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Sem - Sobre a Inclusao e o Manejo Do Dinheiro Numa Psicanalise

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Clínica do Social

Clínica do Social

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Karin Slemenson Karin Slemenson

Pulsional Revista de Psicanálise

Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, n, ano XIV, noo142, 76-87142, 76-87

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conduz à idéia de que a possibilidade de uma análise se estabelecer sem

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ou cem a cunhagem da cifra a ser incluída na experiência analítica.

ou cem a cunhagem da cifra a ser incluída na experiência analítica.

Palavras-chave:

Palavras-chave:Clínica social, clínica psicanalítica, dinheiro, instituição psicanalíticaClínica social, clínica psicanalítica, dinheiro, instituição psicanalítica

his article presents a discussion on making psychoanalytic procedures more

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accessible

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Key words:Social clinic, psychoanalytic clinic, Social clinic, psychoanalytic clinic, moneymoney, psychoanalytic institute, psychoanalytic institute

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* Este artigo aborda de forma condensada tema tratado em dissertação de mestrado apresenta-Este artigo aborda de forma condensada tema tratado em dissertação de mestrado

apresenta-da à PUC-SP em setembro de 2000, sob o

da à PUC-SP em setembro de 2000, sob o título “Sem ou Cem? Sobre a inclusão e o título “Sem ou Cem? Sobre a inclusão e o manejo domanejo do

dinheiro numa psicanálise”.

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o contexto contemporâneo, depa-ramo-nos com algumas experiên-cias institucionais que visaram a possi- bilitar o acesso à psicanálise a parcelas mais amplas da sociedade. Inseridas em condições culturais ou de trabalho dife-renciadas, estas instituições depararam-se com a questão da “escasdepararam-sez” de dinheiro, uma vez que o tema escassez tem demonstrado ser tanto transcultural como transhistórico, vendo-se, assim, com a tarefa de produzir um posiciona-mento frente à questão.

É possível considerar que tal posiciona-mento em relação à questão da escas-sez do dinheiro e de seu manejo nestas instituições impôs-se como “questão para a psicanálise”, em conseqüência de seus  propósitos institucionais, que

pretende-ram sustentar um destino para a clínica  psicanalítica voltado à sociedade num sentido mais ampliado, segundo crité-rios de inclusão/exclusão própcrité-rios à psi-canálise.

Colocando em perspectiva este destino da clínica psicanalítica, a inclusão das questões articuladas pelo dinheiro  precipita a elaboração de uma trajetó-ria que desaloja o dinheiro das identificações imaginárias, produzidas no campo social, para inseri-lo no cam- po clínico psicanalítico strictu senso, cuja ênfase recai sobre os efeitos Sim- bólicos e do Real que estas questões  passam a engendrar.

É no esteio destas idéias que proponho tomar o contexto da prática clínica que venho desenvolvendo no âmbito do Fó-rum de Psicanálise, instituição fundada em 1996, da qual participo, para tratar 

a questão do dinheiro ligada à clínica psi-canalítica.

A caracterização do Fórum de Psicaná-lise assumida pela Instituição não é a de uma instituição dedicada a uma “espe-cialidade clínica” – como, por exemplo, tratamento infantil, drogadição... ou clí-nica sem dinheiro –, mas sim a de uma instituição marcada por uma singularida-de, qual seja, a disposição de confron-tar-se com particularidades e dilemas da clínica psicanalítica.

Desta forma, por sua oferta de escuta  psicanalítica dirigida à ampla sociedade, inclusive àqueles com baixa ou mesmo nenhuma renda, o que o Fórum de Psi-canálise pretende instituir, não é um traço identificatório para viabilizar sua prática, mas, como está sugerido desde a esco-lha de seu nome, instituir um fórum de discussões no qual as questões sobre o que é uma psicanálise, o que é um psi-canalista e qual a responsabilidade social  própria à psicanálise e ao psicanalista  possam manter-se investidas a partir de

uma prática.

Disso segue a possibilidade de reconhe-cer o movimento de levar às últimas conseqüências o compromisso com as  particularidades envolvidas pela função  psicanalítica e de constituir um laço so-cial entre analistas segundo as exigências destas particularidades e, a partir disto, relançar a questão da inclusão e do ma-nejo do dinheiro como sendo da ordem da função significante para o Sujeito. Ao relançar assim tal questão, ou seja, ao  pensar o dinheiro como efeito, e não causa da especificidade da conjunção em que se instituiu o Fórum de

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se, fica inexoravelmente posta a indaga-ção sobre o que implica o dinheiro numa  psicanálise para todos aqueles compro-metidos em fazer a psicanálise avançar. O que se configura neste contexto é a  pertinência da discussão que aponta para o dilema dinheiro vis a vis a possibilida-de analítica.

Assistimos a um confinamento da psi-canálise a uma população delimitada, ge-ralmente constituída por aqueles de  poder aquisitivo alto ou relativamente alto e por analistas em formação. Este con-finamento tem como efeito uma redução da experiência psicanalítica, tanto no sentido qualitativo – pela imputação de um critério econômico de inclusão ou exclusão – como quantitativo: poucas  pessoas podem submeter-se a uma aná-lise num país como Brasil. Assim sen-do, se num primeiro momento a práxis  psicanalítica vem excluindo grande par-te da população por espar-te critério (eco-nômico), ainda que estabelecido lateralmente, num segundo momento, esta exclusão induz ao questionamento de sua pertinência e coloca em pauta sua  própria exclusão como praxis. Particu-larmente, acredito que é o caso de nos  perguntarmos quais são as possibilida-des da psicanálise se manter “viva” nessa condição tão restritiva? Saindo desse confinamento? Para tanto, parece pre-mente pesquisar o que pode ser o fator  econômico para uma psicanálise e, des-sa forma, procurar meios de ampliação da experiência analítica que concomitan-temente zele por algo de legítimo que  possa estar implicado no estabelecimento de tal critério como sendo o de

exclu-são/inclusão na experiência psicanalítica e que gerou o confinamento observado em sua práxis.

Ao propor o enfrentamento da questão da ampliação do acesso à psicanálise, o Fórum de Psicanálise considera os ris-cos implicados nessa prática e nesta  perspectiva, pretende não recuar diante dos pedidos de análise que puderem ser  formulados, mesmo em condições onde o pagamento seja necessariamente for-mulado sem a presença da cédula monetária. Tal decisão implica questões concernentes ao analista, ao analisante e à própria ética envolvida na psicanálise. É exatamente esta discussão que enca-minho sob o tema dinheiro numa  psicanálise.

A perspectiva para esta reflexão é a de que o encaminhamento produtivo da questão proposta se faz possível apenas através de um duplo deslocamento, a saber, o deslocamento do dinheiro da arena socioeconômica para o domínio da economia psíquica; e do deslocamen-to da investigação do significado do di-nheiro, para o privilégio da função significante do dinheiro o que nos reme-te ao próprio campo da pesquisa psica-nalítica.

 Nestes domínios, o dinheiro – em falta ou em excesso – é passível de outras tantas atribuições. Isto significa dizer  que, no que mais precisamente interes-sa ao recorte operado no trabalho, isto é, a falta de dinheiro, é possível aventar  que esta falta possa estar referida a toda e qualquer sorte de falta, mais exatamen-te toda e qualquer “coisa” que aponexatamen-te  para a falta.

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Aventa-se aqui que seja possível uma cer-ta inclusão e manejo do significante dinheiro que o leve em conta como ca- paz de engendrar a série de objet os marcados pela castração e que, portan-to, se referindo ao ponto de interseção entre necessidade (ou seja, satisfação  pulsional na imediaticidade do corpo), demanda (como transcrição do desejo no  plano da linguagem) e desejo (como

pres-são da força gerada pela falta-a-ser). Se for assim, a questão do dinheiro cir-cunscreve a própria “arquitetura” e a  própria “economia” do desejo do sujei-to, do ciframento que permite a construção da condição de deciframen-to. A idéia envolvida aqui é a de uma operação mais complexa do que uma sim- ples transposição de campos, de uma “tradução”, mas de estabelecer parâme-tros para a construção de uma condição de possibilidade de “deciframento”, tal como concerne a uma psicanálise. Outro ponto importante para a discus-são é o de que na relação transferencial estabelecida em uma análise, o dinheiro, em sua dimensão significante, circula no espaço entre as partes envolvidas no pro-cesso, não se fixando nem de um nem de outro lado dessa relação, mas na sua mediação. Tratando-se de uma função significante do dinheiro, tal como apon-tada anteriormente, mediar implica agenciar, como um terceiro elemento, ir-redutível, que intervém e até mesmo divide ou faz furo nos dois primeiros en-volvidos na relação. A circulação do dinheiro marca limites para o analista e  para o analisante, justamente pela impos-sibilidade de constituir um sentido, um

significado comum entre ambos. Então, o que circula e faz função é o signifi-cante [dinheiro] e não o significado [do dinheiro]. Resta saber como operar e sustentar este limite pela circulação de dinheiro, algumas vezes, exclusivamen-te na realidade do discurso em análise, como seria o caso de uma análise na qual a cédula falta.

É imprescindível notar que o que é co-locado visa fundamentar uma proposta que pretende marcar um campo de es-cuta da questão do dinheiro em  psicanálise, sem pretender inscrever-se como uma discussão sobre a essência do dinheiro. Até porque, ao definir-se aqui por uma doutrina do significante, está-se abdicando da idéia de substân-cia em benefício da apreensão da estrutura.

Se aceitarmos estas idéias, concordare-mos que, na condução de um processo analítico, não se pode restringir o dinhei-ro à presença física da moeda ou às quantidades previamente definidas num contrato ou mesmo ao cumprimento  pontual do pagamento; menos ainda  prescrever segundo tal critério, o da pre-sença ou ausência da cédula monetária, a possibilidade do tratamento psicanalí-tico. É possível considerar que cédula e pagamento podem não coincidir (sem ou cem?). O que está em foco é o que disso é falado e que está na dependên-cia de uma escuta diferendependên-ciada. Como o dinheiro é incluído e manejado em uma análise?

 Nesta direção, é possível articular o di-nheiro em relação aos deslocamentos de investimentos entre os diferentes

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obje-tos, dos investimentos pulsionais/libidi-nais em sua dimensão de grandeza, os quais [paradoxalmente] não podem ser  quantificados, medidos, ou identificados aos objetos que evoca.

 Nestas circunstâncias, o dinheiro pro-move um ciframento dessa grandeza quantitativa que só é apreensível em sua manifestação dinâmica de satisfação realizada de forma parcial, por exemplo, no sintoma e na transferência analítica, ou seja, nas operações que incluem os índices do desejo.

A possibilidade de ciframento abre a  perspectiva de pensarmos metaforica-mente a idéia de libido como capital e do dinheiro como operador do montan-te das realizações “libidinais” para o inconsciente (o Outro capitalista). Se o dinheiro oferece-se como signifi-cante, sobretudo dos deslocamentos do desejo gerados pela condição de falta-a-ser, em que o desejo é sempre desejo de outra coisa, seu sentido de valor de tro-ca ou de utilidade atribuído pela mercadoria e pelas leis de seu mercado está perdido de vista (ou de escuta). O que vemos manifestar-se pelos parâme-tros estabelecidos da economia libidinal refere-se ao trabalho gerado pelas ope-rações pulsionais, cujo valor é de inutilidade, já que está referido a um ob- jeto (mercadoria?) mítico.

O dinheiro abordado em sua dimensão significante introduz, justamente, o ca-ráter suplementar da relação de desejo e objeto, quer dizer, ocupando o lugar do objeto faltante (fálico) sem preencher a falta, a denúncia.

O dinheiro, então, metaforiza a

incom- pletude implicada no desejo (Quinet, 1991) que marca uma condição de fal-ta-a-ser (não completo). Há, no entanto, uma outra vertente que interessa na apreensão do dinheiro como metáfora dessa falta-a-ser.

Se em uma análise o dinheiro é tomado como um elemento significante da con-dição desejante do analisando, isto é, destituído de substância, este será ofe-recido segundo uma referência particular  de valor e na medida em que o sujeito esteja disposto a livrar-se dos ganhos advindos do sofrimento gerado por seu sintoma [seu gozo]. Tal disposição de  pagar por uma análise envolve, do pon-to de vista da economia psíquica do sujeito, perda narcísica. Então, em uma análise, paga-se para perder.

O trabalho de elaboração implicado numa análise incide justamente na modificação da economia psíquica (pulsional/libidinal) envolvida na manutenção do sintoma do  paciente. Talvez isso possa dirigir-nos  para a idéia de que, no que tange uma análise, o que importa é que o que o su- jeito em análise paga, seja pago desde

seu narcisismo.

O que o sujeito perde numa análise é  parte de seu narcisismo, o que lhe im- põe uma nova economia libidinal na assunção de sua condição “faltante”, de-sejante. Levando em conta os aspectos apontados, é pertinente dizer: se há uma análise em curso, esta é sempre cara,  pelo narcisismo que se perde [ainda que no senso comum esta possa ser dita “gratuita”, por não envolver a circulação da cédula monetária]; o valor a ser pago é sempre simbólico, pois é dado por um

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ciframento em referência a esta perda; e o dinheiro [cifra] é um dado do Real,  pela impossibilidade de efetivar-se como

objeto e com isso encerrar a dívida [que é simbólica].

DEIXANDO-SE ENGANAR

 Na perspectiva exposta, trata-se de in-cluir o dinheiro também através da idéia de gratuidade; inclusão esta que se cons-titui em um ato. Muitas vezes o ato inaugural do estabelecimento da transfe-rência. O ato de ouvir algo “disso”. Por  outro lado, a exclusão da possibilidade de se admitir uma análise segundo uma idéia preestabelecida e definitiva de gratuidade1estaria alinhada à decisão de

nada querer saber “disso”; da exclusão da falta, tal como esta encontra-se arti-culada pela falta de dinheiro, do limite como aparece colocado, do inaudito e,  por que não dizer, da morte.

Então, como sugere Martin (1984): “O que a morte deve ao dinheiro?” ou “o que o dinheiro deve à morte”? Perda narcísi-ca? Supõe-se que do lado do analista este [seu narcisismo] já tenha sido abalado... Ora, não seria um engodo tomar qual-quer elemento como preestabelecido e definitivo no estabelecimento de uma  psicanálise? Não seria esta medida cor-relata ao estabelecimento de um candi-dato ideal para a experiência analítica e, conseqüentemente, uma idealização da  própria psicanálise e porque não dizer do  psicanalista?

Há algo na idéia de gratuidade que só  pode ser escutado na transferência e que, portanto, exige seu estabelecimen-to para um posicionamenestabelecimen-to quanestabelecimen-to a inclusão e manejo da questão em uma  psicanálise.

Certamente não é possível considerar a idéia de uma psicanálise sem dinheiro de forma ingênua e apressada. Mas deve-se considerar que a questão do paga-mento em uma psicanálise não pode ser  reduzida ao fato e ao momento da en-trega de dinheiro ao analista, uma vez que articula questões relevantes para o trabalho psíquico, o qual pretende-se que seja produzido na relação transferen-cial estabelecida. O dinheiro e o paga-mento tampouco poderiam ser elimina-dos de tal cenário. Trata-se de que for-mas tais elementos se fazem presentes numa análise.

Se é assim, há que se perguntar se as questões articuladas pelo dinheiro, apon-tadas aqui, encontram-se lá, sempre que a cédula esteja e, por outro lado, se há a possibilidade dessas questões ganha-rem voz, entraganha-rem em circulação, em circunstâncias nas quais a cédula não es-teja, se levamos em conta que o que o  pagamento implica é concernente ao analista, ao analisante e à própria ética envolvida na psicanálise, e não ao mer-cado. Esta é uma pergunta a ser  respondida por uma prática.

Este caminho de reflexão conduz à idéia de que a possibilidade de uma análise se

1. Não seria isto tomar um significante por significado, gratuidade = não pagar. Por exemplo, como num possível desdobramento, é possível considerar que “pagar nada” seja o mesmo que “nada pagar” ou “não pagar”?

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estabelecer sem dinheiro seja admitida em caráter transitório e pelo compro-misso do analista com a psicanálise. É considerado também que tanto o cará-ter transitório, quanto o compromisso do analista com a psicanálise sejam elemen-tos decisivos para o estabelecimento da  prática psicanalítica de forma geral, seja sem ou cem a cunhagem da cifra a ser  incluída na experiência analítica.

DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA  À TRANSFERÊNCIA DE TRABALHO Propõe-se aqui a possibilidade de pen-sarmos que a resposta para a pergunta sobre o que move um psicanalista para a ação, tal como proposta pelos analis-tas do Fórum de Psicanálise, em cir-cunstâncias que incluem a possibilidade de não receber dinheiro por sua escuta, encontra sua legitimidade na perspecti-va que a excede, ou seja, a de sua pro-dução do discurso do psicanalista. É nesse âmbito, o do elo social, que reú-ne psicanalistas no Fórum de Psicaná-lise, que está fundamentada a circuns-crição de um campo de transmissão, inclusive em seu propósito de admitir   para tal a possibilidade de análises sem  pagamento com dinheiro em certos ca-sos, fato que, ao meu ver, só pode ser  sustentado por uma Transferência de tra-balho com a psicanálise. Por uma Trans- ferência de trabalho que visa fazer pro-gredir ademais do sujeito em uma  psicanálise, a própria psicanálise.

Se assim for, faz-se do “valor” entregue  pelo analisante um pagamento à psica-nálise, e este há de ser buscado para além ou aquém da materialidade da

cé-dula, ou seja, nos preceitos da ética do desejo que circunscreve a psicanálise.  Nesse recorte cabe discernirmos uma

tripla realização, no que tange o que se realiza como pagamento em uma análi-se: a) O que o psicanalisando paga nos diferentes momentos de sua análise; b) O que o psicanalista paga na direção de uma análise; e c) O que o psicanalisan-do paga através psicanalisan-do psicanalista em uma análise.

É reconhecível numa análise o momen-to no qual o próprio analisante vê-se comprometido com sua análise e não com o analista; neste contexto vê-se pa-gando por sua palavra, por sua análise. Mas quem faz possível este pagamento à psicanálise é o analista que assumiu um “custo” e, portanto, também algo paga:  paga com sua palavra, com sua pessoa e com seu juízo mais íntimo na ação que vai ao cerne do ser (Lacan, 1958). Tra-ta-se do “custo” da própria psicanálise. E ainda seria possível pensar que seja na esfera da Transferência de trabalho que cabe demarcar uma função analítica para a própria instituição psicanalítica, como o é o Fórum de Psicanálise, a saber, a de implicar, para o analista ligado a esta, um limite à sua condição de, por um lado, não receber dinheiro por vir a de-sempenhar a função de analista e, por  outro lado, a de arcar com um custo  pago à psicanálise.

Constituir-se numa reunião de psicana-listas, faz das questões concernentes à formação “pauta do dia”, sobretudo con-siderando-se que a posição e crítica que cada analista ligado ao Fórum de Psica-nálise mantém em relação à concepção

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de formação e em relação à sua própria formação é implicada nesse momento da transmissão marcado por um laço insti-tucional que pretende dar voz a uma outra particularidade da psicanálise: a de que cada analista responsabiliza-se por  seu desejo de analista.

E qual é o desejo do analista? Uma res- posta possível, embora careça de escla-recimentos, seria o desejo de fazer valer  a diferença. A diferença como sendo a  própria possibilidade de existência do

in-consciente freudiano. A diferença que o  pai introduz entre uma mãe e seu bebê. A diferença que impõe ao psiquismo uma organização, um ponto de âncora, uma lei. A diferença operada pela linguagem em suas composições de pura diferença das letras, separando desejo e Gozo. A diferença que estabelece a possibilidade de algum acesso ao inconsciente, ao fe-minino, à inconsistência do ser... Considera-se que seja desta perspectiva, que se levada à certa exaustão, desdo- br a- se um a ou tr a: a de in di ca r a  particularidade segundo a qual seja pos-sível pensar uma responsabilidade social da psicanálise, do psicanalista.

Se assim for, esta seria movida não por  culpa social ou por um furor sanandis, mas por conseqüência de um compro-misso assumido, a saber, o compromis-so de manter a psicanálise em causa. O desejo do analista circunscreve uma  prática cuja origem é reconhecível em um ato analítico do próprio Freud: “Fale tudo”. Como nos diz Serge Cottet (1989):

O laço com Freud, para um analista, é tão includível que nada, nenhuma garantia,

ne-nhum terceiro, pode endossar a cientifici-dade da experiência. A tal título continua sendo não inefável, mas inverificável.

É importante mencionar que o propósi-to de uma oferta de análise dirigida à ampla população excluída do acesso a esta experiência, se levada a sério, deve ser considerada segundo as condições que lhe são próprias. Isto é dizer: a ex- pectativa da existência de uma “massa” que abraçaria com entusiasmo essa cau-sa, a da psicanálise, está fadada à frustração.

Ao contrário, o próprio fundador do campo analítico, Freud, sempre incluiu em suas considerações os vários níveis de resistência à psicanálise e, no final de sua vida, teria declarado a Binswanger  que “não há coisa alguma para a qual o homem, por sua organização, seria me-nos apto do que para a psicanálise” (Ibid.).

Se, por um lado, o momento da trans-missão da peste aqui recortado pode ser   pensado como o de contaminação da  polis, por outro é também o de “desper-tar”, sobretudo se considerarmos que o  propósito de promover uma análise fren-te aos pedidos de ajuda, dirigidos a um “profissional psi”, geram um campo que não pretende ser de utilidade pública, nem sequer de utilidade do indivíduo, uma vez que este, o indivíduo, implica um sujeito alienado em seu gozo. Visa a expressão de um Sujeito desejante. Sobre a inaptidão para uma análise, po-demos acrescentar que a condição de desejo que depreende-se da demanda gerada pela oferta de um analista signi-fica uma perda da possibilidade do

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Sujeito manter-se como Indivíduo. Ade-mais, a transferência analítica provocada  por este ato de escuta que dá “voz” ao inconsciente, faz obstáculo à intersub- jetividade, empurrando o Sujeito para uma divisão que o separa de seu gozo. Inspirar esse duro desejo de despertar, no qual é condição perder para ganhar  e menos...

Mas do adormecimento despertar para que? Não para a realidade, mas para o  Nada do desejo (wunsh), para a abertu-ra do Inconsciente, paabertu-ra o impossível encontro com o Real?

Se a psicanálise nos ensina que há no sintoma um certo adormecimento, e nes-te um decorrennes-te prazer (lust/genuss) implicado, nos indica também que é por  meio do despertar gerado pelo despra-zer (unlust ) envolvido no sintoma que dá-se a iminência do impossível encon-tro com o Real, o que, embora sem considerar-lhe condições de possibilida-de, não impede que se faça deste encontro um fim; dito de outra forma, se o sintoma não cessa de inscrever-se e o Real não cessa de não se inscrever, temos na injunção dessas insistências a  possibilidade da realização do trabalho

analítico.

A realização ( Befriedigung/Erfüllung) pri-mária de todo discurso é de adormecer, uma vez que o significante mestre trás esta virtude. Fala-se o tempo todo do que se quer ignorar: a castração. Encontra-mos na teoria lacaniana uma formulação na qual esta realização primária é elevada a um estatuto discursivo: o do discurso capitalista. Resta saber que laço social se faz possível a partir desse discurso.

 Não é menos instigante para o tema pro- posto aqui a proposição de um discurso nomeado como “capitalista”, que evoca tão prontamente o significante dinheiro. Pois bem, no discurso capitalista temos um sujeito instrumentalizado, que “não tem nada com que fazer laço social”, [assim como não tem “dinheiro” para fazer uma análise...]. Em Televisão (1979), Lacan aponta como desmonta-gem ou saída do discurso capitalista o discurso do analista.

Vale dizer, que se do lado do psicanali-sando o que subjaz a este momento da transmissão refere-se à sua finalidade terapêutica, do lado do psicanalista en-volvido no trabalho, é possível, e até imprescindível, admitir que seu compro-misso [do analista] com a concepção de finalidade e fim de análise encontrem-se lá desde o início, ou seja, a disposição do analista para levar a análise ao seu termo, para além da terapêutica, marca a posição em que este se introduz no  jogo analítico, por seu ato inaugural e na

direção do tratamento.

Então é possível considerar que tais questões, a da transferência de trabalho com a psicanálise e a do desejo do ana-lista sejam de extrema relevância para admitir a idéia da oferta de análise em contextos onde dinheiro falta; e esta oferta, por sua vez, relevante para con-siderarmos o dinheiro como significante  para uma psicanálise, o que implica a  particularidade com que este deve ser in-cluído e manejado para e no trabalho de transferência.

O que se pretende apontar aqui é o com- promisso com as condições para haver 

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análise. Compromisso de que o que quer  que esteja em jogo através dessa im- possibilidade do dinheiro, aquilo que concerne à miséria neurótica, seja toca-do, tratado. É preciso considerar que o que será feito “disso” é responsabilida-de responsabilida-de cada sujeito em análise. Para que uma análise se produza cabe ao analista responsabilizar-se pela direção do trata-mento e não pela direção do analisante. Enquanto isso...

Um menino encontra-se em entrevistas  preliminares há vários meses. Veio com a mãe numa primeira vez. É filho do se-gundo casamento de seu pai. Vive com sua mãe que trabalha como faxineira. Mantém uma relação freqüente e fami-liar com uma irmã, filha do primeiro ca-samento do pai. Este casou-se, pela ter-ceira vez, com uma vizinha. Chegou a visitar o pai depois deste ter se separa-do da mãe, mas não fala mais com ele. Foi deixando de falar com o pai aos pou-cos. Lembra como o pai agredia a mãe quando moravam juntos. Estuda em uma boa escola técnica pública, trata-se com acupuntura numa instituição, mora só com a mãe, com quem aprendeu o caminho da igreja. Toma quatro ônibus  para chegar ao consultório o que, infor-ma a mãe, significa para a família um gasto importante. Decido prosseguir  com as entrevistas admitindo a possibi-lidade de não receber dinheiro por estas. Tem 15 anos, menino de poucas pala-vras...

Toda noite antes de dormir vai à cozi-nha verificar o gás. Trata de se certificar  que este não está escapando. Até con-vencer-se faz a tal operação uma, duas,

três vezes e então dorme. De forma ge-ral sempre acreditava estar esquecendo algo importante. Sentia até pouco tem- po atrás um bolo na garganta, tremor nas mãos, frio, palpitações; já em tratamen-to, passa a sentir vontade constante de fazer xixi, principalmente durante o pe-ríodo em que está na escola. Acreditava que chegaria a pedir para a professora  para ir ao banheiro e que ela não permi-tiria e, então, ele perderia o controle e faria xixi na calça... portanto, evitava pe-dir para ir ao banheiro... isso também já não acontece mais, desde há algumas semanas. Mas o que se impunha era seu medo de morrer. Muitas vezes vem à sua cabeça cenas de morte... sua mãe morta... ele morto... Quando na cena da morte ele é o morto, imagina sua mãe sofrendo e se vê deitado no caixão...  procura não pensar nisso. Tenta domi-nar a imagem... imagina-se levantando do caixão e vivendo. Entende que ir à igreja e rezar são providências que o pro-tegem e o livram da culpa de imaginar a mãe morta...

O gás que escapava, o xixi que escapa-va, ainda depois, nas idéias de sofrer um derrame, o sangue que escapava, derra-mava... as coisas que escapavam convergiam para a crença na existência do exercício de num controle capaz de situá-lo na posição de um senhor da morte, que também lhe escapa. O san-gue, o xixi, o gás... Fala de suas fantasias de se sentir culpado pelas mor-tes das quais tomava conhecimento... de um cantor sertanejo, um corredor de Fórmula Um, um tio.

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assun-tos de morte serem trazidos mais expli-citamente, comentou que havia partici- pado de uma cerimônia religiosa onde entregam-lhe uma medalha que simboli-za a posição do fiel em relação àquela igreja... estava ansioso por recebê-la... sua mãe já havia recebido a sua. Havia  passado o domingo com o grupo da igreja. Uma confraternização. Ônibus fretado, um almoço... Esses eventos sempre acontecem, uma vez por mês. Então a analista pergunta:

 — O que se faz para participar da ceri-mônia?

 — Tem que pagar.

 — E para a confraternização você tam- bém paga?

 — Pago.  — Quanto?

 — O ônibus é 5 e o almoço é 10.  — Que outras coisas você paga?  — Isso e o inglês.

 — E aqui, po rque é que você não paga?  — Eu não sei, eu também acho estra-nho. Eu achei que porque eu não pago eu fico pouco tempo e a única coisa é que vai demorar mais para eu ficar   bom...

 — A partir da próxima sessão você paga.  — Quanto?

 — É verdade... quanto?... é importante falar sobre isso... (corte da sessão). Quando o pai foi embora, a mãe com- prou um fogão. Ele se lembra da caixa grande chegando. O pai morava perto e  brigas aconteciam no portão. As brigas anunciavam as ameaças. O pai ameaça-va pôr fogo na casa com mãe e filho dentro. O fogão, o gás, a ameaça, o pai... Formas de presença, ausência,

presen-ça na ausência do pai? Riscos de estar  na casa com a mãe...

Três reais... passa a pagar três reais a cada sessão. Vinha duas vezes na sema-na. Vinha sempre. Foi pegando gosto  pela palavra. Algumas vezes se apressa-va achando que a sessão ia terminar. A analista sempre dizia: há tempo...

E chegou um tempo de poder mover-se do lugar onde se encontrava... de estar  na sala fechada do cinema, jogar vôlei sem morrer, passar pela morte da avó materna... os sintomas foram caindo e questões se erguendo. Curiosamente sur-gem novas formas de presença do pai. O pai é aquele com quem tem medo de encontrar pela rua, a quem poderia es-crever, aquele que envia dinheiro para conta bancária da mãe todos os meses há onze anos... cento e cinqüenta reais... O que dá para fazer com isto?... Algu-mas vezes ele mandou menos. Certa vez noventa, certa vez setenta e cinco... Por  que será?... Será que ele não tinha... Um menino na escola estava conversan-do com uma menina e logo depois eles ficaram... como se faz isso? Nunca co-mentou com ninguém e até se esforça  para não pensar nisso, mas tem dúvidas se gosta mesmo de menina. Às vezes  pensa em meninos...

 Não seriam perguntas comparáveis às questões próprias ao desejo? Qual é meu objeto? Qual é meu sexo? Qual é meu desejo?

Diante de muitas das questões que fo-ram possíveis de serem formuladas por  ele, o testemunho de um percurso que só posso reconhecer como pertencen-do ao escopo de uma psicanálise.

(12)

Uma vez contou a seguinte história: re-solveu falar com uma menina que estu-dou com ele na escola há muito tempo e que de vez em quando toma o mesmo ônibus que ele. Quando estudavam jun-tos achava ela bonitinha e tudo. Sabe o horário que ela toma o ônibus, então cal-culou a hora e foi para o ponto. Ela de-veria entrar no ônibus dois pontos depois. Tomou o ônibus e ficou atento,  pensando que desta vez ia sentar ao lado dela e puxar assunto. Quando o ônibus  parou no ponto que ela deveria subir... interrompe a narrativa e pergunta à ana-lista: “Imagina quem entrou!... (suspen-se)... minha mãe (risos) acho que errei no cálculo...

A história foi contada como um chiste.  Na possibilidade do chiste, a possibilida-de possibilida-de se incluir em outra posição ao incluir uma terceira, a de um Outro, a do Inconsciente.

A esta altura da apresentação deste frag-mento trazido da clínica, poderia ser   perguntado: mas qual a relevância da

in-clusão e do manejo do dinheiro nesta análise? Ou ainda, qual a relevância da apresentação deste trabalho clínico para a discussão sobre inclusão e manejo do dinheiro numa psicanálise?

Ao meu ver, trata-se de um tratamento viabilizado pela proposta do Fórum de

Psicanálise, cujo critério de inclusão e manejo do dinheiro foi ponto capital para seu estabelecimento. Critério pautado  por um mercado diferente do habitual, a saber, o mercado aberto para o incons-ciente. Neste sentido, a quantidade de dinheiro que vem sendo entregue à ana-lista só pode ser visto como uma, entre muitas, particularidades desta análise, assim como existem particularidades em qualquer análise.

Acredito que o que este fragmento clí-nico presentifica no atual contexto é o fato de que um dos fatores que mais exi-ge consideração na decisão de produzir  a elaboração que procuro estabelecer  nesta discussão é, precisamente, o fato de que há análises acontecendo nas con-dições propostas pelo Fórum de Psicanálise; e que qualquer impedimen-to que se impusesse à produção de uma dessas análises não seria a expressão de uma restrição imposta pela psicanálise à condição cultural ou patrimonial do can-didato a analisante, mas sim a imposição de uma restrição, provavelmente tam- bém legítima, que deve ser reconhecida

em outra instância. 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

QUINET, A. As 4 + 1 condições da

análi-se. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

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Pulsional Revista de Psicanálise

 Artigo recebido em novembro/2000 Revisão final recebida em janeiro/2001

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