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Resenha do livro Tempos de Pandemia Review of the book Times of Pandemia

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Academic year: 2021

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ciologia, v. 5, n. 13, pp. 213-220, março de 2021, ISSN 2526-4702.

RESENHA

https://grem-grei.org/numero-atual-socurbs/

Resenha do livro Tempos de Pandemia

Review of the book

Times of Pandemia

Fanny Longa Romero

Tempos de Pandemia: reflexões sobre o caso Brasil. (Koury, Mauro Guilherme

Pinheiro, org.). João Pessoa: Grem-Grei; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020, 243 p.

A coletânea agora resenhada reúne um capítulo introdutório e dez artigos. Juntos cumprem com o objetivo não apenas de vincular reflexões contextualizadas às teorias sociais e da cultura, na vertente da sociologia e da antropologia das emoções, e suas correlações e problemáticas com foco na pandemia do covid-19, em torno do tripé indivíduo, sociedade e cultura; mas de enfatizar a pertinência da dimensão comparativa, comoexercício analítico fundamental no campo das ciências sociais1.

O livro Tempos de pandemia: reflexões sobre o caso Brasil tem como mérito, além da sua distribuição gratuita em formato e-book2, a proposta de tecer fios etnográficos e de análise quantitativa e imagética sobre dinâmicas de interação social, situadas. Com o foco centrado em cidades de grande e pequeno porte das regiões Norte e Nordeste do país, essa obra renova os debates sobre a temática da pandemia, à luz dos desafios de interação com a categoria de cultura emotiva, ao potencializar, compreender e confrontar, em perspectiva comparativa e processual, a situação-limite vivida por seus habitantes na cruel expansão da pandemia no Brasil. O livro em pauta reflete o questionamento e compromisso científico de pesquisadores diante das políticas neoliberais e anticivilizatórias de governança atual, marcadas pelo negacionismo da ciência e dos seus avanços.

A chamada para a produção dessa publicação não se desvinculou de um tipo de "urgência" que, em situações como essa, se torna imperativa. A proposta buscou mobilizar esforços acadêmicos e de pesquisa para a compreensão conceitual, teórico-metodológica de processos e configurações históricas e sociais, sobre o desconforto emocional e moral enfrentado pela população brasileira, e, em especial, das regiões

Doutora em Antropologia, e docente da UNILAB, campus dos Malês, Bahia. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2750-6119. E-Mail: flongaromero@unilab.edu.br.

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O livro contou com o incentivo do Grem-Grei, Grupos de Estudos e Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções e Imagens. O Grem-Grei é uma composição de grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. A primeira chamada para publicações sobre a temática em pauta teve como resultado a produção do Suplemento Especial da Rbse, Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, em maio de 2020.

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estudadas, em forma de luta pela sobrevivência, de reorganizações internas de modos e estilos de vida local, e de movimentos de acomodação e resistências cotidianas.

Como aponta Koury, na introdução do livro, as análises nele contidas se debruçam na ameaça ao frágil equilíbrio emocional e cultural, e à tensividade resultante das duas crises associadas no Brasil atual: "a crise político-institucional diante das mazelas do governo Jair Bolsonaro e sua equipe de ministros e apoiadores", e a crise sanitária no advento do novo coronavírus. Crises atreladas às dinâmicas internas de grupos sociais, seus conflitos, interesses, jogos de poder, formas de dominação, resistência e modalidades de aliança. Que, penso, estão igualmente associadas a uma perspectiva mitológica, em especial, a uma "mítica concreta" (RICOEUR, 2011) judaico-cristã, que influencia o acionamento de moralidades e regimes de verdade na sociedade brasileira.

Para início de conversa, a primeira aproximação que desejo sustentar é a necessidade de se defrontar com experiências diferenciadas de sofrimento social na pandemia, pelo viés de uma análise densa, sensível e nuançada, mas sem escorregar no intervencionismo, no moralismo ou em qualquer sorte de fundamentalismos teóricos e políticos. Tempos de Pandemia: reflexões sobre o caso Brasil, portanto, é uma tentativa de contribuir como cientistas sociais para a produção de conhecimentos, compreensão de fenômenos sociais, abertura de debates profícuos, e possibilidade de "reflexão crítica da situação-limite", como aponta Koury na introdução à coletânea objeto dessa resenha. A coletânea se enquadra, justamente, na urgência dessa contribuição e no reconhecimento teórico-metodológico que o saber-fazer das ciências sociais é capaz de oferecer ao examinar os dilemas, desafios, rupturas, contradições, emoções e as ambiguidades de sensibilidades individuais e coletivas, no marco de uma ordem social polifônica e conflitiva. Todavia, é importante destacar que o próprio título do livro sugere um interessante debate nas ciências sociais ao optar pelo plural no uso da categoria analítica tempo.

De fato, tomando como referência o tempo, uma das preocupações das ciências sociais tem sido desmitificar essa categoria como uma força imanente, misteriosa e paradoxal. Alfred Gell argumenta que a aura metafísica recai em confundir o tempo, enquanto dimensão única, objetiva e real, com os processos e dinâmicas da experiência social e empírica que nele ocorrem. Afirma que os antropólogos têm muita responsabilidade nessa elaboração, no que ele chama de "especulações metafísicas injustificadas" (GELL 2014, p. 16). Norbert Elias (1998), por sua parte, problematiza a deificação do tempo e se debruça na dimensão de sua regulação social na configuração histórica das sociedades modernas. E, dentro da ampla literatura da chamada antropologia crítica, Johannes Fabian (2013) nos oferece uma análise inquietante e radical sobre os usos do tempo, mais exatamente, sobre uma antropologia através do tempo, na qual examina a problemática da construção de coetaneidade (e da sua negação), nos termos de uma dinâmica temporal e relacional que tensiona tanto o conceito antropológico de alteridade, como a produção de conhecimento, hierárquico e desigual, sobre um "outro". Nessa perspectiva, Fabian investiga como a antropologia estabelece seu "objeto de conhecimento", através do tempo, e em um tempo diferente "do produtor do discurso antropológico" (FABIAN 2013, p. 67) que é, conforme o autor, pensado e alocado em teorias e em uma ordem culturalmente organizada.

Essas problemáticas estão, de certo modo, interrelacionadas com o esforço analítico e de pesquisa do livro em pauta, na maneira como problematizamos e/ou relativizamos os tempos de pandemia, em contexto. Tal esforço tem grande alcance quando é pensado, de fato, em interdependência com uma escala mais ampla, situando tempos, espaços, pessoas e objetos múltiplos. Ou seja, correlacionando a ordens globais

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e locais; práticas cotidianas, processos sociais e históricos, experiências heterogêneas do individual e do social, em atenção a relações de poder e conflitualidades na emergência mundial do debate de biossegurança. Portanto, se a irrupção da pandemia do covid-19, como experiência social, nos convoca a transitar por um caminho incerto, temeroso e de luta pela sobrevivência, física e social; o Tempos de Pandemia, enquanto produção científica de reflexividade teórica e empírica, nos conduz a evitar as armadilhas dos essencialismos culturais, do cientificismo acrescido com a expansão de pensamentos e práticas neoliberais e, principalmente, a priorizar de que modos podemos avançar na produção de pensamento crítico nas ciências sociais.

O mote do primeiro capítulo da coletânea, de autoria de Mauro Guilherme Pinheiro Koury, sob o título "As emoções em tempo de isolamento social", se debruça sobre a produção de emoções e do isolamento social no cenário da vida nacional. Tal cenário, não apenas é tenso, inseguro e conflitivo, mas permeado de novas moralidades, algumas delas tão sinistras como a própria cultura política neoliberal que a suscita.

Koury acompanha de perto, e de forma sistemática, as páginas da impressa escrita e informações de diferentes redes virtuais que passam revista nos acontecimentos políticos do que chama de "golpe branco", que resultou na derrubada do mandado, via impeachment, da ex-presidenta Dilma Rousseff, até os processos que levam a Jair Bolsonaro à ascensão ao poder, como atual presidente da República. O interessante desse recorte inicial de Koury é mostrar de que modo a governança bolsonarista, apoiada em uma "política de destruição civilizatória", é permeada por uma "retórica do desespero": noção que aponta para a falência moral e política e, no caso em pauta, também para o negacionismo da ciência e seus avanços, o cinismo e as medidas inconstitucionais diante o sofrimento e a dor dos outros. “Retórica do desespero”, explicitamente, demonstrada em depoimentos governamentais sobre situações de dor frente à calamidade nacional de mortes e contaminação pelo novo coronavírus, como: "infelizmente muitos vão morrer, é coisa de quem está vivo, fazer o que?"

Koury traz outro dado importante no seu artigo ao referir-se às emoções que se destacam no cenário pandêmico no Brasil: "Ansiedade, Medo e Tristeza que, juntas, somam quase 90% das respostas" a uma enquete virtual, organizada pelo Centro de Investigaciones y Estudios Sociológicos (Cies) em toda a América Latina, do qual o Brasil faz parte. Contudo, o ponto alto da sua análise são os dados etnográficos nas interlocuções, algumas de longa data, que ele constrói com pessoas, mulheres e homens, de diferentes origens e perfis, que narram suas emoções, suas experiências vividas, suas estratégias de resiliência, reprodução social e material, e de sofrimento individual e social, no cenário da pandemia do covid-19.

Medo, ansiedade, tristeza, depressão, desesperança são sentimentos tematizados e analisados a partir de material colhido em conversas informais por meio de whatsapp, e-mail, celular ou encontros fortuitos nos corredores do prédio. O desvendamento dessa cultura emotiva revela uma face angustiada da experiência cotidiana dos entrevistados por Koury, e um estado de desconserto e não saber como agir frente aos eventos críticos por que vêm passando durante a expansão das duas crises (política e sanitária) no país.

"Além da culpa e da expiação: covid-19 e as fissuras de gramáticas emocionais" é o título do segundo capítulo da coletânea, da autora Fanny Longa Romero. Seu recorte analítico, inicial, a partir de dados da imprensa virtual, aponta de que modo determinadas emoções e produção de moralidades, como a culpa, fazem sua entrada na cena pública na emergência do covid-19, em nível global e local. Segundo Romero, a culpa é trazida nessas escalas como uma emoção politizada que acirra estigmas e também densos debates entre fronteiras e governanças mundiais, nacionais e locais.

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Na sua análise, Romero busca problematizar e compreender de que modo determinadas emoções, moralidades e dispositivos de poder, enquanto construtos culturais são potencializados, quando em situações de acentuada crise humanitária como é o caso da pandemia do novo coronavírus. Um ponto a ser destacado na sua reflexão é a compreensão de que fenômenos sociais como pandemias são um fato social total e influenciam, de forma interconectada e tensionada, todas as dimensões da vida social. Com base nos aportes Thomas Scheff (2016) sobre a vergonha como "giroscópio moral" nas sociedades modernas, Romero busca apontar a relação nuançada e de poder que permeia o comportamento social em torno da aparição de termos como vírus chinês, coronavírus Wuhan e a reedição de locuções como “vírus estrangeiro”, incorporados como discursos políticos e de senso comum. Há aqui um cenário que se refere a classificações de estigmas e constrangimentos morais.

Um segundo recorte do artigo de Romero analisa, através de dados coletados da imprensa e páginas de internet, a espectacularização do sofrimento social, assistidos global e localmente, com horror e espanto, em cidades como Guayaquil-Equador; e Manaus-Amazonas, realidades sociais diferentes, com especificidades culturais e sociais, mas, no contexto da pandemia, marcadas por eventos estarrecedores de centenas de corpos empilhados com evidentes sinais de putrefação no espaço urbano, abandonados como parte de uma necropolítica legitimada como soberania de Estado. O ponto alto do artigo, ao pensar nas contingências de sofrimento social, é recuperar a ênfase nas táticas invisíveis e subterfugias, nas práticas cotidianas de pessoas comuns que possibilitem novas formas de viver. Chama a atenção para o compromisso antropológico de reavaliar, processualmente, o social.

O terceiro e quarto capítulos intitulados "Individualismo moderno e sofrimento social em tempos de covid-19: questionamentos para reflexão", de Idayane Gonçalves Soares, e "Cenários de medo e as sociabilidades pandêmicas no Maranhão", de Jesus Marmanillo, respectivamente, são claros exemplos de como os repertórios conceituais e teóricos da sociologia clássica e da chamada sociologia interacionista e das emoções influenciam nossas análises. No caso do terceiro, Soares oferece uma breve, mas bem fundamentada, revisitação teórica do conceito de individualismo moderno e as configurações de interdependência com o sofrimento social, com base na abordagem de Norbert Elias.

Soares parte de uma proposta de imaginação sociológica, em perspectiva comparativa, de um tempo pré-pandemia e pandêmico. Com base em pesquisa bibliográfica, ela aponta certas continuidades e descontinuidades das dinâmicas do individualismo moderno e dos processos de sofrimento psíquico em um cenário de pré-pandemia e de instalação da pré-pandemia do covid-19. Nessa compreensão, busca mostrar que tal sofrimento, materializado em emoções como depressão, ansiedade, pânico, solidão crônica, é vivido e sentido, nos atuais tempos pandêmicos, como parte da dinamicidade dos processos do individualismo moderno desde antes do advento da situação-limite da pandemia, que ela considera fundamental "para se entender a configuração das relações sociais durante ela e os seus efeitos na subjetividade dos indivíduos". Destaco no artigo, a possibilidade de analise do sofrimento psíquico na sua clivagem com o recorte de classe, no contexto de pessoas de camadas populares, em que se verifica, conforme Soares, um movimento de associativismo, solidariedade e cooperação.

Por sua parte, "Cenários de medo e as sociabilidades pandêmicas no Maranhão", de Jesus Marmanillo, busca analisar o sentimento de medo, tal como o título de seu artigo sugere, na articulação das dinâmicas de cultura subjetiva e objetiva, com base nos aportes de Georg Simmel sobre "processos empáticos entre o 'eu' e o 'outro'", formas

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sociais, morte e emoções, nos aportes de diversos sociólogos e antropólogos contemporâneos. Marmanillo examina esses elementos no contexto da cidade de Imperatriz -MA, e com base em uma metodologia cruzada de dados estadísticos sobre boletins epidemiológicos, pesquisa documental e saídas de campo, situando sua exploração etnográfica no "ato de 'flanar' no contexto pandêmico.

Para compreender a produção de modalidades de medo "como fator importante nas sociabilidades urbanas", o autor traça uma descrição das experiências cotidianas em cidades como São Luis e Imperatriz. Nessa perspectiva, sua interpretação, com base no aporte teórico de Erving Goffman, correlaciona a emergência de novos comportamentos sociais e individuais à "construção de uma etiqueta preventiva", de sociabilidades pandêmicas, como ele refere, na obrigatoriedade social e política de governança local, do uso de máscaras.

Ao explorar a chegada da pandemia nas urbes de Maranhão, Marmanillo afirma que "O medo da morte gerou uma nova configuração dos cenários de sociabilidade". Ao que tudo indica, é o medo da morte o processo social e intersubjetivo que guia novas formas de interação social nesse cenário.

Numa linha similar, o quinto capítulo, de autoria de Selma Gomes da Silva, intitulado "Pandemia e afetações das emoções: reflexões sobre a realidade da covid-19 no estado do Amapá" explora a chegada da pandemia do covid-19, no contexto de uma cidade de grande porte. Silva chama a atenção para um "manto de emoções e sentimentos que envolviam: espanto, medo, tristeza, perplexidade e muitas incertezas", no cenário de uma cidade que, em março de 2020 estava experimentando as primeiras incertezas dos tempos de pandemia no país.

O texto de Silva proporciona dados importantes que se referem às acomodações entre as escalas locais e globais, em especial, quando autora se refere às medidas atuais de governança nacional exemplificada, nesse caso, na repatriação de brasileiros da cidade de Wuhan, e que sinaliza certo tipo de relações nos tempos de pandemia entre a China e o Brasil. É interessante correlacionar o impacto social desses dados trazidos pela autora uma possível emergência de novos sujeitos considerados outsiders, tal como o sociólogo Elias Norbert problematizou em alguns dos seus trabalhos.

Por outro lado, Silva perpassa, através de dados de imprensa, algumas imagens que "mostram a atipicidade dos cerimoniais fúnebres" que a pandemia e a crise sanitária no Brasil nos forçam a viver, não apenas com as dinâmicas materiais estarrecedoras de enterramentos de corpos em fossas comuns e da putrefação de cadáveres, a céu aberto, mas também sobre o que a autora compreende como "mortes sem acompanhamento e sem despedida", que são agudizadas pelo colapso do sistema de saúde na atual crise político-institucional. Nessa perspectiva, e com base no aporte de Lipovetsky, Silva tenta examinar os dilemas e questionamentos sobre "como exercer a leveza emocional em tempos de pandemia?"

O sexto capítulo, intitulado "'Quanto mais perto, mais real fica': emoções frente à pandemia do coronavírus em uma pequena cidade de Tocantins", autoria conjunta de Wellington da Silva Conceição e Rafael de Oliveira Cruz, tem como característica principal, à diferença dos outros artigos da coletânea, uma realidade social de pequena escala. Disso resulta que, já no começo da sua análise, os autores afirmem que "No contexto da pandemia de covid-19 no Brasil, o Tocantins ganhou destaque em um primeiro momento por ser o estado brasileiro que apresentou o menor número de casos confirmados".

A análise busca mapear o estado de Tocantins, a partir de uma cidade de pequeno porte chamada Tocantinópolis, localizada no norte desse estado. O texto traz, a partir do cenário, possibilidades de reflexão para uma sociabilidade marcada por

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processos de "pessoalidade" em que as interações sociais são elaboradas através proximidade e familiaridade das relações. A produção de uma "moral conservadora de natureza religiosa" é um dos elementos a ser destacados pelos autores que descrevem o teor de um verso bíblico: "Tudo posso Naquele que me fortalece”, como política de governança do poder municipal. Temos aqui um dado relevante que abre uma gama de possibilidades para pensar as configurações ideológicas, políticas e religiosas, e suas possíveis influências para o negacionismo da ciência. Tal como em outros artigos da coletânea, os resultados a que chegam os autores é que o sentimento do medo se apresenta como a emoção de maior destaque, na experiência vivida dos entrevistados virtuais.

A autora Williane Juvêncio Pontes no capítulo 7, intitulado "Reflexões sobre o enfrentamento à covid-19 em uma comunidade de João Pessoa-PB", nos aproxima a uma realidade social de João Pessoa conhecida como Comunidade do Timbó que, segundo ela, é um exemplo "das populações em condições de vulnerabilidade agravada pelo novo coronavírus." Conforme a descrição etnográfica realizada por Pontes estamos, nesse contexto, diante de uma sociabilidade de intensa pessoalidade com potencialidades sociais diversificadas e criativas, apesar das mazelas sociais que vivem seus membros e dos desafios e inquietações que enfrentam os moradores dessa comunidade na impossibilidade de viver a experiência do isolamento social porque precisam cumprir com suas diversas rotinas de trabalho (formais e informais).

O artigo de Pontes permite adentrar na análise de medidas burocráticas de governança, tais como o isolamento social, concretamente, a política de locksdowns, conforme se aplicou, de forma localizada, no Brasil. Mesmo que não seja parte do escopo da sua pesquisa, a autora nos ajuda a sinalizar a correlação de fórmulas globais de biossegurança e as práticas concretas na sua implementação e a heterogeneidade das experiências sociais no contexto de populações de classes populares.

Pontes nos aproxima das práticas cotidianas dos moradores da Comunidade do Timbó ao centrar parte da sua análise no feito dessa comunidade criar o chamado "perfil Meu Timbó", uma estratégia de construção de diálogo do associativismo comunitário dos moradores do Timbó, veiculada em redes sociais como o Instagram. Na perspectiva de Pontes, isso tem repercussão em diferentes meios da imprensa da cidade de João Pessoa, o que possibilita debates profícuos sobre a temática de vulnerabilidade social e de redes de solidariedade em tempos de pandemia.

"Convivendo com a pandemia", oitavo capítulo, da autora Maria Laura Faria Afonso de Melo, se debruça, inicialmente, sobre as clivagens do marcador identitário de classe, mas a partir de uma memória, próxima e pessoal, de referencias familiares. O contexto social do seu artigo é a cidade de Recife-PE, e seu texto consiste mais em um relato de impressões e inquietações pessoais, sobre o que lhe suscita a experiência da pandemia do covid-19, do que um estudo informado por pesquisa, qualitativa e/ou quantitativa. Apesar disso, através do seu relato, a autora proporciona interessantes e fragmentadas informações, em difusos recortes de tempo e espaço.

Um destaque do artigo de Melo e a tentativa de trabalhar com alguns registros de memória: "Ao falar em pandemia, me vem à mente narrativas de minhas avós descrevendo o que viveram no final de 1918". A autora se refere à experiência social da gripe espanhola, que demarca a partir de 1918, no que intitula de "relatos das zonas rurais e urbanas". Os relatos aos quais ela se refere são resultado dos diálogos com sua avó paterna. A gripe espanhola no cenário do Recife de 1918 é "trazida pela tripulação adoecida do Vapor Piauhy. Rapidamente se espalha pela capital do Estado". Após essa incursão de revisitação de memórias familiares, Melo dá um salto gigantesco, no tempo e no espaço, e repentinamente nos coloca no contexto da pandemia do covid-19, na

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cidade Recife. A autora sintetiza essa cidade, na atualidade, como "uma cidade fantasma", em que o sentimento de medo, segundo ela, "torna-se outra pandemia".

O nono capítulo, sob o título "Apontamentos das artes sobre epidemia e cidade", de autoria de Lysie dos Reis Oliveira, é o primeiro dos artigos da coletânea a trazer uma proposta de representações imagéticas, no contexto dos séculos XIV e XIX. Já no inicio do texto, a autora oferece um dado sociológico, e de profundidade histórica, sobre a temática epidemias, urbes e imaginários sociais, ao explicar que "na história das cidades, as epidemias preencheram páginas bem como, telas e outros artefatos, foram expressos por artistas de referência, autorizados pelas sociedades em que se inseriam".

O seu texto centra-se na produção de três artistas europeus dos períodos referidos, que retrataram a peste negra e os imaginários dos horrores citadinos. Nesse sentido, o artigo de Oliveira busca problematizar as descontinuidades de eventos e processos históricos, em cenários diferentes, a partir da pergunta analítica de como a epidemia invade a cidade, como lócus de compreensão sócioantropológica.

O medo como emoção também está presente no desenvolvimento desse artigo pela via de análise de imagens de arte pictórica que desvelam representações e imaginários sociais e os limites de explorar emoções da fascinação diante formas imagéticas de horror.

Por fim, o décimo e último capítulo, de autoria de Mônica Lizardo, intitulado "O que você cala – olhares sobre um tempo de pandemia" traz também uma proposta imagética, mas voltada para o contemporâneo, através de um registro fotoetnográfico na cidade de Belém do Pará, no Norte do país. O artigo se centra nas dimensões e repercussões, situadas, da experiência de lockdown na região. Lizardo propõe um olhar documental através de "retratos, percepções e sentimentos de pessoas durante a quarentena imposta pela pandemia do covid-19, no coração da Amazônia".

É possível correlacionar o artigo da autora aos recentes eventos críticos vividos por grande parte da população amazonense em um cenário de colapso sanitário e político-institucional de mortes por falta de oxigênio. A figura do enfermeiro, profissional de saúde, uma das personagens abordadas por Lizardono seu texto, ajuda a compreender, mesmo que ela não examine esses aspectos, as correlações entre a noção de necropolítica, o fazer viver e deixar morrer, legitimado como soberania de Estado. A autora traz um registro fotoetnográfico de pessoas que trabalham como feirantes e permite situar os tempos de pandemia como uma dinâmica volátil de experiências vividas em clima de medo, incertezas, esperança, desesperança, e angustias.

A questão básica que movimenta a rede de autores presentes no livro Tempos de pandemia: reflexões sobre o caso Brasil versa sobre: o que a antropologia e, mas extensamente, as ciências sociais, têm a dizer diante de incertezas extremas, situações-limites ou eventos críticos como a atual experiência social da pandemia do covid-19, vivida e sentida em escala global e local, de forma diferenciada? Tal questão é instigante indo além de uma pergunta-problema de pesquisa; ela é convidativa para nos interpelar sobre nosso papel como cientistas sociais, e como sujeitos históricos, individuais e coletivos.

Permite-nos repensar, tal como nos inspira Veena Das (2020), de que "modo aprenderemos a ver o que está acontecendo diante dos nossos olhos?", no âmbito de um evento crítico contemporâneo que escancara, de modo contundente, profundas desigualdades e atualiza mazelas histórico-sociais de opressão interseccional de etnia, raça/cor, classe, geração, gênero e sexualidade na sociedade contemporânea. O livro Tempos de pandemia: reflexões sobre o caso Brasil contribui assim para desvendar, compreender e problematizar as emaranhadas teias de significados, contextualizadas no

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Brasil a partir das regiões Norte e Nordeste. Termino a resenha, portanto, com um convite para sua leitura

Referências

DAS, V.. 2020. Encarando a covid-19: meu lugar sem esperança ou desespero. In:

DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Rio de Janeiro.

Reflexões na Pandemia. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-26?lang=pt . Acesso em 6/1/2021.

ELIAS, N. 1998. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

FABIAN, J. 2013. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes.

GELL, A. 2014. Antropologia do tempo: construções culturais de mapas e imagens temporais. Petrópolis/RJ: Vozes.

RICOEUR, P. 2011. Finitud y culpabilidade. Madrid: Ed. Trotta.

SCHEFF, T. 2016. Vergonha no self e na sociedade, (pp. 111-138). In: KOURY, M. G. P; BARBOSA, R. B. (orgs.). Vergonha no self e na sociedade: a sociologia e

antropologia das emoções de Thomas Scheff. (Cadernos do Grem, n. 10). Recife: Bagaço; João Pessoa: Edições do Grem.

Referências

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