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O papel das mulheres no combate à insegurança alimentar: um estudo de caso na sociedade Felupe da Guiné-Bissau

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Academic year: 2021

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Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas

O papel das mulheres no combate à insegurança alimentar: um

estudo de caso na sociedade Felupe da Guiné-Bissau

Ludmila Melo da Costa Bolonha

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em Estudos Africanos: Análise e Gestão do Desenvolvimento Social e Económico

Orientadora:

Doutora Ana Catarina Larcher das Neves Santos Carvalho, Professora Auxiliar Convidada ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa

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RESUMO

A segurança alimentar em África tem sido ameaçada por várias condicionantes externas e internas como a crise mundial económica e financeira, as mudanças climáticas ou as migrações. A “crise dos cereais” de 2007-2008, que levou à inflação dos preços dos alimentos, com consequências graves para muitas populações, veio reforçar as preocupações em relação aos riscos de insegurança alimentar em vários países do continente.

Os felupes são uma sociedade do Norte da Guiné-Bissau, que se dedica à agricultura, nomeadamente ao cultivo de arroz, e que é afectada por várias destas condicionantes. É através do cultivo do arroz que os felupes garantem a sua segurança alimentar sendo que o arroz tem também um papel essencial na estrutura da sociedade. No entanto, factores como as alterações climáticas e as migrações têm ameaçado constantemente esta actividade e os felupes desenvolveram várias estratégias para fazer face a estas pressões. As mulheres têm assumido um papel preponderante nestas estratégias, tendo o seu papel tradicional mudado.

Esta tese tem como objectivo compreender as estratégias utilizadas pelas mulheres felupes para combater a insegurança alimentar na sociedade felupe. As mulheres sempre tiveram um importante papel na actividade agrícola que se estendia desde o cultivo até a comercialização dos produtos, cumprindo um calendário de trabalho bastante rigoroso. Com as pressões a que esta sociedade tem estado sujeita, as mulheres foram desenvolvendo estratégias para fazer face aos desafios: foram acumulando novas tarefas que dantes não assumiam, foram adaptando as técnicas de produção através da escolha de tipo de sementes diferentes e, acima de tudo, foram-se organizando de forma diferente para melhor fazer face ao desafio de garantir a segurança alimentar das suas famílias.

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ABSTRACT

Food security in Africa has been threatened by internal and external pressure factors such as the world economic and financial crises, climate change and migration. The “cereal crisis” of 2007-2008, who led to food price inflation was another such factor which had several consequences for many populations and brought again to the international fore concerns about food insecurity in several African countries.

The Joola/felupe is a society of Northern Guinea-Bissau, whose main activity is agriculture namely rice production and who is greatly affected by these pressure factors. It is through rice cultivation that the felupe ensure their food security, but rice has also a key role in the structure of society. Factors such as climate change and migration are increasingly putting pressure on this activity and the felupe have developed several strategies to overcome them. Women have assumed key roles in these strategies, their traditional roles having been changed as a result.

The objective of this thesis is to understand the strategies implemented by felupe women to fight food insecurity. Women have always had an important role in agricultural performing diverse activities which ranged from cultivation to commercialization, following a very rigorous working timetable. To face the pressures on food security, women have developed several coping strategies: these include performing activities that were not traditionally assigned to them, adapting agricultural production techniques by choosing, for instance, different types of seeds and, above all, by organizing and strengthening women’s associations so that together they are better equipped to ensure the food security of their families and community.

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AGRADECIMENTOS

A realização desta tese não teria sido possível sem as pessoas que de forma decisiva me ajudaram a concretizar mais este objectivo tão importante tanto para a minha vida profissional como pessoal. Desta forma, presto os meus sinceros agradecimentos aos professores que me orientaram, aos informantes que compartilharam os seus conhecimentos, aos familiares e amigos que estiveram presentes nos momentos em que me senti insegura, ansiosa e cansada.

Agradeço à minha orientadora, Doutora Ana Catarina Larcher das Neves Santos Carvalho, a orientação, o tempo que me dedicou, a paciência, os conselhos, a ajuda, as sugestões e as correcções.

Agradeço ao Professor Doutor Eduardo Costa Dias, pelo seu contributo imprescindível na realização deste trabalho. Pela orientação, pelo incentivo e por ter tornado a ida à Guiné-Bissau uma realidade e, para mim, uma experiência da qual nunca me vou esquecer.

Aos meus colegas e amigos, Filipa Perestrello, Lúcia Bayan, Miguel Freitas e Sandra Mula, agradeço as inúmeras reuniões, o apoio, as sugestões e a paciência. Ao Miguel muito obrigada pela paciência, pela disponibilidade e por ser um bom ouvinte.

Agradeço ao Bp. Júlio Freitas pelas palavras de incentivo, pela compreensão e apoio que permitiram retornar e concluir.

À Ana Rita Vaz, pela amizade, pelo tempo que me dedicou, pela paciência de ter lido vezes sem conta esta tese, pelas críticas construtivas, pelo incessante incentivo.

Na Guiné-Bissau, agradeço ao colega e amigo Samba Tenem Camará pela atenção, preocupação e pelo apoio. Agradeço à ONG "Acção para o Desenvolvimento" (AD) por nos acolher. Em São Domingos, agradeço ao Issa Indjai, pela dedicação, pelas manhãs, pelas tardes dedicadas, pelos conhecimentos partilhados e por ter sido o nosso guia.

Em Suzana, agradeço às irmãs Yanina Cisneros Zegarra e Socorro Monsalve pelo acolhimento. Ao Padre Zé (Giuseppe Fumagalli) pelo acolhimento, disponibilidade e por partilhar os seus conhecimentos. Ao amigo e nosso guia Francisco Fidel Bacula, agradeço a disponibilidade, a paciência e apoio dispensado na realização das entrevistas e nas visitas guiadas.

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Manifesto também os meus agradecimentos aos informantes de São Domingos e Suzana que contribuíram para a realização do trabalho de campo. Em Bissau agradeço ao Gibril, a Milocas e a Tina, por me acolherem, pelo tempo que me dedicaram e pela atenção.

(6)

Aos meus pais Pedro e Eugénia por tantos sacrifícios que fizeram e continuam a fazer. A minha mana e amiga Zenaide, pelo companheirismo, preocupação e compreensão.

(7)

ÍNDICE

Página

Introdução... 1

Capítulo I – Segurança Alimentar ... 7

Segurança Alimentar – A construção do conceito ... 7

O conceito de segurança alimentar no contexto africano... 11

A segurança alimentar na Guiné-Bissau e na sociedade felupe ... 12

Capítulo II – A organização da Sociedade felupe e a importância do arroz ... 14

Organização do espaço e administração local... 14

O grupo Joola ... 15

Os felupes ... 17

Religião e organização do poder na sociedade felupe... 20

As iniciações e o secretismo... 23

A missão católica ... 26

A família e a divisão do trabalho entre homens e mulheres... 28

A propriedade da terra... 31

A importância do arroz na sociedade felupe ... 33

Capítulo III – O sistema de produção agrícola e a segurança alimentar... 36

A importância do arroz para a segurança alimentar ... 36

O papel dos produtos de renda e hortícolas na manutenção da segurança alimentar... 39

A contribuição da pesca para a segurança alimentar... 43

(8)

Capítulo IV – A insegurança alimentar e as estratégias das mulheres para combater... 51

Os constrangimentos à produção agrícola... 51

As estratégias das mulheres para combater a insegurança alimentar... 55

Conclusão ... 62

(9)

ÍNDICE DE QUADROS E FIGURAS

Página

Quadro 1 – O calendário de trabalho ... 39

Quadro 2 – O calendário das mulheres ... 45

Quadro 3 – O calendário dos homens ... 47

Quadro 4 – O calendário das crianças... 48

Figura 1 – Mapa da região do grupo Joola……... 17

Figura 2 – Mulher utilizando a máquina descascadora de arroz ... 27

Figura 3 – Venda de arroz importado ... 37

Figura 4 – Extracção do vinho de palma... 41

Figura 5 – Mulheres no lumu ... 42

Figura 6 – Mulher carregando lenha ... 46

Figura 7 – Rapazes tratando do gado ... 48

Figura 8 – Raparigas vigiando as bolanhas contra os pássaros... 49

Figura 9 – Plantação do arroz em bolanha ... 52

Figura 10 – Dique, impende que a água salgada entre para a bolanha ... 52

Figura 11 – Homem trabalhando a terra com o Kayendo ... 53

(10)

GLOSSÁRIO DE SIGLAS

AOFISS Associação Onenoral dos Filhos da Secção de Suzana FAO Food and Agriculture Organization

ODM Objectivos da Declaração Do Milénio ONU Organização das Nações Unidas

PAIGC Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde PIME Pontifício Instituto das Missões Exteriores

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GLOSSÁRIO

Awaseema Religião tradicional Joola.

Ây Rei; Sacerdote principal representante dos Felupes.

Bakìn – abu Santuário.

Bolanhas Terrenos alagadiços de fertilidade variável.

Bolanha de água salgada Técnica de cultivo de arroz utilizada no Senegal e na Guiné-Bissau. Estes terrenos são inundados por água salgada e são aproveitados para o cultivo de arroz.

Elluup ai Casa.

Hank Morança, Unidade de residência, Concessão.

Kayendo ou Kajandu Grande enxada, com um cabo comprido e uma pá oval.

Keelume Bairro.

Lumu Feira/mercado popular que se realiza num determinado dia da semana.

Mangrove Associação de plantas arborescentes e arbustivas.

Ukìn Plural de Bakìn.

Oryza Glaberrima Variedade de arroz africana. Oryza Sativa Variedade de arroz asiática.

Pam-pam Arroz de sequeiro.

(12)

INTRODUÇÃO

A reflexão sobre o conceito de segurança alimentar começou a ganhar expressão após o fim da Primeira Guerra Mundial em consequência das privações e fome sentidas na Europa, tendo passado a ser um tema de grande importância com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, onde este conceito ganharia mais destaque (Nações Unidas, 2009:1)1.

O conceito foi sendo transformado ao longo de décadas para integrar novas dimensões que foram sendo consideradas como constitutivas da «segurança alimentar» e a importância de assegurar a segurança alimentar dos povos foi sendo reiterada em numerosos fora. Após algumas décadas em que estas preocupações passaram para segundo plano, as questões da segurança alimentar voltam a ser consideradas centrais na Cimeira do Milénio2. Nesta cimeira foram estabelecidos oito objectivos, o primeiro destes prende-se com erradicação da pobreza extrema e da fome. Este objectivo seria um meio de combater a pobreza, a fome e as doenças e de promover um desenvolvimento verdadeiramente sustentável (Declaração do Milénio, Nações Unidas, 2000:1-10)3.

No entanto, e apesar da melhor compreensão das múltiplas dimensões deste conceito e dos compromissos assumidos por parte das organizações internacionais e dos Estados, a segurança alimentar de todos os povos está longe de ser assegurada. Em 2012, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) declarou que aproximadamente 925 milhões de pessoas no mundo não comem o suficiente para serem consideradas saudáveis. Isso significa que uma em cada sete pessoas no planeta vai para a cama com fome todas as noites (FAO, 2012:1)4.

A crise dos cereais de 2007-2008 veio agravar o estado de insegurança alimentar e comprometer a segurança alimentar de muitos, pelo que a FAO estima que, após a inflação mundial dos preços dos alimentos de 2007 – 2008 e a recessão económica subsequente, o número de pessoas que sofrem de fome crónica no mundo aumentou pelo menos 100 milhões, para os quase mil milhões de pessoas. O maior aumento ocorreu entre a população urbana

1

Disponível em http://unic.un.org/imucms/rio-de-janeiro/64/38/a-onu-e-o-desenvolvimento.aspx. Ver ainda Sanches (2003:4).

2

Onde foi aprovada a Declaração do Milénio que daí nasceram oito objectivos, conhecidos como Objectivos da Declaração do Milénio (ODM) com a presença de 147 Chefes de Estado e de Governo e representantes de 191 países.

3

Disponível em http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/DecdoMil.pdf

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(13)

pobre, as mulheres e as crianças. Na África subsaariana o número de pessoas afectadas pela fome atingiu, em 2010, 239 milhões de pessoas, o que corresponde a 30% da população total (FAO, 2012:1)5.

As preocupações em torno da segurança alimentar não são recentes, como vimos, mas, nos últimos anos, tem-se intensificado o debate em torno deste conceito, impulsionado por uma maior preocupação política, suscitando também mais motivação para o seu estudo. A presente tese de Mestrado foi desenvolvida a partir de um projecto – “A sociedade Joola-felupe face à (in)segurança alimentar: dinâmicas e estratégias”, elaborado por um grupo de cinco mestrandos e que está enquadrado no Projecto de Investigação "Sociedades africanas face a dinâmicas globais: turbulências entre intervenções externas, migrações e insegurança alimentar" (Investigador Principal: Ulrich Schiefer; referência PTDC/AFR/104597/2008, financiado pela FCT).

Este projecto de investigação “a cinco mãos” estuda a questão da insegurança alimentar na população felupe, uma sociedade étnica do norte da Guiné-Bissau, na região de Cacheu, na zona litoral norte do país., especificamente nas localidades de São Domingos e Suzana. Procura identificar e compreender as dinâmicas e as estratégias postas em marcha nesta região pela sociedade felupe, com vista a garantir a sua segurança alimentar e a sobrevivência das populações em condições adversas. Como se trata de um problema multifacetado, o grupo de investigadores tentou estudar cinco dimensões que podem ter impacto na segurança alimentar na sociedade Joola-felupe: o papel das mulheres, as alterações climáticas e a degradação ambiental, o papel das autoridades tradicionais, a crescente urbanização e emigração.

Deste modo, foram elaborados cinco projectos de teses de mestrado, cada uma delas elaborada de forma individual, mas tendo como linha orientadora um projecto comum e uma investigação inicial conjunta apresentada num documento do qual serão transcritos alguns excertos nesta primeira parte introdutória (Perestrello et al., 2009)6.

A tese de mestrado que aqui se apresenta investiga, em particular, o papel que as mulheres desempenham no combate à insegurança alimentar na sociedade felupe. Neste sentido, a questão central deste projecto é tentar perceber que meios e que estratégias utilizam

5

Disponível em: http://www.fao.org/publications/sofi/en/. Ver também Relatório Especial do Tribunal de Contas Europeu sobre a eficácia da ajuda ao desenvolvimento da União Europeia para a segurança alimentar na África subsariana. http://europa.eu/rapid/press-release_ECA-12-10_pt.pdf.

6

Perestrello, F, Bayan, L., Bolonha, L., Freitas, M., Mula, S. (2009) A sociedade Joola-felupe face a (in)segurança alimentar: dinâmicas e estratégias, Projecto de investigação. Acessível em

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as mulheres para fazer face à insegurança alimentar. As mulheres têm um papel fundamental nas sociedades africanas cabendo-lhe papéis centrais tanto na produção, como no estabelecimento das condições de equilíbrio societal. Percebê-los é essencial para a compreensão fundamentada das actuais dinâmicas sociais, políticas e económicas nas sociedades rurais. O seu papel central na produção agrícola na sociedade felupe e no desenvolvimento de estratégias de sobrevivência face às pressões sobre a segurança alimentar, justificam o foco desta tese.

A sociedade felupe, objecto deste estudo, por vezes chamada joola-felupe por referência ao grupo maior, os joola, em que os felupe estão inseridos, é uma sociedade rural que apesar de localizada numa região fértil do continente africano e historicamente referenciada como sociedade segura em matéria alimentar, é hoje particularmente afectada pela insegurança alimentar. Esta é cada vez mais agravada pelos constrangimentos que afectam nomeadamente a produção de arroz, a sua cultura base.

O arroz é a “cultura fetiche” e a bolanha7, o terreno alagadiço onde se cultiva o arroz, o centro de todas as atenções dos joola-felupe, com uma técnica de cultivo tradicional que requer, para além de muita mão-de-obra, o domínio de conhecimentos e práticas que permitem a gestão corrente das tarefas agrícolas ligadas ao cultivo do arroz e a manutenção cuidada e permanente de um complexo sistema de canais de controlo de entrada e saída de água na bolanha.

Nas últimas décadas vários factores contribuíram fortemente para a degradação crescente dos stocks alimentares e das outrora abundantes áreas cultivadas pelos joola-felupe. De entre esses factores, destacam-se as condições climáticas cada vez mais extremas e mais instáveis e a crescente degradação dos solos e dos mangroves8, essenciais à rizicultura em bolanha; e a não manutenção dos diques de protecção e dos canais de rega (Linares, 2002: 16360-16365).

Este estudo vai tentar compreender, em primeiro lugar, o lugar da mulher na sociedade felupe e no sistema agrário e, seguidamente, identificar quais os constrangimentos que enfrentam na manutenção do mesmo e que dificuldades representam estes constrangimentos

7

Bolanhas são terrenos alagadiços de fertilidade variável. A bolanha de água salgada é uma técnica de cultivo de arroz utilizada no Senegal e na Guiné-Bissau. Estes terrenos, do tipo mangrove, inundados por água salgada, são aproveitados para o cultivo de arroz através de complexos sistemas de comportas para entrada e saída de água, tentando-se controlar a excessiva salinidade do solo através da água das chuvas.

8

O mangrove é a associação de plantas arborescentes e arbustivas, caracterizada por adaptações morfológicas e/ou fisiológicas, que lhes permite sobreviverem num meio instável, influenciado periodicamente pelas águas salobras ou marinhas.

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para a garantia da segurança alimentar e as estratégias utilizadas pelas mulheres para os superar. Identificar as estratégias utilizadas para ultrapassarem certos condicionamentos, como se verá que é o caso das associações das mulheres, permite perceber que o seu papel não se restringe à produção ou à venda de produtos. A mulher não é apenas uma agente de produção mas tem também uma responsabilidade maior na garantia da sobrevivência da comunidade e no seu equilíbrio. As estratégias a que recorrem as mulheres para ultrapassar os constrangimentos que colocam sérias dificuldades à manutenção da segurança alimentar, fazem também com que a mulher felupe assuma funções que não lhes eram tradicionalmente imputadas.

Deste modo, neste estudo colocam-se as seguintes questões: Como está organizada a sociedade felupe e como é que a mulher se insere nessa organização? Como está organizado o sistema de produção agrário e quais os papéis assumidos pelas mulheres? Quais são os desafios que se colocam à segurança alimentar e que estratégias foram desenvolvidas pelas mulheres para enfrentar os constrangimentos?

Para responder a estas questões, a metodologia utilizada para a realização do presente trabalho passa em primeiro lugar por tentar analisar alguns conceitos que serviram de base à realização deste trabalho, nomeadamente o de segurança alimentar e analisá-lo no contexto africano, analisar a organização social da sociedade objecto deste estudo, bem como perceber o seu sistema agrário. O conhecimento teórico sobre a sociedade Joola foi conseguido através da leitura bibliográfica de autores que estudaram não só os joola-felupe como também os joolas em geral, estabelecidos entre o Senegal e a Guiné-Bissau. Para poder responder às questões deste estudo foi também indispensável a recolha de dados através do trabalho de campo na Guiné-Bissau, que nos permitiu confrontar muitas das informações obtidas da pesquisa teórica.

A pesquisa de campo foi feita no chão felupe, localizado na região de Cacheu9 a norte do país, especificamente no sector de São Domingos e na secção de Suzana. O trabalho de campo foi realizado entre os meses de Novembro e Dezembro de 2009 tendo sido distribuído da seguinte forma: a primeira semana em São Domingos, a segunda em Suzana e a última novamente em São Domingos. A recolha de dados foi feita através de entrevistas, conversas informais e observação directa. O trabalho de campo foi feito por uma equipa de quatro dos mestrandos envolvidos no projecto.

9

Administrativamente a Guiné-Bissau está dividida em oito regiões (Bafatá, Biombo, Bolama/Bijagós, Cacheu, Gabú, Oio, Quinara e Tombali) e um sector autónomo (Bissau). Cada região subdivide-se em sectores.

(16)

De maneira a dar conta, de forma estruturada, de todos estes aspectos, a presente tese de mestrado está organizada em quatro capítulos, dos quais faço um breve resumo.

No capítulo primeiro, são apresentados alguns conceitos que serviram de base para a realização desta tese. O conceito de segurança alimentar é enquadrado numa perspectiva histórica, desde a sua origem até à forma mais complexa que assume nos dias de hoje. O conceito é apresentado com base em definições de vários autores que permitem chegar a um maior entendimento relativamente ao conceito. Expõem-se também as preocupações expressas por organizações internacionais em torno da segurança alimentar e as medidas preconizadas, principalmente pelos países mais desenvolvidos, para se fazer frente ao problema de insegurança alimentar. Por fim, o conceito de segurança alimentar é analisado no contexto africano em que a agricultura tem ainda um papel fundamental e em que o conceito de segurança alimentar está intrinsecamente ligado ao de soberania alimentar, e são discutidos os constrangimentos tanto a nível local como internacional que se colocam à segurança alimentar. Analisa-se ainda a percepção da população felupe em relação à segurança alimentar e como esta é conseguida.

No segundo capítulo, é feita uma descrição da organização da sociedade felupe, começando por uma caracterização breve do grupo joola, onde se inserem os felupes, em termos históricos e geográficos e identificam-se as características comuns ao grupo em três vertentes: socioeconómica, linguística e religiosa. Em seguida, faz-se a caracterização da sociedade felupe em termos de organização social. São abordados os temas da religião, a sua importância no dia-a-dia dos felupes; do secretismo e de como esta característica regula a forma de se viver em sociedade e, por fim, a importância do arroz na sociedade felupe, a ligação deste elemento à dimensão religiosa e a sua importância como sustento e identidade dos felupes.

No terceiro capítulo, faz-se a caracterização do sistema de produção agrícola felupe, sendo esta a actividade principal de grande parte dos felupes e que garante a segurança alimentar aos membros da família. Neste capítulo, demonstra-se a importância da produção da cultura do arroz, que é desde sempre o garante da segurança alimentar dos felupes mas também de outras culturas igualmente importantes do sistema de produção e analisa-se o papel das mulheres neste sistema.

No quarto capítulo, as razões da insegurança alimentar e as estratégias das mulheres para a combater, analisam-se os constrangimentos que se levantam à produção

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agrícola e as consequências negativas que estes representam para a sua segurança alimentar. São finalmente identificadas as estratégias utilizadas pela mulheres felupes, para enfrentarem estes obstáculos e para fazer frente ao problema de insegurança alimentar. Por fim são apresentadas as conclusões, seguidas de uma reflexão sobre os métodos utilizados para a realização deste trabalho.

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CAPITULO I – SEGURANÇA ALIMENTAR

Neste capítulo, o conceito de segurança alimentar é analisado de uma perspectiva da sua evolução histórica tendo em atenção sobretudo como foi sendo definido e redefinido pelas organizações internacionais e quais as estratégias preconizadas pelas mesmas para se fazer frente ao problema de insegurança alimentar.

Demonstra-se também como em alguns países africanos, nomeadamente na Guiné-Bissau, a segurança alimentar das populações está longe de ser assegurada, continuando a ser difícil garantir o acesso aos alimentos de grande parte da sua população.

Por fim, analisa-se como a segurança alimentar é percebida e conseguida por parte de muitos felupes.

Segurança alimentar – A construção do conceito

Após a Primeira Guerra Mundial, começam a surgir referências ao conceito de segurança alimentar, relacionado com o conceito de segurança nacional e ainda com a capacidade de cada país produzir os seus próprios alimentos, assegurando assim a soberania alimentar. Assim, esperava-se que os Estados fossem soberanos em termos alimentares, isto é, capazes de garantir a sua própria alimentação, de modo a que não ficassem dependentes do exterior.

Existe uma relação entre os conceitos segurança alimentar, Direito à Alimentação Adequada e Soberania Alimentar. Quando se fala em Segurança Alimentar refere-se a um objectivo e Direito à Alimentação Adequada alude a uma responsabilidade dos governos de encontrarem soluções para os problemas da fome e subnutrição. Por sua vez, a Soberania Alimentar alude à autonomia na produção nacional, evitando assim dependência de importação de produtos agrícolas. Implica ainda a existência de uma autonomia local, ou seja, espera-se que cada região dos países possa produzir alimentos variados, e em quantidades suficientes, para assegurarem as necessidades de consumo locais.

Durante muito tempo, o conceito de segurança alimentar, tal como surge no âmbito da VII sessão da Conferência da FAO (Organização para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas), realizada em Novembro de 1953, estava estritamente associado à produção agrícola. Esta relação entre produção e segurança alimentar foi reforçada pela instabilidade provocada pela crise económica de 1972-74. Perante este cenário, a solução para se fazer frente à crise de escassez passava por aumentar de modo significativo a produção agrícola.

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Deste modo, os países tinham a tarefa de criar excedentes de alimentos, para que no caso de alguma situação emergente pudessem ser utilizados (Maluf, 2000:1-2).

A partir dos anos 80, o conceito foi sendo redefinido, passa a distanciar-se da estrita necessidade de produzir, mas virando para as questões do acesso e da qualidade. A redefinição da FAO, assenta em três eixos: a oferta adequada dos alimentos, a estabilidade da oferta e dos mercados de alimentos, a segurança no acesso aos alimentos ofertados. Em 1986 o Banco Mundial define o conceito como «o acesso por parte de todos, todo o tempo, a

quantidades suficientes de alimentos para levar uma vida activa e saudável» (Maniglia,

2009:126).

Esta nova abordagem serviu de base para considerar-se pela primeira vez outros aspectos relacionados com a Segurança Alimentar. A insegurança alimentar não é forçosamente só relacionada com a falta de alimentos, é necessário ter em conta o poder aquisitivo e a sua distribuição, bem como outros factores que impedem os indivíduos de aceder aos mesmos.

A pobreza é a maior causa de insegurança alimentar. Um desenvolvimento sustentável, capaz de erradicá-la, é crucial para melhorar o acesso aos alimentos. Conflitos, terrorismo, corrupção e degradação do meio ambiente também contribuem significativamente para a insegurança alimentar…

(Declaração de Roma Sobre a Segurança Alimentar Mundial e Plano de Acção da Cimeira Mundial da Alimentação, 1996:1)10

Estas questões foram importantes porque permitiram um entendimento mais multifacetado do conceito. Assim, a segurança alimentar não depende apenas da quantidade de alimentos disponíveis mas também da capacidade de cada indivíduo de a eles ter acesso.

Quando em 1996 foi realizada, pela FAO, a Cimeira Mundial da Alimentação, já existia um maior entendimento sobre as causas da insegurança alimentar, estando a pobreza no topo da lista. Assim sendo, nesta cimeira consolidou-se a ideia de que para atingir a segurança alimentar seria necessário um esforço para erradicar a pobreza.

Ao conceito foram-se, ainda, acrescentado novas dimensões relacionadas com a sua qualidade. Mantendo-se as mesmas bases, acrescentam-se as noções de «alimento seguro» (não contaminado biologicamente ou quimicamente), de «qualidade do alimento» (nutricional, biológica, sanitária e tecnológica), assim como outros factores como o equilíbrio

10

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da dieta, da informação e das opções culturais (hábitos alimentares) dos seres humanos (Sanches, 2003:5)11.

Segurança alimentar existe quando todas as pessoas, a qualquer momento, têm acesso físico e económico a alimentos nutritivos, seguros e suficientes para satisfazer suas necessidades dietéticas e preferências alimentares para uma vida activa e saudável. Para obter segurança alimentar, todos os seus componentes devem estar realizados. São eles: disponibilidade, estabilidade, acesso e utilização.

(Declaração de Roma Sobre a Segurança Alimentar Mundial e Plano de Acção da Cimeira Mundial da Alimentação, 1996:4)12 .

Perante os entendimentos face ao conceito de segurança alimentar, consolida-se também o conceito de segurança alimentar domiciliar onde estão presentes não só o princípio de segurança alimentar entendido como oferta e acesso à alimentação de qualidade, mas também a assistência básica à saúde (abastecimento de água, saneamento, saúde pública) e ainda o cuidado provido no lar aos membros da família (carinho, atenção, preparo do alimento, aleitamento materno, estimulação psicossocial, informação, apoio educacional) (Bock, 2009:23).13

Por existir um maior reconhecimento da importância da segurança alimentar, muitas medidas têm sido tomadas: Na Cimeira Mundial da Alimentação de 1996, por exemplo, o direito à alimentação foi apresentado como um dever moral e deveria fazer parte da legislação nacional e internacional, esta medida levou a que mais de vinte países tenham o direito à alimentação nas suas Constituições.14 Como escreve Valente (2002):

A segurança alimentar e nutricional trata exactamente de como uma sociedade organizada, por meios de políticas públicas, de responsabilidades do Estado e da sociedade como um todo, pode e deve garantir o direito à alimentação a todos os cidadãos. Assim, alimentação é um direito do cidadão, e a segurança alimentar e nutricional para todos é um dever do Estado e responsabilidade da sociedade

(Valente, 2002:20). 11

Ver também “Estado e segurança alimentar: alcances e limitações de políticas públicas no Brasil” (disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/viewFile/2322/3251).

12

Disponível em http://www.fao.org/docrep/003/w3613p/w3613p00.htm

13

Ver também Sanches (2003). 14

Disponível em http://www.fao.org/docrep/003/w3613p/w3613p00.htm. Ver também Jornal Oficial da União Europeia (Cimeira Mundial da Alimentação das Nações Unidas), disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2003:271E:0572:0576:PT:PDF, FAO (2002)

(21)

Uma vez que a segurança alimentar e o direito à alimentação passa a ser um direito humano, (…) ”É responsabilidade dos estados nacionais assegurarem este direito e devem

fazê-lo em obrigatória articulação com a sociedade civil, dentro das formas possíveis para exercê-lo” (Maluf, 2000:4).

Deste modo, o Estado deve agir directamente protegendo-o quando se verificarem diminuições de produção, catástrofes naturais, desemprego, etc. O Estado deve também agir na promoção destes direitos, promovendo o aumento do poder da população sobre a sua própria vida, a cidadania, a educação, a autonomia. Quanto ao papel da sociedade civil, esta deve ser o mediador das diferentes instituições que agem em complementaridade com o Estado (Sanches, 2003:6).

No entanto, apesar do maior entendimento face ao conceito, e dos esforços das organizações internacionais e dos Estados, a segurança alimentar de todos os povos é ainda ilusória. Em Dezembro de 2008, a FAO afirmou que as populações pobres das áreas urbanas, as famílias chefiadas por mulheres e as crianças, seriam as que sentiriam com mais impacto os efeitos da crise dos cereais15, sendo as mais afectadas pela escassez de alimentos. Segundo os dados do relatório, contavam-se já 907 milhões de pessoas desnutridas em todo o mundo, sendo que a grande maioria vivia nos países em vias de desenvolvimento (FAO, 2008:3-7)16.

Estima-se que um quarto da população que sofre de fome no mundo em desenvolvimento viva em África, sendo a África subsariana a região no mundo onde a insegurança alimentar é mais forte (FAO, 2010:2)17. A FAO estima ainda que os preços dos alimentos permanecerão altos nos próximos anos, comprometendo deste modo a segurança alimentar dos mais pobres. Esta será ainda agravada pela crise económica, que por consequência origina a escassez de emprego, de renda, a restrição ao crédito e leva também ao desincentivo do investimento agrícola (FAO, 2009:1-2)18.

15

Entre 2007-2008, teve lugar a chamada “crise dos cereais”. Muitos autores como (Diouf 2008, Sachs 2008, Schwarz 2008, Marouelli 2009) têm tentado apresentar as causas para a crise dos alimentos. Defendem que esta foi provocada por vários factores como, mudanças climáticas, aumento do preço do petróleo, utilização de alimentos para os biocombustíveis, os elevados custos exigidos na produção agrícola, como é o exemplo das sementes e dos fertilizantes.

16 http://www.fao.org/docrep/011/i0100e/i0100e00.htm. 17 http://www.fao.org/publications/sofi/en/. 18 Disponível em http://www.rlc.fao.org/pr/prensa/coms/2009/02.pdf.

(22)

O conceito de segurança alimentar no contexto africano

O conceito de segurança alimentar é um conceito multifacetado, que engloba várias questões nomeadamente a disponibilidade dos alimentos, o acesso aos alimentos e a capacidade de cada país encontrar soluções para se tornar soberano em matéria de produção de alimentos. Em África, a segurança alimentar está longe de ser uma realidade: os países africanos lutam ainda por assegurar o acesso de grande parte da população a alimentos suficientes para uma vida saudável.

No continente africano, a segurança alimentar continua a estar muito ligada com a produção agrícola, isto é, com o conceito de soberania alimentar. Isto porque continua a ser através da agricultura que grande parte das famílias continua a assegurar a sua segurança alimentar. As outras actividades ainda não geram rendimentos suficientes para permitir a grande parte das populações adquirirem os bens alimentares que necessitam. Isto é sobretudo verdade no caso das sociedades rurais, como as em estudo neste trabalho, sendo que o crescimento da população urbana remete mais para a preocupação com o acesso e a qualidade do que com a produção.

A agricultura em África é uma actividade que conta com uma grande presença feminina, sendo que mais de 80% dos agricultores são mulheres. Estas desempenham um papel fundamental na garantia da segurança alimentar das famílias, pois têm um importante papel na produção e venda dos produtos e são elas as responsáveis pela produção de aproximadamente 50% dos alimentos (RUNIC - O Projecto do Milénio da ONU).19

O tipo de agricultura praticada é maioritariamente de subsistência, caracterizada por sistemas de produção diversificados mas sob pressão constante devido à degradação dos solos, ao uso de técnicas tradicionais, às mudanças climáticas que fazem com que o regime das chuvas seja cada vez mais reduzido e ao êxodo rural e migrações internacionais.

Aos constrangimentos a nível local que o sector agrícola dos países africanos enfrenta juntam-se ainda constrangimentos a nível internacional: os agricultores africanos pagam elevados preços pelos fertilizantes, entre três e seis vezes mais do que realmente custam no mercado mundial; as regras do comércio internacional, estabelecido numa óptica neoliberal, privilegiam os países do Norte e as políticas de liberalização das economias incrementaram a vulnerabilidade dos mercados dos países do Sul. Estes factores contribuem para a diminuição da produção, o que aumenta os riscos para a segurança alimentar.

19

http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumproject4.html.

Ver também Desafios e oportunidades para a agricultura e a Segurança Alimentar na África, disponível em

(23)

A segurança alimentar na Guiné-Bissau e na sociedade felupe

A República da Guiné-Bissau tem vivido num clima de constante instabilidade político-militar o que leva à debilidade das suas instituições públicas e à degradação do nível de vida da população. A estas crises sociopolíticas juntam-se ainda problemas de natureza ambiental relacionados com as mudanças climáticas e o declínio populacional, entre outros. Estes vários constrangimentos agravam e originam múltiplas carências, especialmente no domínio da segurança alimentar.

Grande parte das famílias guineenses garante a sua segurança alimentar através da agricultura de subsistência familiar, que não só tem um papel fundamental como garante de segurança alimentar como também é uma fonte de rendimentos adicionais quando comercializados os produtos agrícolas. No entanto, as alterações climáticas, nomeadamente a alteração do regime de chuvas, o êxodo rural e as migrações internacionais e a diminuição da mão-de-obra disponível para os trabalhos agrícolas, têm tido impactos negativos nos sistemas agrários que a falta de investimento e apoio público na agricultura têm acentuado.

Os felupes, apesar de enfrentarem de uma forma ou de outra todos os constrangimentos referidos, que têm ameaçado a sua segurança alimentar, não se consideram em risco. Um informante questionado sobre as dificuldades que certos países enfrentam, perguntou-nos:

Há gente que morre de fome nestes países? Então são mais pobres que nós. Nós vamos ao mato e há sempre alguma coisa para comer.

(Entrevista de Campo, Suzana, Dezembro de 2009)

Este comentário revela que para os felupes a segurança alimentar está longe de ser entendida tal como o conceito é definido pelas organizações internacionais. O que não quer dizer, tal como nos relevaram em entrevistas, que os felupes não tenham consciência das dificuldades que enfrentam ao nível da produção agrícola e também das dificuldades decorrentes da instabilidade política e dos problemas económicos do país.

De qualquer modo, o conceito de «segurança alimentar» deve aqui ser entendido de acordo com a realidade da sociedade em estudo. Desta forma não se prende aqui tanto com o acesso a quantidades suficientes de alimentos nem com a responsabilidade do Estado em garanti-la, mas com a capacidade dos indivíduos de uma determinada família de produzir os

(24)

bens alimentares suficientes a fim de satisfazerem as suas necessidades alimentares ainda que complementado por outras actividades. No caso de terem de enfrentar situações adversas, e no actual cenário da Guiné-Bissau, só as famílias poderão encontrar soluções de modo a conseguirem ultrapassá-las.

Assim, a disponibilidade de alimentos é garantida por meio do trabalho dos membros da família na produção agrícola e, em períodos difíceis em que a disponibilidade de mão-de-obra é escassa ou em que a produção se torna mais difícil, a segurança alimentar será determinada pelas estratégias adoptadas pela sociedade para superar os problemas. São estas estratégias desenvolvidas para superar os constrangimentos actuais que têm colocado a segurança alimentar dos felupes em risco, nomeadamente as desenvolvidas pelas mulheres, que serão evidenciadas ao longo deste trabalho.

(25)

CAPÍTULO II – A ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE FELUPE E A IMPORTÂNCIA DO ARROZ

Neste capítulo começa-se por fazer a caracterização administrativa da Guiné-Bissau, até chegar à região de Cacheu, nomeadamente ao sector de São Domingos e à secção de Suzana, zona de sedentarização felupe. Faz-se uma caracterização da sociedade felupe para se poder compreender melhor a sua organização social e económica, para se perceber o papel das mulheres na organização social e também para se poder compreender a centralidade do arroz nesta sociedade.

São abordados os temas da religião e a sua importância central na sociedade felupe e na organização do poder, do secretismo e de como esta característica regula a forma de se viver em sociedade e as relações entre homens e mulheres. Por fim, a importância do arroz na sociedade felupe, a ligação deste elemento à dimensão religiosa e a sua importância na identidade dos felupes, como sustento económico e pilar da segurança alimentar.

Organização do espaço e administração local.

A Guiné-Bissau está dividida em oito regiões administrativas (Bafatá, Biombo, Bolama/Bijagós, Cacheu, Gabú, Oio, Quinara e Tombali) e um sector autónomo (Bissau). Cada região subdivide-se em sectores, que têm um administrador, e estes subdividem-se em secções que têm um secretário e um administrador. As secções, por sua vez, reúnem diversas tabancas e em cada tabanca existem vários bairros formados por diversas moranças. São Domingos, um dos locais onde se realizou o trabalho de campo, é um dos sectores administrativos da região de Cacheu, sendo Suzana, onde também realizámos as nossas pesquisas, uma secção do sector de São Domingos.

A cidade de Suzana está dividida em sete bairros, cuja particularidade é a tendência para serem constituídos por moradores de uma mesma crença religiosa. Assim, o bairro Santa Maria é formado por felupes católicos e os bairros de Kugel, Bukekelil e Katana albergam apenas felupes tradicionais20. Contudo, como foi possível verificar, estas separações não são estanques; no bairro Fulacunda, que é constituído na sua maioria por muçulmanos, também se podem encontrar cristãos e habitantes das etnias Manjaca, Mancanha e Fula; por sua vez, os bairros Manhodjagu e Nhacun são constituídos por felupes católicos e felupes tradicionais. Os

20

(26)

bairros Kugel, Bukekelil e Katana albergam apenas felupes tradicionais. Cada um dos sete bairros tem pelo menos um comité, estes comités de bairro são regulados pelo comité dos comités também designados como comité de secção. Este encontra-se actualmente no bairro de Santa Maria.21

As tabancas representam o menor e o mais tradicional espaço administrativo do país. Actualmente, numa tabanca, podemos encontrar uma miscigenação não só de vários grupos étnicos como também de pessoas de diferentes denominações religiosas, o que já é possível verificar-se entre os felupes. Tal como os bairros, cada uma delas possui um “comité”22 que não só representa o Estado a nível local como também é o intermediário entre a tabanca e o Estado. O comité é eleito de oito em oito anos23, actualmente a nível local, independentemente do partido, realidade muito diferente se recuarmos uns anos atrás, onde os comités não eram apenas representantes do governo local como também do partido.

As suas principais actividades prendem-se com a resolução de problemas e conflitos que possam surgir com o uso da terra, nas diversas associações, como as das mulheres e jovens e problemas de vizinhança, por exemplo, muito comuns uma vez que as tabancas já não são formadas apenas por pessoas do mesmo grupo étnico. Assim, a nível de local, o comité pode ser bastante importante porque geralmente permite à população destas zonas a resolução mais rápida dos seus problemas, o que poderia não acontecer se, para tal, estivessem dependentes do governo central.

O grupo Joola24

A sociedade felupe está enquadrada dentro de um grupo maior, o grupo Joola, que está fixada entre o Senegal e a Guiné-Bissau, na região mais oeste de Casamança, entre a Gâmbia e o rio Cacheu. Não se sabe exactamente a origem dos Joola. Molefi Assante, na Encyclopedia of African Religion afirma:

The Diola (also called jola) are an African people found in the area of Senegal, Gambia, and Guinea-Bissau. It is believed that the Diola migrated to the Casamance region of Senegal during the 11th and 12th centuries in an effort to escape the increasing Islamic jihads. (…)

21

Existe uma relação hierárquica entre os vários comités criados; Comités de Região, Comités de Sector, Comités de Secção e Comités de tabanca. Para uma melhor compreensão consultar, Bayan (2011: 66-67). 22

O Comité refere-se a uma pessoa. 23

Formalmente existe uma eleição de 8 em 8 anos e só é mudado o comité se houver críticas por parte da população quanto a actuação deste. Assim sendo grande parte dos comités elegidos na altura da independência continuam até aos dias de hoje, salvo aqueles que já faleceram.

24

(27)

The Dioula are a West African people who are most closely associated with Côte d’Ivoire but were also common to Mali, Togo, and other parts of West Africa

(Asante, 2008:203-204).

Pélissier confirma que a presença desta etnia é antiga mas defende que estes são oriundos do sul (Pélissier, 1966:657). A presença dos Joola nesta região no século XV é evidenciada por Linares que afirma que estes estariam concentrados ao sul do Rio Casamança, tendo depois dispersado para norte entre os séculos XV e XVII (Linares, 1992:84-89).

Jordi Tomàs descreve a localização dos Joolas entre a região situada entre os rios Gambia e Cacheu, ocupando a região da Baixa-Casamança e uma pequena faixa de terra Gambiana ao norte; na Guiné-Bissau estes ocupam a faixa sul (Tomàs, 2001:131).

No que se refere à heterogeneidade dos Joolas, Journet-Diallo (1997) refere: Ces

populations sont organisées en plusieurs groupes que distinguent leurs variantes linguistiques et culturelles (Journet-Diallo, 1997:81-82).

Esta diversidade é também exposta por Tomàs (2005),

Os Joola não são um grupo homogéneo nem em termos linguísticos ou históricos, nem políticos ou religiosos. Existem uma dezena de subgrupos que habitam principalmente a zona da Baixa Casamança mas também a alta Casamança, na zona de Kolda, na Gâmbia e na Guiné-Bissau. A população total soma cerca de 700.000 pessoas (Tomàs, 2005:85).

O autor de “La identitat ètnica entre els joola d’Oussouye” menciona ainda três subgrupos do grande grupo joola: joola-húluf, joola-esulaalu e joola-ajamaat25 (Tomàs, 2005:83-88).

A divisão dos Joolas em três grupos é também evidenciada por Dujarric (1993), distinguindo os Joola da margem sul do rio Casamance, os Joola da margem norte do rio Casamance e os Joolas da parte leste de Casamança:

25

Os Joola-ajamaat, são o subgrupo estudado nesta tese mas durante o presente trabalho utilizarei sempre a designação dada a este grupo pelos portugueses, “Felupe”.

(28)

i)- O primeiro grupo está localizado na zona de Oussouye, Ziguinchor e Guiné-Bissau até São Domingos - são animistas, cultivam em bolanha salgada com trabalho dividido por homens e mulheres.

ii)- O segundo grupo está fixado a norte de Casamança e Gâmbia – estão islamizados, têm a mesma organização social de trabalho, mas o caju e o amendoim também fazem parte das culturas cultivadas.

iii)- O terceiro grupo encontra-se na região de Kolda a norte da Guiné-Bissau e a leste de São Domingos) - são também islamizados, cabe às mulheres o cultivo do arroz e aos homens o cultivo do caju e também têm uma hierarquização social (Dujarric, 1993:154).

Figura 1: Mapa da região do grupo Joola26.

Os Felupes

Os felupes fazem parte do grande grupo Joola e, devido à sua localização, foram eles que mais contacto tiveram com os portugueses. Em 1960, Artur Augusto da Silva descreveu a localização dos felupes, dizendo que estes se estendiam desde o rio Gâmbia até ao sul do rio Cacheu e viviam na costa junto aos inúmeros esteiros e riachos que cortam a Senegâmbia e a região de Suzana-Varela. Silva aprofunda a descrição do chão felupe descrevendo-o:

26

(29)

Ao norte, uma linha recta à distância de cerca de seis quilómetros da margem sul do rio Gâmbia até encontrar, a Este uma linha recta que parte da foz do rio Songrougrou. Aí, desce o rio Casamança até cerca de 5 quilómetros para além de Ziguinchor, onde inflecte novamente para Oeste até próximo da povoação de S. Domingos, acompanhando a Sul, o rio Cacheu até a sua foz. A Oeste, essa região é limitada pelo Atlântico. Ao sul do rio Caheu, encontramos somente três povoações felupes: Botê (105 habitantes), Cachelame (40 habitantes), e Ucó (72 habitantes) (Silva, 1983: 160-163).

Na descrição de Taborda os felupes ocupavam

…dentro do território português toda a faixa do litoral que vai do Cabo Roxo à ponta de Bolor e daí segue o esteiro que passa por Ossor, Lala e Arame e sai pela fronteira próximo do marco número 174. Tem uma superfície aproximadamente de 320 quilómetros quadrados e uma população computada em cerca de oito mil almas, distribuída pelas seguintes povoações: Suzana, Bugim, Ejatem, Cassalol, Caruai, Basseor, Tenhate, Sucujaque, Varela, Catão, Jufunco, Igim, Lala, Ossor e Bolor (Taborda, 1950:190).

Ainda dentro do subgrupo felupe é possível encontrar outros grupos: os cadjamtai27 (são felupes da Guiné-Bissau, fixados a norte do rio Cacheu), os calupaco28 (são felupes também situados no território guineense na região de Suzana-Varela) e os

caciquenei29constituídos pelos baiotes (fixados em Casamança, no Senegal) (Silva, 1983:165-166). Em 1950, Taborda já tinha escrito sobre os baiotes, localizando-os juntamente com os felupes em Suzana, e que sendo desconhecida a data exacta da fixação deste povo, afirma que deverá ter ocorrido há muitos séculos.

A subdivisão dos felupes é também evidenciada por Taborda que indica que esta terá começado pela fixação destes em três grupos distintos:

• o primeiro grupo no território situado na margem direita do esteiro de Cassalol, • o segundo grupo no território que vai de Varela até a margem do rio Sucujaque • e o terceiro grupo, dos quais fazem parte os baiotes, nos terrenos onde estavam

as povoações de Elia e Arame (Taborda, 1950:187).

27

Grafia utilizada por Silva, 1983. 28

Idem. 29

(30)

Mesmo estando os joolas e os felupes divididos entre a Guiné-Bissau e o Senegal, os felupes consideram-se um só povo, como me foi possível verificar numa das entrevistas em São Domingos quando um jovem afirmou: podemos ser poucos na Guiné mas todos juntos

somos muitos, o que nos separa é a fronteira (entrevista de campo, São Domingos, Novembro

de 2009). Taborda põe em evidência este sentimento de pertença ao mesmo grupo, tanto felupes como baiotes consideram-se parte do grupo joola, afirmando que todo o baiote fala o dialecto felupe e todos os subgrupos consideram-se Joolas. No entanto, demonstra que entre os Joolas existe a distinção entre Kacikenei30 - considerados homens do porto, que são os baiotes, e Kajamutako31 - considerados homens do mato, constituídos pelos Felupes (Taborda, 1950:190).

Apesar desta distinção dos termos, as características inerentes ao grupo mantêm-se, o que permite a ligação e, consequentemente, a unidade dentro do grupo joola. A base da sua economia é idêntica, dedicando-se ao cultivo do arroz, à extracção de óleo e vinho de palma. O arroz é um elemento muito importante na cultura Joola, por constituir a base da sua alimentação e também por ser um elemento carregado de simbologia. Em termos linguísticos, falam a mesma língua, denominada como “joola”, existindo, no entanto, várias variantes. Na estrutura social, a divisão social é feita em função de grupos de idades. Politicamente organizam-se de forma semelhante, por conselho de chefes de linhagem e ainda no plano religioso, os Joolas mantêm a crença numa só entidade suprema inacessível pelos humanos (Tomàs, 2001:131-132).

Os felupes foram sempre considerados uma etnia fechada e muito resistente a influências exteriores, como foi evidenciado por Carlos Lehmann de Almeida (1955): entre

todos os grupos étnicos da Guiné-Bissau os felupes foram os que se mostraram mais resistentes na aceitação dos costumes portugueses. O facto de emigrarem muito raramente e não permitirem a fixação de outras etnias no seu território contribuía também para serem pouco influenciados com hábitos estranhos à sua cultura (Almeida, 1955:618).

Taborda (1950) caracterizou os felupes como sendo pouco preocupados em alterar os seus usos e costumes para se aproximarem da “civilização”, tendo sido considerados talvez o grupo étnico que mais tempo levaria a “evoluir”, uma vez que adoptavam muito poucos

30

Grafia utilizada por Taborda, 1950. 31

(31)

costumes portugueses (Taborda, 1950:558). Também foram assim criticados pelo facto de não obedecerem a estruturas de organização social e políticas iguais às das sociedades ocidentais.

(…) para satisfazer as autoridades europeias que não compreendem a possibilidade de se viver sem um chefe, os felupes designam um, mas os seus poderes são nulos e ele só serve de intermediário entre as autoridades e o seu povo… (Silva, 1960:22- 23).

De facto, a sociedade felupe tem sido caracterizada como sendo uma sociedade “acéfala”, onde o poder não é centralizado, em que a existência de estatutos socias é quase nula e ainda onde não existem padrões de riqueza ou pobreza, considerando-se todo o felupe igual.

A igualdade de situação económica dos Felupes-não há ricos nem pobres (…) Daí uma igualdade absoluta entre todos os homens (…) (Silva, 1960:22- 23).

Semelhante opinião tem Pélissier (1958), que descreveu as sociedades joolas como uma sociedade composta de homens socialmente livres, completamente alheios a qualquer organização política habitual (Pélissier, 1958:2). No entanto, existe uma estrutura social organizada a nível familiar e orientada pela linha do pai, em que este é o respectivo chefe. Os felupes são acusados de não distinguirem os pobres dos ricos, mas no entanto isso não quererá dizer que não têm noção dos padrões de riqueza ou pobreza, como afirma Taborda (1950), os felupes têm a tendência para esconderem as suas verdadeiras posses, isto acontece porque se apercebem que se mostrarem serem possuidores de grandes quantidades de arroz e gado, adquirem maior prestígio no meio em que vivem (Taborda, 1950:574).

Rico para os felupes é aquele que tem muito arroz de bolanha e não aquele que tem muito dinheiro.

(Entrevista de Campo, tabanca de Três Quilómetros, Novembro de 2009).

Religião e organização do poder na sociedade felupe

A religião joola denomina-se Awaseema, os joolas crêem na existência de um Deus,

Emit Ai, a origem de tudo, criador dos homens e dos animais. É um Deus que comunica com

os humanos mas não de forma directa, daí a importância dos sacerdotes e dos bakìns32. A única maneira que os humanos têm para “comunicarem” com Deus é através dos sacerdotes,

32

(32)

que não comunicam directamente com Emit Ai, mas que o fazem através de seres espirituais. Silva (1960) identifica estes seres espirituais como “deuses”, “génios” e “antepassados” (Silva, 1960:17-19).

A religião está presente em todas as esferas da vida dos felupes e, por esta razão, para cada acontecimento da vida, existem altares, ukìn, específicos. Tomàs (2005) refere a importância destes altares não só a nível religioso como também identificadores da tradição e ainda devido à sua dimensão político-social. Cada altar, bakìn tem a sua história e tradição, são ainda modelos de divisões sociais, espaços de resoluções sociais e políticas. Como é o exemplo do que se passa nos altares femininos, onde são discutidas questões que implicam a mulher e onde se decide quais podem participar. O autor aponta também a função reguladora de acções e comportamentos dos membros da comunidade, através de normas e proibições a que cada altar está associado e por sua vez estes reguladores de comportamento são sustentados por uma força invisível que é Emit ai (Tomàs, 2005:259-268).

Silva (1960) afirma que na organização felupe a ausência de um poder civil é motivo de espanto para um ocidental, uma vez que se baseia na tradição e no poder religioso e ainda no poder místico que alguns homens usufruem (Silva, 1960:21). É o caso das figuras do rei -

Ây, do ancião, do antepassado e do sacerdote. Tomàs (2005) aponta três esferas de acção que

os reis joolas detêm para concretizarem as suas funções tanto a nível social como cósmica: Na esfera económica, o Ây é o redistribuidor, portanto deve dar arroz, vinho ou óleo de palma a quem lhe pedir; na esfera judicial, o Ây deve ser o conselheiro, de forma a garantir a ordem entre as pessoas e as famílias; na esfera religiosa, o Ây deve orar por cada membro do seu reino. O Ây é uma grande referência cósmica, Emit ai, significa Deus é rei, esta relação faz uma referência imediata ao poder do rei sobretudo em termos cosmológicos, revela a sua força absoluta, a sua capacidade integradora, o seu significado de compreensão vital e unidade cósmica.

O Ây tem uma importante função simbólica, pois é o intermediário entre o mundo visível (os humanos, a natureza, os fenómenos naturais) e o mundo invisível (Deus, os antepassados, a força). O seu carácter secreto e sagrado leva a que a sua escolha e a sua morte estejam ligadas a um mistério. Para os joolas o rei nunca morre, ele “vai-se”. Esta característica secreta/sagrada dos reis joolas confere-lhe certas proibições como as de não poder comer, beber ou dormir em público, nem poder exercer qualquer actividade económica.

A expressão huhaanelatijootijoo, dá conta dessa realidade, significando que o poder tem os seus limites, como o rei, detentor de vários deveres e proibições e de poucos

(33)

privilégios.33 Em caso de ausência do rei, é o régulo tradicional que o substitui, como actualmente no caso de Suzana. Os suzanenses vivem um período de ausência de rei (inter-reinos), o último rei faleceu em 1958, sendo o régulo tradicional, Albuncai Sanhá, quem o substitui.

No seu papel de régulo, Albuncai Sanhá tem como tarefa, juntamente com o comité, a resolução dos problemas do quotidiano da comunidade. O régulo e o rei desempenham funções semelhantes, no entanto existem restrições nas funções de um e outro, existem decisões que só o régulo pode tomar assim como existem cerimónias que só o rei pode realizar.34

O rei de Kerouhey, é o rei de todos os Joolas e assim como Suzana, Kerouhey também encontra-se sem rei desde 2002, só após Kerouhey receber um rei, poderá existir rei em Suzana. As mulheres do rei que casam com ele durante o seu reinado são das mulheres felupes mais privilegiadas: não cozinham, não trabalham na bolanha, não vão buscar água ao poço. Só a mulher da sua juventude, aquela que já tinha antes de se tornar rei é que trabalha.

A ausência de rei poderá ser um factor que contribui também para a insegurança alimentar, uma vez que quando não existe rei as terras sagradas não podem ser cultivadas, e quando isso acontece por longos períodos de tempo esta situação pode levar a crise. Mas para existir rei, Emit ai, através dos homens grandes, tem de indicar a pessoa certa.

Sou régulo porque os homens grandes me escolheram, acreditamos que foi Deus que me escolheu. Os homens grandes me ensinaram como deveria agir e as minhas funções. No ano passado fui ao Senegal resolver um assunto sobre o problema de fronteiras e foi o próprio estado senegalês que me chamou, isso significa que reconhecem a autoridade do régulo e o estado da Guiné também reconhece.

(Albuncai Sanha, Entrevista de campo, Suzana, Dezembro de 2009).

Os anciãos ou Homens Grandes são dotados de grandes responsabilidades e privilégios, tanto que Silva (1960) afirma ser no meio destes que se pode encontrar alguns indícios de poder civil (Silva, 1960:23). Reúnem-se para discutir assuntos relacionados com a aldeia e as suas responsabilidades vão desde a decisão de permitir a entrada e fixação de estrangeiros na aldeia, como também de emprestar ou não fracções de terra a famílias imigrantes. Têm também um importante papel na conservação do culto aos antepassados.

33

Ver Tomàs 2001. 34

(34)

Os antepassados têm uma posição privilegiada na relação hierárquica entre as famílias fundadoras de uma aldeia, já que estas são formadas por várias linhagens e cada linhagem tem as suas bolanhas e os seus próprios ukìn. Porém, existe um bakìn principal, um para os homens e outro para as mulheres, estes desempenham um papel fundamental, pois são “palcos” de importantes acontecimentos das sociedades joolas, como a iniciação dos jovens e reuniões secretas referentes a assuntos internos da comunidade.35 A importância dos antepassados para os felupes é evidenciada também por Silva:

Os Homens fazem parte, simultaneamente, da organização familiar e das respectivas classes de idade e têm de cumprir, digamos religiosamente, as normas costumeiras que regem os respectivos grupos. O costume foi instituído por aqueles que já morreram e, daí, o seu carácter sagrado. Ai daquele que ouse violá-lo; a cólera dos antepassados desabaria sobre ele e sobre o seu grupo… (Silva, 1983:174).

Em suma, apesar de existir a figura do Estado na sociedade felupe, o poder tradicional exercido pelo rei/régulo e ainda pelo conselho dos homens grandes, assume uma grande importância para os felupes, tanto que grande parte dos problemas são resolvidos por aqueles que detêm o poder tradicional. Só em último caso é que se procura uma intervenção a nível do Estado. Contudo, existe uma correlação entre o poder de Estado e o poder tradicional.

As iniciações e o secretismo

A sociedade felupe é muito fechada, com muitos segredos, existem coisas que não podem ser faladas, só os iniciados sabem certas coisas.

(Entrevista de campo, São Domingos, Novembro de 2009).

As mulheres não devem saber nada sobre a iniciação masculina, pois é um “conhecimento secreto”, assim todo o processo de iniciação deve ser mantido em sigilo. Os iniciados ficam isolados por três meses no bosque sagrado, lugar interdito às mulheres que podem apenas aproximar-se até um certo ponto. As comidas preparadas pelas mulheres para os iniciados e para os seus parentes são levadas por outros homens (Davidson, 2007:174).

35

(35)

Normalmente, nas tabancas existem casas para a maternidade, as mulheres ficam isoladas dos maridos e este período é o único em que as mulheres não trabalham, as mulheres felupes trabalham muito e até muito tarde mesmo quando já são muito velhas.

(Entrevista de campo, São Domingos, Novembro de 2009)

Para os felupes, tanto homens como mulheres devem desconhecer as particularidades dos ritos de iniciação do sexo oposto. O nascimento é algo que só deve ser compartilhado entre mulheres que já são mães. O parto é assistido pelas mulheres mais velhas e realizado em casas cercadas por palmeiras altas, em locais isolados, fora do alcance dos homens e mulheres não iniciadas, aquelas que ainda não deram à luz.

Após o nascimento, as mulheres não voltam logo para a casa do marido, normalmente ficam em casa de uma mulher mais velha até que o cordão umbilical caia. Tudo porque o homem não deve conhecer o processo do parto, se este vir o cordão umbilical pode querer saber mais sobre os “segredos do nascimento” (Davidson, 2007:84)36.

Este secretismo não é apenas estabelecido entre o sexo oposto, ele é vivido dentro do próprio sexo: o homem ou a mulher que não sejam iniciados deverão desconhecer os processos relativos à iniciação. Assim como a circuncisão representa para os homens o início da vida adulta, o parto tem o mesmo valor para as mulheres. Estas duas iniciações são bastante importantes na vida dos homens e mulheres felupes, pois é o que os torna adultos e lhes permite participar em reuniões onde são abordados temas referentes ao quotidiano da comunidade.

Silva (1960) realça o valor das iniciações, afirmando que estas têm como objectivo proporcionar as bases essenciais da vida da comunidade, uma vez que só a partir destas é que o felupe passa a fazer efectivamente parte do grupo. Antes de ser iniciado o felupe não usufrui de qualquer direito, a sua utilidade prende-se com o serviço da comunidade (Silva, 1960:22).

A construção da casa – Elluup ai - é um bom exemplo. Este rito é bastante importante, como afirma Davidson (2007), “…construir uma casa é, talvez, para o homem, um dos ritos

mais importantes da vida adulta…”(Davidson, 2007:36). A construção de uma casa marca o

início da sua vida adulta porque o jovem constrói a casa quando atinge a idade do casamento. Ao longo da sua vida o homem passa por várias iniciações. A da circuncisão, que acontece de 30 em 30 anos, é realizada no bosque sagrado secreto que os distinguirá dos não iniciados (Taborda, 1950:204).

36

Imagem

Figura 1: Mapa da região do grupo Joola 26 .
Figura 2: Mulher utilizando a máquina descascadora de arroz 39
Figura 3: Venda de arroz importado 47 .
Figura 4: Extracção do vinho de palma 51
+7

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