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Robert wright, A evolução de Deus

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lemos

os livros

que lhe

damos a

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Publicado por acordo com Little, Brown and Company, New York, USA. Reservados todos os direitos

© Robert Wright, 2009

© Guerra e Paz, Editores S.A., 2011 Reservados todos os direitos tradução: David G. Santos revisão: Francisca Cortesão

design de capa e paginação: Ilídio J.B. Vasco isbn: 978-989-702-025-4

depósito legal: 327574/11 1.ª edição: Junho de 2011 Guerra e Paz, Editores S.A. R. Conde Redondo, 8–5.º Esq. 1150 -105 Lisboa

Tel.: 21 314 44 88 Fax: 21 314 44 89

E -mail: guerraepaz@guerraepaz.net www.guerraepaz.net

(5)

não ficção · filosofia · religião prefácio e tradução

David G. Santos

A EVOLUÇÃO DE

DEUS

ROBERT WRIGHT

(6)
(7)
(8)
(9)

Prefácio . . . 15

Introdução. . . 35

primeira parte Nascimento e Crescimento dos Deuses 1. A Fé Primordial . . . 41

Lógica Selvagem . . . 44

Os Deuses dos Caçadores -recolectores . . . 50

Quando Coisas Más Acontecem a Boas Pessoas. . . 54

Quando as Pessoas Más Não São Punidas . . . 55

O Que É a Religião. . . 61

2. O Xamã . . . 64

Como Tornar -se um Xamã . . . 67

As Recompensas do Xamanismo. . . 70

Estados Alterados . . . 73

Será Real? . . . 75

Os Primeiros Políticos . . . 78

Mantendo a Contagem . . . 80

3. A Religião na Era das Chefaturas . . . 82

Os Deuses da Polinésia . . . 85

Tapu e Mana . . . 88

Crime e Castigo. . . 90

O Lado Negro dos Deuses Polinésios . . . 95

Em Defesa dos Deuses da Polinésia . . . 97

A Graça Salvadora dos Chefes . . . 100

Ciência e Conforto . . . 104

4. Os Deuses dos Antigos Estados . . . 108

Os Deuses Entram No Registo . . . 110

(10)



A Bússola Moral . . . 116

Os Deuses como Lubrificante Geopolítico . . . 118

Os Primórdios da Lei Internacional . . . 121

Sargão Expande o Reino . . . 123

Em Direcção ao Monoteísmo . . . 125

Marduk, o Único . . . 126

O Verdadeiro Monoteísmo . . . 129

Raízes do Progresso Moral . . . 132

segunda parte A Emergência do Monoteísmo Abraâmico 5. Politeísmo, a Religião da Antiga Israel. . . 151

Deus na Carne . . . 155

As Histórias da Bíblia Desenterradas . . . 158

Quem era Iavé Antes de ser Iavé?. . . 162

Perdido na Tradução . . . 168

A Vida Sexual de Iavé (e outros mitos) . . . 171

Fertilização Cruzada . . . 177

6. Do Politeísmo à Monolatria . . . 184

O Partido «Só -e -Apenas -Iavé» . . . 188

O Primeiro Monólatra Claro. . . 191

Justificadamente Preconceituosos . . . 194

O Deus dos Pequenos. . . 197

Duas Teorias. . . . 200

Como Se Tornaram os Reis Mais Devotos . . . . 203

O Padrinho . . . . 207

Alienando os Não Estrangeiros . . . 210

Elias Revisitado . . . 213

A Utilidade da Intolerância . . . 217

7. Da Monolatria ao Monoteísmo . . . . 220

Fazer Sentido do Desastre . . . 221

Duas Ordens de Magnitude . . . . 224

A Segunda Vinda de Isaías . . . . 226

A Vingança Final . . . 231

(11)



Mas Será Monoteísmo? . . . . 236

O Monoteísmo como Filosofia. . . . 238

8. A História de Fílon . . . . 243

Margem de Manobra Interpretativa . . . . 246

A Vida de Fílon . . . . 250

Paz, Irmandade e Poder. . . . 252

A Teoria do Jogo e a Bíblia . . . . 255

Rute e Jonas . . . . 257

As Virtudes do Império. . . . 260

Deus com D Maiúsculo . . . . 265

Mas Então e os Egípcios… . . . . 267

Mas É Um Deus? . . . . 269

9. Logos: O Algoritmo Divino . . . . 272

Deus como Programador. . . . 274

Iniciar o Programa . . . . 277

A Anatomia da Sabedoria . . . . 280

A Lógica da Sabedoria Bíblica . . . . 282

A Receita para o Nirvana . . . . 286

De Volta à Realidade . . . . 289

Razões Para Nos Alegrarmos . . . . 292

O Logos Global . . . . 294

A Viagem . . . . 297

terceira parte A Invenção da Cristandade 10. O Que Fez Jesus? . . . . 337

O «Jesus Histórico» . . . 341

Venha a Nós o Vosso Reino . . . . 347

Onde Está o Amor? . . . . 349

O Evangelho Segundo Q . . . 351

O Que Era Exactamente Que Era Novo Afinal? . . . . 354

11. O Apóstolo do Amor. . . . 357

Falta de Amor . . . . 359

Paulo como Director -Geral. . . 361

(12)



O Modelo de Negócio de Paulo . . . . 365

Voando em Classe Executiva . . . . 368

Benefícios Extra . . . . 370

O Império como Oportunidade . . . . 372

Até Que Ponto o Universal é Universal? . . . . 374

Irmãos, Sim, mas Inimigos? . . . . 378

O Crescimento de Deus (Continuação) . . . . 380

12. A Sobrevivência do Cristianismo Mais Adaptado . . . . 383

Uma Plataforma Aberta . . . . 384

Judeus para Jesus . . . . 387

O Vice -Campeão . . . . 388

Seria Jesus Realmente Necessário? . . . . 390

A Conversão de Constantino. . . . 392

A Razão do Exercício . . . . 394

O Regresso do Logos . . . . 396

13. Como Jesus Se Tornou o Salvador . . . . 399

Como o Céu Se Tornou o Céu . . . 401

O Mito do «Arrebatamento» . . . . 403

O Céu Pode Esperar . . . . 407

Competição Estrangeira . . . . 408

Renascido . . . 410

O Pecado Original . . . 412

A Civilização e Os Seus Dissabores . . . 415

Variedades de Pecado . . . 416

Uma Sociedade Imperfeita . . . 418

Figuras Paternais . . . 419 Articulação . . . . 420 quarta parte O Triunfo do Islão 14. O Alcorão . . . . 435 Meca. . . . 439

Contactar com o Deus de Abraão . . . . 442

Seria Maomé Cristão?. . . . 444

(13)



15. Meca . . . 451

O Dia do Juízo Final . . . . 452

Os Versículos Satânicos. . . . 458

16. Medina . . . . 462

Construir a Base . . . . 465

Maomé, o Ecuménico . . . . 467

A Inversão Abraâmica . . . 471

De Cima para Baixo ou de Baixo para Cima? . . . . 474

Terá o «Corte com os Judeus» Acontecido? . . . . 477

A Distorção como Norma . . . 481

17. Jihad . . . . 483

Maomé em Pé de Guerra . . . . 485

Realpolitik . . . . 488

A Invenção da Jihad . . . . 490

A Jihad Não Alcorânica . . . 491

O Preço da Tolerância . . . . 493

Maomé e Bin Laden . . . . 495

18. Maomé . . . . 498

Amor – e Ódio – Fraterno . . . . 500

Salvação . . . . 502

A Modernidade de Maomé. . . . 506

Isso Foi na Altura…. . . 510

quinta parte Deus Globaliza -Se (Ou Não) 19. A Imaginação Moral. . . 531

As Somas Não Zero de Hoje . . . . 533

Realidade Confusa . . . . 536

Processar o Choque de Civilizações . . . . 538

Imaginação Moral . . . 541

O Barco . . . . 545

Sermões Assimétricos. . . . 548

Progresso Moral, Antes e Agora . . . . 549

Mas Será Verdade? . . . 551

(14)



A Escritura como Revelação . . . . 556

O Crescimento de Deus Até Agora . . . . 560

Como Ser Humilde: Lição Número Dois . . . . 563

O Futuro de Deus. . . . 566

Posfácio | Já Agora, O Que É Deus?. . . . 569

A Realidade Última da Ciência . . . 571

O Ateu Contra -Ataca . . . . 573

O Crente Responde. . . . 576

Deus É Amor? . . . 581

Apêndice | Como É Que a Natureza Humana Gerou a Religião? . . . . 585

Verdade e Consequências. . . . 588

Deus Morde Homem . . . . 590

O Senhor dos Chimpanzés . . . . 594

Espíritos com Pernas . . . . 697

Lidar com o Sobrenatural . . . . 600

Regresso ao Passado. . . . 603

Pensar e Sentir . . . . 606

Variedades de Experiência Religiosa . . . . 607

Um Apontamento Sobre as Traduções. . . 611

Agradecimentos . . . 615

Bibliografia . . . . 623

(15)



E

ditar uma obra desta dimensão intelectual em Portugal é um acontecimento raríssimo. No panorama da cultura nacional, escrever ou apenas falar sobre o fenómeno da Religião só se tornou bastante comum quando o debate gravita em torno de ques-tões que se reconduzem ao fundamentalismo religioso e aos efeitos sociais, políticos e económicos dessa realidade.

Esta obra de Robert Wright, A Evolução de Deus, vai bastante mais longe do que até aqui, em Portugal, infelizmente, temos vindo a discutir. O leitor que venha à procura de um discurso fácil em torno das forças e dos dinamismos humanos que precipitam a vio-lência religiosa e o radicalismo não vai encontrar quase nada no âmago desta obra – o seu fulcro, o seu centro não passa por explicar superficialmente a emergência das guerras religiosas e do radica-lismo religioso no mundo contemporâneo. Isto não quer dizer que este livro não passe, por exemplo, também pelo 11 de Setembro – fá -lo, aliás, mas inserido numa lógica argumentativa que não remete para o que habitualmente se refere nas obras que se têm debruçado sobre este assunto. A Evolução de Deus não é um livro epidérmico; é uma obra profunda, com um argumento geral sofisticado e uma anatomia teórica que não gravita em torno de epifenómenos sociais, políticos ou económicos para explicar os eixos fundamentais do fenómeno religioso.

Para o leitor que não sabe o que realmente tem em mãos, quando se debruça sobre este volume maciço, é talvez importante começar por dizer que A Evolução de Deus reúne pelo menos três excelentes qualidades que a inscrevem na dimensão das obras mais

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

relevantes dos últimos anos dentro da sua área de trabalho: é eru-dita na medida em que evidencia um conhecimento sério e amplo, quer sobre a emergência e a configuração geral dos principais mono-teísmos planetários, quer das próprias lógicas gerais que animam a história e o presente das religiões abraâmicas; e é também uma obra acessível, mas inteligentemente organizada e sedimentada em cama-das de inteligibilidade que garantem, neste caso, que estamos perante um texto que interessa ao entusiasta das religiões em geral e sem grande formação específica, mas também ao estudioso académico atento e rigoroso quanto ao ambiente em que presentemente a quase totalidade da comunidade internacional científica de estudos reli-giosos vive. É, por fim, um livro extremamente criativo, no sentido em que nele o leitor experimentado assiste ao recriar de uma estru-tura argumentativa e de um modelo explicativo dos factos que nesta obra se consideram relevantes. A Evolução de Deus recapitula, num argumento vertebral, o que alguns dos mais importantes autores na história do pensamento humano têm vindo a conceber em pleno domínio filosófico profundo.

A propósito deste último aspecto, importa dizer desde já o seguinte: A Evolução de Deus é, no seu cerne, um livro de Filosofia da Religião. Dizer o contrário seria inútil: é um livro que traz con-sigo pelo menos uma tese geral sobre factos, que a incorpora nos dados que descreve e que lhes oferece um sentido de inteligibilidade elegante.

Isto quer dizer que esta obra não é inócua nem inocente de nenhum ponto de vista: é um livro que certamente oferece uma des-crição de factos históricos cuja neutralidade de disposição no eixo principal da obra, ainda que possam existir algumas discordâncias quanto à sua relevância para uma explicação do fenómeno de Deus, todos reconhecerão; todavia, como atrás referi, com este livro não estamos minimamente apenas perante uma descrição de uma his-tória geral da crença em Deus e da sua aventura no domínio cultu-ral humano. O núcleo desta obra encontra -se bem resumido nas palavras que a titulam à partida. O termo «evolução» associado à palavra «Deus» invoca o ponto basilar do que aqui se vai tratar: a evo-lução. O ponto de vista parte de um modelo explicativo da Religião

(17)



que se reconhece claramente na teoria de um evolucionismo cultu-ral que emergiu com o próprio Darwin e que se tem instalado cada vez mais na esteira de Richard Dawkins e da sua actual e quase pla-netária militância descrente.

Esta não é uma obra teológica no sentido de que com ela se pretende oferecer ao leitor argumentos para uma existência de Deus. A elegância deste livro assenta, no entanto, no facto de que também não é exactamente uma obra ateísta. Penso que este livro pode e deve ser lido como se fosse um imenso convite para um vislumbre quanto ao futuro do conceito de Deus, tendo em conta o seu passado e, evi-dentemente, o seu presente. É uma finíssima obra sobre o fenómeno da crença religiosa e a sua evolução – mas o que fascina é a posição que procura defender em profundidade, face aos cada vez maiores e mais poderosos ataques da crítica filosófica contra todo o género de argumentação teísta.

Importa ressalvar: não é certamente novidade, no presente hori-zonte, a aliança entre o evolucionismo e o fenómeno religioso no geral. Dadas as respectivas cedências e devidamente esgrimidas as duas tendências, a incorporação tem sido por vezes possível, dei-xando de lado a sua característica e mútua exclusividade teórica. Mas a viagem que este livro propõe não passa simplesmente por consta-tar que há opções teóricas dentro de um certo evolucionismo que o tornam compatível pelo menos com um certo teísmo; ao invés, tam-bém não se assiste à tentativa de reproduzir um gongórico argu-mento que pudesse acomodar uma qualquer teoria criacionista com uma perspectiva naturalista estrita. Este é, como atrás referi, um livro mais elegante do que isso.

Actualmente, a Ciência Cognitiva da Religião (CCR), no mundo anglo -saxónico, está a produzir material de investigação de inegável importância justamente neste domínio, aplicando técnicas de esta-tística, cálculos probabilísticos de extrema complexidade e aplica-ções informáticas de análise semântica a textos religiosos que per-mitem ter uma considerável, vasta e rigorosa perspectiva sobre a lógica dos dispositivos mentais do modo como a crença, em certas noções ou ideias sobrenaturais, se articula em determinadas comu-nidades e tanto no homem adulto como na criança. Ao contrário da

(18)



larga maioria destas últimas tendências de análise psico -social das religiões, este livro de Robert Wright também não pretende partir de uma eventual colecção e rigorosa análise de simples dados psico-lógicos para o argumento aqui desenvolvido. Também não tem como objectivo principal tentar uma descrição sistemática e porme-norizada dos dramas e das narrativas mítico -teológicas, mais ou menos complexos, que se têm engendrado ao longo da história da humanidade, para a partir daí inferir uma estrutura mental humana, passível de ser mapeada e reduzida a uma certa perspectiva bioló-gica do evento «crença».

Na verdade, A Evolução de Deus poderia ser uma simples obra ateia, sem dúvida alguma. Wright parte dos pressupostos caracterís-ticos que normalmente se associam ao ateísmo naturalista contem-porâneo. A tese de que a construção especulativa religiosa passa pela produção de conceitos especiais que fazem uso de categorias onto-lógicas simples e incorporam em si próprios contra -intuições bási-cas no sentido de assim se equilibrar o factor da saliência concep-tual, e o facto de por esta razão serem ou não facilmente memoráveis, é amplamente pressuposta no argumento geral deste longo texto. O núcleo duro do livro é também constituído de forma evidente pela ideia de que o fenómeno religioso se reproduz segundo um modelo epidémico da difusão da crença, relativamente a quaisquer eventos que despoletem falsos positivos então cerebralmente pro-cessados e, de forma tendencial, interpretados como produtos de agentes sobrenaturais, num mundo apenas naturalmente determi-nado. Se o presente título se ficasse por aqui, no que diz respeito aos grandes alicerces que o perfazem, o conjunto básico desta obra pas-saria apenas por um descortinar transparente da história ocidental da crença em Deus.

Mas A Evolução de Deus não é apenas uma história natural da crença em Deus. Contrariamente ao que seria talvez expectável, o lei-tor tem em mãos uma obra teológica subtil que não procura refun-dar a crença no sobrenatural, nem justificá -la, remetendo -a para a teia de argumentos que têm vindo a ser milenarmente trabalhados, quando se trata de justificar a necessidade de introduzir uma segunda natureza, ontologicamente privilegiada, relativamente ao

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

mundo natural de que somos meros acidentes, para fundar e expli-car a realidade. A essência deste livro está na sua brilhante tentativa de resolver o paradoxo que o seu título parece evocar, quando pro-põe um esvaziamento do conflito entre a especulação religiosa oci-dental acerca de Deus e uma certa teoria da evolução. O debate entre as duas perspectivas tem levantado até aos dias de hoje as mais inten-sas celeumas em plena arena académica: as discussões recriam -se e renovam -se com argumentos e contra -argumentos que se digladiam sempre em torno da tentativa de estabelecer por um lado a validade de argumentos que procuram demonstrar a existência de Deus – ou seja, de uma tal entidade de natureza especial face aos outros entes – e, do outro lado, preponentes das forças inversas, quando pro-curam evidenciar como todos os argumentos até hoje apresentados são de facto logicamente inaptos para justificar a crença em qual-quer figura sobrenatural e, assim, ineficazes no estabelecimento de uma verdade teológica. O argumento que se estabelece nesta obra também não passa pelo uso de uma pesada maquinaria ou aparato lógico; trata -se de um convite na direcção de um regenerar do olhar face ao problema de Deus, sem recorrer a artifícios e sofismas retó-ricos tão profícuos no habitual mundo especulativo filosófico dos nossos dias.

Desengane -se, no entanto, o leitor que procura neste volume um texto apologético ou apenas religioso; rigoroso quanto aos fac-tos, é também inteligente quanto ao argumento que urde ao longo de todo o seu trâmite. Assente um dos principais pressupostos da obra – o de um evolucionismo cultural aparente e plenamente inte-grado num naturalismo estrito –, o edifício de Robert Wright articula--se sub -repticiamente com uma pequena constelação de ideias rela-tivas à natureza e ao próprio estatuto ontológico dos artefactos culturais, produzidos através da imaginação moral do Homem. Este é o coração desta obra – a sua maior e mais profunda pressuposição. Antes de nos ocuparmos do centro propriamente dito deste traba-lho, interessa antes avaliar o alargado espectro teórico que esta obra traz à luz: a evolução de Deus está neste livro analisada sempre com um recurso a elementos entrevistos através do prisma da Arqueolo-gia, da PsicoloArqueolo-gia, da História da TeoloArqueolo-gia, e da Antropologia. A

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autên-

tica odisseia começa com uma análise daquilo a que o autor chama «fé primordial», passa depois pela emergência do monoteísmo abraâ-mico, pela invenção do cristianismo e, depois, pelo triunfo do islão.

Vou tentar agora percorrer os principais matizes de cada um destes primeiros quatro capítulos, para terminar com uma breve aná-lise daquele que a meu ver constitui o coração deste livro – o quinto e último capítulo.

A tese principal da primeira parte é que o monoteísmo abraâ-mico cresceu organicamente a partir da fé primitiva; não é o resul-tado de uma revolução, mas de um processo evolutivo que emergiu a partir de uma lógica selvagem da crença. As duas principais fun-dações do edifício teórico que aqui se estão prestes a organizar visam estabelecer duas teses: a) a primeira, de Edward Tylor – que é, aliás, o pilar teórico da antropologia social contemporânea –, é a de uma unidade psicológica da humanidade, a ideia de que, apesar das dife-renças contingentes entre os vários seres humanos de diferentes épo-cas e de diversos pontos do planeta, todos são basicamente o mesmo de um ponto de vista psicológico; b) a segunda tese vem na esteira do que atrás enunciámos: a cultura humana em todo o seu amplo espectro – Arte, Política, Tecnologia, Religião, Filosofia, etc. – evolui analogamente ao que se passa com as espécies biológicas e, como tal, traços culturais novos emergem e, consoante a sua capacidade de adaptação à realidade, as ideias podem perecer ou florescer e resul-tar na constituição de instituições e renovados sistemas de crenças mais ou menos sólidos.

Estas duas teses combinam -se com o evolucionismo biológico e dão origem à ideia fundamental do evolucionismo psicológico da Religião: as crenças religiosas são consequências naturais (outgrowths) da humanidade, produtos naturais do cérebro arquitectado pela selecção natural para acrescentar um sentido ao mundo, fazendo recurso a uma série de instrumentos mentais cujo teor não é sempre totalmente racional.

No seguimento deste feixe de argumentos, Robert Wright aproxima -se da questão central deste primeiro capítulo: o que é a Religião? Desde as religiões dos caçadores -recolectores às grandes

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

religiões do mundo, há pelo menos duas características comuns: a) todas tentam explicar porque acontecem coisas más e b) todas ofe-recem meios para melhorar o alegado mau estado das coisas que cir-cundam o Homem. Estas duas características explicam o facto de, regra geral, pelo menos no âmbito explícito das grandes religiões mundiais, o fenómeno religioso estar intimamente ligado a ques-tões éticas, morais e políticas. Mas ainda que o fenómeno religioso esteja de facto actualmente relacionado com a moralidade, tal não parece ter sucedido na sua origem. A primeira articulação de

A Evolução de Deus está justamente aqui: com o crescimento dos gru-pos humanos – bem visível, por exemplo, na diferença entre os pequenos grupos primitivos de caçadores -recolectores e as desenvol-vidas sociedades modernas –, a Religião tem evoluído paralelamente na direcção de um alargamento das suas preocupações éticas e do seu matiz moral. Por viver em grupos socialmente transparentes, a religião do caçador -recolector é quase vazia de preceitos éticos e morais; enquanto por contraste, nos grandes grupos modernos, o fenómeno religioso se tem definido culturalmente através da con-sideração ética e moral de cada vez mais indivíduos em grupos mais alargados.

Para compreender esta história natural da Religião, Robert Wright começa por retraçar o caminho das religiões nas sociedades primitivas pré -agrícolas, nas chefaturas, nos politeísmos das antigas cidades -Estado e depois nas tendências falhadas para o monoteísmo na Mesopotâmia e no Egipto. O rumo para o monoteísmo não foi feito de rupturas, e a deslocação do politeísmo mitológico para o monoteísmo deve -se fundamentalmente ao fenómeno do cosmopo-litismo e ao jogo das tensões entre os diversos grupos que passam a perfazer os grandes centros urbanos antigos.

A segunda parte desta obra gravita em torno da emergência do monoteísmo abraâmico e do estabelecimento do seu sucesso. Wright relê factos históricos, arqueológicos e linguísticos para mos-trar que se lermos a bíblia hebraica com o devido cuidado veremos que esta narra, na verdade, a história de um deus que começa por ser um entre muitos. Do politeísmo da antiga Israel, passando pela

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

monolatria, por um certo monoteísmo e depois – com a interpene-tração da especulação judaica com o pensamento grego – pela rein-venção de uma teologia intelectual do Logos através de Fílon de Ale-xandria, A Evolução de Deus edifica toda uma estrutura que pretende sublinhar uma história de pequenas revoluções mentais, numa linha contínua de coerência. A emergência de um impulso para o mono-teísmo teológico permitia então uma expansão do círculo de consi-deração moral. Este ímpeto rumo ao monoteísmo era ele próprio expressão de alargamentos políticos, sociais, económicos e psicoló-gicos que na época se desenvolviam em Canaã e em plena luta das tradições religiosas que preenchiam o seu imaginário essencial-mente politeísta. Robert Wright redesenha uma renovada biografia de Deus: El, Iavé e Baal parecem ter cooperado e competido numa linha teológica complexa e difícil de reconhecer, quando justamente a tradição que acabou por se estabelecer se ocupou de suprimir sis-tematicamente uma história de conflitos directos entre sociedades, de fusões teológicas, de guerras políticas e de combates sociais.

Os deuses são produtos de uma evolução cultural; e, muito mais do que sucede na evolução biológica, o caminho de um corpo cultural pode facilmente passar por simbioses, convergências e cedências que aumentam a probabilidade da sua sobrevivência, ou seja, neste caso, da sua popularidade. O caminho para a transcen-dência monoteísta abstracta é essencialmente feito do uso e da admi-nistração de uma intolerância política como instrumento privile-giado de propagação teológica e de afirmação social. A introdução de um sentido da História foi outro dispositivo que construiu esta ascensão religiosa essencialmente perfeita de vinganças políticas, com expressão num imaginário teológico que pulsava já uma uni-versalidade ética em gestação.

O teatro mental da imaginação religiosa deu outro passo importante quando introduziu a leitura alegórica na metodologia hermenêutica da época; a Bíblia é relida, e, com Fílon, a História passa por isso a mover -se na direcção do bem moral. Esta é outra etapa da biografia de um deus que nasce e consegue sobreviver em pleno ambiente politeísta; agora, tornado símbolo alegórico de uma nova liberdade política e social por advir, é também o alicerce

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fun-

damental para uma expansão ética agora consolidada por um traba-lho especulativo que promove a inclusão num círculo moral, que ao ser mais alargado, no primeiro milénio a.C., promovia economica-mente os mercados, a textura social e, evidenteeconomica-mente, uma identi-dade religiosa que se afirmava.

Com a invenção do cristianismo, e a terceira parte desta obra, Robert Wright mostra como o triunfo de Cristo se deveu a uma nova reinvenção da História: as calamidades que se sucediam foram intro-duzidas numa lógica de sentido, e assim a bíblia hebraica foi relida agora para recriar uma nova ilusão hermenêutica de profundo teor retórico: afinal, todas as crenças pós -crucificação eram basicamente as mesmas que as crenças pré -crucificação. O Jesus literário é a incar-nação desta novidade: sendo basicamente um judeu marginal, mais um profeta apocalíptico, o Jesus histórico reforçava a coesão social num laço que agora era claramente interétnico. O universalismo amoroso do cristianismo significa em princípio isso mesmo: não uma incondicionalidade do amor ao vizinho, tal como na actuali-dade e por causa de Paulo o entendemos, mas um apelo estratégico à unidade de um Israel politicamente determinado pelas tensões de um cosmopolitismo multiétnico agora completamente urbano. Com o cristianismo, a figura de um Pai divino, de uma salvação depois da morte na pureza deste e, na verdade, a ideia de um excên-trico sacrifício do divino para o pecado dos homens que haviam de reviver num futuro abençoado na morte, e pelo regresso de um sal-vador recompensador, a Religião aspira a reescrever um capítulo de amor e de uma salvação pessoal e social na direcção, argumenta Wright, de uma renovada harmonia interétnica.

É toda esta viragem conceptual que incorpora bem a resposta possível de uma religião agora teoricamente mais sistemática e con-ceptualmente ainda mais saliente, porque, através dos seus cultos e ritos, tentava preencher as necessidades psicológicas da época. O cris-tianismo oferecia um sentido para a História terrena introduzida no quotidiano dos povos e foi, numa era de especial ansiedade, a segu-rança e a estabilidade emocional de evidente matiz ético -moral, numa sociedade conturbada pelos desafios políticos que o recente

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ambiente imperial impunha. O que proporcionava aos seus segui-dores e trabalhasegui-dores intelectuais ditou o seu sucesso num mundo agora com o Império Romano doutrinalmente mais competitivo, e onde cada vez mais se estabeleciam contactos sociais, políticos e económicos profundamente incertos: a invenção de Jesus – isto é, a invenção da figura literária de Jesus e o cristianismo que por sua vez esta literatura recriou – foi o momento fundamental de uma reinvenção da religião abraâmica e do restabelecimento da sua con-tinuidade.

A penúltima parte desta obra tenta mostrar o que é o islão e o que nele sucedeu para que triunfasse como grande religião do mundo. Nesta história natural do islão, Maomé constitui, definiti-vamente, a personagem central: a viagem desta narrativa começa em Meca, na tribo dos coraixitas e na Caaba. Wright sublinha o percurso de vida deste profeta: foi por não provir de um clã poderoso e por ter tido uma vida perturbada por adversidades que Maomé se tor-nou perturbador do statu quo político da sua época, ao tornar -se monoteísta e ao denunciar a opulência das elites. A teologia estabe-lecida no Alcorão é uma extensão lógica do que já antes tinha ins-pirado as outras religiões abraâmicas – a luta pelo incremento do poder político através de uma retórica apocalíptica propulsionava uma popularidade que Maomé ambicionava com especial desejo, durante os anos de Meca. A insistência numa lógica estrita de recom-pensas e castigos monopoliza a violência de um Alcorão cuja iden-tidade, depois, se complementa com um período bastante politizado em Medina. Esta operação de engenharia religiosa resume grande parte do Alcorão; o islão efectiva alianças teológicas com as religi-ões abraâmicas, reescrevendo as histórias dos monoteísmos de Moi-sés e de Jesus. O islão reescrevia a História, e simultaneamente reescrevia -se na História através de distorções hermenêuticas inte-ressadas por parte dos especuladores do texto sagrado.

O material sagrado produzido pelo profeta em Medina está repleto de versos marciais; são exortações claras à promoção do ter-ror e à guerra aos infiéis. Quererá isto dizer que o islão é uma reli-gião de guerra? A Evolução de Deus demite a pertinência desta

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ques-

tão; Osama bin Laden é um herdeiro do islão, mas funda -se numa doutrina da jihad que só se tornou um conceito legal persistente e sólido no horizonte cultural teológico arábico, décadas, ou até sécu-los depois da morte de Maomé. Não há dúvidas de que o profeta pla-neou uma política estrangeira de cariz claramente expansionista e político; mas a estratégia do islão, se objectivamente analisada, nunca passou pelo uso da violência gratuita e sistemática. De um ponto de vista etológico, no exercício das três religiões de Deus, as estratégias determinam -se organicamente através da manipulação ético -moral dos homens, face a ambientes políticos, económicos, sociais e psicológicos de soma zero ou de soma não zero. As tensões têm de ser subjugadas em qualquer sociedade ou em qualquer reli-gião – e neste caso, tal como já tinha ocorrido, a construção de uma organização religiosa ampla determina um ambiente de soma zero e implica necessariamente o uso da intolerância. A existência de um império conduz à harmonia interna – mas tal sucede à custa da beli-gerância entre crenças. E nesta história de rotações de sentido e dis-torções que se tornaram leis, o Alcorão é, segundo Wright, a escri-tura sagrada que mais rapidamente se move entre opostos. O triunfo do islão está na correlação de que ele próprio é expressão entre as circunstâncias que o envolvem e a consciência moral que administra. Procurei apresentar de forma brevíssima até aqui A Evolução de

Deus, remetendo apenas para o que de mais factual e histórico esta

obra encerra. Mas o livro de Robert Wright não é assim; é, antes, uma combinação estrénua entre factos narrados e um feixe de argumen-tos que pontilham amiúde toda a obra. O primeiro argumento, e provavelmente o mais problemático, remonta claramente até à sua obra anterior, Nonzero: The Logic of Human Destiny. A ideia de fundo parece simples: no geral, as organizações vivas – tanto quando se fala em organismos, como em grupos de indivíduos – têm caminhado para uma cada vez maior e mais intrincada integração orgânica. A evolução genética tende para o desenvolvimento de organismos complexos e perfeitamente integrados – mais recentemente, a evo-lução cultural tende também para o desenvolvimento integrado e sustentado de sistemas coerentes de coordenação e administração

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

dos seres em que se reproduz. O argumento nesta obra, A Evolução

de Deus, gravita em torno de uma ideia de fundo semelhante: o con-ceito de Deus tem uma história natural evolutiva análoga ao que sucede com os organismos. Os deuses nasceram e têm caminhado num crescendo de integração que acompanha também o cresci-mento humano: a tese de Wright, aqui, é de que o Homem usa os frutos da evolução cultural para se organizar a ele próprio em larga escala. E quando esta organização social alcança um nível global, enriquecida de um trabalho económico geral, a totalidade que resulta da eficácia entre o sistema cultural e o físico assemelha -se a um organismo.

O maior problema conceptual que subjaz à obra A Evolução de

Deus é subtil e pode reconduzir -se, pelo menos em parte, ao que já tinha sido avançado na obra anterior deste autor. Robert Wright identifica evolução com progresso – e, na esteira desta identidade, identifica igualmente a complexificação ou o desenvolvimento com um melhoramento ou um aperfeiçoamento. Os termos moral

enlightenment, moral truth ou moral progress são absolutamente axiais na estruturação do argumento de Wright: a tese é que a história das religiões nada mais é senão o espelho de uma crescente iluminação moral que tem vindo a determinar culturalmente o Homem em direcção à verdade ética. No último capítulo da quarta parte de

A Evolução de Deus, Wright sugere o que pretende dizer quando refere um sentido da história: diz -se vulgarmente que um coração existe para bombear o sangue necessário ao bom funcionamento de um organismo complexo; um filósofo ateu como Daniel Dennett concede que os organismos estão desenhados para a sua prolifera-ção genética. Analogamente, argumenta Wright, é possível pensar que a espécie humana está desde há muito a tornar -se uma espécie de cérebro global do planeta, para que possa, por isso, assumir a sua gestão, de forma tão harmoniosa quanto possível.

O fenómeno religioso passa exactamente por aqui. Actual-mente as religiões mais parecem ter deixado de ser parte de uma solução ética para o Homem para se tornarem o problema funda-mental. Tudo se resume ao ambiente estratégico que actualmente nos reúne: se nos vemos numa relação de soma zero com os outros,

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tendemos invariavelmente para encontrar no sagrado uma justifica-ção para a intolerância; mas se nos entrevirmos globalmente numa relação de soma não zero, pendemos a encontrar nas Escrituras uma base para a mútua compreensão e para a harmonia. A verdade é que a rede de interdependência total entre humanos, e até não huma-nos, é a base fundamental de toda a dinâmica deste jogo – coopera-ção e competicoopera-ção são faces de uma mesma moeda que acaba por determinar o estatuto moral dos outros com quem jogamos. O grande problema nisto, acrescenta Wright, é a mente humana.

Agora é preciso voltar ao início de A Evolução de Deus. A histó-ria do divino começa com as religiões primitivas e com os corpos de crenças fluidos dos caçadores -recolectores. Actualmente o problema para a completa deslocação de perspectiva ética e moral em que esta-mos inseridos deve -se ao facto de que o nosso equipamento mental, para lidar com estas dinâmicas teóricas dos jogos, foi desenhado ape-nas para lidar com o ambiente do caçador -recolector e não para o mundo moderno. Os problemas que enfrentamos na actualidade exigem esforço intelectual, imaginação moral e política que nos per-mita conquistar a simpatia dos nossos inimigos e, na verdade, argu-menta Wright, uma perspectiva mais verdadeira de todas as figuras do outro. A nossa imaginação moral foi desenhada para servir os nossos interesses, para discriminar entre aqueles em quem podemos confiar e aqueles em quem não podemos. Mas a marcha da Histó-ria, refere Wright, tem desafiado as pessoas na direcção de uma expansão do âmbito da sua simpatia e da sua imaginação moral.

Mas será o sucesso destes jogos de soma não zero a verdade? Wright avança dois argumentos: o primeiro assenta na ideia de que a evolução talhou a imaginação moral humana no sentido de racio-nalmente explorarmos melhor as relações, para que em qualquer jogo de soma não zero possamos tirar o melhor proveito delas, ou seja, para que consigamos estabelecer uma harmonia relativa. A ideia é simples e dita de forma muito linear: se algo foi talhado pela própria natureza, então é verdadeiro. O outro argumento avança também num sentido semelhante e passa basicamente por identifi-car o equilíbrio e a harmonia humana com a ideia de um progresso moral – e isto, com a ideia de que há uma verdade moral que resulta

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da interacção entre a eficácia da cultura organizadora e os organis-mos biológicos.

O núcleo teológico da Evolução de Deus desdobra -se aqui: há uma ordem moral no mundo, refere Wright. Esta moralidade não foi imposta pela teologia nem por outra qualquer forma de cultura. A ordem moral emerge a partir do mundo: as teorias que organizam o social têm uma efectividade sobre aquele, mas são em primeiro lugar, também e em sentido próprio, uma expressão do mundo que organi-zam. Isto quererá dizer que existe uma ordem moral transcendental no mundo? A sugestão de Wright aprofunda -se no posfácio: talvez as leis do universo que operam numa determinada regularidade estejam subordinadas a um propósito – a harmonia –, e talvez este princípio que inclina os seres humanos para a ordem moral – fazendo com que no jogo da totalidade, aparentemente, transcendam a intolerância num jogo de amor por si mesmos, na interdependência dos outros – tenha uma origem: Deus. O amor e a verdade moral, neste esquema argumentativo, seriam as duas manifestações primárias de uma divin-dade da qual, na verdivin-dade, participamos desde que existe ordem.

No princípio desta apresentação adverti o leitor acerca do livro que está prestes a ler: Robert Wright escreveu na Evolução de Deus, de facto, uma obra brilhante. E é brilhante porque nela se tece um argumento simples mas elegante, que na torrente dos dados coligi-dos ao longo de todo o livro atordoa o leitor filosoficamente mais incauto.

Ao contrário do que se possa pensar, não me interessa aqui cri-ticar a tese de que a Religião tem sido um elemento fundamental para um acréscimo de harmonia social e política no Homem ao longo da História. Penso que isto é um facto apenas mensurável com outro tipo de recursos que não sejam o da mera especulação filosó-fica. Também não vou aqui discutir a selecção das evidências esco-lhidas ou dos factos – nem, à superfície, a interpretação que deles é avançada por Wright.

O que é dubitável, do meu ponto de vista, são os dois núcleos argumentativos que articulam em profundidade a catedral teórica

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de Wright: por um lado, é difícil aceitar o estabelecimento de um sentido da história na direcção de um alargamento do círculo moral, aqui identificado com uma harmonia emergente. O problema neste primeiro ponto não passa pela tese de que a ordem, de que a orga-nização ou a harmonia são um fenómeno epidémico em todas as suas vertentes – esta questão, na senda da que anteriormente recu-sei comentar, só pode ser, talvez, verdadeiramente discutida noutro tipo de registo científico que não seja o da mera especulação e o da colecção interessada de alguns dados coligidos.

A dificuldade que este primeiro ponto encerra é, do meu ponto de vista, uma questão metafísica. Creio que há pelo menos uma pers-pectiva possível que passa por assumir que o sucesso de todo e qual-quer jogo de soma zero ou de soma não zero não passa disso mesmo – um jogo de sobrevivência estratégica, inserido ou não numa lógica epidémica, mas sem um valor objectivo que se lhe possa predicar com verdade, seja qual for o seu resultado. O argumento profundo da Evolução de Deus é que o fenómeno religioso emergiu no Homem

para que assim se ampliassem os necessários círculos da reciproci-dade e da cooperação social. «Evolução» é, assim, visto como um sinónimo de progresso contínuo para melhor. Este ponto de vista teleológico é, a meu ver, claramente discutível; e para tal não é pre-ciso duvidar do eventual carácter epidémico das teias de coopera-ção. Claro que intuitivamente parece correcto, por exemplo, dizer--se que as asas das borboletas são coloridas para que assim estes seres melhor se possam furtar aos seus predadores. De um ponto de vista psicológico parece que estamos, aliás, inclinados a reconhecer uma causalidade teleológica em quase tudo o que percepcionamos. Mas esta perspectiva está, a meu ver, transversalmente comprometida com uma intolerável distorção e antropomorfização da realidade. Na perspectiva de um evolucionismo estrito, apenas nos é permi-tido dizer, por exemplo, que actualmente as asas das borboletas são coloridas porque os organismos com este fenótipo prevaleceram sobre aqueles que não apresentavam mutações genéticas com carac-terísticas semelhantes. Isto quer dizer que do ponto de vista estrito da evolução, na verdade, não existe um progresso da espécie; não há um sentido teleologicamente determinado para que as coisas

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pro-

gridam numa dada direcção. As asas das borboletas não evoluíram em direcção a uma verdade. São o que são. Evolução é apenas sinó-nimo de adaptação às contingências.

A outra questão que parece afectar em parte o argumento desta obra passa pelo facto de que no fundo A Evolução de Deus parece estribar -se na ideia sub -reptícia de que há eventos ou coisas melho-res do que outras; de que o conflito, a beligerância e a desconfiança são um mal objectivo, enquanto por outro lado a harmonia e a ordem são aparentemente denotadas como um bem. O texto parece sugerir uma série de saltos conceptuais que não são, no mínimo, ime-diatamente compreensíveis. No geral e de forma muito simplificada o argumento é:

1. A ordem social propaga -se no mundo rumo à verdade moral. 2. A verdade moral teve um princípio.

3. Logo é possível pensar que Deus é uma boa metáfora dessa origem.

Há, creio, pelo menos uma perspectiva diferente desta. É evi-dente e claramente abusiva a inferência de 1 para 2. Mas à parte disso, e na linha da crítica que atrás lançámos, na verdade talvez seja pos-sível pensar um mundo onde a ordem emergente, bem como a desordem, a guerra ou a paz, a vida ou a morte não tragam consigo nenhum valor moral associado. Desordem e ordem são apenas ter-mos sociais que pretendem traduzir uma determinada realidade física que em nada está, por sua vez, comprometida com qualquer realidade moral.

Na perspectiva a que aludo não tenho dúvidas de que foram pelo menos alguns fenómenos ordenados que inventaram o bem e o mal – mas isto não nos permite confundir ou simplesmente per-mutar as noções de «evolução» com «progresso», de «desordem» com «mal» ou de «ordem» com «moral» e «ética». Há pelo menos uma maneira de pensar onde tanto o conflito como a paz fazem parte do mesmo fenómeno, da mesma ordem, se assim o quisermos ver.

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

Não devo oferecer aqui respostas. Enquanto tradutor e prefa-ciador desta obra, o rigor intelectual obriga -me a pensar que A

Evo-lução de Deus é um convite generoso à mudança de perspectiva sobre a questão do divino – não contendo em si, (in)felizmente, nada de teoricamente definitivo ou conclusivo a favor da existência de Deus ou da fundamentação moral da ordem.

No princípio desta obra, Wright destaca um aspecto sobre a ori-gem da Religião que me parece de extrema finura e importância para uma compreensão total do seu texto; A Evolução de Deus insiste na ideia de que talvez o fenómeno religioso tenha começado com um corpo de explicações que procuravam dar conta das razões pelas quais os males sucediam ou não ao Homem primitivo. Este magní-fico livro que o leitor tem em mãos pode muito bem ser visto como um recapitular deste primeiro passo religioso: se o leitor perguntar a razão pela qual o mal sucede ao mundo, a resposta tenderá em afir-mar que tal se deve ainda ao primevo caminho de uma ordem moral que vai sobrevindo e permanecendo sobre a desordem. Mas elide -se agora que é justamente aqui que começa a Religião: na invenção de uma história acerca das razões para o mal no mundo. Não será A

Evo-lução de Deus uma destas histórias?

Disse no princípio desta minha apresentação que este era um livro de teologia contemporânea. Disse -o em tom de provocação, porque é também possível pensar esta obra como um autêntico tra-tado ateu. Leia -a agora o nosso leitor, livre de quaisquer preconcei-tos intelectuais. Mas leia -a sobretudo com o prazer que só uma grande e belíssima obra sabe proporcionar.

David G. Santos

Professor da Universidade da Beira Interior Investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa Lisboa, 5 de Dezembro de 2010.

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erta vez fui denunciado do púlpito da igreja da minha mãe. Foi em 1994. O meu livro The Moral Animal tinha acabado de ser publicado, e tive a sorte de ver um excerto publicado na revista Time. O excerto incidia sobre os vários modos pelos quais a nossa natureza humana evoluída complica o projecto do casa-mento. Uma dessas complicações é a tentação natural e universal que temos de nos transviarmos, e foi esse o ângulo que os editores da Time escolheram para figurar na capa da revista. Ladeando uma imagem gritante de uma aliança despedaçada, puseram as palavras «Infidelidade: pode estar nos nossos genes».

O pastor da Primeira Igreja Baptista em Santa Rosa, Califórnia, encarou este artigo como uma defesa ímpia da infidelidade, e disse -o num domingo de manhã. Depois do serviço religioso, a minha mãe foi falar com ele e disse -lhe que o seu filho era o autor do artigo. Estou disposto a apostar que – tais são as maravilhas do amor mater-nal – o disse com orgulho.

Como eu tinha caído em desgraça! Quando tinha cerca de nove anos, na Igreja Baptista de Immanuel, em El Paso, Texas, tinha sen-tido o chamamento de Deus e dirigira -me para a entrada da igreja onde um evangelista visitante chamado Homer Martinez emitia o «convite» – o apelo aos pecadores sem remissão para aceitarem Jesus como seu salvador. Poucas semanas mais tarde era baptizado pelo ministro dessa igreja. Agora, quase três décadas mais tarde, outro ministro baptista atirava -me para a vizinhança de Satanás nas pro-fundezas.

Duvido que, se tivesse lido a minha peça na Time de forma cui-dadosa, este ministro fosse tão veemente nas suas palavras (de facto,

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

eu tinha argumentado que podemos e devemos resistir ao impulso adúltero, mesmo que ele seja natural). Por outro lado, houve pessoas que leram não apenas aquele excerto, mas todo o livro, e concluí-ram que eu era um ímpio não sei quê ou não sei que mais. Eu tinha argumentado que as partes mais etéreas e elevadas da existência humana (o amor, o sacrifício, o próprio sentido de verdade moral) eram fruto da selecção natural. O livro parecia ser um tratado mate-rialista completo – matemate-rialista no sentido de «materialismo cientí-fico», como em: «A Ciência pode explicar tudo em termos materiais, portanto quem é que precisa de Deus? Especialmente um Deus que alegadamente, de algum modo, transcende magicamente o universo material.»

Parece -me que «materialista» não é um termo muito engana-dor para mim. De facto, neste livro falo sobre a história da religião, e o seu futuro, de um ponto de vista materialista. Penso que a ori-gem e o desenvolvimento da religião podem ser explicados pela refe-rência às coisas observáveis, concretas – a natureza humana, certos factores políticos e económicos, a mudança tecnológica, e assim por diante.

Mas não creio que uma descrição «materialista» da origem, his-tória e futuro da religião – como a que dou aqui – exclua a possibi-lidade de uma cosmovisão religiosa. De facto, defendo que a histó-ria da religião apresentada neste livro, apesar de ser matehistó-rialista, afirma realmente a validade de uma cosmovisão religiosa; não uma cosmovisão tradicionalmente religiosa, mas sim uma cosmovisão que é, de algum modo significativo, religiosa.

Parece um paradoxo. Por um lado, penso que os deuses apare-ceram como ilusões, e que a história subsequente da ideia de deus é, de algum modo, a evolução de uma ilusão. Por outro lado: (1) a his-tória desta mesma evolução aponta para a existência de algo que se pode chamar de um modo significativo divindade; (2) a «ilusão», ao longo da evolução, foi -se simplificando a um ponto que a apro-ximou da plausibilidade. Em ambos os sentidos, a ilusão tornou -se cada vez menos ilusória.

Isto faz sentido? Talvez não. Espero que o faça no final do livro. Por agora devo apenas conceder que o tipo de deus que permanece

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

plausível, no final de toda esta simplificação, não é o tipo de deus que a maioria dos crentes religiosos têm em mente.

Há duas outras coisas que espero virem a fazer um novo tipo de sentido no final deste livro, e ambas correspondem a certos aspec-tos da situação actual do mundo.

Uma é o que algumas pessoas definem como um choque de civilizações – a tensão entre o Ocidente judaico -cristão e o mundo muçulmano, tal como se manifestou de forma visível no 11 de Setem-bro de 2001. Desde esse dia, as pessoas perguntam -se como é que é possível, se for, que as religiões abraâmicas do mundo se relacionem entre si de modo saudável, agora que a globalização as força cada vez mais a estabelecerem um contacto mais próximo.

Bem, mas a história está repleta de choques de civilizações. E a história do papel desempenhado pelas ideias religiosas – atiçando ou enfraquecendo as chamas, e muitas vezes alterando -se nesses pro-cessos – é instrutiva. Creio que nos pode dizer algo sobre como proceder para chegar a um final feliz no «choque» actual.

O segundo aspecto da situação mundial dos nossos dias a que me vou referir é outro tipo de choque – o muito discutido «choque» entre a ciência a e religião. Tal como o primeiro tipo de choque, tam-bém este conta com uma história longa e instrutiva. Pode ser traçada até pelo menos à antiga Babilónia, onde os eclipses (desde há muito atribuídos a seres sobrenaturais inquietos e malignos) se viram de repente compreendidos e explicados como fenómenos que ocorriam a intervalos previsíveis – suficientemente previsíveis para conduzir à pergunta sobre se o problema estaria realmente naqueles famige-rados seres sobrenaturais inquietos e malignos.

Desde então, houve muitas descobertas inquietantes (de um ponto de vista religioso), mas alguma noção do divino sempre sobre-viveu ao encontro com a ciência. A noção teve de se alterar, mas isso não é nenhuma acusação à religião. Seja como for, também a ciên-cia sofreu alterações, revendo e mesmo abolindo teorias anteriores, e nenhum de nós pensa nisso como uma acusação contra a ciência. Pelo contrário, encaramos esta adaptação constante como uma cada vez maior aproximação da ciência à verdade. Talvez o mesmo se passe com a religião. Talvez, no fim das contas, uma descrição

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mente científica da nossa situação – como a descrição que me levou a ser denunciado do alto do púlpito da igreja da minha mãe – seja na realidade compatível com uma cosmovisão verdadeiramente reli-giosa, e seja parte do processo que refina a cosmovisão relireli-giosa, aproximando -a da verdade.

Essas duas questões de «choque» podem ser traduzidas numa única pergunta: podem as religiões no mundo moderno reconciliar--se entre si, e podem elas reconciliar reconciliar--se com a ciência? Penso que a sua história aponta para respostas afirmativas.

Como seriam as religiões depois de uma tal adaptação? Esta questão é surpreendentemente fácil de responder, pelo menos em linhas gerais. Em primeiro lugar, teriam de se voltar para os desafios ao bem -estar psicológico humano que são impostos pelo mundo moderno (de outro modo, não teriam qualquer aceitação). Em segundo lugar, teriam de destacar algum «propósito maior» – algum tipo de ponto ou padrão maior que poderíamos utilizar para orientar as nos-sas vidas diárias, reconhecer o bem e o mal, e tornar compreensíveis a alegria e o sofrimento (de outro modo, não seriam religiões, pelo menos no sentido em que utilizo a palavra «religião»).

Agora vamos às questões realmente difíceis. Como é que as reli-giões poderão atingir esses objectivos? (Assumindo que o farão; e, se o não fizerem, todos nós – crentes, agnósticos, ateus – poderemos estar em maus lençóis.) Como é que as religiões se irão adaptar à ciência e entre si? Como deverá ser uma religião numa era de ciên-cia avançada e globalização? A que tipo de propósito deve apontar, que tipo de orientação deve fornecer? Existe alguma cosmovisão intelectualmente honesta que se possa verdadeiramente qualificar como religiosa e que possa, no caos do mundo actual, fornecer orien-tação pessoal e conforto – e talvez mesmo tornar o mundo menos caótico? Não posso afirmar que detenho as respostas para estas ques-tões, mas algumas pistas claras emergem de modo natural no decurso da narração da história de Deus. Por isso, cá vamos nós.

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Nascimento e Crescimento

dos Deuses

Resumindo, então, pode dizer -se que quase todas as grandes instituições sociais nasceram da religião.

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

A Fé Primordial

O

s chukchee, um povo indígena da Sibéria, tinham um modo especial de lidar com os ventos desgovernados. Um homem

chukchee cantava: «Vento Oeste, olha para aqui! Olha para o meu traseiro! Vamos dar -te um pouco de gordura! Pára de soprar!» O visitante europeu do século xix que relatou este ritual descreveu -o como se segue: «O homem que proclama este encantamento deixa cair as calças e baixa o tronco para a frente, expondo o seu rabo des-nudo ao vento. A cada palavra bate as palmas.»1

No final do século xix, os viajantes europeus tinham compi-lado múltiplas descrições de rituais em terras longínquas e pouco conhecidas. Algumas dessas terras eram habitadas por povos consi-derados selvagens – povos cuja tecnologia não incluía a escrita nem mesmo a agricultura. E alguns desses rituais, tal como este, pareciam estranhos.

Poderiam rituais deste tipo ser considerados religiosos? Alguns europeus arrepiavam -se com tal pensamento, ofendidos pela com-paração implícita entre as suas formas elevadas de veneração e aque-las rudes tentativas alheias de aplacar a natureza.

Talvez seja por isso que Sir John Lubbock, um antropólogo bri-tânico do final do século xix, prefaciou a sua discussão sobre a reli-gião «selvagem» com um aviso. «É impossível discutir o tema sem mencionar algumas coisas que são muito repugnantes aos nossos sentimentos», escreveu ele no livro The Origin of Civilization and the

Primitive Condition of Man. Mas fez uma promessa aos seus leitores. Ao explorar este «espectáculo melancólico de rudes superstições e formas ferozes de veneração», ele «tudo faria para evitar, tanto quanto

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possível, qualquer coisa que pudesse ser justamente dolorosa a qual-quer dos meus leitores».2

Uma das angústias que Lubbock poupou aos leitores foi o pen-samento de que os seus cérebros pudessem ter muito em comum com os dos selvagens. «A condição mental de um selvagem no seu conjunto é tão diferente da nossa, que se torna por vezes muito difí-cil seguir o que se passa na sua mente, ou compreender as motiva-ções que o influenciam.» Apesar de os selvagens «terem razões, sejam elas quais forem, para o que fazem e aquilo em que acreditam, as suas razões são por vezes particularmente absurdas». O selvagem eviden-cia uma «inferioridade mental extrema», e a sua mente, «tal como a das crianças, fatiga -se facilmente».3 É natural, portanto, que as suas

ideias religiosas «não sejam fruto de um pensamento aprofundado». Portanto, os leitores de Lubbock podiam estar descansados: «A religião, tal como é entendida pelas raças selvagens inferiores», não é apenas diferente da religião civilizada, «mas chega a ser -lhe oposta». De facto, se outorgarmos o título de «religião» aos rituais grosseiros e medos supersticiosos que os observadores das socieda-des selvagens relataram, então «não podemos encarar a religião como algo exclusivo ao homem». Pois o «uivar de um cão à lua é tanto um acto de veneração como algumas cerimónias que foram descritas pelos viajantes».4

Talvez não nos deva surpreender que um britânico cristão bem--pensante menosprezasse tanto os elementos de uma «religião pri-mitiva». (O termo «religião primitiva» denota a religião de povos maioritariamente iletrados, sejam eles caçadores -recolectores ou agrários.) De qualquer modo, na religião primitiva há uma profunda reverência pela superstição primária. Frequentemente, as decisões sobre a guerra e paz são tomadas com base em presságios obscuros. E os espíritos dos mortos podem fazer -nos mal – ou podem, através da mediação de um xamã, oferecer -nos conselhos. Resumindo, a reli-gião primitiva encontra -se repleta daquelas coisas que foram firme-mente postas de lado quando o monoteísmo levado para fora do Egipto por Moisés tomou o lugar do paganismo em Canaã.

Mas, na realidade, essa substituição não foi assim tão clara, e a prova disso pode ser encontrada na própria Bíblia, apesar de a

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dever-

mos procurar em certas passagens que não são das mais consultadas pelos crentes nos dias de hoje. Entre elas, temos o primeiro rei de Israel, Saul, a visitar incógnito uma vidente e a pedir -lhe que acorde o profeta Samuel do seu túmulo para lhe dar aconselhamento polí-tico. (Samuel não fica lá muito contente: «Porque perturbaste o meu repouso, fazendo -me vir aqui?»)5 Também podemos encontrar

superstições primárias. Quando o profeta Eliseu, ao preparar o rei Joás para a guerra contra os arameus, lhe diz para atingir o solo com algumas flechas, fica desapontado com o resultado de apenas três flechas atingirem o solo: «Seria necessário desfechar cinco ou seis golpes. Terias então derrotado os sírios até ao extermínio. Assim, porém, só os derrotarás três vezes!»6

Mesmo o refinamento final da teologia abraâmica – o próprio monoteísmo – revela -se como um aspecto da Bíblia que tanto apa-rece como logo desapaapa-rece. Apesar de uma grande parte da escritura assumir a existência de apenas um deus, certas secções afinam por um diapasão diferente. O livro do Génesis recorda um tempo em que uma certa quantidade de divindades masculinas desceram dos céus e mantiveram relações sexuais com belas mulheres humanas; esses deuses «entraram nas filhas dos humanos, que tiveram filhos com eles». (E não se tratava de crianças normais: «Eram esses os famosos heróis dos tempos remotos.»)7

Aqui, como noutros locais, a Bíblia hebraica – a escritura mais antiga da tradição abraâmica e, como tal, o ponto de partida para o judaísmo, cristianismo e islamismo – mantém vestígios reveladores da sua ancestralidade. Torna -se aparente que o monoteísmo abraâ-mico se desenvolveu organicamente a partir da sua versão «primi-tiva», através de um processo mais evolucionário que revolucioná-rio.

Isto não significa que exista uma linha de ascendência cultural entre as religiões «primitivas» no registo antropológico e as religi-ões «modernas». Não é como se as pessoas que há três ou quatro milénios falavam com os ventos enquanto baixavam as calças come-çassem de repente a ajoelhar -se e a falar com Deus. Tanto quanto sabemos, a ancestralidade cultural do judaísmo, cristianismo e isla-mismo não inclui quaisquer tradições em que se falasse com os

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ven-

tos, e é certo que não haverá razões para pensar que a religião

chukchee faz parte dessa ancestralidade – que no primeiro ou segundo milénio a.C. a cultura chukchee da Sibéria tenha de algum modo influenciado a cultura do Médio Oriente.

Pelo contrário, a ideia é que a religião «primitiva», na sua gene-ralidade, tal como foi registada por antropólogos e outros viajantes, pode fornecer -nos alguma ideia sobre o meio ancestral das religiões modernas. Devido ao seu isolamento geográfico, culturas como a dos chukchee não foram afectadas pela revolução tecnológica – o advento da escrita – que deixou outras partes do mundo no registo histórico, e as empurrou para a modernidade. Se essas culturas «pri-mitivas» não nos mostram as religiões pré -históricas específicas das quais terão emergido as religiões conhecidas mais antigas, dão -nos pelo menos uma imagem geral. Apesar de a oração monoteísta não ter crescido a partir dos rituais e crenças chukchee, talvez a lógica da oração monoteísta tenha crescido a partir de um tipo de crença que os chukchee partilhavam, a noção de que as forças da natureza são animadas por mentes ou espíritos que podem ser influenciados pela negociação.

Lógica Selvagem

Esta era, de facto, a teoria de um dos contemporâneos de John Lubbock, Edward Tylor, um pensador muito influente que é por vezes referido como o pai da antropologia social. Tylor, conhecido pelas suas críticas a Lubbock, acreditava que a forma primordial de religião era o «animismo». A teoria do animismo de Tylor era, para os estudiosos da altura, a explicação dominante de como começa-ram as religiões. Com essa teoria, ele «conquistou o mundo de um só golpe»8, como escreveria um antropólogo do início do século xx.

A teoria de Tylor fundamentava -se num paradigma que impreg-nava a antropologia no final do século xix, mas que caiu em desuso por algumas décadas para voltar posteriormente à ribalta: o evolu-cionismo cultural. A ideia de que a cultura humana tal como a pode-mos definir em terpode-mos alargados – a arte, a política, a tecnologia,

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a religião, e assim por diante – se desenvolve de uma forma paralela à evolução biológica das espécies: surgem novos traços culturais que podem florescer ou decair, e em resultado disso mesmo podem sur-gir novas instituições e formas de crença que vêm depois também elas a sofrer mutações. Um novo ritual religioso pode aparecer e con-quistar seguidores (se, por exemplo, for considerado um bom neu-tralizador dos ventos). Novos deuses podem nascer e crescer. Podem surgir novas ideias sobre os deuses – como a ideia de que existe ape-nas um. A teoria do animismo de Tylor tinha por finalidade expli-car como é que esta ideia, o monoteísmo, evoluiu a partir da religião primitiva.

O «animismo» é definido por vezes como a atribuição de vida aos seres inanimados – considerar que os rios, as nuvens e as estre-las são seres vivos. Isto é apenas um aspecto do significado que Tylor atribui à palavra. O animismo primitivo, no esquema de Tylor, enca-rava as coisas animadas e inanimadas como sendo igualmente habi-tadas – animadas – por um espírito ou alma; os rios e as nuvens, os pássaros e os animais, e também as pessoas, eram detentores desta «alma -espírito», este «vapor, película ou sombra», esta «causa de vida e pensamento no indivíduo que anima».9

A teoria de Tylor assentava numa perspectiva mais lisonjeira da mente «primitiva» do que aquela que Lubbock sustentava. (Atribuem -se geralmente a Tylor os créditos de uma doutrina que se tornou um dos pilares da antropologia social – a «unidade psíquica da humanidade», a ideia de que as pessoas de todas as raças são basi-camente iguais, de que existe uma natureza humana universal.) Tylor não encarava o animismo como sendo bizarramente inconsistente com o pensamento moderno, mas antes como um produto natural-mente antecedente da mesma curiosidade especulativa que levou ao pensamento moderno. Considerava que o animismo tinha sido a «filosofia infantil da humanidade», desenvolvida por «antigos filó-sofos selvagens».10 Essa teoria cumpria os pressupostos de qualquer

boa teoria: explicava, com uma certa economia, factos que de outro modo poderiam ser misteriosos.

Para começar, a hipótese de que os seres humanos têm alma resolve de modo eficaz algumas questões que, na perspectiva de

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Tylor, devem ter ocorrido aos primeiros humanos, tais como: o que se passa quando sonhamos? As sociedades humanas primitivas uti-lizam a noção de alma humana para resolver este mistério. Nalguns casos, a ideia é que a alma do sonhador vagueia durante o sono, vivendo as aventuras de que o indivíduo se recorda depois; décadas depois de Tylor, o antropólogo A. R. Radcliffe -Brown observou que os habitantes das ilhas Andamão tinham bastante relutância em acordar pessoas, pois a doença poderia aproveitar para entrar se o sono fosse interrompido e o corpo fosse despertado antes de a alma regressar.11 Noutros casos, a ideia é que o sonhador está a ser visitado

pelas almas de outros. Nas ilhas Fiji, como assinalou Tylor, pensava--se que as almas das pessoas deixavam os corpos «para perturbar outros no seu sono».12

E a ideia de que as almas dos mortos voltavam para visitar os vivos nos sonhos encontrava -se muito disseminada nas sociedades primitivas.13 Deste modo, o animismo gere também outro enigma

com que os primeiros seres humanos foram confrontados: a própria morte. A morte, neste cenário, é o que acontece quando a alma deixa definitivamente o corpo.

Concebida que foi pelos primeiros humanos a ideia de alma, afirma Tylor, alargá -la para além da nossa espécie não é mais do que lógico. Os selvagens não poderiam deixar de «reconhecer nos ani-mais as mesmas características que atribuíam à alma humana, nome-adamente os fenómenos de vida e morte, vontade e raciocínio». E quanto às plantas, «partilhando com os animais os fenómenos de vida e morte, saúde e doença, não deixa de ser natural que lhes seja atribuído algum tipo de alma».14

Por esse motivo, a ideia de que paus e pedras possam ter uma alma é racional, se for encarada do ponto de vista de uma «tribo inculta». Afinal, não é verdade que os paus e as pedras nos aparecem nos sonhos? Os espíritos que vemos quando sonhamos ou deliramos de febre não usam roupas ou armas? «Como podemos então acusar os selvagens de um absurdo por aceitarem, na sua filosofia e religião, uma presunção que assenta na evidência dos seus próprios sentidos?» Tylor pode muito bem ter pensado em Lubbock quando disse, acerca dos povos primitivos: «A própria asserção de que as suas

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acções são despojadas de motivo, e as suas opiniões sem sentido, é em si mesma uma teoria – e, atrevo -me a afirmar, uma teoria profunda-mente falsa – inventada para justificar toda a espécie de coisas incompreendidas com uma explicação por demais simplista.»15

A partir do momento em que uma cosmovisão animista fosse largamente enformada, segundo Tylor, ela começava a evoluir. A certa altura, por exemplo, a noção de que cada árvore era possui-dora do seu espírito dava lugar à noção de que todas as árvores eram colectivamente governadas pelo «deus da floresta».16 Este politeísmo

incipiente amadureceu e simplificou -se, transformando -se em monoteísmo. Em 1866, num artigo na Fortnightly Review, Tylor resu-miu todo o processo naquela que podemos considerar como a pri-meira e última história da religião escrita numa única frase:

A partir da teoria mais simples que atribui vida e personali-dade de igual modo a animais, vegetais e minerais – passando pela que atribui às pedras e às plantas e aos rios os seus próprios espíri-tos guardiões, que vivem entre eles e zelam pela sua preservação, crescimento e mudança – até à teoria que vê em cada departamento do mundo o cuidado de promoção e protecção de uma divindade apropriada, e finalmente de um Ser Supremo que comanda e con-trola a hierarquia inferior – por meio de todas essas graduações de opinião podemos ver travar -se, um estádio após outro, a longa com-petição entre uma teoria da animação que descreve todos os fenó-menos da natureza atribuindo -lhes uma vida tal como a nossa, e uma ciência natural de crescimento mais lento que num departa-mento após outro vai substituindo a acção voluntária independente pelo funcionamento da lei sistemática.17

Há dúvidas?

Na realidade, haverá muitas. A teoria de Tylor não manteve o estatuto que já foi o seu. Há quem se queixe de que faz com que a evolução dos deuses se pareça de alguma forma com um exercício puramente racional, quando na verdade a religião foi moldada por diversos factores, que vão desde os factores políticos e económicos até à própria infra -estrutura das emoções humanas. (Uma das

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