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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rafael Oliveira Santos

Críticas ao Sistema Jurídico Brasileiro de Aplicação do Princípio da

Isonomia Salarial nos Contratos Individuais de Trabalho: por uma leitura

dialética da igualdade

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo

2019

(2)

Rafael Oliveira Santos

Críticas ao Sistema Jurídico Brasileiro de Aplicação do Princípio da

Isonomia Salarial nos Contratos Individuais de Trabalho: por uma leitura

dialética da igualdade

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação da Professora Doutora Suely Ester Gitelman.

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo

2019

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Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Dissertação de mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura: _____________________________________________________ Data: 16/07/2019

E-mail: rafaelos.adv@gmail.com

S237

Santos, Rafael Oliveira

Críticas ao Sistema Jurídico Brasileiro de Aplicação do Princípio da Isonomia Salarial nos Contratos Individuais de Trabalho: por uma leitura dialética da igualdade. – São Paulo: [s.n.], 2019. 282 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Direito) -- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-graduados em Direito, 2019.

Orientadora: Prof. Dra. Suely Ester Gitelman.

1. Isonomia. 2. Salários - igualdade. 3. Lógica formal. 4. Lógica dialética. I. Gitelman, Suely Ester. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-graduados em Direito. III. Título.

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Rafael Oliveira Santos

Críticas ao Sistema Jurídico Brasileiro de Aplicação do Princípio da

Isonomia Salarial nos Contratos Individuais de Trabalho: por uma leitura

dialética da igualdade

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação da Professora Doutora Suely Ester Gitelman.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________ Profª. Drª. Suely Ester Gitelman

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

______________________________________________________________ Prof. Dr. Marcio Pugliesi

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

______________________________________________________________ Prof. Dr. Gabriel Lopes Coutinho Filho

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A meu pai, pela lição precisa do que é ser homem; A minha mãe, pela sustentação em Amor;

A Alexandra, razão e consumação de todas as minhas paixões.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus a benção da oportunidade renovada a cada dia de ser e de novo ser.

Agradeço aos meus pais, George e Sidnei, representação sensível da face de Deus no meu mundo, em severidade de caráter e em amor sem medida.

A Alexandra Arantes, minha namorada do resto da vida. Com ela, o que quer que seja; sem ela, absolutamente nada.

Aos meus grandes amigos de profissão, que tanto me oferecem em oportunidades e suporte, à família Meloni, fomentadores deste projeto, sem os quais nada se daria;

À Cristina Paranhos Olmos, a primeira na fila dos que me empurraram mestrado acima; Heric Lucas Silva, o amigo de todo tempo; Marcos Avelino Menezes de Almeida, incentivador e amigo; Ricardo Calcini, professor e entusiasta do Direito do Trabalho; Marco Antônio dos Santos, com quem muito aprendi nesse período, e a todos os colegas de jornada nesses dois anos de estudo. Especiais agradecimentos às bibliotecas da PUC/SP e do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, onde tantas horas passei a ler e escrever esse trabalho.

A minha querida orientadora e amiga, Professora Suely Ester Gitelman, pelo carinho com que sempre recebeu minhas preocupações, e pela serenidade com que sempre foi capaz de apontar linhas claras por onde quer que eu tivesse o desejo de me equilibrar.

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Santos, Rafael Oliveira. Críticas ao Sistema Jurídico Brasileiro de aplicação do Princípio da

Isonomia Salarial nos Contratos Individuais de Trabalho: por uma leitura dialética da

igualdade. 2019. 282 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

RESUMO

O objeto de estudo deste trabalho de pesquisa é identificar os principais institutos jurídico-trabalhistas presentes na legislação da atualidade brasileira e, partir dessa análise, identificar se se confirma a hipótese inicial, de que todo esse subsistema está orientado para a prática de uma isonomia salarial essencialmente formal, no paradigma filosófico da lógica aristotélica. Confirmada a hipótese, pretende-se oferecer algumas críticas ao modo de pensar essa igualdade, mudando esse paradigma em prol de uma igualdade material ou dialética, e que admite uma desigualdade substancial como um modo de aproximação dos semelhantes, por critério de proporcionalidade, e não apenas de separação do que não é igual.

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Santos, Rafael Oliveira. Criticisms of the Brazilian Legal System for the Application of the

Principle of the Salary Isonomy in Individual Work Contracts: by a dialectical reading of equality. 2019. 282 f. Dissertation (Master em Law). Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, São Paulo, 2019.

ABSTRACT

The object of this research is to identify the main legal and labor institutes present in Brazilian legislation, and from this analysis, to identify if the initial hypothesis is confirmed, that all this subsystem is oriented to the practice of a wage isonomy essentially formal, in the philosophical paradigm of Aristotelian logic. Once this hypothesis is confirmed, it is intended to offer some criticism to the way of thinking about this equality, changing this paradigm in favor of a material or dialectical equality, and admitting a substantial inequality as a way of approximation of the similar, by criterion of proportionality, and not only separation from what is not equal.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Diagrama de Euler: Juízos de identificação como inclusão de

conjuntos... 84

Figura 2: Diagrama de Euler: Juízos de identificação como intersecção de conjuntos... 84

Figura 3: Diagrama de Euler: Juízos de diferenças como conjuntos não relacionados... 85

Figura 4: Quatro tipos básicos de proposições aristotélicas... 90

Figura 5: O silogismo básico... 91

Figura 6: O Quadrado lógico... 93

Figura 7: Justiça e Igualdade em Aristóteles... 115

Figura 8: Os principais institutos infraconstitucionais em termos de isonomia salarial... 207

Figura 9: Os círculos concêntricos – Piso salarial proporcional X Salário mínimo... 242

Figura 10: Os círculos concêntricos ao inverso – Salário mínimo X Piso salarial proporcional... 243

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

1. PREMISSAS EPISTEMOLÓGICAS ... 17

1.1. O valor do construtivismo ... 17

1.2. Princípios de Direito... 34

1.2.1. Princípios e axiologia do Direito ... 36

1.2.2. Princípios como parte do sistema do Direito e modalizadores do comportamento humano... ... 42

1.2.2.1. Densidade normativa dos princípios ... 47

1.2.3. Princípios como construção intersubjetiva dos intérpretes ... 51

1.3. Princípios e regras ... 55

1.3.1. Proximidades e distanciamentos ... 55

1.3.2. Hierarquia ... 61

2. IGUALDADE NA “REALIDADE REALMENTE REAL” ... 65

2.1. Parmênides e Heráclito – o ser imutável e o ser como movimento ... 69

2.2. Platão e Aristóteles – duas ontologias distintas... 74

2.3. O quadrado lógico-analítico e o preciso espaço onde nele se viabiliza a dialética ... 90

2.4. A construção dialética da realidade na igualdade entre os homens ... 96

2.5. Comparando trabalhos – a construção dialética da parêmia trabalho igual – salário igual . 106 3. IGUALDADE PARA O DIREITO E A ISONOMIA SALARIAL ... 109

3.1. Uma breve história da igualdade no Direito ... 109

3.1.1. Antiguidade Clássica ... 109

3.1.2. Modernidade... 116

3.1.2.1. Os primeiros documentos constitucionais e a “igualdade perante a lei” ... 117

3.1.2.2. A crise do liberalismo e o surgimento de uma igualdade material ... 124

3.2. Igualdade formal e igualdade material ... 129

3.3. A igualdade salarial na Constituição Brasileira ... 136

3.4. Igualdade salarial como princípio e como direito fundamental ... 140

3.5. Complexidade e extensão e a máxima de “trabalho de igual valor” – uma proposta interpretativa ... 159

(11)

3.6. Os problemas da proposta apresentada ... 162

4. CRÍTICAS AO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA SALARIAL NOS CONTRATOS INDIVIDUAIS DE TRABALHO ... 171

4.1. Os principais institutos do ordenamento brasileiro para comparação entre trabalhadores ... 171

4.1.1 Equiparação salarial ... 172

4.1.1.1. Equiparação por equivalência (art. 460 da CLT); equivalência do empregado brasileiro com estrangeiro (art. 358 da CLT) e equivalência salarial do temporário e do terceirizado (Lei 6.019/1974) ... 181

4.1.2. Desvio de função e acúmulo de função ... 194

4.2. Uma crítica ampla: a lógica analítica e a insuficiência do modelo identitário de comparação de pessoas... 207

4.3. Duas críticas específicas: o problema dos contratos de trabalho sem objeto nas obrigações do empregado e a interpretação atualmente dada ao art. 456, parágrafo único da CLT ... 219

4.3.1. Salário justo, salário vital e comutatividade ... 220

4.3.2. Cargo, função e tarefa ... 231

4.3.3. Piso salarial e o art. 7º, V, da Constituição Federal... 236

4.3.4. A primeira crítica específica: a indeterminação do objeto contratual na função do empregado ... 244

4.3.5. A comutatividade nos contratos de trabalho é relativa, mas objetiva ... 252

4.3.6. A segunda crítica específica: a interpretação creditada ao art. 456, parágrafo único, da CLT ... 256

CONCLUSÃO ... 266

(12)

INTRODUÇÃO

É bastante conhecida a ironia de Descartes que abre o seu Discurso sobre o método – a coisa mais bem compartilhada do mundo é o bom-senso.

A todos parece ter sido dada porção exata de razão e comedimento, juízo crítico e ponderação capazes de fazer discernir com sabedoria salomônica, na medida em que não se encontram, nem à busca miúda, voluntários ao cargo de “insensato”, “imprudente” ou “desatinado”.

Sendo assim, se o bom-senso então é a coisa mais bem distribuída da terra, todas as demais são desproporcionais, desiguais, dadas em maior fração a uns do que a outros. De fato, nosso mundo parece permanentemente embebido de dualidades e desigualdades. A todo tempo somos postos diante de ideias em contraposição, de conceitos que dividem e selecionam tudo o que vemos e pensamos em conceitos opostos, como bom e ruim; certo e errado; belo e feio; masculino e feminino; agora ou depois; e por tantos outros pares, mais doce é a simplicidade de Cecília Meireles em Ou isto ou

aquilo – “Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o

dinheiro”.

E ainda que seja mesmo uma “grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares!”, nos ares ou no chão, somos postos, a todo instante, a selecionar e decidir entre isto ou aquilo.

As escolhas por uma ou outra alternativa são sempre dadas por critérios do sujeito selecionador. Quem decide se algo é belo ou feio é aquele que constrói o juízo estético, mas o faz – e é isso que nos interessa – segundo um critério, uma métrica.

Também desde sempre o Direito usa diversos critérios para selecionar o mundo jurídico.

Desse modo, este trabalho versa sobre o critério da igualdade – o que determina se X é igual a Y, e merece do Direito tratamento igual, mas não todas as igualdades, para o que uma biblioteca inteira parece ser insuficiente, aqui, trataremos apenas da igualdade em termos salariais.

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Desde logo, é possível afirmar, sendo isso algo do senso comum (ou do “bom-senso” de Descartes), que o ordenamento jurídico do nosso país, qual o da maciça maioria das nações insufladas pelo espírito democrático, que a igualdade é um direito de todos e que, por isso, a trabalhos iguais, são devidos salários iguais.

Este é nosso tema, portanto, a igualdade em termos de salário.

Uma primeira aproximação do problema que será apresentado mais adiante pode ser empreendida pela compreensão de que o Direito recorta os fatos do real social e determina para eles tratamentos jurídicos.

Dito isso, é presumível então que o Direito parte de fatos iguais, para dar tratamentos jurídicos homogêneos a eles, ou parte da desigualdade fática, e pressupondo a igualdade, corrige as diferenças.

Mas é também de fácil acesso a compreensão de que há diferenças que não demandam equalização. Não se trata o criminoso condenado da mesma forma que se trata o inocente, num exemplo banal.

Pois bem: nosso propósito está em compreender sob que circunstâncias se justificam salários iguais e salários diferentes.

Todo trabalho científico tem por propósito fundamental responder a uma pergunta. Significa dizer que estudo e pesquisa funcionam em torno do objetivo prático de produzir resposta a um problema. Não se estuda para nada, sem desígnio, sem o motor da curiosidade de compreender ou construir algo.

O problema prático que inspira todo este estudo se baseia num sentimento – cristalizado por força da atuação forense de anos em processos, em que se discute da justiça da diferença salarial, de que o ordenamento jurídico brasileiro dá substancial valor à igualdade identitária.

Só se igualam, nessa hipótese, aqueles trabalhos que são exatamente iguais, atraindo por consequência um salário absolutamente idêntico.

Essa percepção deixa uma igual sensação de incompletude para o ordenamento. Veja: se os dois trabalhadores em cotejo possuem uma diferença de pequena monta, como justificar que entre eles o salário seja vultosamente diferente?

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É justo que por uma diferença de, digamos, 10% na rotina de trabalho de um e outro, um deles receba salário 50% maior? O bom-senso cartesiano indica que não, mas ele fica a dever, em âmbito jurídico, como critério de seleção da hipótese fática.

Nos últimos dias, vivemos a experiência da primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino televisionada da história.

Nesse torneio, a jogadora mais premiada do mundo, com nada menos que seis prêmios da Bola de Ouro (dentre os homens, aqueles mais premiados têm cinco), Marta Vieira da Silva, jogou de chuteiras pretas, sem indicação de patrocinador esportivo, no lugar do qual apresenta-se a marca de um movimento chamado Go Equal.

O site do jornal O Globo, em 18 junho de 2019, indica que isso se deve ao fato de que a jogadora ganha 340 mil euros por temporada, enquanto Neymar Junior, exemplo de outro jogador brasileiro bastante reconhecido (que, de passagem, convém dizer não possui nem um prêmio da Bola de Ouro), recebe cerca de 91,5 milhões de euros por temporada. Isso indica que Marta recebe cerca 0,3% do rendimento de Neymar pelo mesmo período de atividade, no mesmo tipo de atividade.

É uma brutal realidade que não se restringe ao âmbito do universo esportivo, ou tampouco da relação entre os gêneros de trabalho, conquanto, infelizmente, ainda seja uma das desigualdades mais perceptíveis.

Por isso dissemos que a aproximação inicial do tema pode ser feita por analisar como o direito encara a igualdade, o que é a diferença, e se as diferenças encontram lastro de suficiente justiça na forma de tratar os diferentes.

Eis, então, nossa hipótese: o sistema do direito positivo brasileiro, no momento histórico da atualidade, encara o princípio da isonomia salarial, majoritariamente, sob o aspecto da igualdade analítica, ou seja, exige a identidade absoluta no trabalho de duas pessoas para assegurar-lhes tratamento isonômico – salário idêntico. Se a identidade absoluta não existir, o sistema relega os interessados a um vazio normativo, ainda que haja destacada similitude entre esses trabalhos.

A testar essa hipótese, dividimos nossa pesquisa em alguns capítulos.

No primeiro deles, faremos uma breve introdução do modo de pensar construtivista, que é um pressuposto de todo nosso modo de pensar a relação entre o

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homem, sujeito cognoscente, e a realidade como objeto cognoscível. Trata-se então de um importante recorte epistemológico que afeta todo o giro do trabalho de pesquisa.

Em seguida, ainda no primeiro capítulo, buscamos compreender as principais características dos princípios jurídicos, já que é senso comum afirmar que a igualdade é um princípio do Direito, parece importante entender a dimensão que isso deve ter para o sistema.

No segundo capítulo, ao contrário do que se fará no primeiro e, que ficamos ainda aquém do problema, a proposta é dar um passo adiante dele, e compreender como podemos enxergar a igualdade na realidade, no mundo sensível em que convivem as pessoas “igualizadas”.

Nesse capítulo, a proposta é de fundo marcadamente filosófico, porque de outro modo, permaneceríamos nas tacanhas alçadas do “achismo”, que não trata da realidade em termos científicos.

Por isso mesmo, buscamos nas raízes da filosofia ocidental compreender se o mundo é o que é – o que permitiria uma pesquisa muito mais simples da igualdade, bastando alcançar a essência das coisas para dizer se uma essência é igual à outra – ou se (como pressupomos) as coisas no mundo estão em perpétua transformação – o que desafiaria uma igualdade também móvel e, portanto, tarefa mais delicada a sua determinação.

No terceiro capítulo, enfim, a abordagem própria do problema: compreender como o sistema jurídico brasileiro da atualidade trata da igualdade, em especial em termos constitucionais, já que este é o diploma matriz de toda a ordem jurídica.

Começamos, também, neste terceiro capítulo, em enveredar por um breve histórico acerca da igualdade jurídica, da igualdade na lei. Passamos pela igualdade no período clássico, e avançamos pela história dos primeiros documentos constitucionais, raízes mais expostas da igualdade como hoje conhecemos.

Desses documentos, perseguimos ainda um pouco a evolução histórica dos documentos constitucionais, faceando a crise do liberalismo econômico, que ensejou uma importante reviravolta no modo de ver a igualdade para o direito, que passa de um mero aspecto negativo, de não privilégio, para uma igualdade material, que efetivamente opera ferramental mais concreto para elevar os desvalidos, “igualizando-os”.

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Cumprida essa tarefa, ainda neste terceiro trecho do trabalho, apresentamos as bases constitucionais que fixam as balizas da igualdade salarial, expondo uma proposta interpretativa que tenta harmonizar o sistema a partir do Texto Magno.

No quarto e último capítulo, a intenção primária é analisar com profundidade os institutos infraconstitucionais que temos no arcabouço normativo para equalizar salários. Tratam-se as figuras da equiparação salarial, por identidade e por equivalência, a equivalência salarial dos trabalhadores temporários e a analogia deferida aos terceirizados; cuidamos também do desvio de função e do acúmulo de funções.

Vistos os institutos, e as principais questões que eles ensejam em termos de organicidade do sistema, o capítulo quarto termina por apresentar três críticas às constatações encontradas.

Uma primeira, de aspecto mais filosófico, voltada para o modo de pensar a igualdade, analítica e identitariamente. Outras duas, mais pragmáticas e específicas, relacionadas com os problemas mais sensíveis encontrados ao nível das normas infraconstitucionais.

Espera-se, com isso, enfim, poder oferecer ao leitor e ao sistema do direito positivo, razões bastantes para repensar como e por que duas pessoas devem ser consideradas “iguais”, e sob que circunstâncias essa igualdade desafia um tratamento de aproximação jurídica dos tratamentos a elas dedicado.

A linha mestra de condução das investigações estará em demonstrar que a igualdade é um conceito que pode ser construído de modo dialético, que não se confunde com a ideia de identidade, mas de uma semelhança muito consistente, e baseada em um critério relevante.

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1. PREMISSAS EPISTEMOLÓGICAS

Antes de atingirmos o mérito próprio deste trabalho de pesquisa, convém definir alguns parâmetros que funcionarão como recortes do tema, ao mesmo tempo que apresentam os paradigmas ideológicos com que o abordamos.

1.1. O valor do construtivismo

Uma pergunta inicial colabora nessa tarefa: há interpretações da lei que sejam “óbvias”, absolutamente corretas? Dito de outro modo: é viável a silogística perfeita, donde a conclusão pela aplicação da lei deriva docilmente da adoção de uma premissa fática perfeitamente adequada ao modelo da hipótese?

Admitamos, por suposição preliminar, que sim. Encontra-se, para um fato qualquer, uma resposta precisamente correta e apropriada na lei. De tão óbvio seu amoldamento à vida real, a simples leitura da lei oferece uma determinação clara e absolutamente precisa, de modo que a incidência da norma se torna natural, e a interferência humana se reduz a uma mera solenidade pronunciativa.

Para esse esquema de ideias há defensores de relevo, Aurora Tomazini de Carvalho resume:

[...] segundo tal corrente doutrinária, a norma recai como um raio sobre todo e qualquer acontecimento verificado nos moldes da hipótese normativa, qualificando-o como jurídico e instaurando, de forma imediata, os efeitos prescritos em seu consequente. [...] Efeitos normativos, nascem automaticamente, assim que ocorridos os eventos descritos na hipótese. [...] A aplicação caracteriza-se como um ato mediante o qual a autoridade competente formaliza os direitos e deveres já constituídos com a incidência, possibilitando, assim, o uso coercitivo.1

O Direito, então, paira sobre a vida dos homens como uma nuvem, apenas aguardando a ocorrência de um fato previsto pela norma, para então descarregar seu raio jurídico; incidindo sobre a vida social.

1 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito. 5. ed. revisada e ampliada. São Paulo: Noeses, 2016, p. 439-440.

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O homem, nessa lógica, funcionaria tão somente como a boca da lei, formalizando, apenas, os efeitos decorrentes da incidência “automática e infalível”2 da norma jurídica.

Segundo essa diretriz de pensamento, há um casamento perfeito entre a norma e a realidade, tornando-se o ato de decidir sobre um conflito (uma sentença, por exemplo) quase um solilóquio da consciência normativa, que mecanicamente opera o encaixe entre o real e o hipotético.

Mas o que é o real? Como definir precisamente o que a realidade operou? O que aconteceu? Quais pistas marcam o real e separam-no, por que critérios, do irreal?

Partamos de imaginar que a realidade é algo palpável, que se possa bem precisamente medir, quantificar, compilar e comparar. A realidade, nesse passo, é um dado, algo pronto e acabado, ou seja, é a soma dos dados que colhemos no mundo sensível.

Para colher esses dados, e assim conhecer a realidade, o homem se vale de seus sentidos – tato, olfato, paladar etc. – como ferramentas que o põe em contato com o mundo (a realidade) e em condições de compreendê-lo como um dado pré-existente. Locke, aliás, dizia que “nada está no intelecto que não estivesse estado anteriormente nos sentidos”3.

A maçã estava na macieira antes do homem, e estará lá depois dele, estável em sua inteireza essencial. A interferência humana de colher o fruto, ou a experiência sensorial modificam essa essência primacial. Conhecer o mundo não significa interferir na realidade, mas simplesmente captá-la, compreendê-la, assimilar sua verdade e sua essência noumenal, segundo essa tônica de pensamento admitida como ponto de partida. Dizer da realidade, assim, é reproduzir com precisão as características próprias da realidade.

O que queremos demonstrar é que o sujeito que come a maçã pode falar da realidade do fruto, qualificando-a sob diversos aspectos sensoriais. Pode dizer que, ao tato, é firme e lisa; aos olhos, se mostra redonda e vermelha, e ao paladar, parece-lhe ácida e doce ao mesmo tempo.

2 CARVALHO, Aurora Tomazini de, 2016, p. 438.

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Mas nada disso pode fazer se lhe faltar linguagem, se não dispuser de adjetivos e substantivos, por exemplo. Não basta, pois, a percepção, é também fundamental a linguagem que nos permite nominá-las, e torná-las comuns, comunicá-las a outros seres humanos.

Para trazer o conjunto de dados do mundo, de fora para dentro de si, o sujeito articula em seu intelecto utilizando a única métrica possível, o único veículo de que dispõe, a linguagem. O mesmo faz no vetor contrário, traduzindo suas experiências sensoriais e pensamentos, de dentro pra fora, dividindo-as com os outros.

Vilém Flusser faz uma figuração bastante interessante para explicar esse processo: O intelecto, com sua infraestrutura, os sentidos, e sua superestrutura, o espírito (ou qualquer outra palavra), formam o Eu. O Eu é, portanto, uma árvore cujas raízes, os sentidos, estão ancoradas no chão da realidade, cujo tronco, o intelecto, transporta a seiva colhida pelas raízes, transformada até a copa, o espírito, para produzir, folhas, flores e frutos. Tal qual a Árvore consiste inteiramente de seiva modificada, não passando, do ponto de vista da seiva, de um canal através do qual a seiva evapora do chão em direção à nuvem, também o Eu é inteiramente feito da realidade colhida pelos sentidos, não passando de um canal através do qual a realidade se derrama em direção ao futuro. Todavia sabemos que a árvore é algo mais que seiva.

A realidade, dentro da qual as raízes do Eu, os sentidos, chupam avidamente, transforma-se, ao chegar ao tronco, ao intelecto, em palavras. Nesta transformação, neste salto abrupto e primordial, neste

Ursprung, reside o milagre e o segredo do Eu. Há um abismo

intransponível ao intelecto entre o dado bruto e a palavra.

[...] Ele [intelecto] sabe dos sentidos e dos dados brutos que colhe, mas sabe deles na forma de palavras. Isto justamente caracteriza o intelecto: ele consiste de palavras, compreende palavras, modifica palavras, reorganiza palavras e as transporta ao espírito, o qual, possivelmente, as ultrapassa. O intelecto é, portanto, produto e produtor da língua, “pensa”.4

Essa é uma ideia muito cara aos objetivos deste estudo: “há um abismo intransponível entre o dado bruto e a palavra”. Trata-se do valor da linguagem como um axioma – ela não é apenas ferramenta de comunicação, mas condição de possibilidade do pensamento e das ideias. O ser humano pensa em forma de palavras, ouve, lê e sente o mundo à volta não por meio de ideias prontas, mas como um permanente arranjo e rearranjo de palavras.

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Sem ela, o sujeito que experimentou a maçã, jamais seria capaz de organizar um influxo incontrolável e informe de sensações. Sem uma concepção preliminar das expressões “doce” e “azedo” não conseguiria interpretar a realidade da maçã.

A linguagem é absolutamente essencial à experiência humana, tanto vertical, particular, quanto horizontal, coletiva e, por isso, é a matéria-prima da construção de nosso mundo. Daí a noção de construtivismo.

Flusser sugere que “se definirmos realidade como ‘conjunto de dados’, podemos dizer que vivemos em realidade dupla, na realidade das palavras e na dos dados ‘brutos’ ou ‘imediatos’. Como os dados ‘brutos’ alcançam o intelecto propriamente dito em forma de palavras, podemos dizer ainda que a realidade consiste de palavras e de palavras in

statu nascendi”.

Não por razão diversa, Arthur Kaufmann afirma que:

a linguagem é a auto-expressão da pessoa, ela é a origem do espírito humano, e da sua personalidade, só com a faculdade de falar começa o ser humano a ser humano em sentido próprio e profundo: tomar posse de si e do seu mundo [...]. Por esta razão não é adequado o “cogito ergo sum” de Descartes como ponto de partida para a descoberta do “mundo exterior”. O ponto de partida para o homem que se busca a si mesmo e ao mundo – “o seu mundo” – é a linguagem.5

Em reforço dessa lógica, Fabiana Del Padre Tomé assevera:

Temos para nós que o sentido de um significante não se confunde com o referente, considerada a coisa em si mesma: seu significado nada mais é que outro significante. Pensamos não existir correspondência entre as palavras e os objetos. A linguagem não reflete as coisas tais como são (filosofia do ser) ou tais como desinteressadamente percebe uma consciência, sem qualquer influência cultural (filosofia da consciência). A significação de um vocábulo não depende da relação com a coisa, mas do vínculo que estabelece com outras palavras. Nessa concepção, a palavra precede os objetos, criando-os, constituindo-os para o ser cognoscente. Como anota Dardo Scavino, "não existem fatos, só interpretações, e toda interpretação interpreta outra interpretação". Daí a conclusão de que se a coisa não precede a interpretação, só aparecendo como tal depois de ter sido interpretada, então é a própria atividade interpretativa que a cria. [...]. É o ser humano que, interpretando eventos ou até mesmo empregando recursos imaginativos, cria o fato, fazendo-o pfazendo-or meifazendo-o da linguagem, entendida cfazendo-omfazendo-o fazendo-o usfazendo-o intersubjetivfazendo-o de sinais que tornam possível a comunicação.6

5 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 5. ed. Trad. António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 165-166.

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Deve-se também ter em conta que, apesar de a linguagem ser o veículo de criação da realidade, “o real [aqui tomado como “dado bruto” percepcionado pelos sentidos] é infinito e irrepetível, possuindo, cada objeto, um número ilimitado de determinações. Por isso, o sujeito cognoscente tem sempre percepções parciais do mundo”7.

Sob este ponto de vista é possível dizer que a realidade, tida como dado bruto, antes da intervenção do intelecto humano em sua interpretação e construção de sentido, é infinita.

Sempre será possível reinterpretar a realidade, ver outro aspecto antes não visto, reler um livro já lido e enxergar nele elementos não percebidos na leitura original; rever o mesmo filme de cujas falas se sabe de cor, e mesmo assim observar uma parte da trilha sonora para a qual não se tinha atentado anteriormente. A linguagem é viva e infinita, e nossas percepções sempre fazem um recorte daquilo que estamos nos colocando a conhecer.

Por isso, um outro sujeito, conhecendo a maçã, ao invés de qualificá-la como lisa, vermelha, ácida e doce, pode preferir adjetivá-la como sublime, ou suculenta. Fala ele ainda da mesma realidade.

Isso mostra que “a observação não é puramente passiva”8, mas, ao contrário: Quando observo “alguma coisa”, é preciso sempre que eu “a” descreva. Para tanto, utilizo uma série de noções que eu possuía antes; estas se referem sempre a uma representação teórica, geralmente implícita. Sem essas noções que me permitem organizar a minha observação, não sei o que dizer. E, na medida em que me faltaria um conceito teórico adequado, sou obrigado a apelar a outros conceitos básicos: por exemplo, se quero descrever a folha que está sobre a minha escrivaninha e não tenho noção do que seja folha, farei uma descrição falando dessa coisa branca que está sobre a minha escrivaninha, sobre a qual parece que existem linhas apresentando um a certa regularidade e também certa irregularidade etc. Teria que se refletir aqui sobre a possibilidade psicológica para os humanos de “simbolizar”, isto é, falar de “tal coisa”, de “tal objeto”, e de considerá-lo como um objeto, como uma coisa, isto é, separá-lo do fluxo de nossas ações reflexas para fazer dele um objeto de nossa linguagem, de nosso pensamento e de nossa comunicação.

Em suma, para observar, é preciso sempre relacionar aquilo que se vê com noções que já se possuía anteriormente. Uma observação é uma

7 TOMÉ, Fabiana Del Padre, 2016, p. 13.

8 FOUREZ, Gerárd. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995, p. 40.

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interpretação: é integrar um a certa visão na representação teórica que fazemos da realidade.9

Observar e conhecer é, portanto, selecionar critérios, e usar a linguagem para criar sentido, para fundar e refundar a realidade.

E essa observação, absolutamente lúcida, nos faz compreender que é fundamental a definição de recortes na observação do objeto, são os limites epistemológicos que permitirão ao sujeito cognoscente confinar certos aspectos do infinito a conhecer.

Até onde efetivamente pretende chegar o sujeito na observação do seu objeto? que dimensões dele pretende vislumbrar? Cria-se, com tais perguntas, uma espécie de baliza, de demarcação que permite que seu estudo atinja marcos e produza resultados.

Admitir o contrário – que a realidade é um algo ontológico, absolutamente pronta e acabada – certamente exigiria que admitíssemos para todas as ciências um fim; um marco para a conclusão absoluta de todos os trabalhos do bem conhecer. Por mais longo que fosse este estudo, por exemplo, na Medicina, a humanidade atingiria o cimo de todo o conhecimento, a evolução de todas as técnicas, a excelência insuperável de toda a ciência médica em um determinado momento de sua história, nada mais tendo que ser estudado a partir de então. O mesmo se daria em relação à Engenharia, ao Direito, ou a qualquer outro objeto de análise.

E novamente a lição de Arthur Kaufmann é meticulosa nisto:

A moderna ciência da natureza descobriu, há muito tempo, que há vastas áreas da realidade que não se podem investigar e descrever de forma matematicamente exacta; ela já não busca a exactidão e a coerência lógica até às últimas consequências e permite, dependendo das circunstâncias, que se considerem simultaneamente “correctas” representações diversas dum fenómeno (por exemplo, o electrão), precisamente porque acontece com frequência que a "verdade" só surge na concordância recíproca de proposições complementares. Ao invés, nas ciências do espírito, sobretudo na jurisprudência, floresce ainda hoje o racionalismo, tal como nos tempos de Leibniz domina a concepção de que o mundo, ou pelo menos o mundo da ciência, se divide, sem deixar resto, através da ratio.10

9 FOUREZ, Gerárd, 1995, p. 40. 10 KAUFMANN, Arthur, 2014, p. 179.

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Aqui está a chave – não há uma realidade noumenal, ontológica, estável e perene, a qual fazemos simplesmente desvelar por meio do conhecimento. Não há descobrimento, mas construção.

Novos recortes (epistemológicos) sempre permitirão observar o objeto sob outros ângulos, e com isso redefinir conceitos e reposicionar teorias. A realidade é construída na medida das capacidades humanas – e valendo-se para isso, fundamentalmente, de uma única matéria-prima, a linguagem.

Neste ponto do percurso, podemos já estabelecer algumas premissas: primeiro – a realidade é sempre uma construção, nunca um dado pronto e acabado; segundo – a língua (e as palavras, suas unidades) é a matéria-prima dessa construção.

O que nos dá a impressão de evidente ou óbvio, para um conceito qualquer, é a ausência de questionamento do modelo construído, funcionando como uma espécie de cristalização profunda, no espírito, de um pré-construto. A maçã é vermelha? Óbvio que sim! Pelo menos até que se conheça a maçã-verde, ou que se ponha em xeque uma teoria das cores.

Essas primeiras conclusões incidem sobre um segundo problema.

Se admitirmos que não há uma realidade ontológica, pronta e acabada, e tudo o que nos envolve é linguagem como matéria-prima da construção humana, um extremo do raciocínio teria que concordar, pela absoluta falta de parâmetro ou limites, com a criação de realidades arbitrárias, absurdas, como por exemplo, a que qualifica a maçã de “azul” ou “salgada”.

Mas, ao contrário, há limite para a construção. As fronteiras do construtivismo residem na convenção sócio-histórica.

O sujeito do discurso precisa – para não ser tido como louco, ou seu construto como absurdo – convencer, a si e aos outros, de que suas ideias (construções) são razoáveis, coerentes, contextualizadas segundo nossos tempo e espaço. É necessário um dialogismo contextualizado, uma conversação racional parametrada pela inserção sócio-histórica dos construtores.

A maçã não é cenoura porque os limites da construção da sociedade de nosso tempo e espaço admitem maçãs e cenouras de modos distintos. Se, por outro lado, convivêssemos em uma comunidade linguística que não diferenciasse vegetais entre

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frutas e legumes, nada espantaria que chamassem maçãs e cenouras por um só nome, construindo para ambas a mesma realidade. Nós, por outro lado, convencemo-nos de que são objetos (no sentido de objetos do conhecer) diferentes, com características que as apartam uma da outra – uma dá em galhos de árvores e outra sob a terra, por exemplo.

Gérard Fourez aponta a limitação sócio-histórica das interpretações construtivas como uma baliza fundamental para a admissibilidade de uma concepção qualquer.

O s objetos não são dados “em si", independentemente de todo contexto cultural. Contudo, não são construções subjetivas no sentido corrente da palavra, isto é, “individuais”: é justamente graças a uma maneira comum de vê-los e descrevê-los que os objetos são objetos. Se, por exemplo, pretendo fazer da flor outra coisa do que aquilo que está previsto em minha cultura, concluir-se-á que estou louco. Não posso descrever o mundo apenas com a minha subjetividade; preciso inserir-me em algo mais vasto, uma instituição social, ou seja, uma visão organizada admitida comunitariamente. Se, por exemplo, pretendo que um pequeno elefante rosa está a ponto de dançar sobre a minha mesa, é provável que me considerem como mentalmente perturbado... a menos que eu consiga relacionar a minha “visão” com um discurso socialmente admitido!

Para ser "objetivo” é preciso que eu me insira nessa rede social; é isto que me permitirá comunicar as minhas visões a outros; sem isto, se dirá simplesmente que estou sendo subjetivo. [...]

[...] O que está em questão é tomar uma distância em relação ao modelo artificial de acordo com o qual um indivíduo só observaria “objetivamente” e de maneira independente de qualquer história, de modo absoluto, as “coisas tais com o são”; trata-se de propor um modelo segundo o qual a observação seja uma construção social relativa a uma cultura e a seus projetos.11

Arthur Kaufmann também explica esse processo:

[...] nenhum homem fala e pensa em si exatamente na mesma linguagem, não há duas pessoas que liguem à mesma palavra exatamente o mesmo significado e, por isso, também não há ninguém que entenda exatamente o mesmo mundo que os outros. Em rigor, apenas o próprio sujeito falante sabe o que querem dizer as suas palavras. Que seja, todavia possível um entendimento através da linguagem, assenta boa parte na sua origem social. A linguagem forma-se no âmbito interpessoal, logo desde o início a criança aprende a ligar o uso das palavras às mesmas realidades que os seus pais, amigos, professores etc., decorrendo, pois, este processo cada vez mais também na direção contrária. Dessa maneira, surge uma experiência comum sobre os conteúdos referidos com a utilização das palavras, as palavras recebem um “significado médio”, os pontos de vista tornam-se permutáveis. Apenas com base nessa intersubjectividade da linguagem

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e na “reciprocidade das perspectivas”, como dizem os sociólogos, existe um mundo comum entre as pessoas [...].

Com a linguagem, o homem não obtém, todavia, apenas a capacidade de comunicar com os outros, através dela apreende também as regras que determinam a convivência em comunidade, adquire uma prática social de vida (no reino animal há também certamente comportamentos sujeitos a normas, mas as normas não são aí produzidas através duma linguagem verbal e argumentativa). Também a socialização procede da linguagem. A pessoa ao longo da sua formação não encontra a esfera normativa sob a forma de normas abstractas, em que ela tivesse de subsumir, mas sim sob a forma de concretos modelos de comportamento que surgem na comunicação quotidiana, no confronto com o mundo dos outros, através da tradição de formas de vida.12

A própria ideia de “verdade” parece tomada como um dado referencial, que se reporta a um modelo orientativo bem aceito no bojo de uma comunidade.

Jürgen Habermas, citado por Alexy, aponta para essa concepção de verdade como correspondência, como produto comunicado (feito comum) no corpo social:

Segundo os critérios de verdade da teoria consensual, eu só posso atribuir um predicado a um objeto se também qualquer outro que puder entrar num diálogo comigo atribuir ao objeto o mesmo predicado. A fim de distinguir as proposições falsas das verdadeiras, eu me refiro ao juízo dos outros – de todos os demais com os quais pudesse estabelecer um diálogo (com o que incluo, contrafatualmente, todos os interlocutores que eu pudesse encontrar se o histórico da minha vida fosse coextensivo com aquele do gênero humano). A condição para a verdade das proposições é o acordo potencial de todos os demais.13

Gérard Fourez afirma que aquilo que tomamos por certo ou verdadeiro é simplesmente uma construção não contestada. “O que confere uma impressão de imediatez à observação é que não se colocam de maneira alguma em questão as teorias que servem de base à interpretação; a observação é uma certa interpretação teórica não contestada (pelo menos de momento)”14. Isso deixa de existir quando fazemos questionamentos acerca do que era, até ali, tido por certo ou verdadeiro.

É essa ausência de elemento teórico novo que dá o efeito “convencional” ou “cultural” da observação direta de um objeto. Pode-se obPode-servar a caneta que está sobre uma escrivaninha Pode-se – e somente Pode-se – possui-se o conceito de “caneta”. Caso coloquemos em dúvida a adequação desse esquema de interpretação, conduziremos a observação a um outro discurso (sempre teórico), falando, por exemplo, desse

12 FOUREZ, Gérard, 1995, p. 172-173.

13 HABERMAS, Jürgen. Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kompetenz. In: HABERMAS, J.; LUHMANN, N. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie, p. 124. In: ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: teoria da argumentação racional como teoria da fundamentação jurídica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 106.

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objeto redondo comprido e branco que está sobre a escrivaninha. Em seguida, se postulará como tese teórica que isto poderia ser considerado como uma caneta. Para dizê-lo ainda de outro modo, observar é fornecer-se um modelo teórico daquilo que se vê, utilizando as representações teóricas de que se dispunha (Husserl, em Merleau-Ponty, 1945).15

Antes dos estudos de Galileu e Copérnico, a sociedade europeia do século XV tinha por real que a terra era plana e um universo geocentrista. Afirmações como tais serão chamadas de absurdas pelas comunidades do século XXI. O que mudou? A língua? Possivelmente não o bastante para uma inversão tão severa de diretrizes. O que de fato mudou foram os modelos teóricos aceitos na comunidade para a interpretação fenomênica dos dados brutos e a constituição de uma nova realidade.

Lenio Luiz Streck16 parece afirmar algo no mesmo sentido, ao elucidar que: Definitivamente, o intérprete não escolhe o sentido que melhor lhe convier. [...] O resultado da interpretação não é um resultado de escolhas majoritárias e/ou produto de convencionalismos. Insisto: não se trata, evidentemente, de verdades ontológicas no sentido clássico. Claro que não! Os sentidos não estão “nas coisas” e, tampouco, na “consciência de si do pensamento pensante”. Os sentidos se dão intersubjetivamente. Consequentemente, na medida em que essa intersubjetividade ocorre na e pela linguagem, para além do esquema sujeito-objeto, os sentidos arbitrários estão proibidos/interditados. Humberto Ávila também mira a “capacidade de controle intersubjetivo da argumentação”, como forma de impedir um caprichoso decisionismo17.

Podemos, então, acrescentar uma terceira àquelas duas premissas assumidas linhas acima. Primeira – a realidade é sempre uma construção, nunca um dado pronto e acabado; segunda – a linguagem é a matéria-prima de construção; terceira – a construção só se sustenta se encontrar ressonância no seio da sociedade historicamente situada em seus limites culturais.

E de posse dessas ferramentas, convém agora voltar à pergunta inicial: Afinal, há interpretações acerca das normas jurídicas precisa e absolutamente corretas, estáveis e perenes, estabelecidas segundo a mais perfeita silogística?

15 I FOUREZ, Gérard, 1995, p. 42..

16 STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016, p. 78.

17 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação prática dos princípios jurídicos. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 45.

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A Lei (lato sensu) é um agregado de palavras tendentes a transmitir uma mensagem deôntica, ou seja, de como o comportamento do homem deve ser orientado.

O homem deve se comportar, no modo de relacionar-se com outros homens, sempre de forma a produzir relações saudáveis. Espera-se, por isso, do Direito, que precisamente estabeleça como obrigatórias, proibidas ou permitidas as condutas humanas, em situações-tipo.

Aqui se dá o ponto de entrave das perspectivas.

A grande batalha filosófica do Direito está em como articular a linguagem para transmitir uma mensagem com precisão significativa, apta a regular os comportamentos e, ao mesmo tempo, com textos pré-prontos nas leis, possibilitar a ressignificação da realidade e dos comportamentos humanos, que são móveis, dinâmicos, e sempre infinitos de sentidos.

Convém citar um exemplo18: Imagine que, caminhando pelo lobby de um hotel, nos deparemos com uma placa que indica textualmente que “é proibido o uso de trajes de banho”.

À primeira vista, a norma inscrita no letreiro parece bastante simples. Parece indicar que aqueles que frequentam o local estão proibidos (modal deôntico do comportamento) de trajarem-se com biquínis, sungas, maiôs ou outras espécies de vestimentas para natação. Não estranharia, por exemplo, que das pessoas no local se exigisse o uso de um roupão, hobby, ou outra peça de roupa que promova maior cobertura do corpo.

Introduza agora um outro elemento no exemplo. A mesmíssima placa com os dizeres “é proibido o uso de trajes de banho” está posta na entrada de uma comunidade naturista, próxima de uma praia. Muito provavelmente, a interpretação mais aceita naquelas circunstâncias seria a que orienta que todas as peças de roupa sejam desprezadas.

Um outro exemplo nos oferece Norberto Bobbio:

[...] quando digo, voltando-me para um amigo com quem estou passeando: “Gostaria de beber uma limonada”, pretendo exprimir um desejo meu e, além disso, dar ao meu amigo uma informação sobre o meu estado de espírito; se dirijo as mesmas palavras para uma pessoa

18 O exemplo é extraído da obra de Aurora Tomazini de Carvalho, porém, foi aqui reconstruído sob outros torneios. CARVALHO, Aurora Tomazini de, 2016, p. 243-244.

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que está atrás do balcão de um bar, não pretendo expressar um desejo, nem dar-lhe uma informação, mas impor-lhe uma determinada conduta. (Enquanto no primeiro uso da expressão é previsível, por parte do amigo, a resposta “Eu também”, a mesma resposta por parte do segundo interlocutor seria quase uma ofensa.)19

De novo, é o contexto cultural, os limites sócio-históricos que definem a apropriação do intérprete em relação ao texto e por consequência à norma.

Arthur Kaufmann aponta para uma característica da linguagem à qual ele dá o nome de “bidimensionalidade”, segundo ele:

A linguagem viva movimenta-se sempre em dois planos: um horizontal ou linear e outro vertical ou transcendental. No primeiro plano lidamos com a dimensão racional-categorial da linguagem, com a linguagem digital; está em causa a univocidade e exactidão lógico-formal que deve ser alcançada através da abstracção e das regras linguísticas, e em certas circunstâncias através da utilização de linguagens artificiais (função operativa ou sígnica da linguagem). No segundo plano, lidamos com a dimensão intencional-metafórica da linguagem, da linguagem analógica; trata-se aqui do sentido lógico-transcendental na linguagem, que exclui a univocidade e exactidão da “lógica das coisas” (função comunicativa ou simbólica da linguagem).20

Na diretriz exposta pelo filósofo alemão, a dimensão horizontal da língua identifica coisas por meio de símbolos unívocos, de modo que a cada verbete ou signo corresponde um só objeto ou significado. A outra, vertical, subjetiviza o pensamento, equivoca os símbolos e lhes dá plurissignificação.

Ora, não seria então mais apropriado que o Direito utilizasse apenas a dimensão vertical da língua, traduzindo sempre de forma precisa sua mensagem comportamental, para que os mesmos signos correspondessem sempre ao mesmo significado?

Kaufmann também responde a essa preocupação:

[...] paradigmas ou modelos de comportamento [...] não são grandezas estáticas, fechadas, com conteúdos abstractamente definíveis, mas sim construções linguísticas de valor diferenciado cujo sentido normativo se obtém a partir da situação e se altera, por isso, no uso linguístico correspondente à situação em causa. Eles não podem ser determinados independentemente do seu uso; apenas no contexto situacional e no “jogo de linguagem” adquirem o seu exacto significado. “O significado de uma palavra é o seu uso na linguagem” diz uma conhecida frase de Wittgenstein. Esta equivocidade da linguagem (corrente) é insuprimível. É certo que se tentou várias vezes desenvolver uma linguagem artificial o mais unívoca possível, mas esta, de forma paradoxal, não se adequa, precisamente por causa da sua univocidade,

19 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 6. ed. São Paulo: EDIPRO, 2016a, p. 73. 20 KAUFMANN, Arthur, 2014, p. 170.

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à comunicação e à descrição da vida, pois estas têm que as realizar entre pessoas diversas e sobre diferentes experiências. A equivocidade da linguagem (corrente) não se deve, por isso, de modo nenhum ser considerada como uma mera desvantagem. É verdade que a falta de exactidão encerra em si o perigo de que as coisas sejam dissimuladas ou até falsificadas, mas o preço da univocidade e da exactidão seria a rigidificação da linguagem e a sua redução a um relativamente pequeno número de sinais. A equivocidade da linguagem (corrente) garante a sua flexibilidade, a sua dinâmica, a sua riqueza de nuances, em suma: a sua vitalidade e historicidade.21

Num resumo ainda mais ilustrativo: “Se a norma jurídica (a regra de direito) se deve tornar realidade concreta, então os conceitos abstractos da norma têm que estar abertos às situações da vida”22.

Não é por outra razão que a Lei Complementar 95, espécie de manual de redação legislativa em nosso país, dedica um dispositivo bastante extenso – art. 1123 – para orientar o legislador no uso da linguagem, com vistas na obtenção de maiores clareza e precisão possíveis.

Logo, simplesmente não é viável, de forma absoluta, a precisão matemática, a correspondência biunívoca entre a palavra na lei e a concreção no mundo. É preciso que

21 KAUFMANN, Arthur, 2014, p. 173-174. 22 Ibid., p. 183.

23 Destacamos do dispositivo um excerto que serve de ilustração:

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

I - para a obtenção de clareza:

a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando; b) usar frases curtas e concisas;

c) construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis; d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;

e) usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter estilístico; II - para a obtenção de precisão:

a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma; b) expressar a ideia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico;

c) evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto;

d) escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou regionais;

e) usar apenas siglas consagradas pelo uso, observado o princípio de que a primeira referência no texto seja acompanhada de explicitação de seu significado;

f) grafar por extenso quaisquer referências a números e percentuais, exceto data, número de lei e nos casos em que houver prejuízo para a compreensão do texto;

g) indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões ‘anterior’, ‘seguinte’ ou equivalentes;

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admitamos a inesgotabilidade da compreensão legal pela inesgotabilidade da construção interpretativa, que por sua vez deriva diretamente da inesgotabilidade da linguagem.

[...] desde o início do século XX, a filosofia da linguagem e o neopositivismo lógico do Círculo de Viena já haviam apontado para o problema da polissemia das palavras. Isso nos leva a outra questão: a literalidade é algo que está à disposição do intérprete? Se as palavras são polissêmicas; se não há a possibilidade de cobrir completamente o sentido das afirmações contidas em um texto, quando é que se pode dizer que estamos diante de uma interpretação literal? A literalidade, portanto, é muito mais uma questão da compreensão e da inserção do intérprete no mundo do que uma característica, por assim dizer, natural dos textos jurídicos.24

E de novo, se incomoda ao leitor essa afirmação, reforçamos o postulado assumido linhas acima: o limite para construções possíveis está na capacidade de fazer ressoar consistentemente o pensamento na comunidade linguística; no “convencimento” (mal comparando) que o discurso produz no meio em que se discursa; na permeabilidade do tecido sócio-histórico em que a fala se constrói.

Wayne Morrison, lecionando sobre Nietzsche, fala do perspectivismo, segundo o qual:

[...] não existem fatos independentes (no sentido de fatos que prescindem de interpretação) com os quais as diferentes interpretações possam ser comparadas de modo que possamos escolher a interpretação “correta”. Nesse caso, a tarefa de conferir sentido a processos ou conjuntos de instituições, como o sistema jurídico, ou de interpretar textos, como os textos jurídicos, pode ser uma questão de obedecer a certas regras metodológicas e/ou impor ordem entre muitos objetivos e interpretações possíveis.25

Ainda que com reservas, essa fala parece também apontar para uma questão menos afeta à restrição da amplitude de interpretações, e mais para a importância de uma metodologia que sistematize, dentre as escolhas possíveis, a que melhor atende aos propósitos do próprio sistema. A interpretação passa a ser, desse modo, não uma questão de objetividade linguística do texto, mas de respeito à mais adequada metódica de produção de sentido sistemático.

Não existe um limite objetivo para a interpretação, como pressupõe a teoria tradicional. A objetividade do direito está no seu suporte físico, que é aberto. A comunicação jurídica (entre legislador e intérpretes) se estabelece por ambos vivenciarem a mesma língua, a mesma cultura, por estarem inseridos no mesmo contexto histórico. E por isso que, para

24 STRECK, Lenio Luis. Verdade e Consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017a, p. 44.

25 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 348.

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Heidegger, a referência objetiva do diálogo, que guia o processo de entendimento mútuo, deve sempre se dar no solo de um consenso prévio, produzido por tradições comuns. As significações jurídicas, assim, se aproximam tendo em conta o mesmo contexto histórico-cultural, mas se afastam na medida em que se considera as associações valorativas ideológicas que informam os horizontes culturais de cada intérprete.26

Mesmo entre positivistas mais tradicionais, como Kelsen, se veem conceitos como o da “moldura do direito”, que admitem subjetivação, no sentido de que o sujeito a produzir a interpretação autêntica (julgador) tem um espaço no bojo do qual transita para construir o sentido da norma posta:

Se por "interpretação" se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.27

Com isso, oferecemos uma perspectiva das ideias de constructivismo, e concluímos que seja irrazoável pensar o Direito de modo literalista, na esteira do positivismo exegético. Não há uma só realidade a descrever, e tampouco um só conteúdo semântico na palavra usada na descrição, e por isso mesmo não há uma só mensagem na norma jurídica.

A fala de Humberto Ávila nos ajuda a separar claramente a noção de “norma” daquela de “dispositivo”:

Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem n o objeto da interpretação; e as normas no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que

26 CARVALHO, Aurora Tomazini de, 2016, p. 247.

27 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 390-391.

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houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.

[...]

E o que isso quer dizer? Significa que não há uma correspondência biunívoca entre dispositivo e norma – isto é, onde houver um não terá obrigatoriamente de haver o outro.28

Assumimos, pois, essas ideias como axiomas que imantarão todo o trabalho: não é viável uma “neorepristinação do positivismo exegético”29; não há uma interpretação da lei que possa ser considerada absoluta e imutavelmente correta para todo o sempre. O mesmo se pode dizer dos fatos. A realidade em que estamos inseridos é infinita e demanda interpretação. As normas e o mundo que delas é destinatário são, e serão sempre, passíveis de ressignificação.

Tem, portanto, valor emblemático, axiomático, a linguagem como forma de aproximação máxima do ser humano da realidade que nos envolve. Laborar com ela da melhor forma exige operação dialógica, comunicacional, como um ferramental para a construção de sentidos intersubjetivamente controlados.

Por lealdade ao leitor, convém que se diga que inúmeros filósofos do Direito se propõem a encontrar uma forma de chegar a respostas corretas em relação à aplicação da lei e à controlabilidade das decisões judiciais; ponderações absolutamente diferentes das que defendemos até aqui. Dentre esses, podemos citar Ronald Dworkin30, Lênio Luiz Streck31, Neil MacCormick32, Robert Alexy33 e Manuel Atienza34, como alguns exemplos. Cada um a seu modo – é bem verdade que ao emprego de metodologias bastante distintas, e com conclusões não menos dissonantes – todos esses autores mencionam que o problema está, de algum modo, relacionado não a uma univocidade das disposições normativas, mas ao contrário, à controlabilidade do processo decisório, e à

28 ÁVILA, Humberto Bergman, 2016, p.50-51

29 STRECK, Lenio Luiz. Como usar a jurisdição constitucional na reforma trabalhista, 2017b. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-nov-02/senso-incomum-usar-jurisdicao-constitucional-reforma-trabalhista. Acesso em: 22 jun. 2018, 18h55.

30 Sugere-se a leitura de: DWORKIN, Ronald. O império do Direito. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

31 Há longo estudo desenvolvido pelo professor na intenção de oferecer uma perspectiva crítica do positivismo, em suas diversas correntes, e a elaboração de uma metodologia de controlabilidade da decisão judicial em sua obra: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 32 A obra mais referenciada é: MaCCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

33 Remete-se o leitor a: ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: teoria da argumentação racional como teoria da fundamentação jurídica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

34 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

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previsibilidade do resultado do ato de vontade do aplicador da lei. Preocupa a estes autores como as justificativas, argumentações e fundamentações das decisões judiciais podem ser construídas de modo a oferecer estabilidade, segurança, previsibilidade e controlabilidade sistemática; para que a sociedade possa ser mais democrática, e o Direito, coeso e assisado, menos refém de um deciosionismo solipsista. Aqui se evidencia a fundamental diferença entre as críticas ao pensamento dogmático, que postulam do melhor modo de interpretar a norma jurídica, e as (mal) disfarçadas pretensões políticas que desejam retroceder no pensamento filosófico algumas centenas de anos, para afirmar que dada uma lei qualquer, somente um direito a ela corresponde.

O núcleo de atenção deste estudo é, fundamentalmente, a noção de isonomia salarial.

Encontramos inscrição da ideia de isonomia de tratamento no caput do art. 5º do texto constitucional, que assevera serem todos “iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”.

Pouco mais adiante, no mesmo texto, encontramos disposição mais específica e afeta ao ramo juslaboral. O art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII prega:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência;

XXXII - proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos

Nestes e em outros diversos dispositivos, tanto no texto constitucional quanto ainda em outros diplomas infraconstitucionais e outros de feição supralegal – convenções e recomendações emanadas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – encontramos suporte redacional para uma construção de inegável consenso doutrinário e jurisprudencial, o chamado princípio da isonomia salarial.

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