2 Revisão bibliográfica
Partindo de alguns trabalhos inovadores no final da década de setenta como os de Strelkoff e Katapodes (1977), Fangemeier e Ramsey (1978), Stringham e Keller (1979), vários autores continuaram na década de oitenta estes trabalhos e foram prolíficos em avanços científicos na teoria de infiltração, na modelação do escoamento e no desenvolvimento de sistemas de rega de superfície. Nos Estados Unidos, Souza (1981), Strelkoff e Clemmens (1981), Kemper (1981), Elliot e Walker (1982), Haie (1984), Bautista e Wallender (1985) e Trout e Kincaid (1989), e em Portugal Serralheiro (1988), Tabuada (1989) e Sousa (1990) encorajados pela massificação de sistemas computacionais e pela crise energética do início da década, deram um impulso significativo à teoria e prática da rega de superfície. Os diversos modelos matemáticos e programas concebidos para a simulação da rega e a previsão da sua qualidade, a rega com sulcos longos, o desenvolvimento da rega intermitente1 e do cabo-rega são os frutos mais visíveis dessa época. A década que se seguiu caracterizou-se pelo aprofundamento, aperfeiçoamento e desenvolvimento das diversas frentes de trabalho já iniciadas por estes autores, com grande ênfase na modelação matemática do escoamento.
2.1 Características da infiltração e do escoamento em sulcos
Na rega por sulcos, a água é introduzida em canais paralelos, onde flui por gravidade, da cabeceira até ao fim destes, havendo infiltração lateral e vertical no solo. Numa primeira fase, a água avança sobre o solo seco, ocupando a parcela. Depois, existe normalmente uma fase de manutenção, em que a água infiltra em toda a extensão dos sulcos. Quando o módulo parcelar é cortado, inicia-se a fase de recessão, normalmente de montante para jusante dos sulcos.
Sob condições uniformes, presumindo um perfil regular do sulco, pode-se estabelecer uma relação generalizada entre o caudal aplicado, a geometria do sulco e o seu declive. Essa relação pode ser expressa através da equação do fluxo uniforme de Manning: Q n A R S =1 2 3 12 (2.1) sendo, Q- Caudal, m3seg-1;
A - área da secção transversal, m2 ; R - raio hidráulico (R=A Pm-1) em m2 m-1;
S - declive m m-1.
Apesar desta equação ter sido deduzida originalmente para o fluxo em canais com perfis trapezoidais, o seu uso tem sido generalizado para rega em sulcos, com bastante êxito.
2.1.1 O perímetro molhado e a infiltração
A profundidade de escoamento influencia a superfície submersa e consequentemente deve também influenciar o volume infiltrado por unidade de comprimento do sulco (Strelkoff e Souza, 1984; Izadi e Wallender, 1985; Serralheiro, 1988, 1996). Desde que Fangmeier e Ramsey, no já clássico ensaio de 1978, mediram diminuições quase proporcionais da infiltração com o perímetro molhado, utilizando a diminuição do caudal em sulcos com declives e secções transversais precisos, diversos autores têm concluído que a taxa de infiltração e o volume infiltrado variam quase linearmente com o perímetro molhado (Strelkoff e Souza, 1984; Samani et al., 1985), facto que já fora proposto pelo Soil Conservation Service, que também assume que a infiltração aumenta linearmente com o perímetro molhado (USDA-SCS, 1983).
No entanto, a correlação existente entre o perímetro molhado e a taxa de infiltração diminui durante a rega, pois a redução do gradiente do potencial matricial reduz a magnitude de fluxo horizontal, sendo frequentemente constatado que a relação linear entre a infiltração acumulada e o perímetro molhado obtido em sulcos estagnados não é reproduzível em condições de escoamento (Izadi e Wallender, 1985; Trout, 1992).
Do exposto, e de acordo com Samani et al. (1985), a uniformidade de rega é afectada não só pela diminuição do tempo de infiltração ao longo do sulco, mas também pela diminuição da profundidade da toalha de água a jusante.
Strelkoff e Souza (1984) avaliaram seis métodos diferentes de modelar o efeito da variação da profundidade de escoamento sobre a infiltração, sendo método mais complexo o que considerava o tempo de infiltração em cada troço do perímetro molhado. No entanto, eles concluem que este método não é mais preciso do que aquele que considera o perímetro molhado como um todo. Nesta linha de trabalho, Serralheiro (1988), usando dados obtidos em infiltrómetros, verifica a linearidade da dependência da infiltração em relação ao perímetro molhado e estuda a possibilidade de uma equação de infiltração determinada com um perímetro molhado conhecido ser generalizada para quaisquer valores de perímetro molhado. No entanto, quando incorpora a equação da infiltração, assim generalizada, num modelo de simulação da rega, o ajustamento entre valores observados e simulados não melhora em relação à simulação com a equação não generalizada; segundo o mesmo autor, esta não melhoria dever-se-á à dificuldade de definir, na simulação, o valor de perímetro molhado representativo de toda a rega. Outra possível razão é o facto das fendas e irregularidades na superfície do solo poderem dominar o processo de infiltração no início da rega, mascarando a influência do perímetro molhado (Izadi e Wallender, 1985).
É hoje suficientemente aceite que a relação entre o perímetro molhado e a profundidade de escoamento é bem descrita por uma equação do tipo potência, que pode ser obtida através de observação do perímetro molhado em função da profundidade de escoamento em dois ou mais pontos. Strelkoff e Clemmens (2000), analisam os diversos métodos de obtenção dessa equação, concluindo que os métodos numéricos correntes resultam num erro de 3-10%. Como alternativa, apresentam um método de interpolação não-linear, que resulta num erro inferior a 1%.
2.1.2 Rugosidade do sulco
A irregularidade da superfície do sulco, denominada rugosidade superficial, deve-se ao formato natural dos agregados, às operações culturais, ou acção de plantas e animais. Essa rugosidade é normalmente expressa através do coeficiente de rugosidade de Manning, n, e tem influência directa sobre as características do escoamento e
consequentemente sobre a infiltração. Ao longo da rega, devido à acção do escoamento, a rugosidade diminui e a geometria torna-se mais eficiente, ou seja, adquire um formato hidraulicamente mais favorável (Izadi e Wallender, 1985). A redução da rugosidade, tal como o aumento do declive, tem um efeito negativo sobre a infiltração, pois não só aumenta a velocidade de escoamento como, ao diminuir a área do escoamento, diminui também a superfície infiltrante. Serralheiro (1988), trabalhando em solos argiluviados obteve valores de n de 0,073 e 0,055 para a primeira e segunda rega, respectivamente, enquanto que Renault e Wallender (1997) observaram valores de 0,06, 0,04 e 0,03 para as três primeiras regas. Normalmente, para a sua determinação, aplicam-se os parâmetros de escoamento observados durante a rega na equação do escoamento uniforme de Manning, resolvendo-a em ordem a n (Fangmeier e Ramsey, 1978; Serralheiro, 1988).
Geralmente aceita-se que o valor de n é uma característica inerente da superfície, independente da profundidade de escoamento. No entanto, à medida que esta diminui, a rugosidade desempenha um papel progressivamente maior sobre o escoamento, ou seja, o efeito da rugosidade sobre o escoamento aumenta de escala (Bassett et al., 1980).
2.1.3 Evolução dos perfis transversais
Nas paredes do sulco é o efeito combinado das forças de atrito, resultantes do movimento da água e das forças gravitacionais, o responsável pela desagregação e arrastamento das partículas do solo. As paredes do sulco são escavadas pela acção do escoamento, diminuindo a estabilidade das zonas do perfil acima do perímetro submerso que, ao serem humedecidas por capilaridade, e pela acção do seu próprio peso, desprendem-se e precipitam para o fundo do sulco, onde rapidamente se desagregam, pelo impacto da queda e pela acção desagregante da água ao ser absorvida pelos torrões que provoca a quebra da coesão entre as partículas (Brown et al., 1988). O materiais que se desprendem, ou são prontamente incorporados na corrente, no caso de partículas mais finas, ou sofrem um pequeno transporte, ou no caso de partículas mais grosseiras e de agregados, permanecem no mesmo lugar, originando estratos sedimentares ao longo do sulco e dando origem a uma secção transversal mais larga e menos profunda (Foster e Lane, 1983 citados por Trout et al., 1993). Assim, o perfil
transversal do sulco evolui progressivamente de uma forma original, conseguida mecanicamente, para uma forma mais estável, em que a força de atrito do escoamento é menor que a força crítica de atrito.
Nos casos em que há uma diminuição brusca de declive no sulco, diminuirá também a sua capacidade de transporte, verificando-se a deposição de sedimentos nessa mesma zona. Contrariamente, nas situações em que o declive aumenta no sulco, verifica-se um aumento da capacidade de transporte e erosiva do escoamento e, como tal, da taxa de erosão, situação que se prolonga até a redução do caudal mais a jusante provocar a deposição dos sedimentos transportados (Hairsine, 1992; Trout et al., 1993; Owoputi e Stolte, 1995). A combinação destes processos de transporte e deposição acaba por regularizar o declive do sulco o que, segundo Trout et al. (1993), constitui o “nivelamento hidráulico”, em que o solo é destacado de zonas mais declivosas e depositado nas zonas mais planas.
Em situações de declive suave ao longo do sulco, parte do solo que se destaca das paredes do sulco vai-se depositando no fundo, face à progressiva insuficiente capacidade de transporte do escoamento, facto que afecta a distribuição de diferentes grupos texturais ao longo do sulco. Nestes sulcos, é a capacidade de transporte e não o destacamento o factor que limita a perda de solo nos sulcos (Meyer et al., 1993).
Existe uma relação inversa entre a capacidade de destacamento do escoamento e o seu teor em sedimentos. À medida que o teor de sedimentos no escoamento aumenta, aumenta a energia despendida para os transportar e, consequentemente menos energia está disponível para destacar outras partículas (Moore e Burch, 1986). Foster e Meyer (1972) exprimem esta relação da seguinte forma:
D D T T r c r c + = 1 (2.2)
onde Dr e Dc são respectivamente a taxa actual de destacamento e a taxa máxima de destacamento, enquanto que Tr e Tc são respectivamente o teor actual em sedimentos e a capacidade máxima de transporte.
Ao longo do sulco o escoamento diminui à medida que a água se infiltra, pelo que tanto o transporte de sedimentos como a capacidade de destacamento vão diminuindo progressivamente. Trout (1996) observa que a maior parte da erosão tem lugar no primeiro quarto do sulco, e grande parte do solo erodido (50 e 75% para declives de 1,33 e 0,52%, respectivamente) é depositado na segunda metade do sulco.
O volume total de excedentes no fim do sulco é também um factor determinante na percentagem de sedimentos que são transportados para fora do campo. Trout (1996) observa aumentos de 30 a 50% de erosão, quando o volume de excedentes aumenta apenas 20%. Assim, os sulcos bloqueados, em que o volume de excedentes é zero, podem minimizar o transporte de sedimentos para fora do campo.
2.1.4 Formação da crosta
A deposição das partículas do solo e a sua consolidação, entre as regas, produz à superfície do solo uma camada fina de partículas dispersas, com maior densidade aparente, e sem estrutura, denominada crosta. De acordo com as observações de Medina
et al. (1998) e Segern e Trout (1991) esta camada apresenta uma condutividade
hidráulica inferior à do solo subjacente, reduzindo a taxa de infiltração. Devido à sua compacidade, a energia necessária para a sua remoção é maior do que aquela necessária para remover o solo original. Estes processos simultâneos de redução de infiltrabilidade e formação duma superfície lisa no sulco, aumentam a velocidade de escoamento, o que por sua vez pode produzir maior destacamento.
O teor inicial de água do solo também influencia estes processos, pois, sob iguais condições de escoamento, o aumento do teor de água enfraquece os agregados e resulta em maior destruição dos mesmos, com formação de crosta e menores taxas de infiltração (Gollani et al., 1991; Wangemann et al., 2000). Como consequência conjugada destes factores, o perfil transversal dos sulcos tem uma evolução significativa na primeira rega, ligeira na segunda e praticamente estabiliza a partir da terceira rega, em que a crosta já se encontra estabelecida (Trout, 1996; Miguens, 1997).
2.1.5 Velocidade de escoamento e a taxa de infiltração
De uma forma geral, enquanto a velocidade do escoamento for pequena, ela não exerce nenhuma influência sobre a taxa de infiltração no sulco. A partir do momento em que atinge um valor de atrito crítico, com suficiente energia para mover as partículas do solo, inicia-se o processo de destruição dos agregados e a formação da crosta de deposição, razão pela qual é geralmente aceite que a infiltração no sulco diminui com o aumento da velocidade do escoamento (Eisenhauer et al., 1983; Brawn et al., 1988).