Os atuais desafios brasileiros na área energética fizeram com que as atenções de técnicos, investidores, con-sumidores e imprensa, em geral, se voltassem, momentaneamente, para as possibilidades de importação de gás natural e energia elétrica de nossos vizinhos, de modo a atender, de ma-neira emergencial, a nossa demanda por energia elétrica no curto prazo. A integração regional no setor de ener-gia, no entanto, deve ser considerada como algo muito além da solução para um problema conjuntural e de uma
A Cooperação Energética
Brasil-Argentina
+ Sebastião do Rego Barros + Rodrigo de Azeredo Santos
simples saída para evitar o agrava-mento da crise. Ao negociar com países vizinhos projetos que contri-buem para a ampliação da oferta de energia e a diversificação de sua ma-triz energética, o Brasil não apenas avança, de fato, no equacionamento da crise atual, mas também, na práti-ca, redesenha o mapa do setor energético na América do Sul e im-prime novo ritmo ao movimento de integração física regional com uma visão de longo prazo e de conjunto. Sinal dos novos tempos no relaciona-mento continental, o tema do apro-veitamento dos recursos energéticos que, no passado próximo, causou problemas e desconfianças com nos-sos vizinhos, serve hoje para nos aproximar ainda mais e para aprofundar a integração econômica regional. A evolução da cooperação e do intercâmbio energéticos entre a Argentina e o Brasil, pelo peso dos dois países no continente, representa o maior exemplo do fim da “era dos
adversários” e a consolidação da “era dos sócios”.
Estão vivos na memória das soci-edades brasileira e argentina, inclusive de muitos técnicos governamentais dos dois países que ainda trabalham em órgãos e empresas relacionadas ao setor de energia, os problemas que o aproveitamento de recursos energéticos causaram no relacionamen-to bilateral e no próprio movimenrelacionamen-to de integração sul-americano. Na década de 70, a forte competição entre os regimes militares dos dois países fez com que projetos como Itaipu e o de Usinas Nucleares (Angra, no Brasil, e Atucha, na Argentina) fossem avaliados sob a ótica estratégico-militar, e não apenas de produção de energia. São conheci-das as desconfianças e as graves desa-venças que aqueles projetos causaram, naquele momento, no relacionamento bilateral, o que demandou um enorme esforço de negociação diplomática para que fossem alcançadas as soluções que levaram à implementação definitiva da
O Brasil não apenas avança, de fato, no equacionamento da crise atual, mas também, na prática, redesenha o mapa do setor energético na América do Sul.
hidrelétrica binacional de Itaipu e, mais tarde, com a redemocratização de ambos os países, ao estabeleci-mento da Agência Brasileira-Argenti-na de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), que ser-ve hoje, inclusiser-ve, de exemplo na área da cooperação nuclear e constru-ção da confiança entre países vizinhos. Após o fim do período de “riva-lidades”, houve um hiato entre a pas-sagem da “era dos adversários” para a “era dos sócios”. Evidentemente, a crise econômica que abalou ambos os países ao longo da década de 80 foi fator significativo que emperrou o de-senvolvimento da cooperação bilate-ral, neste e em outros setores. Foi so-mente com a aceleração do processo de integração, mediante o estabeleci-mento do Mercosul, com a estabiliza-ção das duas economias nos anos 90 e com o próprio crescimento da eco-nomia brasileira, que passaram a ser visualizadas mais claramente as van-tagens de projetos energéticos entre
os dois países. O aumento de nossa demanda por energia associada à dis-ponibilidade de oferta energética na Argentina constituiu fator fundamen-tal para que o setor privado, dos dois lados da fronteira, se interessasse em investir em projetos de integração no setor e para que o tema da coopera-ção e da integracoopera-ção energética bilate-ral assumisse uma dimensão de pri-meira importância dentro do que já se tornou uma prioridade da diplo-macia brasileira: a parceria estratégica com a Argentina.
Os exemplos começam a multi-plicar-se. Na área de gás natural, podemos citar a inauguração, em agos-to de 2000, do gasoduagos-to Paraná-Uruguaiana, primeiro projeto de for-necimento de gás natural argentino ao Brasil. O gasoduto, de 1.300km, trans-porta o gás natural da Província de Neuquén e permitirá a exportação ar-gentina de cerca de 3 milhões de m3/ dia. O duto Uruguaiana-Porto Ale-gre, fase posterior do projeto, a ser
Evidentemente, a crise econômica que abalou ambos os paí-ses ao longo da década de 80 foi fator significativo que emperrou o desenvolvimento da cooperação bilateral, neste e em outros setores.
construído ao longo dos próximos anos, permitirá que o gasoduto opere em sua capacidade máxima (15 mi-lhões de m3/dia). Ademais, foi as-sinado protocolo entre os Governa-dores do Paraná e da Província ar-gentina de Misiones referente ao Pro-jeto Energético do Mercosul (PEM). O PEM prevê a construção de Gasoduto Regional, de 1.2 mil km e com origem no sul da Bolívia, de Cen-tral Termoelétrica Regional do lado argentino e nas proximidades de Itaipu, com capacidade de 3.000MW, e de Sistema de Transporte Elétrico para a exportação de energia da Argentina para o Brasil.
Na área de energia elétrica, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) autorizou, em de-zembro de 2000, a importação de 3000MW da Argentina, sendo que 1000MW já estão chegando ao Brasil, e outros 1000MW deverão chegar em maio de 2002. A Câmara de Gestão da Crise de Energia
Elétrica (CGCE) anunciou, entre as iniciativas do “Programa Emergencial de Oferta de Energia”, a compra de outros 1500MW de energia da Argen-tina. O relançamento do projeto da usi-na hidrelétrica biusi-naciousi-nal de Garabi (1800MW), no rio Uruguai, surge como outra possibilidade a ser explo-rada. Garabi foi um projeto debatido e preparado nos anos 80, e sua con-cepção previa uma obra binacional estatal. As mudanças verificadas ao longo dos anos 90 no marco institucional e regulatório do setor elé-trico dos dois países obrigam a uma profunda adaptação do projeto para sua execução pela iniciativa pri-vada, mediante regime de conces-são. Seria a primeira hidrelétrica binacional privada entre os dois países. O caráter pioneiro da cons-trução apresenta uma série de desafi-os na negociação do projeto no âmbito legal e institucional. Garabi, no entanto, traz como vantagem os inúmeros estudos já realizados em
Seria a primeira hidrelétrica binacional privada entre os dois países. O caráter pioneiro da construção apresenta uma série de desafios na negociação do projeto no âmbito legal e institucional.
torno da obra e de sua viabilidade. Mais recentemente, vem sendo estudada a possibilidade de o Brasil comprar a energia elétrica adicional que será pro-duzida com a ampliação da capacidade da hidrelétrica binacional de Yacyretá (Argentina-Paraguai).
A estratégia de cooperação na área energética deve ser desenhada, no entanto, como um verdadeiro in-tercâmbio, uma via de mão dupla. É do interesse não só do Brasil como também da Argentina que o inter-câmbio de energia elétrica entre os dois países se realize tirando pro-veito da estrutura diferenciada e da complementaridade dos dois sis-temas elétricos. A importação de energia elétrica deve ser feita tendo como premissa básica a otimização da operação e da acumulação de nos-sos reservatórios, de modo a permi-tir o intercâmbio de excedentes em condições favoráveis para ambos os países, eliminando-se, assim, o enfoque simplista e pontual de
su-primento argentino para localidades ou regiões específicas no Brasil, desvinculado da melhor utilização de nosso sistema elétrico. Agindo deste modo, a integração energética passa a ser vista como uma política de longo prazo, e não apenas como me-didas emergenciais para solucionar eventuais problemas conjunturais de curto prazo de um dos sócios.
É justamente como política de longo prazo que a cooperação energética Brasil-Argentina deve ser inserida no âmbito da integração re-gional, que ganhou novo impulso des-de a reunião des-de Presides-dentes sul-ame-ricanos, realizada em Brasília em se-tembro de 2000. Um dos marcos nes-sa nova etapa da integração sul-ame-ricana é justamente o lançamento da Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul (vide www.iirsa.org). Tendo em vista o histórico recente do apro-veitamento dos recursos energéticos transfronteiriços e sobretudo o seu
A estratégia de cooperação na área energética deve ser desenhada, no entanto, como um verdadeiro intercâmbio, uma via de mão dupla.
potencial, a atual cooperação no se-tor de energia entre o Brasil e a Ar-gentina representa não só um im-portante motor desta integração eco-nômica e de infra-estrutura de longo prazo, mas também assume um sig-nificado político especial para a integração regional: em sentido
pró-Sebastião do Rego Barros
Embaixador do Brasil na Argentina Secretário Rodrigo de Azeredo Santos Embaixada do Brasil na Argentina
prio e figurado, a maior cooperação nesta área vai energizar a integração regional, dando-lhe, ao lado da integração econômico-comercial e de infra-estruturua física, a base de apoio concreta que lhe completa o sentido e dá vigor como projeto político-diplo-mático de longo alcance.