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RESENHA DE TODOS CONTRA TODOS: O ÓDIO NOSSO DE CADA DIA, DE LEANDRO KARNAL

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Academic year: 2021

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Revista Perspectiva Sociológica, n.º 22, 2º sem. 2018, p. 114-118.

114 RESENHA DE “TODOS CONTRA TODOS: O ÓDIO NOSSO DE CADA DIA”, DE

LEANDRO KARNAL

Walace Ferreira1 Matheus de Noronha Tejo2 Marcos de Menezes Lopes3

RESUMO: Ao longo da obra, o historiador Leandro Karnal se utiliza de diversos argumentos para desmistificar a ideia de que a população brasileira teria como elemento primordial da sua identidade nacional a aversão à violência nas relações sociais. Muito pelo contrário, desde o princípio a nossa identidade foi forjada com violência, sangue e condutas passionais e pessoais em detrimento de condutas racionais e impessoais. Por possuir um caráter ensaístico, este trabalho se utiliza de diversas referências das mais variadas áreas do conhecimento, entre elas destacam-se: Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês que pensou sobre a natureza humana e o governo; Sigmund Freud (1856-1939), médico austríaco e criador da Psicanálise; Hannah Arendt (1906-1975), filósofa alemã e importante pensadora da teoria política; Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), historiador brasileiro que interpretou o Brasil a partir das suas raízes históricas; Gilberto Freyre (1900-1987), escritor brasileiro que se dedicou à interpretação do Brasil sob os ângulos da Sociologia, Antropologia e História; Caio Prado Júnior (1907-1990), historiador que tratou da formação contemporânea do Brasil; Jacob Gorender (1923-2013), cientista social baiano que, dentre vários temas, versou sobre a escravidão; e Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês influente no pensamento sobre a relação entre conhecimento e poder. Para Karnal, no Brasil, a história dos conflitos é versada pela visão conservadora de livrar o nosso paraíso tropical e pacífico dos agitadores influenciados por exemplos e doutrinas estrangeiras numa narrativa dos fatos que oculta um povo igualmente violento em todos os aspectos, desde a vida privada e social até o exercício da cidadania.

1 Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ e Professor Adjunto de Sociologia do CAp-UERJ. 2 Graduando em Ciências Sociais na UERJ.

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Revista Perspectiva Sociológica, n.º 22, 2º sem. 2018, p. 114-118.

115 KARNAL, Leandro. Todos contra todos: o ódio nosso de cada dia. Rio de Janeiro: LeYa,

2017. 143p.

Em Todos contra Todos, Leandro Karnal se vale de uma linguagem acessível a todos que pretendem observar questões históricas e atuais da sociedade brasileira. “Faz muito tempo que penso sobre o ódio, especialmente o que existe no Brasil” (2017, p. 7), diz o autor no primeiro parágrafo do Prólogo. Nada mais atual.

Nesta resenha mostraremos como diversos temas são abordados num livro que, apesar de breve, oferece uma boa perspectiva acerca de questões-chave das Ciências Sociais, de modo que a própria obra constitui-se num bom material para ser usado na Educação Básica, suscitando conhecimento histórico, abordagem sociológica e reflexão crítica.

“Nós x Eles”. Leandro Karnal apresenta diversos exemplos da historiografia brasileira nos quais a violência foi excluída do discurso oficial, sendo tratada como “mera exceção”. O autor também identifica a influência do pensamento maniqueísta do “Nós x Eles” em situações históricas nas quais a violência foi proeminente, como no caso da Intentona Comunista, em 1935, e no golpe militar de 1964. O “Nós” seria constituído pela população brasileira, avessa à violência e arraigada aos valores cristãos, ao passo que o “Eles” é representado pela invasão de doutrinas estrangeiras maléficas à saúde do país.

Ódio, elemento identitário. Segundo o autor, a nossa dificuldade em lidar com o ódio nos leva muitas vezes a uma transferência desse sentimento aos outros, na verdade uma estratégia para não acumularmos dores. O ódio cria uma zona de conforto ao se caracterizar como um autoelogio, ou seja, ao vociferar contra uma pessoa estou reafirmando não ser igual àquela pessoa, que sou superior e melhor do que ela. Porém, o ódio, quando manipulado por pessoas de poder, serve como elemento de união e controle de grandes populações.

Narciso infantil, a realidade adaptada. Karnal deixa claro que o ódio se configura como elemento definidor do nosso narciso infantil. Nossa aproximação da realidade se daria por meio de uma adaptação ao próprio ego. “O mundo deve concordar conosco. Quando não concorda, está errado” (2017, p. 12). Tendemos a seguir quem concorda conosco, a ouvir apenas as opiniões que nos agradam. Com isso, selecionamos os fatos da realidade por meio de uma satisfação psicológica e não através da aproximação crítica.

Pacifismo nacional, a projeção de um desejo. O autor argumenta que a dificuldade que o brasileiro tem de se assumir como um povo violento se deve a um desejo de pacificidade que

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116 desvia o nosso foco dos atos violentos praticados cotidianamente. “Temos mais horror à nossa

imagem de violência do que à violência em si” (2017, p. 46). Assim como o ódio, a violência só possui sentido nos outros e nunca em nós mesmos.

O preconceito é ensinado. O preconceito não opera com lógica matemática e sim pela defesa de uma ideia. O preconceito não é empírico, ele é fruto do senso comum. Para o autor, a relação entre o preconceito e a dominação se desenvolve através da incorporação do preconceito pela própria pessoa que o sofre, de modo que esse convencimento teria como objetivo velar uma dominação sistêmica em nosso país. “Posso fazer isso por meio de bonecas sempre brancas, de propagandas com modelos loiros e de olhos claros (...). Tenho de fazê-lo incorporar a ideia de que cabelo “ruim” no Brasil é sinal de cabelo não liso” (2017, p. 51). O preconceito é ensinado na cultura, tal como a linguagem estigmatizada e pejorativa de que nordestinos são “paraíbas” e que uma ação mal feita é uma “baianada”.

Onde está o nosso preconceito? Para o autor, bastam grupos não heterossexuais ou estrangeiros (principalmente latinos e africanos) saírem dos espaços a eles simbolicamente estabelecidos, como salões de beleza ou trabalhos cobiçados por brasileiros, para todo tipo de manifestação homofóbica e xenofóbica vir à tona.

Paraíso pacifista. Karnal traça um panorama das origens da sociedade brasileira e como, desde o princípio, forjamos nossa identidade nacional com sangue, mas a negamos veementemente e pintamos um quadro idílico de que somos pacíficos e comedidos. Não tivemos guerras civis ou cometemos genocídios. Não somos violentos, preconceituosos ou racistas. A realidade histórica, porém, não sustenta nenhuma dessas afirmações. Entre 1824 e 1845 tivemos várias guerras civis (Abrilada; Cabanagem; Sabinada; Balaiada; Revoltas Liberais; e Revolução Farroupilha). Fomos o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão (Lei Áurea, 1888). Violência e tortura marcaram tanto o Brasil Colônia (decapitação de Zumbi dos Palmares em 1695; esquartejamento de Tiradentes em 1789) quanto o Brasil independente (massacre de Canudos em 1897; a degola como prática comum durante a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul entre 1893 e 1895). Técnicas de tortura foram aplicadas a presos políticos durante os regimes ditatoriais brasileiros, Estado Novo de 1937 a 1945 e Regime Militar de 1964 a 1985.

“O Homem Cordial”. É uma expressão cunhada por Sérgio Buarque de Holanda ao escrever Raízes do Brasil em 1936 para descrever como a sociedade brasileira age nas suas relações e práticas sociais. Diferentemente do que uma leitura superficial e descuidada desta

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117 obra possa induzir, o autor não pensou este termo para se referir à cordialidade da nossa

sociedade no sentido de bondade e/ou pacificidade, muito pelo contrário. A palavra cordial deriva de cordis, termo latino cujo significado é coração, segundo o qual “o brasileiro agiria de maneira passional, e não pacificamente. Sorrir para estranhos, ajudar estranhos, matar estranhos...” (2017, p. 19). O “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda é, portanto, um modo passional de agir, ou seja, um homem avesso a regras, a sistemas unificados, a sistemas impessoais. Segundo Karnal, é uma característica de nossa sociedade colocar a passionalidade e a motivação individual à frente da motivação política, inclusive não separando o “público” do “privado”.

Casa-Grande & Senzala. Uma das interpretações do Brasil é a célebre obra do antropólogo Gilberto Freyre que aborda a escravidão do ponto de vista do diálogo e da coexistência, referindo-se aos pontos em que a Casa-Grande e a Senzala estabeleceram uma negociação. Essa perspectiva entra em contraste com a dos historiadores Caio Prado Júnior e Jacob Gorender que enfatizam o atrito e o enfrentamento. Para Karnal, porém, ambas as perspectivas estão em diálogo, por mais paradoxal que isso possa parecer, pois em uma situação de enfrentamento há tanto consenso e diálogo, quanto coerção e cooptação. Há um padrão nos modelos de violência ocidental, presentes tanto nos genocídios indígenas, quanto nos processos de escravidão, quanto no nazi-fascismo: “uma parte se aproveita bastante de um sistema, uma maioria é conivente com ele e uma minoria constitui o grupo de resistência” (2017, p. 25).

O nosso racismo. O modelo de racismo existente no Brasil é apontado por Karnal como menos explícito do que em outros países, aos moldes do que foi abordado por Oracy Nogueira ao comparar o Brasil com os Estados Unidos, características que dificultam a reflexão sobre a nossa questão racial e abre espaço para práticas controversas, como a “carnavalização do preconceito”, que tenta, através de paródias, transformar a discriminação em comédia, numa clara tentativa de “colocar panos quentes” numa ferida histórica que se perpetua com a negação do problema. O “mito da democracia racial” ainda é uma marca constante do imaginário social brasileiro.

“Duplicidade de pensamento”. Pintamos constantemente um quadro idílico de que nossa origem é ibérica, católica, pacífica e ruim. Junto à negação da violência, ignoramos não só a diversidade de povos, etnias e culturas que contribuíram para a formação de nossa identidade. Também ignoramos os intelectuais e professores que contribuíram para a formação das colônias portuguesas na América, quando salientamos que fomos uma colônia de

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118 exploração que recebeu a escória e os degredados de Portugal. Diferentemente de australianos

– cuja origem remonta à colônia penal de Botany Bay – e estadunidenses – cuja origem remonta à Companhia da Virgínia que leiloava “mulheres de vida ruim” e tinha como propósito explorar as riquezas americanas e monopolizar as rotas do comércio de peles – que não só melhoraram muito suas colonizações, como também têm orgulho de suas origens, nós pioramos muito a nossa. Toda memória é seletiva: “O que nos distingue é uma vontade quase sistemática de apagar a violência do nosso passado. O curioso é que no momento de aceitar aquilo que se revela um fato histórico – a nossa violência – decidimos disfarçar. Uma duplicidade de pensamento” (2017, p. 29).

Após desenhar o nosso quadro social pretérito e atual, Karnal defende que os conflitos seriam mais facilmente tratáveis se admitíssemos a nossa realidade. Somos preconceituosos, intolerantes, violentos no trânsito, na política e até no convívio, pois o número de mortes e atos violentos, tanto pelo instinto de preservação ou pelas divergências quanto pelo descaso social ou pela passionalidade, supera o de muitas guerras. Enquanto a violência não for encarada como algo real em seus diversos aspectos, viveremos o disfarce e a representação do “paraíso tropical” e do “homem cordial”, mesmo à beira de uma guerra civil que não pode ser detectada graças à rejeição da nossa realidade histórica.

Conhecer a própria história é o caminho para qualquer intervenção exitosa, principalmente quando falamos de cultura. Papel fundamental da educação. Daí uma das últimas frases do livro, que estabelece considerável contato entre o nosso passado e o presente polarizado politicamente: “Para quebrar a cadeia do ódio, a primeira tarefa é parar de ensiná-lo às crianças. Interromper esse fluxo de ódio exige interromper a educação do ódio” (2017, p. 136).

REFERÊNCIAS:

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 32. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. Editora Ática: São Paulo, 1992.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. KARNAL, Leandro. Todos contra todos: o ódio nosso de cada dia. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. In: Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, vol. 19, n. 1, 2006.

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