• Nenhum resultado encontrado

N. 15/ DEZ 2019 ISSN

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "N. 15/ DEZ 2019 ISSN"

Copied!
24
0
0

Texto

(1)

188

O Bumba-meu-boi na literatura infantil e juvenil: a festa maranhense na rua e

no livro¹

Bumba-meu-boi in children and youth literature: Maranhão feast in the street

and in the book

Mirian Santos Chagas ² Elizabeth Cardoso ³

Resumo: Este artigo apresenta a crescente presença do auto Bumba-meu-boi na literatura infantil

e juvenil brasileira. A partir do conjunto de dezenove livros de literatura voltados para a infância e o jovem leitor com a prevalência do tema Buma-meu-boi, elegeu-se a obra Bumba-meu-boi (2014), de Stela Barbieri e Fernando Vilela. A obra elege a versão do boi maranhense sotaque da ilha, matriz do Bumba-meu-boi que é celebrado no Morro do Querosene, em São Paulo. Tal escolha de-ve-se à representatividade de uma das principais tendências que envolvem as versões do auto em livro – a preservação da tradição oral – e o alcance artístico literário que a obra realiza por meio da relação tempo e espaço. Após apresentar um breve relato sobre o auto, encaminha-se a análise da obra com o auxílio do conceito de cronotopo, de Bakhtin (2014), veremos como os autores saem da condição didática (divulgar o Bumba-meu-boi) para a experiência poética do auto nas páginas do livro.

Palavras-chave: Literatura infantil e juvenil; Bumba-meu-boi; Tradição oral; Stela Barbieri;

Fer-nando Vilela.

¹ O presente trabalho traz parte dos resultados da dissertação de mestrado de Mirian Santos Chagas, sob a orientação de Eliza-beth Cardoso (Tradição popular na literatura infantil e juvenil: Leituras do Bumba-meu-boi maranhense, defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2016), espe-cialmente no que diz respeito ao levantamento das obras e a revisão bibliográfica da história do auto. No entanto, a análise do literário é inédita, representando um segundo momento da reflexão.

² Professora mestre no Departamento de Letras e de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão – Campus Santa Inês – Maranhão – MA – Brasil. E-mail: miriansantoschagas@icloud.com

³ Professora doutora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) – São Paulo – SP – Brasil. E-mail: elizcardoso@terra.com.br

(2)

189 Abstract: This paper presents the growing presence of Bumba-meu-boi in Brazilian children’s and

youth literature. From a set of nineteen literature books aimed at children and the young reader, with the focus on the theme Bumba-meu-boi, we’ve selected Bumba-meu-boi (2014), by Stela Bar-bieri and Fernando Vilela. The work chooses the version of São Luis do Maranhão about the tale, which is the matrix of Bumba-meu-boi that is celebrated at Morro do Querosene, in São Paulo. Such selection is due to the representativeness of one of the main trends involving the versions of the tale in a book – the oral tradition’s preservation – and the artistic and literary reach that this work accomplishes through the relation between time and space. After presenting a brief report about the tale, develops an analysis of the work with the concept of chronotope, by Bakh-tin (2014), as an aid, we will see how the authors leave the didactic condition (by promoBakh-ting the Bumba-meu-boi’s tale) to present an poetic experience with the tale on the pages of book.

Keywords: Children’s and youth literature; Bumba-meu-boi; Oral tradition; Stela Barbieri;

(3)

190 Introdução

No amplo e variado espectro que compõe a Literatura Infantil e Juvenil brasileira é possível obser-var que vários autores têm buscado dialogar com a tradição popular do Bumba-meu-boi. Tal fato nos chama atenção não apenas pela crescente produção de livros, mas, sobretudo, pelo modo literário de transpor tradições – que são orais e presenciais nos moldes das festas e dos autos – para as páginas do livro.

Na ponta de lança desse movimento está a obra Boi Aruá (1940), de Luís Jardim, na qual a figura do boi é retratada como símbolo do folclore brasileiro. Segundo Lajolo e Zilberman (2007), Luís Jardim explora essa peculiaridade dando-lhe conotação moral: “[…] o boi aruá, perseguido pelo fazendeiro, expressa simbolicamente o orgulho desmesurado e a ingratidão do homem, que so-mente alcança e domestica o animal quando, simultaneaso-mente, subjuga o sentimento mau e re-conhece servir a Deus.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007, p. 71).

Nos últimos anos, a produção de livros para crianças e jovens inspirada no auto Bumba-meu-boi apresentou expressivo crescimento no mercado editorial. Em uma coleta de dados realizada em editoras, livrarias, sebos, feira de livros, premiações como o Jabuti, além de bibliotecas públicas e privadas – tais como a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a Academia Brasileira de Le-tras, ambas no Rio de Janeiro; a Academia Maranhense de Letras e a Biblioteca Pública Benedito Leite, em São Luís, no Maranhão; a Biblioteca Monteiro Lobato e a Biblioteca Infantil, ambas em São Paulo –, chegamos ao total de dezenove livros. Contudo, não refutamos a possibilidade de outras obras publicadas em baixa escala, ou até mesmo de modo mais caseiro, dentro da tradição do cordel. De todo modo, a nossa intenção não consiste em chegar a um número exato de livros produzidos. O que se pretende, aqui, é apontar as tendências do Bumba-meu-boi na literatura para crianças e jovens, de forma a contribuir com os estudos do gênero associados aos temas da cultura popular e da tradição oral.

Os livros encontrados foram os seguintes: Bumba-meu-boi (s/d), de Teresa Schlosser, com ilus-trações da autora; Bumba-meu-boi (s/d), de Jaci José Delazer, com ilusilus-trações do autor; O bum-ba-meu-boi (1999), de Geruza Helena Borges, com ilustrações da autora; Bumbum-ba-meu-boi-bumbá (2003), de Roger Mello, com ilustrações do autor; Touchê: uma aventura em noite de São João

(4)

191

(2004), de Wilson Marques, com ilustrações de Beto Nicácio; Bumba-meu-boi (2005), de Toni Bran-dão, com ilustrações de Denise Rochael; O boi de mamão (2005), de Rogério Andrade Barbosa, com ilustrações de Regina Yolanda; O Bumba-meu-boi no baile (2006), de Maria da Conceição Reis, com ilustrações de Marcelo Gonçalves e Roberto Wagner; A festa do Boi (2007), de Carmen Lucia Campos, com ilustrações de Andréa Ebert; Pula, boi (2012), de Marilda Castanha, com ilustrações da autora; Bumba-meu-boi (2014), de Stela Barbieri e Fernando Vilela; Viva o Boi Bumbá (2014), de Rogério Barbosa com ilustrações de Graça Lima; Bumba-meu-boi recontada por Crika (2015), de Crika, com ilustrações de Weberson Santiago; A filha de Pai Francisco (2015), de Lenita Estrela de Sá, com ilustrações de Salomão Júnior; Mateus, esse boi é seu (2015), de Marco Haurélio, com ilustrações de Jô de Oliveira; O boi do Piauí: Da cultura popular (2015), de Márcia Evelin, com ilus-trações de Danilo Grilo e Lurebordosa; O Boi-Bumbá (2015), de Rosana Rios, com ilusilus-trações de Elma; Bumba, nosso Boi (2016), de Diego Freire, com ilustrações de Rogério Maroja; Catirina e Pai Francisco: em quadrinhos (2016), de Alberto de Jesus Nascimento Nicácio, história e arte do autor. Do conjunto destacam-se dois pontos: a sua contemporaneidade, ou seja, a maioria – quatorze livros – foi editada entre 2005 e 2016; e a quantidade (dezenove) de livros dedicados ao tema. Da leitura das obras citadas, apreende-se características históricas e geográficas dos locais onde foram publicadas e, como consequência, variações no enredo, embora o núcleo do tema (a morte e a ressurreição do boi) se mantenha. Isso confirma a posição dos folcloristas que estudaram o Bumba-meu-boi: de que, ao mapearem essa manifestação popular, identificaram que ela foi sen-do recriada e/ou reinterpretada ao longo sen-do tempo e que ela se diferencia em cada lugar, apesar de o motivo ser o mesmo.

Neste estudo, analisa-se o livro Bumba-meu-boi (2014), de Stela Barbieri e Fernando Vilela, cuja principal característica é a preservação da tradição4. O objetivo é verificar o modo como o auto Bumba-meu-boi, manifestação da cultura popular portadora de um enredo fixo, está configurado na obra de Barbieri e Vilela.

O livro foi inspirado no Bumba-meu-boi do Moro do Querosene, bairro da cidade de São Paulo – 4 As palavras preservação e atualização adquirem caráter complementares. O termo preservar provém do latim praeservare, que significa “resguardar-se”, “conservar-se”, “salvar-se”. Logo, preservar é “livrar-se de alguma ameaça de perda”, ao passo que atualizar provém da palavra atual, do latim actuale, que significa “o que está sendo feito no momento presente”, donde atualizar é incorporar o novo, porém conservando suas raízes. (CHAGAS, 2016, p. 69)

(5)

192

boi brilho da noite –, que por sua vez tem como referência o Bumba-meu-boi do Maranhão com ca-racterísticas do boi de matraca, também conhecido como sotaques da baixada e da ilha. Em 2008, a obra foi incluída no catálogo White Ravens (Munique, Alemanha), que apresenta uma seleção das melhores obras da Literatura Infantil e Juvenil mundial.

Nota-se uma cumplicidade entre o texto e a imagem com a representação do boi brilho da noite, pois a percepção do leitor é conduzida por elementos da festa, como as coreografias, o ritmo, os instrumentos e as personagens – todos agora investidos dos recursos literários.

1. O Bumba-meu-boi: tradição e hibridismo

A história do Bumba-meu-boi é muita antiga. Pesquisadores como Celso Magalhães, Sílvio Romero, Câmara Cascudo, Mário de Andrade, Artur Ramos, entre outros afirmam que o Bumba-meu-boi tem origem com os povos antigos e surgiu no Brasil entre o final do século XVIII e início do século XX. Entre os autos nacionais – como o fandango ou marujada, a chegança, o congo ou congada – o Bumba-meu-boi abrange maior área geográfica, sendo superior aos demais autos dada a sua ca-pacidade de absorção cultural e de trazer em si as marcas da ancestralidade, sendo a mesma preservada ao longo do tempo por meio da oralidade (CASCUDO, 2012). O Bumba-meu-boi exibe--se em campo aberto, atendendo aos convites para residências particulares ou espaços públicos. Apresenta-se em diversas datas do ano, porém, no Nordeste, o ponto alto é o mês de junho. O hibridismo já está presente na expressão Bumba-meu-boi. A palavra bumba é proveniente do congolês e significa “batida”; meu boi é o que bate, chifra. Segundo Cascudo (2012, p. 136): “Bum-ba é injeção, zás, valendo a impressão de choque, “Bum-batida, pancada. Bum“Bum-ba-meu-boi será ‘Bate! Chifra, meu Boi!’. Voz de excitação repetida nas cantigas do auto, o mais popular”. Trata-se de um bailado cantado, encenado e dançado, que tem como núcleo um assunto (morte e ressurreição do boi) e é formado por um elenco que se recompõe a cada ano.

Desse modo, enquanto os outros autos apresentam elenco fixo, o Bumba-meu-boi é a percepção do contemporâneo. Isso ocorre porque, além de se renovar constantemente, possui intensa

(6)

pene-193

tração social. Tal fato pode ser observado na variedade das músicas, das personagens, das danças e do enredo, que se recriam no anonimato. Com isso, as tentativas de interpretação tornam-se complexas, tal como justifica Cascudo (2006, p. 402):

Não há auto que se assemelhe ao BUMBA-MEU-BOI em qualquer Lite-ratura Oral do mundo, pela vastidão do “complexo” etnográfico, docu-mentário inapreensível de informação, arquivo verbal de sinceridade registrada anonimamente. [...] Em cada Estado, cada município tem suas figuras, suas danças, suas músicas. Cada tempo traz outros per-sonagens. Uns desapareceram. Outros são problemas indecifráveis, misteriosos.

Embora haja variações em expressões como Bumba- meu-boi, Boi Bumbá, Boi-de-mamão, Boi Ca-lerma, Boi de Fita, Boi de Reis, entre outras, existem aspectos, como o caráter festivo, a religio-sidade e o enredo de um núcleo só (morte e ressurreição do boi), parecidos que sugerem ter a mesma origem. Contudo, em decorrência das adaptações histórico-geográficas e sociais, determi-nados elementos – como as personagens, os instrumentos, as indumentárias e as danças –, foram valorizados em detrimento de outros, ou foram recriados devido às imigrações, embora suas raí-zes tenham sido conservadas.

A trama fixa do Bumba-meu-boi está na morte e na ressurreição do animal domesticado pelo ho-mem, cercado de personagens que dançam, cantam e dramatizam, donde textos, danças, lendas e assuntos atuais juntam-se ao núcleo da trama. É uma peça exemplarmente integradora, em que todos os elementos da festa tendem a se juntar ao núcleo (morte e ressurreição do Boi). Segundo Cascudo (2006), o enredo remete às tradições antigas, similar ao auto medieval. Entre os diversos autos que se assistiu, o assunto envolvia um núcleo apenas:

O Amo confiou o Boi ao vaqueiro e este o matou: a) durante a excitação da dança, b) porque fora agredido pelo animal, c) para satisfazer ao pedido da companheira que desejava comer o fígado do Boi. A ajuda vem dos personagens, participantes lógicos da cena. [...] Ressuscita-se o Boi. No final mais dança. (CASCUDO, 2006, p. 473)

A narração se volta para o núcleo de morte e ressurreição do boi. Contudo, no episódio podem ser adicionados outros temas, o que, para alguns folcloristas, resulta em uma visão fragmentária e,

(7)

194

com isso, a provável perda do vínculo com os ritos-festivos das tradições antigas5.

O movimento entre a unidade e a fragmentação em torno do núcleo do Bumba-meu-boi revela, de um lado, o caráter homogêneo e, de outro, as possíveis aberturas para influências de temas diferentes do núcleo. No entanto, as variações não fogem da temática, mais enriquecida a cada período festivo. Esse fascínio unificador da dança dramática é visto por Mário de Andrade (1982, p. 52) da seguinte forma:

Mas não só o Bumba-meu-boi é a mais estranha e original e comple-xa das nossas danças dramáticas. É também a mais exemplar. O que caracteriza mais o aspecto contemporâneo de todas as nossas danças dramáticas, é que elas, como espírito e forma, não são um todo unitá-rio em que desenvolve uma ideia, um tema só. O tamanho delas, bem como o seu significado ideológico, independe de um assunto básico. [...] E esse núcleo básico é recheado de temas apostos a ele; romances e outras e quaisquer peças tradicionais e mesmo de uso anual se gru-dam nele; textos e mesmos outros núcleos de outras danças se juntam a ele.

A tese da unidade da peça do auto também é sustentada por Câmara Cascudo (2012), que con-sidera o Bumba-meu-boi o único folguedo brasileiro cuja renovação da temática não interfere na unidade do núcleo. O folclorista afirma: “[...] O processo de concatenação, de ajustamento de vários temas, é uma assombrosa audácia técnica, mantendo uma unidade temática na multifor-midade dos motivos conjugados na representação” (CASCUDO, 2012, p. 138-139). Desse modo, o encadeamento de vários temas não descaracteriza o núcleo. O que se pode notar no folguedo é um conjunto de apresentações – o que não deixa de ser uma estratégia bastante rica do auto.

2. Bumba-meu-boi maranhense

No Maranhão, o Bumba-meu-boi é uma manifestação presente em quase todos os municípios do Es-tado e, em cada região, o auto se expressa de uma forma distinta, respondendo às necessidades ine-rentes da localidade. Em decorrência dessa diversidade, sua classificação torna-se complexa. Apesar 5 A ideia de que a fragmentação do núcleo da trama (morte e ressurreição do boi), assim como a introdução de personagens e outras novidades, pode representar uma ameaça à tradição está presente nos estudos de Azevedo Neto (1997; 2011), Cavalcanti (2004) e Carvalho (2011).

(8)

195

de posições divergentes, a tese da representação das três etnias (africana, indígena e branca) tem conduzido à categorização do folguedo maranhense.

Devido às similaridades musicais, estéticas e regionais que os grupos de bois guardam entre si, convencionou-se fazer a classificação em cinco sotaques: Ilha, Guimarães, Baixada, Cururupu e Orquestra. De acordo com Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), essa categorização é útil para o direcionamento de estudos e pesquisas, porém não abarca a diversida-de da manifestação do Bumba-meu-boi no Estado como um todo. O fato é que o Bumba-meu-boi maranhense assinala a presença das três etnias (africana, indígena e branca).

O Bumba-meu-boi segue um ritual que se mantém em ciclo anual – ensaios, renascimento, batis-mo, apresentações e matança –, acompanhando as datas comemorativas do calendário popular católico, razão pela qual movimenta, na estrutura da celebração, vínculos entre o sagrado e o pro-fano, assim como o rito de passagem da representação do terreiro ao espaço público.

A trajetória do Bumba-meu-boi tem sido resguardada por alguns grupos. Os ensaios, geralmente, são iniciados no Sábado de Aleluia. Nesse momento, os brincantes se reúnem e o amo apita, “guar-necê”, dando início aos ensaios. O renascimento é o reaparecimento do boi ao público depois de ter sido morto no ano anterior. O batismo é um momento festivo-religioso. Geralmente, ergue-se um altar a São João e, junto dele, é colocado o boi. Assim que chegam os padrinhos ou madrinhas, inicia-se a ladainha. Após esse ritual, o boi segue para as apresentações, que acontecem, principal-mente, no período das festas juninas. A morte do boi encerra o ciclo festivo do Bumba-meu-boi no Maranhão. Na maioria dos grupos a cerimônia é apenas festiva, sendo rara a ladainha da morte. Segundo Reis (2008), esse momento é uma grande festa, porque significa que o boi ressuscitará no início do ano seguinte. É apenas um rito de passagem para a permanência do Bumba-meu-boi. Nas apresentações públicas, o Bumba-meu-boi segue um ritual. Geralmente, os grupos iniciam a festa com o amo cantando a toada do “guarnicê” para reunir o grupo. Uma vez guarnecido, é cantada a toada “lá-vai”, avisando aos que aguardam. E logo é cantada a “licença”, toada que é o pedido de permissão para trazer o boi. É cantada, ainda, uma toada de “louvação ao boi”, ao dono da casa, a São João e a São Pedro. Depois, tem-se o início do auto e, por fim, é cantada a toada da “despedida”, cuja letra expressa o sentimento de adeus e de saudades. Só então o grupo se

(9)

afas-196

ta. O auto é o momento da festa em que acontece a dramatização da história lendária do boi – o desejo de Catirina pela língua do boi sagrado. Veremos como Barbieri e Vilela (2014) seguem esse rito para compor sua obra.

As principais personagens envolvidas no auto são: boi (construído de madeira e recoberto de teci-do bordateci-do); Pai Francisco (o esposo de Catirina, autor teci-do furto teci-do boi); Mãe Catirina (a esposa de Pai Francisco); amo (capataz do fazendeiro); miolo (homem que dança debaixo do boi); cazumbá (figura fantasmagórica que rejuvenesce as forças espirituais); caboclos de fita; caboclos de pena; indígenas; vaqueiros; rapazes; e a burrinha.

A trama ocorre em uma fazenda cujo amo tem um boi, o mimoso. Certo dia, o escravo Pai Fran-cisco, para satisfazer o desejo de grávida da mulher Catirina, de comer a língua do boi mimoso, resolve matá-lo. O amo, ao perceber o sumiço do animal, exige a punição do escravo Pai Francisco. Então, convoca vaqueiros, caboclos e indígenas para capturá-lo. Depois de encontrado, Pai Fran-cisco é torturado até confessar o crime. O amo, muito aborrecido, exige seu estimado animal de volta, caso contrário, Pai Francisco será morto. Nesse momento, é solicitada a ajuda do pajé, que canta e dança até ressuscitar o boi, para a alegria geral.

Para Azevedo Neto (1997), o enredo sofre variações, porém o grupo que mais se aproxima da ver-são original é o dos bois do grupo indígena (sotaque da baixada, da ilha). Embora na apresentação de alguns grupos demonstrem preferência pela versão musicada no sotaque da ilha, geralmente acontece o auto. De acordo com Reis (2008), esse momento é “a hora da matança”. Pai Francisco faz parar de vez a brincadeira. Desenvolve vários assuntos com o amo e rouba o boi. Sentindo falta do animal, o vaqueiro chega na roda e diz: meu amo roubaram o boi! Diz o amo: “Não é possível! O boi estava brincando!”. Depois de descoberto, Chico confessa ao amo que roubou o boi devido à sua mulher Catarina estar buchuda e desejosa de comer língua de boi. Nesse instante, o amo chama o doutor e o pajé. Estes receitam e benzem o animal, que logo está curado. Todos os brin-cantes pulam de alegria e cantam.

No sotaque da ilha, na regência, é utilizado um instrumento chamado maracá. Além dele, utilizam--se outros instrumentos, tais como pandeirão, matraca e tambor de onça. Com efeito, há unidade no conjunto e no andamento das toadas. Outro ponto marcante do auto são as danças. Entre os

(10)

197

sotaques, há semelhanças na organização e na formação obedecida pelos brincantes, porém há diferenças nas coreografias.

No boi sotaque da ilha, Santos Neto e Ribeiro (2011) descrevem que, na festa, os primeiros a en-trar são os instrumentistas (matraqueiros, pandeiros e onceiros) e os amos, que variam em quan-tidade de um grupo para outro. Na sequência, os indígenas, que formam uma linha horizontal, são colocados de frente para a assistência, desenhando no espaço o que se chama de trincheira (a cena é uma clara alusão à luta). Depois entram os caboclos de pena ou caboclos reais (as per-sonagens que ajudam a capturar o Boi) e, por último, os caboclos de fita (geralmente, são os brin-cantes que fazem promessa a São João). À frente desse batalhão vêm o Pai Francisco e a burrinha, enquanto o Boi pode aparecer entre os brincantes ou ao lado deles. A partir disso, são formados três círculos. No centro ficam o Boi, o vaqueiro, a burrinha, Pai Francisco e Catirina. Os indígenas ocupam a posição do primeiro ciclo, posteriormente, o ciclo dos caboclos de pena e, mais atrás, o ciclo dos caboclos de fita.

Vale lembrar que os participantes mantêm padrões de comportamento, valores estéticos e vesti-mentas. No caso do Bumba-meu-boi sotaque da ilha, predomina a pena de avestruz ou pavão, tal como descreve Azevedo Neto (1997, p. 39-40): “[...] nos bois da ilha destaca-se o caboclo real: vo-lumosa e colorida fantasia toda feita de penas [...] Penas deslizando dentro do ritmo, levando um corpo esquecido e relaxado”. Portanto, é um corpo que não deixa de expressar uma leitura lúdica e poética. Durante o bailado (coreografia dos brincantes), há uma hegemonia, cuja graciosidade do conjunto chama a atenção daqueles que assistem.

Os brincantes seguem uma técnica coreográfica específica que opera em seu conjunto. Os ritmos dos instrumentos, aliados às letras e partituras das toadas, expressam no corpo uma unidade de sentido e ganham vida para abrilhantar a festa. É possível, portanto, observar nesse universo fes-tivo a persistência dos brincantes que, secularmente, mantêm a tradição em ensaios, batismo e representação. Com efeito, o espetáculo energiza seus apreciadores e inspira sua representação simbólica em outras formas de expressão.

(11)

198 3. O Bumba-meu-boi maranhense em São Paulo

O Bumba-meu-boi maranhense é resguardado, recriado e cultivado, em São Paulo, pelo Grupo Cupuaçu Centro de Estudos de Danças Populares Brasileiras há trinta anos. Surgiu no morro do Querosene em São Paulo, em 1986, encenado por alguns participantes da Oficina de Danças Bra-sileiras, no Curso de Formação de Atores e no Teatro Vento Forte, tendo à frente desse trabalho o artista-educador Tião de Carvalho. A partir de então, o grupo cresceu e, atualmente, cultiva um expressivo repertório de ritmo e danças populares tradicionais de diferentes regiões brasileiras, entre elas as de origem maranhense, tais como: Bumba-meu-boi, Cacuriá, Dança do Caroço, Lelê (ou Péla-Porco), Tambor de Crioula, entre outras.

De acordo com Saura (2008, p. 62),

[...] a maior expressão do Grupo Cupuaçu, em São Paulo, é mesmo o Bumba-meu-boi maranhense, com suas indumentárias, instrumentos, personagens, ritmos e dramas comuns aos sotaques de Ilha e de Pinda-ré. Respeitando e resignificando sua origem.

Como podemos notar, o Bumba-meu-boi maranhense sustenta-se em suas raízes. Portanto, trans-forma esses dois universos geográficos – Maranhão e São Paulo – em um mesmo curso, em uma provável reafirmação de que essa bela manifestação brasileira liga espaços distintos, mas conser-va sua origem. Tião Carconser-valho6 descreve, de forma resumida, a permanência e a ressignificação do

Bumba-meu-boi em São Paulo:

A princípio a gente não tinha essa intenção aí. A partir do Sábado de Aleluia, a gente começou a fazer as três festas. E esse primeiro ensaio já virou festa, que seria o Sábado de Aleluia. Ela também acontece pró-ximo ao dia de São João, não necessariamente nesse dia, faz sempre no sábado que antecede o dia de São João. E aí, no caso, essa última que foi agora (18 de outubro). É a última que é a morte do boi. Então, na lógica é a onde vai terminar essa última festa e o boi vai renascer no ano seguinte, já no Sábado de Aleluia. (JORNAL ..., 2015).

6 Tião Carvalho é natural de Cururupu, região noroeste do Estado do Maranhão. É ator, compositor, músico e dançarino.

(12)

199

Assim, o Bumba-meu-boi maranhense é conservado e difundido pela memória cultural. Cascudo (2012, p. 139) afirmou que esse folguedo “foi o primeiro a conquistar a simpatia dos indígenas que o representam, preferencialmente, como os Timbiras no Maranhão e é difundido pelo Sul através da memória dos nordestinos emigrados”. Tião Carvalho frequentou a escola dos mestres dos gru-pos de bois. Aprendeu, no convívio, a comandar o batalhão na antiga vila dos pescadores do bairro Madre de Deus, lugar em que foi criado. Ao se estabelecer no Morro do Querosene, em São Paulo, ao lado de outros artistas e membros da comunidade, começou a transmitir de forma espontânea o seu legado. Com relação ao Bumba-meu-boi do Grupo Cupuaçu, várias fontes dão indícios de sua ligação com a manifestação maranhense. Desse modo, qualquer forma de apreensão implica um mergulho nos repertórios orais de dois universos.

4. O Bumba-meu-boi de Barbieri e Vilela: uma festa para os olhos e para a infância

O livro ilustrado Bumba-meu-boi (2014), de Stela Barbieri e Fernando Vilela, conforme indicado em posfácio da obra, é inspirado no Bumba-meu-boi do Morro do Querosene, bairro da capital paulista, que, por sua vez, é influenciado diretamente pelo Bumba-meu-boi maranhense, sotaque da Ilha. Sua especificidade, e justificativa para representar o conjunto da produção de livros ende-reçados para a infância sobre o Bumba-meu-boi, é que os artistas não se limitam a contar o auto: eles levam ao leitor à experiência da festa. Muitos elementos artísticos são acionados para gerar tal efeito, entre eles a ilustração certamente tem lugar de destaque. Porém aqui nos deteremos no que Mikhail Bakhtin (2014) chamou de cronotopo artístico literário – ou seja, o uso da relação tempo e espaço em função da poética. Veremos como isso se dá.

A obra traz duas histórias: a do auto (a conhecida história do desejo de Catirina pela língua do boi) e a da festa do boi em si. O auto traz, como acontece na rua, a saga de Pai Francisco para realizar o desejo da mulher grávida. Ao encontrar o boi certo (o boi encantado da festa), ele tenta negociar com o dono (o amo) a compra do bicho, mas recebe como resposta um sonoro não, do batalhão (participantes da festa). Francisco não desiste e captura o animal, arranca-lhe a língua, serve para a mulher e solta o bicho no mato. O amo, que saiu no encalço do boi, junto com o batalhão, acha o bicho doente, desfalecido. Chama o médico, mas este revela-se impotente. Chama o curandeiro e esse, inicialmente, desanima o público, mas termina por lançar uma esperança: se o boi

(13)

mugis-200

se, voltaria a bailar. “Todos concentraram em volta do boi: os vaqueiros, os índios, os caboclos, o amo, as crianças ... e, de repente, o boi mugiu!” (BARBIERI; VILELA, 2014, p. 42). E a festa continua, fazendo confluir as duas histórias, pois, além de contar a história do casal, o livro traz a história, o formato, o ritual e a experiência da festa.

O que nos interessa aqui é ressaltar o enredo, ou seja, o modo como Barbieri e Vilela (2014) con-tam a história, pois essas estratégias vão além da trama: elas presentificam a festa. Destaca-se, aqui, um dos principais recursos dos artistas: a configuração do espaço/tempo.

Há vários espaços evolvidos no mesmo tempo, pois as ações são simultâneas. Os dois principais espaços são a festa e o conjunto de lugares onde a história do casal se desenrola. Na festa, no auto, que acontece anualmente na rua, tudo é encenado linearmente, pois sabe-se que a histó-ria do casal é a festa em si. Mas no livro, como busca-se contar a origem da festa, os dois atos se bifurcam em espaços diferentes, para depois se reunirem novamente. O boi é o elemento dessa reunificação.

A entrada do livro é pela festa, não pela história do casal. O que já indicia a importância que os autores dão à experiência da tradição popular.

Desde a capa o leitor é convidado a embarcar em uma noite negra, salpicada de cores que a ilumi-nam e transformam. Chega-se a uma festa. À noite, indiciada pelo alumbramento de luz e sombra, claro-escuro, é marca central do livro, assim como da festa na rua.

O formato, 28,5 x 28,5 cm, sugere uma caixa, porém, quando o leitor movimenta a capa se depara com pranchas únicas, uma vez que todas as ilustrações são de página dupla. Sem contar as guar-das, somam-se 20 pranchas, das páginas 8 à 47, nas quais a história se desenrola e a experiência acontece.

Ao visualizar a capa, o leitor sabe que é noite – noite de festa. Isso porque seu olhar é cativado por um fundo negro como as noites do interior, iluminado apenas por estrelas no céu e luzes de celebrações – aqui formando título da obra e nomes de autores. Os demais elementos – o boi, os instrumentos, a indumentária dos participantes – explodem em movimentos que encaminham

(14)

201

esse mesmo olhar para o canto direito da capa, convidando à abertura do volume.

Na primeira guarda há uma super aproximação aos letreiros do título e entre luzes e estrelas, onde também percebemos flores e pequenos motivos gráficos próprios à literatura de cordel. Mais uma virada de página e o olhar se distancia novamente, focando a noite e o título, para, na próxima prancha, vislumbrar a mistura dos elementos: luzes, cores, noite. A sensação é aquela de encantamento de quando se chega ao lugar dos festejos: os olhos ficam atentos a todos os deta-lhes, macros e micros, tentando absorver toda a beleza que se apresenta.

A primeira prancha (Fig. 1) da história traz uma grande fogueira que ilumina a noite, que, de tão negra, torna-se azul e transforma os participantes em sombras – pessoas, fogo e instrumentos são apresentados sem hierarquia: todos são elementos da festa que se inicia para os olhos do leitor, que logo também será convidado a brincar.

Figura 1

O que está aí representado é o “guarnicê”, as boas-vindas aos brincantes, agora também leitores. As personagens (vaqueiros, índios, caboclos, amo, boi e brincantes) dedicam-se aos preparativos da festa, que, na tradição, envolve o ciclo: ensaios, batizados e a morte do boi.

(15)

202

Num lugar muito distante, em junho, no dia de São João, vaqueiros, índios, caboclos, um amo e um lindo boi bailavam e cantavam o dia do santo. A festa estava animada, e durante um ano aquela gente vinha esperando por ela. Na noite da festa, os pandeirões foram aquecidos na fogueira, as matracas soavam rimadas e o batalhão bailava de um lado para o outro, trazendo graça e alegria à brincadeira que entraria noite adentro. (BARBIERI; VILELA, 2014, p. 8).

A frase “pandeirões foram aquecidos na fogueira” faz parte dos ensaios, que se iniciam no “guarni-cê”, momento em que os brincantes se reúnem e se concentram para os passos seguintes da festa. A voz poética da ilustração tem cumplicidade com a escrita e, juntas, elas trazem a voz da tradição, preservando nesse espaço o “guarnicê”. Comandados pelo amo (o chefe do conjunto, o principal cantador), os brincantes concentram-se em volta da fogueira e afinam os instrumentos – os pan-deirões. Nesse momento, o amo, geralmente, louva seu dever.

O “guarnicê” tem uma aura sagrada, presentifica a tradição da comunidade humana reunida ao redor do fogo, trazendo um mundo ainda por vir, concentrada no Boi da promessa, que todo ano traz a alegria de um festejar. Esse momento se intensifica, pois somam-se a ele mais brincantes, que cantam para arrumar o cordão (a roda) e se deslocam para se apresentar. As vozes que dali ecoam juntam-se às batidas estridentes dos instrumentos, cuja sonoridade remete à sequência de outros momentos da brincadeira.

Nesta toada, na segunda prancha (Fig. 2), o leitor já está dentro da festa, bailando com vaqueiros, índios e negros, experimentando o hibridismo racial e cultural que caracteriza o auto. O gestual e a dança dos participantes, em constante movimento rítmico com suas vestimentas e adereços esvoaçantes, bem como a ilustração da batida do pandeirão tornam quase possível ouvir a música, sair dançando.

(16)

203 Figura 2

A prancha representa três das toadas introdutórias do auto: o “lá vai”, a “licença” e a “louvação ao boi” – todos momentos de reunir os brincantes, trazer o boi para a brincadeira e reverenciar o dono da casa, além de São João e São Pedro. No auto, só depois desse ritual é que a festa começa. No livro, é depois dessa prancha que a história do casal inicia. Temos aí a bifurcação para outro espaço, o espaço do desejo de Catirina. O texto escrito diz:

Enquanto isso, perto dali, Pai Francisco e Mãe Catirina, um casal que vi-via numa roça isolada, tinham uma conversa sobre língua de boi. É que Catirina estava grávida, e mulher grávida tem desejo de comer umas coisas muito estranhas. Catirina estava com vontade de comer língua de boi, e dizia para o Pai Francisco:

- Chico, ô Chico, homem de Deus! Eu to com um desejo louco de comer língua de boi, homem! (BARBIERI; VILELA, 2014, p. 12).

Neste momento o leitor parece ter saído da festa, pois o “Enquanto isso, perto dali” indica um outro lugar. A festa continua acontecendo, mas o leitor, aparentemente, não participa mais da brincadeira. Agora ele vai viver o drama de Catirina e Francisco. Note-se a estratégia dos artistas em conduzir o leitor para dentro do auto exatamente porque o retira da festa. É nesse nó espaço--temporal que o leitor se metamorfoseia brincante.

(17)

204

O conceito de cronotopo, proposto por Bakhtin (2014), nos auxilia na interpretação. O filosofo russo esclarece, em “Formas de tempo e de cronotopo do romance”, que o termo nasce na física – com a Teoria da Relatividade, em 1905 –, sendo empregado na matemática da astronomia, e vem à crítica literária para representar a impossibilidade de uma separação entre tempo e espaço, ter-minando por determinar o tempo como a quarta dimensão do espaço. O importante aqui é ressaltar como Bakhtin coloca o cronotopo (relação tempo-espaço) no centro da expressão artística literária.

No cronotopo artisítico-literário, indicadores espaciais e temporais se fundem num todo concreto cuidadosamente pensado. O tempo como tal se concretiza, se encarna, se torna carregado e responsivo aos mo-vimentos do tempo, enredo e história. A intersecção de eixos e a fusão de indicadores caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN, 2014, p. 211).

O “todo concreto cuidadosamente pensando” do Bumba-meu-boi, de Barbieri e Vilela (2014), em uma arquitetura de tempo e espaço, é que leva o leitor à experiência do auto – algo além da sim-ples leitura.

Na continuidade da obra, as próximas quatro pranchas são dedicadas à busca da realização do desejo da mulher, que o marido, no texto verbal, tenta dissuadir: “Pai Francisco cismado com aqui-lo dizia a ela: — Come outra coisa, mulher. Logo língua de boi? Come cupuaçu, come umbu […]” (BARBIERI; VILELA, 2014, p.15). Mas na ilustração, texto visual, a mulher surge enorme, despro-porcional, mostrando todo seu poder e superioridade. Para depois, na prancha seguinte, dar lugar à superioridade do boi – imenso, soberano, encarnação de seu desejo.

Ela insistia. Queria porque queria língua de boi: — Eu quero. Eu quero é língua de boi.

E eu quero é a língua do boi que eu sonhei, Chico. Aquele boi com um courinho todo preto, salpicado de colorido, que dança, que baila, com aquela linguinha vermelha, suculenta. (BARBIERI; VILELA, 2014, p. 17).

(18)

205 Figura 3

A visão panorâmica da região, em volta de morros e planícies, dá uma dimensão da extensão do universo da festa associado à religiosidade. Os balões fazem uma possível alusão ao sagrado, assim como às cores da Igreja, que acolhe a espiritualidade das etnias que todos os anos fazem o batizado do Boi. Esse rito do batismo é de consagração e, ao mesmo tempo, de passagem da pre-paração do Boi para as apresentações públicas. Vê-se que a narrativa preserva também esse rito da tradição, que se vincula aos nossos ancestrais que cultuavam o Boi.

Os ensaios, assim como o batizado do Boi, fazem parte da festividade. É na esfera desse rito sa-grado que está o boi salpicado de colorido, figura do desejo de Mãe Catirina. Na imagem (Fig. 3), Chico e Catirina aproximam-se desse universo, porém percorrem outro caminho e chegam até a fazenda, onde está o boi preso.

Lá, surge a contradição entre o boi simplesmente boi, apenas carne, e sua versão mítica, o Boi espírito fantasioso que alimenta o desejo de Mãe Catirina. Pois ela não queria um boi qualquer, um alimento qualquer, ela “[...] só queria a língua daquele boi especial, encantado.” (BARBIERI; VILELA, 2014, p. 21).

(19)

206

É nesse ponto que os espaços se reúnem na intriga. Depois de muito andar, o casal chega à festa e Catirina tem a visão do boi de seu desejo.

Figura 4

Com a afirmativa da mulher (“é desse boi que eu quero comer a língua”), Chico parte para a nego-ciação, interrompendo cenicamente a festa. Note-se que a interrupção é cênica, porque esse é o jogo da festa. O leitor está tão demasiadamente dentro da festa que nem percebe. Ele não é ape-nas um observador, mas um brincante, pois está atuando no pacto ficcional do auto. Ao mesmo tempo em que aprende as origens da festa, também participa dela no ato da leitura.

Neste momento do livro, os espaços unem-se, mas a festa suspende-se, pois a negociação do Boi, seguida de seu rapto, impede a continuação. Sem boi não há festa, nem realização do desejo. Ape-nas após o resgate do Boi desfalecido, e de sua ressurreição por força da união da gente, a festa é retomada e os dois últimos atos do auto são representados: o “urrou” e a “despedida”.

O “urrou” é o momento da festa que envolve a união dos brincantes, pois sua continuidade depen-de do reestabelecimento do Boi. Assim, se o “guarnicê” é o momento depen-de reunir os brincantes para Fonte: Barbieri e Vilela (2014, p. 22-23).

(20)

207

afinar os instrumentos e dirigir-se à festa, o “urrou” é a concentração dos brincantes para animar o Boi após a solicitação do curandeiro, como se observa nesta passagem: “Todos se concentraram em volta do boi: os vaqueiros, os índios, os caboclos, o amo, as crianças… e de repente, o boi mu-giu!” (BARBIERI; VILELA, 2014, p. 42). Esse é um momento de pura alegria, pois é uma garantia da continuidade da vida e da festa.

Figura 5

A imagem (Fig. 5) funde-se à cena: o Boi ocupa o centro da prancha, parece estar despertando e urrar com força, como se pode observar pela saída da palavra “Muuuuu” de sua boca – urrando para o alto. Essa palavra é uma referência à linguagem infantil, a criança (de todas as idades) agora atua diretamente na festa – mugindo junto com o Boi.

Logo abaixo, na parte inferior da imagem, surgem mãos que se estendem sobre o Boi. Na parte da esquerda, as mãos nas cores amarela e branca e, na direita, a cor vermelha. Pensando em etnias, o amarelo representa os povos predominantes da Ásia; o branco pode ser visto na personagem do doutor (o europeu); e o vermelho possivelmente representa o curandeiro (o Índio). O lado ca-Fonte: Barbieri e Vilela (2014, p. 42-43).

(21)

208

tivante das cores fica por conta do fundo amarelado, numa provável analogia à luz, à iluminação da alegria de um Boi que é de todas as etnias; assim como à solução do confronto. Na festa da rua, esse momento de conciliação, geralmente, traz a seguinte toada:

Rapaziada, nosso Boi urrou Esse malcriado já se alevantou

Vamos festejar, vamos fazer Festa Viva a todos nós

E viva o doutor curador. (TIÃO CARVALHO apud SAURA, 2008, p. 268).

O desfecho feliz é a continuidade do ciclo. A cura do Boi é uma metáfora da própria festa, que se repete todo ano. Aqui, o devir remete sempre a uma ligação com o passado, com a própria origem do Bumba-meu-boi, ligada aos ritos ancestrais.

A festa sempre “termina” com a toada de “despedida”, e no livro ocorre o mesmo. Algumas toadas são nostálgicas, com temas de adeus, rogando aos santos protetores que se possa brincar nova-mente no ano seguinte e deixando em evidência o amor pela festa. Em o Bumba-meu-boi (BAR-BIERI; VILELA, 2014), o texto entra em afinação com as cantorias métricas da tradição, trazendo a imagem de uma linda festa, de uma festa cíclica que nunca chega ao final. Aqui, a “despedida” é sempre um por vir vinculado à ação do “guarnicê”, por isso é o anúncio de uma chegada:

Foi uma festa linda Como não há outra igual Todo ano se repete

Nunca chega seu final! (BARBIERI; VILELA, 2014, p. 46).

O texto simultaneamente anuncia o final da festa e sua perpetuação, pois nunca acaba, em con-sonância com a imagem (Fig. 6). Ao lado direito, visualizamos a chama baixa da fogueira, que no início da festa era farta e ardente, ao redor da qual os brincantes concentram-se para afinar os instrumentos. Na cena final, os brincantes saltam felizes enquanto a noite vai dando lugar ao dia, como se pode conferir nas tonalidades de cinza da imagem – tons de aurora que irrompem da um lado ao outro da prancha”. No canto superior esquerdo da imagem, temos o clarão do amanhecer e a sombra de uma igreja. Os terreiros e os espaços abertos são locais onde ocorre a festa do Bum-ba-meu-boi, cuja duração, geralmente, vai do anoitecer ao amanhecer. Repetindo-se a cada ano. A cada alvorecer de leitura.

(22)

209 Figura 6

Considerações finais

Neste artigo, depois de uma breve apresentação do auto Bumba-meu-boi, foi apresentada uma análise do livro ilustrado Bumba-meu-boi (2014), de Stela Barbieri e Fernando Vilela. Na obra, a ilustração do auto tem como inspiração o Boi Brilho da Noite, similar aos grupos de boi sota-que da ilha e da baixada maranhense. Os artistas elegeram a preservação da sequência da festa: “guarnicê”, “lá-vai”, o drama de Catirina (que é o auto em si), o “urrou” e a “despedida”. A narrativa conserva a originalidade da tradição sem abrir mão da ressignificação de uma cumplicidade entre narrador e leitor, dos jogos cromáticos, dos recursos verbais e visuais dos múltiplos temas. O mais notável na obra, e que procurou-se evidenciar aqui, é o modo como os artistas oferecem ao leitor não apenas a informação, a história do auto, mas também a experiência da festa, fazendo a pas-sagem do meramente didático ao literário. O livro traz o leitor para a festa, pois cobra dele ade-rência absoluta ao pacto ficcional – não bastar ler a festa, deve-se experenciá-la, fazer parte dela. Fonte: Barbieri e Vilela (2014, p. 46-47).

(23)

210 Referências

Livros

ANDRADE, Mário. Danças dramáticas do Brasil. 2. ed. São Paulo; Belo Horizonte: Itatiaia; Instituto Nacional do Livro; Fundação Nacional Pró-Memória, 1982. Tomo I. p. 23-84.

ARAÚJO, Maria do Socorro. Tu me contas! eu conto!: caracterização do significado do Bumba-meu--boi. São Luís: SIOGE, 1983.

AZEVEDO NETO, Américo. Bumba-meu-boi no Maranhão. 2. ed. São Luís: Alumar, 1997. AZEVEDO NETO, Américo. Festas, fogos, fogueira e fé. São Luís: Estação Gráfica, 2011.

BARBIERI, Stela; VILELA, Fernando. Bumba-meu-boi. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. CARVALHO, Luciana Gonçalves de. A graça de contar um Pai Francisco no bumba-meu-boi do Mara-nhão. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011.

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 2. ed. São Paulo: Global, 2006.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 12. ed. São Paulo: Global, 2012.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: histórias e histórias. 6. ed. São Paulo: Ática, 2007.

REIS, José Ribamar Sousa dos. O ABC do Bumba-meu-boi do Maranhão. 2. ed. São Luís: Fort Gráfica, 2008.

SANTOS NETO, Joaquim Antônio dos; RIBEIRO, Tânia Cristina Costa. Bumba-meu- boi: som e movi-mento. São Luís: Iphan, 2011.

Capítulos de livros - BAKHTIN, Mikhail. Formas de tempo e de cronotopo no romance: ensaios de poética histórica. In: ______. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 7.ed. São Paulo:

(24)

211

Hucitec, 2014. p. 211-362

Dissertações e teses - CHAGAS, Mirian Santos. Tradição popular na literatura infantil e juvenil: lei-turas do Bumba-meu-boi maranhense. Dissertação (Mestrado em Literatura e Crítica Literária)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, São Paulo, 2016.

SAURA, Soraia Chung. Planeta de boeiros: culturas populares e educação de sensibilidade no ima-ginário do bumba-meu-boi. Tese (Doutorado em Educação)- Universidade de São Paulo/USP, São Paulo, 2008.

Jornal - JORNAL ESQUERDA DIÁRIO, 19 de outubro de 2015. Disponível em: www.esquerdadiario. com.br/Festa-do-Boi-entrevista-com-Tiao-Carvalho. Acesso em: 15 jun. 2016

Artigos em periódicos - CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. Cultura popular e sensibilidade romântica: as danças dramáticas de Mário de Andrade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 19, n. 54, p. 57-78, fev. 2004.

Referências

Documentos relacionados

Pressione para acessar a tela do Mapa e para percorrer as quatro páginas de menus do Mapa para alterar as configurações do seu detector. Botões

Programa multiprofissional de cuidados a pacientes com alteração respiratória crônica, que é individualmente delineado para otimizar o desempenho físico e social,

Na necessidade de repensar a sua estrutura, a Igreja Católica reformulou o seu corpo eclesiástico e atribuiu um novo sentido à figura dos missionários e da própria ideia de missão,

Esta mangueira de excesso de vácuo e óxido nitroso, deverá obrigatoriamente ser expelido para fora do consultório, uma vez que o óxido nitroso não pode ser enviando junto com

Cuchilla UltraEdge acero inoxidable Blade UltraEdge stainless steel Lame UltraEdge acier inoxydable Lâmina UltraEdge aço Inoxidável Testina UltraEdge acciaio inossidabile Referencia

Integral, na Escola Estadual do Programa Ensino Integral Profº Adopho Carvalho, em Piracicaba, Diretoria de Ensino - Região de Piracicaba, a docente Christiane de Oliveira

Regina Prado realiza pesquisa sobre o campesinato na Baixada Maranhense e sobre o bumba-meu-boi enquanto festa na estrutura social.. Utiliza referências

Jailson da Costa Silva, Instituto Federal de Educação de Alagoas (IFAL), Brasil • Profa.. Jamira Lopes de Amorim, Universidade Federal Rural do