muito menos as de Fernando Henrique Cardoso8, para quem a “situação real em que viviam” os escravos, os impedia de se apropriar “dos requisitos culturais, sociais e materiais necessários para a realização objetiva de seus desígnios”, como obter a liberdade. Como se verá na principal hipótese deste estudo, o pensamento de Dreys e de Cardoso (da incapacidade do negro do século XIX de viver em liberdade) é diametralmente oposto ao que será defendido aqui.

O que quero dizer é que, antes da liberdade, o indivíduo podia ter como sonho, como projeto de vida, por exemplo, a melhora da sua alimentação; a possibilidade de uma maior liberdade de movimentação para visitar parentes e amigos em outra propriedade, ou mesmo para freqüentar uma pulperia9; o acesso a produção e/ou um pedaço de terra para cultivo próprio, quando do caso, ou o aluguel do seu trabalho para outrem que não seu senhor; mais tempo para trabalhar para si; o desejo de ser vendido para uma escravaria onde habitassem entes queridos (ou a uma escravaria que representa-se um “bom cativeiro”10); ou a possibilidade de casar.

Segundo, alguns cativos podiam “não querer qualquer” liberdade, por mais absurda que possa parecer essa frase. Os motivos para isto podiam ser os mais variados e inusitados, como veremos em um caso. Logo, a alforria deve ser tratada dentro do seu contexto – uma sociedade escravista, onde poucos sabiam quando e se a instituição escravidão iria ter fim (pelo menos para grande parte do período aqui estudado), e não como um sonho de todos os cativos, embora para muitos escravos o fosse, especialmente para aqueles pertencentes aos senhores mais sádicos e cruéis.

Deste modo, este trabalho consiste no mais básico oficio de um historiador: a partir de “estruturas sobreviventes”11 – as cartas de alforria, busca-se reconstruir e entender o (s) processo (s) pelo (s) qual (s) elas foram produzidas. Não tenho a ilusão que através delas seja possível a reconstrução de todo este processo, muito mais complexo do que o texto ali existente nos proporciona saber. Entretanto, acredito ser possível a construção de uma história

convincente através de um método de análise específico e de um cansativo, mas prazeroso,

8 CARDOSO, Fernando Henrique.

Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2003, p. 184.

9 “Taverna. Venda no campo”. Informação em: Aurélio Buarque de Holanda.

Novo Aurélio..., 1999, p. 1666.

Dreys comemorava que os escravos rio-grandenses têm poucas pulperias por perto, dificultando, assim, caírem no vício. DREYS, Nicolau. Notícia Descritiva da..., 1961, p. 168.

10 ENGEMANN, Carlos. Da comunidade escrava..., 2005, p. 201. 11 GADDIS, John Lewis.

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processo de reflexão e imaginação do que era a vida daquelas pessoas – seus sonhos, aflições, percalços, conquistas, insucessos.

Por sua vez, estes indivíduos não serão tratados nem como heróis, nem como vilões, mas como seres humanos agindo dentro dos limites impostos por uma estrutura vigente (uma sociedade escravista, onde as pessoas de pele mais escura tinham menos possibilidades de ação), tentando ampliar seus horizontes e melhorar as condições de sobrevivência, diminuindo as incertezas de suas vidas em um ambiente hostil, onde dispunham de informações limitadas12. Acredito que se o pesquisador partir do pressuposto de que os escravos foram vítimas passivas, é exatamente isso que ele irá “encontrar” nos documentos, pois como bem lembra Gaddis “é muito fácil de achar o que se está procurando, quando se determina a priori

do que se trata”13.

* * *

Dentre as razões que me motivaram a escolher este tema, a escravidão, e mais especificamente a conquista da liberdade por parte dos cativos, a que mais peso teve em minha decisão foi a ansiedade por compreender a realidade na qual estou inserido e as possibilidades de transformação dela. Ao longo do Curso de História, aprendi que para um melhor entendimento do Brasil, enquanto país e nação, e da absurda desigualdade social existente nele, reproduzida década após década, estudar e compreender o século XIX é fundamental. Foi neste período que o país conquistou sua independência e elaborou suas primeiras leis referentes ao acesso a terra, ao trabalho, código criminal, dentre outros assuntos. Foi nele também, que a escravidão, instituição que como lembra Schwartz “não é um problema apenas do passado”, alcançou seu apogeu, numericamente falando, e teve seu fim14. A escolha pelos escravos, deveu-se a eles representarem o grupo mais oprimido e com menos possibilidades de ação. E que, mesmo assim, conseguiram agir de acordo com sua lógica e também influenciar nos rumos que o Brasil tomou.

Assim, dentre os vários assuntos e problemas que o tema escravidão oportuniza, um deles, o da conquista da liberdade, é o foco desta pesquisa. Desde a instalação do cativeiro no Brasil, os escravos, dos mais diversos modos lutaram para aumentar sua autonomia, tanto em meio ao cativeiro, quanto para conquistar a liberdade. Acredito que muitas vezes esta luta

12 LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2000, p. 104.

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deu-se em grupo, através de redes de relacionamento construídas no próprio cativeiro - embora estas relações extrapolassem para o mundo dos livres, hipótese que será defendida neste trabalho. Outras vezes, ocorreu de maneira individual mesmo.

Enfim, a pesquisa teve sua viabilidade e realização facilitada, pois o principal corpo documental do estudo, as cartas de alforria, foi disponibilizado na internet pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul, num importante trabalho realizado por esta instituição e pelos estagiários envolvidos. Desde já, os agradeço. Portanto, o objetivo central deste estudo foi investigar, no tempo e no espaço, como aconteceu a conquista da liberdade, baseada nas

cartas de alforrias, manuseando esta fonte de forma quantitativa, preferencialmente,para que se tenha um panorama geral deste processo. No entanto, em meio a análise dos números, pretende-se iluminar as possíveis estratégias coletivas na busca pela liberdade.

A pesquisa combinou duas metodologias. De forma introdutória, foi feito um estudo bibliográfica que teve dois focos: no primeiro, foi abordada a ocupação da região da Campanha, bem como a evolução administrativa de Alegrete – de Capela Curada à Vila; depois, foi feito um breve debate historiográfico sobre a escravidão, no Brasil e na província, assim como da produção historiográfica sobre as manumissões.

Em seguida, a metodologia empregada envolveu uma análise de tipo quantitativo

baseado, essencialmente, nos pressupostos da história serial. Inicialmente, todas as cartas de alforria para o município de Alegrete, de 1832 a 1871, foram coletadas e digitalizadas em uma planilha tipo “Excel for Windows”. Logo após, fez-se a quantificação dos elementos existentes nas cartas - quantos homens ou mulheres conquistaram a liberdade, a cor da pele, por exemplo, com esta parte praticamente se resumindo a uma análise serial e anônima das fontes citadas, buscando quais foram as características gerais dos alforriados, bem como a maneira pela qual ocorria a manumissão. Em meio aos números, fez-se uma análise qualitativa das alforrias, procurando responder de forma mais complexa como ocorreu a passagem da escravidão para a liberdade, e se neste processo o grupo social em que o cativo estava inserido teve participação decisiva.

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cativos, sendo que em alguns poucos casos, o nome do cônjuge, dos filhos ou mesmo dos padrinhos dos libertos. Estas são informações fundamentais para o entendimento de como ocorria o processo de manumissão e, futuramente, o aprofundamento desta pesquisa.

Desta forma, na construção da planilha, os dados contidos nas cartas de alforrias foram elencados em 23 categorias analíticas, cada qual com informações específicas e que se repetem. Esta serialização possibilitou, como lembram Cardoso e Brignoli15, a busca pelas

tendências constantes nas cartas: mais mulheres do que homens; mais crioulos do que africanos; e assim por diante. Destas 23 categorias, 4 foram destacadas para análise.

Como foi mencionado, dentro das possibilidades permitidas pelo trabalho, uma monografia, os resultados da quantificação, além de serem comparados com outros estudos para outros municípios, ganharam uma análise qualitativa. Contribui para isto a decisão em estudar indivíduos de um determinado município, no caso Alegrete, procedimento que permitiu o cruzamento de fontes (como batismos e processos-crimes), iluminando assim as relações sociais - verticais e horizontais – estabelecidas pelos sujeitos, aprofundando assim a investigação histórica16. Ressalvo que, apesar deste estudo ter um fim em si mesmo, pois é um Trabalho Final de Graduação, pretendo que ele seja o primeiro passo de uma pesquisa mais longa e aprofundada sobre o respectivo assunto.

* * *

Assim, após esta breve introdução do tema e do que pretende este estudo de forma geral, seguem-se as partes que o compõe. A primeira analisa as nuances da historiografia referente à escravidão, no Brasil e no Rio Grande do Sul, assim como a produção sobre as alforrias.

Depois, fez-se uma contextualização do recorte espacial da pesquisa, o município de Alegrete, desde a ocupação da Campanha rio-grandense, até a efetiva instalação da vila. Nele, também serão abordadas as características da população, através de dois censos, bem como quais eram as principais atividades econômicas e os números da estrutura de posse dos escravos. Aqui também foram utilizados trabalhos17 que se valeram dos inventários

15 CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez.

Os Métodos da História. Rio de Janeiro: Graal, 2002,

p. 25.

16 FARINATTI, Luis Augusto Ebling

. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2007, p. 23. (Tese de Doutorado)

17 FARINATTI, Luis Augusto Ebling.

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mortem de Alegrete para um período similar ao desta pesquisa, comparando os números neles encontrados com os dos censos.

Na terceira, o foco são as manumissões propriamente ditas. A partir da quantificação de 230 cartas de alforria, onde aparecem 243 libertos (em algumas há mais de um), pretendem-se verificar quais foram os padrões para se alcançar a liberdade. À elas foram agregadas 6 manumissões ocorridas na pia batismal, perfazendo um total de 249 registros. Sexo, cor, se crioulo ou africano e forma da alforria são os aspectos elencados para análise. Para que seja possível um diálogo com outros estudos, alguns destes elementos serão divididos e analisados dentro de três recortes temporais, os quais guardam alguma semelhança com o recorte de outros trabalhos, facilitando assim a comparação. Esta divisão também é importante no sentido que fornece um panorama das mudanças nas características das alforrias durante os diferentes contextos históricos em que o processo pelo qual elas foram produzidas estava inserido. Da mesma forma, começa-se aqui a agregar outras fontes, como os batismo, na análise de alguns casos.

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A partir dos anos 1970 , com a introdução de novos temas, a influência da antropologia e a possibilidade de acesso a novos tipos de documentos, a pesquisa histórica, em geral, transformou-se, aprofundando em complexidade os debates acerca dos mais variados assuntos. No Brasil, muito influenciada por estes novos ares historiográficos, a partir dos anos 1980, a historiografia relativa à escravidão avançou em diversos sentidos, mudando completamente o entendimento que se tinha sobre aquela instituição e sobre o processo histórico em que ela ocorreu e se reproduziu.

Um dos caminhos que a pesquisa histórica relativa a este tema tem trilhado é o da ação, do protagonismo dos escravos nos mais variados sentidos, desde a conquista da possibilidade de formar família, à autonomia referente ao tempo que disponibiliza para o trabalho com ganhos pessoais (seja na lavoura, na pecuária ou na prestação de serviços em espaços urbanos). Ou seja, a história da escravidão começou a ser contada a partir da perspectiva dos escravos enquanto agentes históricos e não apenas como indivíduos passivos, com a compreensão do que foi a resistência escrava, por exemplo, ganhando novos significados.

No Brasil, no debate histórico acerca da escravidão, durante grande parte do século XX predominou o entendimento de que aquela era tão poderosa que destituía completamente o cativo de humanidade. A grande propagadora desta visão foi a Escola Paulista de Sociologia, que teve entre seus principais representantes Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Este último talvez tenha sido quem mais se aprofundou neste arcabouço teórico sobre a incapacidade do escravo de ter alguma autonomia ou protagonismo, afirmando que:

“Do ponto de vista jurídico é óbvio que, no sul como no resto do país, o escravo era uma coisa, sujeita ao poder e à propriedade de outrem [...] privado de todos os direitos. A reificação do escravo produzia-se objetiva e subjetivamente. Por um lado, tornava-se uma peça cuja necessidade social era criada e regulada pelo mecanismo econômico de produção. Por outro lado, o escravo auto-representava-se e era representado pelos homens livres como um ser incapaz de ação autonômica”19.

18 BURKE, Peter.

A revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989. São Paulo: USP,

1991; _______. Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (org.).A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992; LE GOFF, Jacques. A História nova. In: LE GOFF,

Jacques (org.). A História nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993; REIS, José Carlos. A Escola dos Annales: a inovação na História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

19 CARDOSO, Fernando Henrique.

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Como lembra Robert Slenes20, esta corrente do pensamento social brasileiro teve o mérito de enterrar de vez a ideia de uma escravidão brasileira branda, muito embora negasse ao cativo a posição de sujeito histórico capaz de agir de acordo com uma lógica própria, como formar família, por exemplo. Jacob Gorender21, que já havia publicado importante estudo em 1985, reafirmou suas idéias provenientes de um marxismo com fortes conotações estruturalistas, criticando intensamente, no início dos anos 1990, a nova historiografia que surgia em contraponto à escola paulista. Dentre inúmeras críticas, Gorender enfatiza que esta nova corrente historiográfica passava uma imagem de “uma escravidão muito mais consensual do que coercitiva”22.

No Rio Grande do Sul, os principais autores sobre escravidão foram, principalmente, Décio Freitas e Mário Maestri23. Apesar das diferenças entre estes dois autores, seus trabalhos enfatizaram o estudo do escravo sob a perspectiva do seu papel econômico naquela sociedade. Nesta perspectiva, o cativo apenas se rebelava contra o sistema quando fugia, assassinava seu senhor ou mesmo se suicidava, atacando assim, a propriedade do senhor. Com isso, da mesma forma que a escola paulista, estes autores negavam ao escravo a possibilidade de criarem laços mais complexos, como construir família, por exemplo, dentro do sistema escravocrata.

Como contraponto a esta visão histórica, aquela nova historiografia surgida na esteira do enfraquecimento das teorias estruturalistas passou a entender o escravo não apenas como agente passivo do processo histórico ou mesmo como resultado de um processo econômico mais amplo. Esgotá-la aqui seria impossível. Entretanto, é fundamental apresentar as principais obras que influenciaram teoricamente este trabalho.

Um dos estudos mais importantes, e talvez o mais inspirador, foi o de Robert Slenes em relação à família escrava para o sudeste brasileiro no século XIX24. Nele, além de uma densa revisão historiográfica acerca do tema, o autor demonstra o quanto os cativos eram capazes de agir de acordo com a cultura trazida da região de onde provinham na África, como também segundo a experiência vivida no cativeiro e os laços ali construídos. Stuart Schwartz25, por sua vez, numa publicação que inclui uma série de artigos escritos ao longo de

20 SLENES, Robert.

Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava no sudeste do Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 28.

21 GORENDER, J.

O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1985; _______. A escravidão reabilitada. São

Paulo: Ática, 1991.

22 GORENDER, J.

A escravidão..., 1991, p. 16.

23 FREITAS, Décio.

O Capitalismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de

Brindes, 1980; MAESTRI FILHO, Mário José. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravo gaúcho. Porto Alegre: EDUCS, 1984; _______. Deus é grande, o mato é maior! História, trabalho e resistência dos trabalhadores escravizados no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Editora da UPF, 2002.

24 SLENES, Robert.

Na senzala, uma flor...1999.

25 SCHWARTZ, Stuart.

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sua carreira, acerca do trabalho, da família e da cultura escrava, assim como de alforrias para a Bahia entre os anos 1684 e 1745, também foi importante. Sidney Chalhoub26, procurando entender o significado que os escravos davam à liberdade, na corte no final do século XIX, de igual forma foi inspirador.

João J. Reis e Eduardo Silva27, no livro “Negociação e Conflito”, partiram da premissa de que os escravos “não foram vítimas nem heróis o tempo todo, se situando na sua maioria e maior parte do tempo numa zona de indefinição entre um pólo e outro”. Para eles “os escravos mais negociaram do que lutaram abertamente contra o sistema”, pois mesmo quando se revoltaram com objetivo de “subversão geral da ordem escravista”, ainda que derrotados, “tinham a esperança de criar um clima propício para a negociação”28. E foi nesta negociação29 que o direito ao pecúlio, “que sempre existiu”, se tornou um direito de fato, pois era na “micropolítica onde o escravo fazia sua vida, história”30 - e conquistava a liberdade, acrescento. Porém, é importante ressaltar, o grau de autonomia que derivava ou não desta negociação variava “de uma região para outra”31, por isso a importância de se conhecer as especificidades do local de estudo, como a estrutura produtiva, dentre outros aspectos. Schwartz completa afirmando que “o fenômeno da manumissão, como qualquer outro aspecto do regime escravocrata deve ser examinado com relação à situação sócio-política e econômica predominante”32.

Nesta mesma linha de pensamento, Sidney Chalhoub33, analisando as alforrias para a corte no final do século XIX, chega a conclusão que a Lei do Ventre Livre, marco temporal final desta pesquisa, “pode ser interpretada como exemplo de uma lei cujas disposições mais importantes foram ‘arrancadas’ pelos escravos às classes proprietárias” tendo, assim, “conseqüências importantes para o processo de abolição na corte”, pois costumes agora

26 CHAULOUB, Sidney.

Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São

Paulo: Companhia das Letras, 2001.

27 REIS, João José; SILVA, Eduardo.

Negociação e conflito..., 1999, p. 7.

28 REIS, João José; SILVA, Eduardo.

Negociação e conflito..., 1999, p. 14 e 33.

29 Importante uma ressalva: como bem lembra Nikelen Witter, “um elemento inseparável da história da

escravidão” é que ela representa “uma história do sofrimento humano”. Assim, “o uso de termos como ‘negociação’ [...] pode sugerir que as relações estabelecidas entre estes dois pólos”, senhores e escravos, “fosse menos conflituosa e violenta do que de fato era”. Não é o que se pretende – no caso, amenizar os horrores da escravidão - com esta pesquisa. Pelo contrário. Por ser um indivíduo que nasceu e cresceu na segundo metade do século XX, quando reflito sobre a situação e possibilidade de um ser humano ser posse de outro, o primeiro sentimento que surge é um misto de raiva e nojo. Informação em: WITTER, Nikelen Acosta. Negociando cuidados e liberdades: a prática de saúde, doença e cura entre os senhores e escravos (RS, século XIX).

CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005, p. 1.

30 REIS, João José; SILVA, Eduardo.

Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São

Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 17 e 21.

31 SCHWARTZ, Stuart.

Escravos,... Bauru: EDUSC, 2001, p. 105.

32 SCHWARTZ, Stuart.

Escravos,... Bauru: EDUSC, 2001, p. 176.

33 CHAULOUB, Sidney.

(20)

oficializados pela legislação (como formação de pecúlio para a compra da manumissão) já há muito existiam na relação senhor e escravos. Partindo deste pressuposto, questionou-se: será que estes costumes mencionados também ocorreram na fronteira meridional do Império brasileiro? Não havendo nenhuma legislação específica em relação a esta prática até 1871, o quanto era difundida em Alegrete? O quanto a “lei costumeira”, que conforme Cunha34 “seguia caminhos próprios”, se sobrepunha à “lei positiva” nesta localidade?

A repercussão desta nova vertente historiográfica, no Rio Grande do Sul, não tardou a aparecer, apesar de ainda engatinhar (muito em função da influência de Freitas e Maestri, o qual ainda publica teses onde não aparecem mudanças substanciais em relação às suas idéias iniciais). O maior exemplo, sem dúvida, são os trabalhos de Paulo Moreira35. O autor, tendo Porto Alegre como foco de suas pesquisas, e especialmente as alforrias como fonte, também salientou os cativos como agentes históricos agindo e lutando pela liberdade.

Da mesma forma que discordou de uma historiografia de cunho estruturalista - que não via margem de ação por parte dos cativos, Moreira36 criticou uma historiografia regionalista que deixava invisível a participação do negro na construção do Rio Grande, “um estado que se queria ver apenas como europeu” e, por isso, mais politizado, alfabetizado e trabalhador. O autor considera esta última corrente historiográfica a responsável pela “falta de continuidade e insistência na realização de pesquisas sobre escravismo” para o Rio grande do Sul37.

Outro trabalho importante, especialmente para minha pesquisa, é o de Thiago Araújo38, o qual demonstrou no seu estudo sobre o município de Cruz Alta que em um contexto agropecuário também havia “a possibilidade de acumulação de pecúlio” e, deste modo, a possibilidade dos escravos alcançarem a liberdade. Enfim, outras pesquisas fazem

34 CUNHA, Manoela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei..., 1986, p. 127 e 130. 35 MOREIRA, Paulo Staudt.

Faces da liberdade, máscaras do cativeiro. Experiências de liberdade e escravidão percebidas através das cartas de alforria – Porto Alegre (1858-1888). Porto Alegre: Arquivo Público do

Estado, EDIPUCRS, 1996; _______. Que com se trabalho os sustenta: as Cartas de Alforria em Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre: EST, 2007.

36 MOREIRA, Paulo Staudt.

Que com se trabalho..., 2007.p. 11.

37 MOREIRA, Paulo Staudt.

Que com se trabalho..., 2007.p. 12. Neste mesmo sentido, Regina Xavier

argumenta que foi esta vertente regionalista que construiu “uma imagem que relega a escravidão e aos africanos um papel menor na constituição da população e em seu desenvolvimento social” tendo esta instituição, em solo gaúcho, um “caráter benigno” e insignificante em relação a “constituição branca e superior de seu povo”. Informação em: XAVIER, Regina Célia Lima. Deslindando a história sobre a escravidão no Rio Grande do Sul. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005, p. 8 e 21.

38 ARAÚJO, Thiago Leitão de.

(21)

parte desta renovação historiográfica, contribuindo na mudança do entendimento do que foi a escravidão na província do Rio Grande39.

Portanto, a análise que se fez das alforrias nesta pesquisa baseia-se no pressuposto de Robert Slenes40 de que os escravos eram capazes de agirem junto com seus companheiros para definir projetos comuns, construindo relações de reciprocidade, verticais (com os senhores e outros homens livres) e horizontais (com outros cativos) que objetivavam, às vezes, a conquista da liberdade de um integrante do grupo. Assim, a hipótese central deste estudo é de que a carta de alforria era o resultado de um longo processo onde indivíduos (escravos ou homens livres pertencentes ao seu grupo de relações) agiam coletivamente, em prol da liberdade de um dos integrantes do grupo.

No entanto, não idealizo que a formação de um grupo social, no qual estava inserido um cativo, tivesse o sentido de acabar com a escravidão ou trazer a igualdade a todos os indivíduos. Ao contrário de Jacob Gorender, o qual afirma que “o cativo devia ser por natureza um inimigo da escravidão”41, não creio ser possível naturalizar este desejo de liberdade. Como pondera Engemann42, a busca por essa liberdade não tinha o sentido “de contestar a instituição propriamente dita. Uma vez que esta grassava na África, não é de estranhar que a contestação seja apenas de um modelo mais contundente de escravidão do que dela mesma”. Isto não quer dizer que estas brechas do sistema, ocupadas e ampliadas pela ação dos cativos, não minasse com o tempo a própria instituição, mas a visão idílica de uma África onde prevalecesse a existência “de grupos coesos [...] e de mentalidades coletivista é um conceito tão ocidental quanto o etnocentrismo que critica”43, além de obscurecer a análise do historiador.

Deste modo, é ao lado da vertente historiográfica, tanto no âmbito nacional quanto regional, que vê o escravo também como agente histórico, apesar de extremamente limitado pela estrutura de uma sociedade escravocrata, que este trabalho pretende se colocar, a partir do estudo das cartas de alforria. Como coloca Schwartz “os escravos formavam comunidades

39 OLIVEIRA, Vinícius Pereira de.

De Manoel Congo a Manoel de Paula. Porto Alegre: EST, 2006;

ALADRÉN, Gabriel. Liberdades negras nas paragens do sul. Alforria e inserção social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: PPGH/UFF, 2008. (Dissertação de Mestrado); SCHERER, Jovani de Souza.

Experiências de busca da liberdade: alforria e comunidade africana em Rio Grande, século XIX. São

Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2008. (Dissertação de Mestrado); TEIXEIRA, Luana. Muito mais que senhores e escravos: relações de trabalho, conflitos e mobilidade social em um distrito agropecuário do sul do Império do Brasil (São Francisco de Paula de Cima da Serra, RS, 1850-1871). Florianópolis: PPGH/UFSC, 2008.

(Dissertação de Mestrado)

40 SLENES, Robert.

Na senzala, uma flor...1999, p. 28.

41 GORENDER, J.

A escravidão..., 1991, p. 38.

42 ENGEMANN, Carlos. Da comunidade escrava..., 2005, p. 174. 43 COOPER Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J.

(22)

e estruturas sociais nem sempre controladas pelos senhores”44, e é a busca destas relações construídas pelos cativos que esta pesquisa também se propõe a investigar.

* * *

Durante muito tempo acreditou-se que na região da Campanha45, onde fica o município de Alegrete e caracterizada pela produção pecuária e pela fronteira, o trabalho escravo não se fez presente, ou teve um papel insignificante, especialmente no que diz respeito às atividades ligadas à pecuária. Pensava-se que o cativo, quando utilizado, era empregado apenas no trato com a terra ou em serviços domésticos, nunca como ‘peão’ ou como ‘escravo campeiro’. Por isso, durante um longo período, a história do Rio Grande do Sul, em se tratando de regiões com economia baseada na agropecuária, foi compreendida quase que exclusivamente como protagonizada por estancieiros e peões, com os escravos mais presentes na charqueadas46. Assim, os cativos, quando citados, foram colocados como numericamente pouco importantes, ou seja, como elemento não-estrutural daquela economia ou mesmo daquela realidade como um todo.

Estes trabalhos se basearam, dentre outras fontes, em relatos de viajantes, especialmente do francês A. Saint-Hilaire47. Maestri48, em trabalho que já data mais de 25 anos, apesar de não negar a presença e a “utilização do braço escravo” nas fazendas do Rio Grande, afirma que isso não indica “necessariamente” que ele ocupasse as “tarefas da pecuária”, onde era “um fator fortuito”, sendo mais usado no trabalho da terra. Em novo trabalho, agora de 2002, o autor ainda afirmava que não “deixava de ser perigoso entregar um cavalo a um cativo [...] sem vigilância, sobretudo próximo às fronteiras”49. Continua,

44 SCHWARTZ, Stuart.

Escravos,... Bauru: EDUSC, 2001, p. 15.

45 “Região sudoeste do Rio Grande do Sul, junto à fronteira do Brasil com o Uruguai, em uma faixa que,

partindo do limite nacional, alarga-se para o norte até encontrar o Ibicuí, no centro do território da província”. Informação em: FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2007, p. 20 (Tese de Doutorado); Garcia salienta que o termo Campanha não era usado até, no mínimo, antes de 1880, sendo uma construção a posteriori. Em: GARCIA, Graciela Bonassa. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na campanha rio-grandense oitocentista. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2005, p. 13 (Dissertação de Mestrado)

46 CARDOSO, Fernando Henrique.

Capitalismo e..., 2003; FREITAS, Décio. O Capitalismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980. MAESTRI FILHO, Mário José. O escravo no..., 1984; PESAVENTO, Sandra Jatahy. Farrapos, liberalismo e ideologia. In: DACANAL, José Hildebrando

(org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.

47 SAINT-HILAIRE, Auguste de.

Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987. S.

Hilaire, depois de sair de Montevidéu percorreu um caminho que o levou até os Sete Povos Missões, sempre viajando pela margem esquerda do rio Uruguai, ou seja, passando pelo que seria a Campanha rio-grandense. Sua passagem pela Brasil Meridional ocorreu entre os anos 1820-21.

48 MAESTRI FILHO, Mário José.

O escravo no..., 1984, p. 50 e p. 53.

49 MAESTRI FILHO, Mário José.

(23)

argumentando que “o escravo africano não conhecia o pastoreio extensivo: muitos sequer o cavalo”50. Outro elemento presente nos escritos de Saint-Hilaire que contribuía para as teses de que o cativo não se fazia presente naquela economia, é o de que havia um abundante número de índios na região das antigas Missões para serem empregados como peões, argumento repetido por aqueles autores.

Realmente o viajante francês51 relata em diversas ocasiões que, apesar de ver negros em quase todas as propriedades pelas quais passava, eles não eram utilizados na pecuária. Entretanto, o que mais chama atenção em sua obra, é a completa desorganização da região da Campanha, em razão dos conflitos que não cessavam52. Assim, talvez investir em escravos naquele momento e naquela região, recém anexada formalmente ao Império Português, e que ainda sofria incursões dos ex-súditos espanhóis, poderia ser extremamente arriscado. No entanto, Saint-Hilaire, da mesma forma que outros viajantes que passaram pela Campanha no século XIX, oferecem outras pistas, que desfazem os argumentos da não presença de escravos nas estâncias. Em passagem cômica, o francês relata que após se perder da estrada que percorria, ao encontrar uma casa, a proprietária desta

“[...] deu-me um negro para me ensinar o caminho. Ao ficarmos sozinhos, apressou-se em demonstrar sua admiração por ver me a pé, pois nesta região, toda gente, mesmo pobre, inclusive os escravos, não dão um passo sem ser a cavalo”53.

Deste modo, contextualizando o período no qual Saint-Hilaire passou pela Campanha gaúcha, é muito fácil entender o porquê a mão-de-obra escrava ainda não estava disseminada, o que acontecerá ao longo das décadas de 1830 e 1840. Outro viajante, Nicolau Dreys54, descrevendo a mão-de-obra das estâncias sulinas, sem especificar o ano, coloca que “às vezes os peões são negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gaúchos assalariados”, completando em outra passagem que “nas estâncias, pouco tem que fazer o negro, exceto na ocasião rara dos rodeios”55. Um terceiro viajante francês, Arsène Isabelle,

50 MAESTRI FILHO, Mário José.

Deus é grande..., 2002, p. 92.

51 SAINT-HILAIRE, Auguste de.

Viagem ao..., 1987, p. 23; p. 65; p. 87; 249.

52 A questão da guerra e sua influência sobre os agentes históricos da região da Campanha será abordada na

última parte deste estudo.

53 SAINT-HILAIRE, Auguste de.

Viagem ao..., 1987, p. 52.

54 DREYS, Nicolau.

Notícia Descritiva..., 1961. p. 130. (grifos meus)

55 DREYS, Nicolau.

Notícia Descritiva...1961, p. 167. (grifos meus). Rodeio era o momento em que se juntava o

gado para marcação ou curativos, ou seja, uma atividade típica da pecuária. Informação em: NETO, Simões Lopes. O Negro Bonifácio & outras histórias. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999, p. 91; FERREIRA, Aurélio

(24)

relata que “na maior parte das estâncias ou fazendas” que se hospeda, ele “é servido por um negro escravo ou por um índio”56.

Por sua vez, o belga A. Baguet, passando pela Campanha no final da primeira metade do século XIX, tinha outra visão, mas que corrobora o argumento da importância do cativo para a região. Ele comenta que se o mundo missioneiro não fosse desarticulado, “os proprietários das charqueadas e das estâncias não seriam obrigados atualmente a comprar negros”57. Finalmente, o austríaco Joseph Hörmeyer58, que veio lutar no batalhão alemão na guerra contra J. Manuel Rosas em 1851, descrevendo o campeiro gaúcho e as carretas utilizadas por ele, salienta que “os carreteiros, munidos geralmente de varas compridas, são escravos montados, seguindo os homens a cavalo”.

Certamente, embora outros conflitos ainda atormentassem a região, com o passar do tempo e o efetivo controle brasileiro sobre ela, o investimento em mão-de-obra escrava se tornou mais seguro. Portanto, como pode-se notar, uma leitura mais cuidadosa e detalhada, mesmo dos viajantes, não permite negar o quanto os cativos eram fundamentais para a Campanha.

Neste sentido, novos estudos59 vêm demonstrando que a composição social daquela região era muito mais complexa do que a dualidade apresentada e repetida ao longo dos anos. Helen Osório, a partir do estudo de inventários post-mortem, para o período colonial, detectou a importância do trabalho escravo em função de sua representatividade naqueles documentos, embora que para toda a província. Já Luís Augusto Farinatti, em importante estudo social e econômico acerca da elite do município de Alegrete, entre 1825 e 1865, também tendo os inventários como principal fonte do corpo documental analisado, de igual forma verificou como a mão-de-obra escrava era importante para aquela economia, onde a agropecuária era a principal atividade, tendo o cativo um papel estrutural para a produção.

Luana Teixeira e Thiago Araújo60, com focos em municípios com economia baseada na agropecuária, da mesma maneira salientaram a importância da mão-de-obra escrava nas

56 ISABELLE, Arsène.

Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1949, 245. Arsène viajou nos anos de 1833 e 1834. (grifos meus)

57 BAGUET, A.

Viagem ao Rio Grande do Sul. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1997, 90. (grifos meus)

58 HÖRMEYER, Joseph.

O Rio Grande do Sul de 1850: descrição da Província do Rio Grande do Sul no Brasil Meridional. Porto Alegre: EDUNI-SUL 1986, p. 70. (grifos meus)

59 FARINATTÍ, Luís Augusto Ebling.

Confins Meridionais, 2007. (Tese de Doutorado); OSÓRIO, Helen. O império português ao sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da

UFRGS, 2008.; ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno. Transformações no Rio Grande do Sul do século XIX. Ijuí: Editora Unijuí, 2002.

60 ARAÚJO, Thiago.

(25)

atividades econômicas das localidades analisadas. L. Teixeira, com foco no município de São Francisco de Paula, de economia agropecuária, tendo inventários post-mortem e processos-crime como fontes principais, investigou as relações sociais de trabalho entre homens livres e escravos, os significados que estes agentes davam a estas relações, bem como a disseminação da posse de cativos, encontrando um grande contingente de pequenos produtores senhores de escravos e, por consequência, a importância da mão-de-obra cativa para a produção local. Silmei Petiz61, por sua vez, a partir do estudo de inventários post-mortem e do cruzamento desta fonte com documentos eclesiásticos, destaca tanto a importância da presença de escravos na “fronteira” oeste rio-grandense (especialmente os municípios de Cachoeira e Rio Pardo), desde meados do século XVIII até a década de 1830, assim como a constituição de famílias estáveis entre os cativos.

* * *

O estudo de alforrias vem aumentando no Brasil, especialmente a partir da década de 1980. Os trabalhos de Kátia Mattoso, Manuela Carneiro e Peter Eisemberg62 foram o embrião deste novo campo de pesquisa. No Rio Grande do Sul, apesar de terem tido grande incremento nos últimos anos, os trabalhos relativos à passagem da escravidão para a liberdade ainda são relativamente poucos, comparado a outras regiões do Brasil. Tendo como principal fonte documental a alforria, os únicos são o de GabrielAladrén e Paulo Moreira, para Porto Alegre, o de Jovani Souza, para Rio Grande e o de Thiago Araújo, para Cruz Alta63.

Assim, a presente pesquisa tem como objetivo contribuir para uma melhor compreensão de como ocorreu o processo de manumissão dos escravos em Alegrete, município mais importante da Campanha gaúcha no século XIX, região fundamental na história de formação do Rio Grande do Sul, durante o período que vai de 1832 a 1871. Com isso, espera-se fornecer mais subsídios para o entendimento das relações escravistas nesta

61 PETIZ, Silmei de Sant’Ana.

Parentesco e Famílias Escravas, Rio Grande de São Pedro, 1750-1835.

CD-ROM [do] “IX Encontro Estadual de História”/ANPUH-RS: Porto Alegre, 2008; _______. Caminhos Cruzados: senhores e escravos da fronteira oeste do Rio Grande. CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e Liberdade no

Brasil Meridional”: Curitiba, 2009.

62 CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei..., 1986; MATTOSO, Kátia de Queirós.

Ser escravo no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982; EISENBERG, Peter L. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil - séc. XVII e XIX. Campinas: Editora Unicamp, 1989.

63ALADRÉN, Gabriel.

Liberdades negras nas paragens do sul. Alforria e inserção social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: PPGH/UFF, 2008. (Dissertação de Mestrado); MOREIRA, Paulo Staudt. Que com se trabalho..., 2007; ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão, fronteira e liberdade..., 2008.

(26)

região como um todo. O recorte temporal escolhido foi este, pois, com vimos, 1832 é o ano do registro da primeira carta de alforria no município em questão; já 1871 tem como grande marco histórico a Lei do Ventre Livre, a qual acarretou profundas mudanças na instituição escravidão, o que inviabilizaria uma melhor análise a neste momento, dentro dos limites deste trabalho.

Por sua vez, além dos trabalhos que têm a alforria como principal fonte ainda serem poucos para o Rio Grande do Sul, somente um é para uma região de economia que tinha como principal atividade a agricultura e a pecuária64. Por isso, a pesquisa de Thiago Araújo, por ser a primeira com esta característica para a província, será a mais referenciada e com a qual o presente estudo mais irá dialogar.

Portanto, este trabalho insere-se ao lado desta nova historiografia, tendo como foco de estudo os escravos como agentes históricos também atuantes e importantes para a região e sua formação histórica, mas analisando-os no processo de conquista da liberdade. Para tanto, é importante entender que a liberdade

“[...] não é um estado natural. É um construto social, um conjunto de valores coletivamente comuns, reforçado pelo discurso ritual, filosófico, literário e cotidiano. A liberdade tem uma história que contém noções distintas cuja própria fusão numa tradição histórica específica é tão importante quanto a tensão entre elas”65.

Neste sentido, conforme Henrique E. Lima66, não é possível pensar a passagem do trabalho escravo para o livre como um processo evolucionista da história do trabalho. Ele não foi igual em diferentes lugares e em diferentes momentos. O significado que teve para os diferentes atores, também não foi o mesmo. Ou seja, segundo o autor, é preciso pensar o trabalho e os trabalhadores em “situações históricas específicas”, pois

“[...] em termos ideais, o mundo do trabalho livre supõe: liberdade de escolha, ausência de coerção para o trabalho, capacidade de mobilidade dos trabalhadores, impessoalidade na relação patrão/empregado, mas também oferta de oportunidades de trabalho e possibilidades de acesso a elas por parte dos trabalhadores. Além disso, ele supõe que a ausência de coerção para o trabalho seja um valor partilhado também pelos empregadores”67.

64 ARAÚJO, Thiago Leitão de.

Escravidão, fronteira e liberdade..., 2008.

65 COOPER Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J.

Além da Escravidão..., 2005. p. 51-52.

66 LIMA, Henrique Espada.

Sob domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade do trabalho no século XIX. In: Revista Topoi, v. 6, nº 11. Rio de Janeiro: PPGHS/UFRJ, 2005, p. 296.

67 LIMA, Henrique Espada.

(27)
(28)

Após uma série de tratados entre o Império Espanhol e o Império Português, que hora envolviam a colônia de Sacramento, hora a região dos Sete Povos das Missões, em 06 de junho de 1801 foi assinado o Tratado de Badajoz, derradeiro acordo que colocaria fim aos conflitos, pelo menos entre as duas potências européias, na região do Prata. Nele, ficou definido que Sacramento passaria para o domínio espanhol e as Missões para o controle português68. A desarticulação da região missioneira – não só a do noroeste gaúcho, mas também das áreas limítrofes aos rios Uruguai e Quaraí, fez com que durante alguns anos houvesse uma grande movimentação de guaranis, seja espontânea, seja forçada69. O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire70 em sua estada na guarnição de Campo de Belém em 18 de janeiro de 1821, relatou “que mais de 3 mil” nativos vindos de “Cambaí, Iapeju e [...] outras aldeias [...] passaram o rio Uruguai pelo vau do Quaraim; muitos outros atravessará-lo em Salto Belém”, sendo que “a maioria desses índios foram encaminhados para a Capela de Alegrete”. Em outra passagem, o francês fala que “em torno de sete mil” saíram das aldeias de Entre-Rios e atravessaram o rio Uruguai71.

Assim, a partir de 1801, começaria uma migração de luso-brasileiros, com vistas a ocupar o território que se estendia até o rio Uruguai, a oeste, e até o rio Quaraí, ao sul, embora o acordo firmado entre os dois impérios estabelecesse que a nova divisa fosse através dos rios Ibicuí e Santa Maria. Porém, os súditos do rei dom João VI não respeitaram esta fronteira, migrando para além dos rios e estabelecendo estâncias na região72, sendo que a primeira sesmaria concedida pela coroa ocorreu em 181073.

68 BANDEIRA, L. A. Moniz.

O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai – da colonização à guerra da Tríplice Aliança. Brasília: Editora UNB, 1995, p.

48-56. NEUMANN, Eduardo Santos. Uma fronteira tripartida: a formação do continente do Rio Grande – século XVIII. In: Kühn, Fábio .et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS,

2004, p. 46.

69 DREYS, Nicolau.

Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961. p. 105-106.

70 SAINT-HILAIRE, Auguste de.

Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987, p. 222 e

223. S. Hilaire, depois de sair de Montevidéu percorreu um caminho que o levou até os Sete Povos Missões, sempre viajando pela margem esquerda do rio Uruguai, ou seja, passando pelo que seria a Campanha rio-grandense. Sua passagem pela Brasil Meridional ocorreu entre os anos 1820-21.

71 SAINT-HILAIRE, Auguste de.

Viagem ao...1987, p. 273.

72 FARINATTI, Luis Augusto Ebling.

Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2007, p. 64. (Tese de Doutorado); GOLIN, Tau. A Fronteira: Governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 256-258; LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 16.

73 GARCIA, Graciela Bonassa.

(29)

Contudo, essa ocupação não aconteceu de forma estável e continuada. Saint-Hilaire ficou impressionado, pelo caminho que percorreu, com a quantidade de estâncias destruídas ou abandonadas “por estancieiros portugueses” em razão da guerra, chegando a ficar dez dias sem ver “casas, nem outras pessoas”74. Agora eram os antigos súditos da coroa espanhola que guerreavam com os portugueses, até 1822, e depois com o Império brasileiro. Primeiro, grosso modo, por não concordarem com a ocupação da região ao norte do Quaraí e, depois, para livrar a Banda Oriental (futuro Uruguai) da invasão militar e anexação, como Província da Cisplatina, ao Império português75.

Neste contexto de intensos combates e fronteiras ainda imprecisas, a ocupação da Campanha rio-grandense gerou, ela mesma, outros conflitos76. A distribuição de sesmarias, muitas onde antes estavam as estâncias missioneiras, e a simples posse da terra por diversos indivíduos, motivaram contendas, das quais muitas não iam parar na justiça, especialmente antes de 1850, quando se elaborou a primeira Lei de Terras do país. Sobre isso, é interessante o diálogo de Saint-Hilaire77 com o dono de uma das casas em que ele se hospedou. O proprietário reclamava que seu cunhado estava morando havia muito na região, mas que, apesar disso, outra pessoa havia conseguido um título de sesmaria e, com isso, pretendia expulsá-lo.

Essas peculiaridades – espaço fronteiriço e guerra constante - do local onde futuramente seria instalado o município de Alegrete, caracterizariam não somente a ocupação da região, mas também os protagonistas dessa empresa fossem eles militares, comerciantes, homens livres pobres ou mesmo escravos. De comandantes militares que distribuíam propriedades, até escravos que se utilizavam da proximidade com outros Estados, o conhecimento de como se aproveitar em benefício próprio, e em proveito do seu grupo social, destes elementos (guerra e fronteira) permeou as relações sociais por quase todo o século XIX.

Com os conflitos tendo continuidade após 1801, a coroa portuguesa instalou uma guarda, em 1811, às margens do rio Inhanduí, com a capela Nossa Senhora Aparecida sendo erguida em 1814. A capela foi queimada em 1816, quando da invasão das tropas de José

74 SAINT-HILAIRE, Auguste de.

Viagem ao...1987, p. 247-248.

75 FARINATTI, Luis Augusto Ebling.

Confins Meridionais...2007, p. 66; GOLIN, Tau. A Fronteira: Governos e..., 2002, p. 96.

76 GARCIA, Graciela Bonassa.

O Domínio da Terra...2005, p. 15-16. (Dissertação de Mestrado)

77 SAINT-HILAIRE, Auguste de.

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Artigas78, e o povoado transferido para as margens do rio Ibirapuitã, em 181779, onde foi erguida a capela Nossa Senhora da Conceição Aparecida de Alegrete, em homenagem ao Marquês de Alegrete, governador do Rio Grande de São Pedro naquele momento80.

Em 25 de outubro de 1831, através de decreto provincial, Alegrete foi elevada a categoria de vila, tendo em 1833 sua primeira eleição. No entanto, oficialmente, só foi instalada em 17 de fevereiro de 183481, demora decorrente das transformações pelas quais passava o país. Anos após a independência, a aprovação do Código do Processo Criminal, promulgado por lei em 1832, durante o Período Regencial, acarretou em uma série de mudanças político-administrativas na província. Com sua implementação, Rio Grande de São Pedro do Sul passou a ter cinco comarcas: Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Piratini e Missões, com esta última sendo formada por três termos – São Borja, Cruz Alta e Alegrete. Destas três, a última foi a que teve sua instalação mais demorada em decorrência da morosidade das autoridades de Cachoeira, de quem iria se desmembrar, em enviar documentos necessários para este procedimento administrativo, fato que irritava as autoridades de Alegrete82.

Com o início da Revolução Farroupilha, o território da nova República ficou dividido em quatorze municípios. A vila de Alegrete era um deles, fazendo parte dela os povoamentos de Quarai, Santana do Livramento e Rosário83.

Posteriormente à restauração do Império em 1840, e o fim da guerra em 1845, outra leva de reformas político-administrativas iriam respingar no extremo sul brasileiro. Entretanto, assustado com os gastos públicos, o governo central solicitou para que as províncias não criassem novas freguesias e comarcas, tampouco novos cargos públicos, contendo assim as despesas. Apesar disso, em 1850 a Assembléia Provincial criou duas novas comarcas, sendo uma delas a de Alegrete, que agora contava também com o termo de Uruguaiana, vila desde 184684. Como uma comarca só era considerada instalada a partir do momento que o juiz de direito, nomeado pelo Ministério da Justiça, tomasse posse, a de

78 BANDEIRA, L. A. Moniz.

O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai – da colonização à guerra da Tríplice Aliança. Brasília: Editora UNB, 1995, p.

59-62.

79 SANTOS, Danilo Assumpção.

Alegrete em fatos. Alegrete: CEPAL, 2007.

80 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas.

A disputa pelo monopólio de uma força (i)legítima: Estado e administração judiciária no Brasil imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871). Porto Alegre: PRPPG/PUC,

2009, p. 140. (Tese de Doutorado). A tese de Elaine Sodré é um detalhado estudo sobre a complexa organização e implementação da administração política e judiciária no Estado.

81 FEDERAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA.

De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul - censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEDERAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA, 1981, p. 11.

82 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas.

A disputa pelo...2009, p. 144-149.

83 FEDERAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA.

De Província de São Pedro...1981, p. 35.

84 FEDERAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA.

(31)

Alegrete levou alguns anos para ser concretizada, pois a nomeação, junto com a de um promotor público, só aconteceu em 1853 e, ainda assim, diante da impossibilidade do nomeado de assumir o cargo, apenas em 1854 o Bacharel José Antônio de Oliveira Silva tomou posse, tornando-se o primeiro juiz do município85.

Ainda durante o período que este estudo abrange, Santana do Livramento, em 1857, foi elevada a categoria de vila, passando à jurisdição da comarca de Bagé em 1858, diminuindo significativamente o território e a população de Alegrete. Em 1860, esta última contava com outros dois povoamentos, Rosário e São João Batista de Quaraí, sendo esta a última referência importante de mudança na divisão político-administrativa dentro do recorte temporal desta pesquisa86.

No mapa abaixo, a localização do município de Alegrete:

FIGURA 1 – Mapa dos municípios no RS, por volta de 1850. Fonte: FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais...2007, p. 70.

85 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas.

A disputa pelo...2009, p. 167-172.

86 Estas mudanças são importantes, pois, por exemplo, segundo listas paroquiais e de delegados organizado em

Imagem

FIGURA 1 – Mapa dos municípios no RS, por volta de 1850.
TABELA 1.1 – População de Alegrete segundo o sexo, 1859
TABELA 1.3 – População do RS e de Alegrete segundo a condição jurídica, 1872 94
TABELA 1.5 – Posse de escravos entre os criadores de gado 98
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