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A CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO E AS RESTRIÇÕES AOS DIREITOS DOS CONDÔMINOS DELA DECORRENTES DOUTORADO EM DIREITO

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Rubens Carmo Elias Filho

A CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO E AS RESTRIÇÕES AOS DIREITOS DOS CONDÔMINOS DELA DECORRENTES

DOUTORADO EM DIREITO

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PUC-SP

Rubens Carmo Elias Filho

A CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO E AS RESTRIÇÕES AOS DIREITOS DOS CONDÔMINOS DELA DECORRENTES

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito (Direito Civil), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Professor Doutor João Batista Lopes.

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Banca Examinadora

_________________________

_________________________

_________________________

_________________________

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Às minhas princesas, Maria Luísa e Maria Beatriz;

à Cris, minha esposa, nossa rainha, minha parceira, meu apoio e incentivo;

a meus pais, minha inspiração constante; às minhas irmãs, pelo carinho e apoio; a meus sogros, pela compreensão;

aos meus queridos sobrinhos, pela alegria do convívio e do aprender;

aos amigos e meus sócios, pela confiança e compreensão;

à Profª. Regina Toledo Damião que tanto torce por mim.

(5)

Ao meu estimado orientador, Prof. João Batista Lopes, cujas sugestões e incentivo foram indispensáveis à conclusão do presente estudo. Muito obrigado pela oportunidade, presteza, e por toda atenção a mim dispensada.

(6)

O estudo da Convenção de Condomínio e das restrições aos direitos dos condôminos, que dela decorrem, teve como objetivo avaliar qual a fundamentação jurídica para as restrições que impõem obrigações de fazer e não fazer capazes de alterar significativamente o exercício tradicional do direito de propriedade, especificamente no regime do condomínio voluntário e edilício.

Tais restrições, no condomínio, decorrentes de diferentes parâmetros de uso e fruição, e regras de conduta delimitadoras do direito de propriedade, muitas vezes, são questionadas quanto ao critério de validade à luz da Constituição Federal, sob o fundamento de que o direito de propriedade constitui direito fundamental.

Acontece que muitas das restrições desenvolvidas ao longo do trabalho, bastante polêmicas, mas corriqueiras, decorrem de necessidades condominiais ou de diferentes modos de utilização de novas estruturas edilícias, sendo oportuno avaliar se realmente tais delimitações são violadoras do direito de propriedade ou simplesmente ainda não se consolidou um entendimento a respeito do tema, a justificar a pesquisa doutrinária e jurisprudencial que se pretendeu realizar.

O trabalho buscou apresentar as delimitações ao direito de propriedade, no regime condominial, como restrições impostas aos proprietários, sejam eles sujeitos ao regime do condomínio voluntário ou do condomínio edilício, duas expressões do direito de propriedade das mais presentes na sociedade moderna, sendo necessário avaliar como tais restrições são e podem ser impostas, e qual a sua eficácia frente aos condôminos, terceiros e futuros adquirentes.

Para tanto, foram avaliadas as restrições, à luz do conceito de obrigação propter rem e se tal qualificação contribuiria para a exigibilidade das restrições impostas, assim como a forma pela qual as restrições poderiam ser regularmente impostas aos condôminos, na seara do condomínio edilício, mediante sua inclusão na Convenção de Condomínio, ou ainda, na seara do condomínio voluntário, para o qual não existe previsão legal de registro da Convenção Condominial.

O estudo foi desenvolvido em três módulos, sendo o primeiro voltado às questões estruturais do direito de propriedade, suas restrições, e à função social; no segundo, foram desenvolvidos os conceitos e efeitos do condomínio voluntário e edilício; e, no terceiro, adentrou-se na análise das restrições impostas aos condôminos, em diversas situações comuns da vida condominial, de alta indagação, mas que se mostraram legais, quando observadas as normas aplicáveis e em consonância com o contexto social e econômico do condomínio, pautando-se sempre pela função social, pela ética e boa-fé.

(7)

The study of condominium bylaws and its ensuing restraints to building occupants’ rights aims to assess the legal grounds for such restrictions, which impose affirmative and negative covenants capable of significantly altering the traditional exercise of ownership rights, particularly the voluntary co-ownership and multi-ownership condominium systems.

The validity of such restraints on condominium, brought about by different enjoyment and fruition parameters and limitations on ownership rights, is often disputed in light of the Federal Constitution, on the grounds that ownership constitutes fundamental civil rights.

Many quite polemical, however commonplace, restraints addressed in this paper arise from either daily issues in multi-ownership condominia or the different uses of the new shared building facilities. We deem it timely to consider if such restraints indeed impose limitations on ownership rights or rather reveal an incipient understanding on the theme, justifying the research on legal writings and case law intended herein.

This paper attempts to present the limitations to the exercise of ownership rights in property held pro indiviso, such as restraints imposed on the owner in either voluntary co-ownership or multi-co-ownership condominium, two of the most recurring expressions in modern ownership laws. It also assesses what such limitations are, how they are imposed, and what their effectiveness before occupants, third parties and prospective owners can be.

To achieve this, we assess the restraints in light of propter rem covenants and speculate whether such type should require the restraints and how they could be routinely imposed both on occupants of multi-ownership condominium, by means of its due inclusion on condominium bylaws, and on holders of voluntary jointly-owned property, about which the law states no registration procedures for condominium bylaws.

The study is presented in three modules. The first concerns structural questions on ownership rights, its restrictions and social purpose; the second, the definitions and effects of voluntary co-ownership and multi-ownership condominia; the third, an in-depth look at the restraints imposed on occupants and owners, in a range of daily situations of sheer indignation despite its compliance with applicable laws and resonance with the social and economic context in condominia, grounded in social purpose, ethics, and good faith.

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1. DIREITO DE PROPRIEDADE 4

1.1 Conceito 4

1.2 Noção histórica do direito de propriedade 5

1.2.1 Breve notícia histórica da propriedade no Brasil 9

1.3 Objeto do direito de propriedade 11

1.3.1 Elementos constitutivos do direito de propriedade 15

1.3.1.1 Direito de usar 15

1.3.1.2 Direito de fruir 15

1.3.1.3 Direito de dispor 16

1.3.1.4 Direito de reivindicar 16

1.4 Função social da propriedade 18

1.4.1 O abuso de direito 24

1.5 Restrições ao direito de propriedade 26

1.5.1 Hipóteses de incidência de restrição do direito de propriedade em

função de sua destinação social 28

1.5.2 Direito de vizinhança 29

1.5.2.1 Direito de construir 30

1.5.2.2 Uso anormal da propriedade 32

1.5.2.3 Obrigações propter rem 34

2. CONDOMÍNIO

2.1 A diferença entre as modalidades condominiais do condomínio voluntário e o condomínio edilício

2.2 O condomínio como expressão do exercício da função social propriedade 2.3 Condomínio voluntário

2.3.1 Conceito

2.3.2 Natureza Jurídica

2.3.3 Direitos e deveres dos condôminos 2.3.4 Direito de preferência

2.3.4.1 O alcance do artigo 504 do Código Civil

2.3.4.2 Proposta de alteração do disposto no artigo 504 do Código Civil 2.3.4.3 O direito de preferência convencional

2.3.4.4 Cláusulas drag e tag along trazidas do direito societário 2.3.4.5 Proposta de alteração legislativa para permissão de registro da

39

(9)

2.4.1 O condomínio edilício como direito real novo 2.4.2 A Convenção de condomínio

2.4.2.1 Natureza jurídica da convenção de condomínio

2.4.2.1.1 Natureza normativista da convenção de condomínio 2.4.2.1.2 Natureza contratual da convenção de condomínio 2.4.2.1.3 Natureza mista da convenção de condomínio

2.4.2.2 Relevância da natureza da Convenção Condominial, diante da vigência da lei nova – Aplicabilidade do Código Civil de 2002 às Convenções produzidas e registradas antes da sua vigência

2.4.2.2.1 A revogação das normas jurídicas

2.4.2.2.2 Critério de solução de antinomias por Norberto Bobbio

2.4.2.2.3 Irretroatividade das leis

2.4.2.2.4 Os efeitos do Código Civil de 2002 sobre as Convenções de Condomínio elaboradas sob a égide dos artigos 1º a 27 da Lei 4.591/1964

2.4.3 Direitos e deveres dos condôminos

3. AS RESTRIÇÕES CONDOMINIAIS

3.1 As restrições decorrentes de assembleia geral

3.1.1 A fixação do quorum qualificado para determinadas deliberações 3.1.2 Invalidade das deliberações de assembleia

3.1.3 Restrições que podem ser objeto de deliberação em assembleia geral 3.1.4 Proposta legislativa para estabelecimento de prazo prescricional para reclamação sobre deliberação assemblear, mediante a inserção do artigo 1.354-A no Código Civil

3.1.5 A legalidade das restrições aos direitos dos condôminos e a teoria da pluralidade dos direitos limitados

3.2 Restrições trazidas em Convenção de Condomínio

3.2.1 Validade e invalidade das normas previstas na convenção de condomínio

3.2.2 Procedimento para alteração da Convenção de Condomínio

3.2.3 Oportunidade para impugnação das normas previstas na Convenção de Condomínio

(10)

3.4 Supressão de serviços essenciais no caso de inadimplemento das despesas condominiais

3.4.1 Requisitos para a validade da supressão de serviços essenciais

3.4.2 A obrigação de pagamento das despesas de consumo individual e sua qualificação meramente pessoal

3.5 Restrições ao direito de venda de unidades a estranhos (inspiração do direito americano)

3.5.1 As atribuições do registro de imóveis

3.5.2 Condição de aplicação da restrição ao direito de venda 3.5.3 A arrematação do imóvel em hasta pública

3.6 Restrição à locação do imóvel em condomínio edilício

3.7 Restrições decorrentes da segurança (vistoria em veículos, filmagens) 3.8 Restrições ao condômino nocivo ou antissocial

3.8.1 Multa aplicável ao condômino nocivo ou antissocial 3.8.2 A perda da propriedade no ordenamento jurídico 3.8.3 A posição da doutrina, diante da omissão legislativa

3.8.4 A aplicação dos princípios gerais do direito e a função social da propriedade para o afastamento do condômino antissocial

3.8.5 Proposta legislativa para a exclusão do condômino nocivo ou antissocial, mediante a inserção dos §§ 1º a 3º, no artigo 1.337 do Código Civil

3.9 A destinação do imóvel

3.9.1 A destinação da unidade autônoma e a possibilidade de sua alteração unidades hoteleiras e em shopping Center

3.9.1.1 O caso Shopping Center Ibirapuera

3.9.1.2 Notas sobre megacondomínios e suas convenções de condomínio

3.10 Envidraçamento na sacada

3.10.1 Retirada das portas e esquadrias existentes entre a sala e a sacada 3.11 A questão do retrofit (alteração da fachada)

3.12 Alteração da destinação do condomínio

3.12.1 Alteração da destinação de áreas comuns específicas e serviços 3.12.2 Proposta legislativa de alteração da redação do artigo 1.351 do Código

(11)

Código Civil

3.13 Restrição de uso de áreas comuns para empregados e serviçais 3.14 A proteção ao direito da minoria

3.15 Restrições quanto ao uso das vagas de garagem e estacionamento 3.15.1 A possibilidade de alienação e locação da vaga de garagem 3.15.2 Modo de utilização das vagas de garagem

3.16 Vedação ao direito de votar e participar das assembleias ao condômino inadimplente

3.17 Cláusulas de não indenizar

3.18 Repercussão do tempo nas relações jurídico-condominiais

3.18.1 Os comportamentos contraditórios e a sua inadmissibilidade

3.18.2 Aplicação da supressio, surrectio e venire contra factum proprium nas relações jurídico-condominiais

3.19 A arbitragem

3.20 As restrições impostas por leis municipais, estaduais e federais 3.20.1 A lei da vedação ao cigarro no Estado de São Paulo 3.21 Restrições aos condôminos no direito estrangeiro 3.21.1 Direito Espanhol

3.21.2 Direito Argentino 3.21.3 Direito Italiano 3.21.4. Direito Português 3.21.5 Direito Francês 3.21.6. Direito Uruguaio 3.21.7 Direito Suíço 3.21.8 Direito Mexicano

CONCLUSÕES BIBLIOGRAFIA

QUADRO DE NORMAS QUE DISCIPLINAM O CONDOMÍNIO EDILICIO

(12)

INTRODUÇÃO

A experiência da vida em condomínio, nas últimas décadas, ampliou o debate e as implicações jurídicas da aplicação das normas condominiais, em decorrência da implantação de conjuntos habitacionais de grande porte, com numerosas torres e unidades autônomas, bem como pelo desenvolvimento de empreendimentos voltados à renda locatícia.

Centros comerciais, denominados ―Shopping Centers‖, galpões para locação com as mais diversas finalidades, entre outras edificações são construídas mediante a conjugação de interesses de várias pessoas físicas e jurídicas, sendo possível desenvolver tais empreendimentos, sob o regime jurídico do condomínio voluntário.

Outrossim, por meio da incorporação imobiliária, são oferecidos ao público empreendimentos imobiliários, denominados ―condomínios-clube‖, ―megacondomínios‖ e ―condomínios multiuso‖, que conjugam imóveis residenciais, apart-services, unidades hoteleiras, serviços em geral, malls (pequenos centros comerciais), Shopping Center, entre outros, que exigem uma formatação jurídica compatível com a complexidade edilícia, estabelecendo parâmetros de uso e fruição, além de regras de conduta, vistas como indispensáveis para o adequado funcionamento do empreendimento, sem as quais instaurar-se-ia verdadeira balbúrdia no condomínio, com todas as consequências dela decorrentes.

(13)

De idêntica forma, verifica-se a existência de unidades autônomas destinadas à atividade hoteleira e ainda os edifícios de destinação exclusiva, vedada a alteração da destinação, a critério exclusivo de seus proprietários.

Em outros imóveis, são vistas restrições impostas aos condôminos do imóvel, onde é erigido o empreendimento, seja ele regido pelo regime do condomínio edilício ou voluntário. Por exemplo, a impossibilidade de um condômino realizar atividade empresarial que cause concorrência a outro condômino. Vejamos: empresa proprietária de determinado imóvel resolve vender fração ideal localizada para a instalação de outro empreendimento e impõe a obrigação de não permitir que nele se instale atividade que concorra direta ou indiretamente com o alienante.

Por outro prisma, recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos da Apelação Cível 516.142-4/0-00, sendo relator o Desembargador Donegá Morandini, deu validade à deliberação que restringiu o direito de uso de determinadas áreas ao condômino inadimplente, questão altamente polêmica, na medida em que grande parte da doutrina e jurisprudência se posiciona no sentido de ser defesa tal restrição, porque as únicas sanções possíveis aos condôminos inadimplentes seriam aquelas previstas expressamente em lei, como as multas e o impedimento de participar das assembleias.

Outra questão de altíssima indagação no ambiente condominial diz respeito a impedir o uso do bem por condômino nocivo ou antissocial, na medida em que a lei assim também não contemplou, ao contrário do que fizeram algumas legislações alienígenas.

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Diante de todos os parâmetros de uso e fruição e regras de conduta que delimitam o direito de propriedade, acima indicadas, entre outras a serem discorridas ao longo deste trabalho, urge definir se estão em consonância ou não com a Constituição Federal, que não se olvide, garante o direito de propriedade, desde que observada sua função social.

Há que se perquirir como adequar as necessidades condominiais ou as novas estruturas edilícias ao ordenamento jurídico vigente ou, talvez, avaliar se realmente tais delimitações são violadoras do direito de propriedade ou simplesmente ainda não se consolidou um entendimento a respeito do tema. Essas questões parecem ser merecedoras de uma avaliação, ainda mais acurada, sob o ponto de vista doutrinário e jurisprudencial.

Por isso, ao longo deste trabalho, pretende-se apresentar as delimitações ao direito de propriedade, no regime condominial, como restrições impostas aos proprietários, sejam eles sujeitos ao regime do condomínio voluntário ou do condomínio edilício, duas expressões do direito de propriedade das mais presentes na sociedade moderna, sendo necessário avaliar como tais restrições são e podem ser impostas, e qual a sua eficácia frente aos condôminos, terceiros e futuros adquirentes.

Para tanto, importa entender se as obrigações, a que se vinculam os condôminos, podem ser consideradas de natureza propter rem e se tal qualificação pode contribuir para a exigibilidade das restrições impostas, bem como avaliar como tais restrições devem ser prescritas, tanto na seara do condomínio edilício, mediante sua inclusão na Convenção de Condomínio, ou ainda, na seara do condomínio voluntário, para o qual não existe previsão legal de registro da Convenção Condominial.

Por isso, o presente estudo, composto de três capítulos, visa, no primeiro, adentrar nas questões propedêuticas ao direito de propriedade, suas restrições, e à função social; no segundo capítulo, tratar especificamente do condomínio voluntário e edilício; e, no terceiro, aprofundar a análise das restrições impostas aos condôminos, em diversas situações comuns da vida condominial, mas que se mostram, ainda hoje, de alta indagação, sustentando a sua legalidade, desde que sejam observadas as normas atinentes e não caracterize condição abusiva, em detrimento da ética e da boa-fé.

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1. DIREITO DE PROPRIEDADE

1.1 Conceito

O direito à propriedade1 está entre os direitos mais antigos e reconhecidos em toda a humanidade, manifestando-se, nos primórdios das sociedades grega e romana, na religião doméstica, de modo que a família não podia renunciar a esse direito, já que a terra não pertencia a uma pessoa individualmente considerada, mas ―aos que já morreram na família e aos que nela estão por nascer‖2, porque a propriedade formava um só corpo com a família, para venerar o deus doméstico, garantindo a perpetuação do culto.

O direito de apropriação de bens se dá por necessidade humana, com características distintas ao longo dos tempos. Desenvolveu-se nos regimes capitalistas3 de maneira a proteger os bens materiais e imateriais legitimamente adquiridos pela pessoa humana4, possuindo a propriedade um sentido amplo que dá ao proprietário ―[...] a faculdade de usar, gozar e dispor

1 Propriedade e domínio serão aplicadas ao longo do presente trabalho como expressões sinônimas. Convém,

porém, relembrar as lições de Lafayette Rodrigues Pereira: ―O domínio (direito de propriedade no sentido estrito) é o direito real em toda a sua compreensão, ou antes, é a síntese de todos os direitos reais; manifesta-se por todos os atos que o homem pode praticar sobre a coisa corpórea; é a plena potestas, o império

exclusivo e absoluto de nossa vontade sobre a coisa.‖ (Direito das Coisas, p.21). E, mais adiante preleciona:

―O direito de propriedade, em sentido genérico, abrange todos os direitos que formam o nosso patrimônio,

isto é, todos os direitos que podem ser reduzidos a valor pecuniário.

Mas, ordinariamente, o direito de propriedade é tomado em sentido mais restrito, como compreendendo tão-somente o direito que tem por objeto direto ou imediato as coisas corpóreas. Nesta acepção se lhe dá mais geralmente o nome de domínio, consagrado por monumentos legislativos antiquíssimos e de significação mais espiritual e característico.

Domínio é o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea, na substância, acidentes e acessórios.

Desta noção resulta:

1. Que o domínio envolve a faculdade de gozar de todas as vantagens e utilidades que a coisa encerra, sob quaisquer relações;

2. Que é ilimitado e como tal inclui em si o direito de praticar sobre a coisa todos os atos que são compatíveis com as leis da natureza;

3. Que é de sua essência exclusivo, isto é, contém em si o direito de excluir da coisa a ação de pessoas estranhas.

Estes são os caracteres fundamentais do domínio.

Todavia é ele suscetível de limites e restrições que lhe pode impor ou a lei ou a vontade do senhor (dominus).‖

(Direito das Coisas, p. 79). Para Lodovico Barassi, os dois termos atualmente se equivalem, mas o termo mais técnico é propriedade, porque domínio se relaciona com o direito público, cuja expressão não corresponde necessariamente ao exercício do direito de propriedade (Proprietà e Comproprietá, p. 25.)

2 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A Cidade Antiga, Estudo sobre o Culto, O Direito e as Instituições

da Grécia e de Roma, p. 90.

3 ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, Democracia e Capitalismo, p. 18.

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da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.‖ (artigo 1,228 Código Civil de 2002).

Ainda que o Código Civil tenha circunscrito a propriedade aos bens corpóreos, ou seja, às coisas, o artigo 5º, XXI, da Constituição, ao proteger o direito de propriedade, abrangeu também os créditos e toda posição jurídica de valor patrimonial5.

A partir do direito romano, cujo conhecimento entre nós se inicia com a Lei das Doze Tábuas, a propriedade era entendida como um direito tão significativo, absoluto e perene, que o titular do direito de propriedade poderia usar e gozar de sua coisa do céu ao inferno (usque ad sidera usque ad inferos).

O direito de propriedade, todavia, não mais se coaduna, com a visão romana pretérita, de que se vincula e se submete ao poder absoluto do proprietário, passando a ser visto como uma ―relação jurídica complexa, que tem por conteúdo as faculdades de uso, gozo e disposição da coisa por parte do proprietário, subordinadas à função social e com correlatos deveres, ônus e obrigações em relação a terceiros‖6.

Nada obstante,

A experiência mostra que a propriedade varia em função do momento temporal no qual é analisada e do ordenamento jurídico que a consagra. A propriedade ilimitada do século XIX não é igual à propriedade do início do século XXI. A propriedade alemã, apesar da mesma matriz romana, não surge igual à portuguesa. Elementos históricos variados e uma tradição cultural distinta são suficientes para alterar o conteúdo do direito em cada uma destas ordens jurídicas7.

1.2 Evolução histórica do direito de propriedade

A luta pela subsistência, possivelmente, determinou a formação dos primeiros sentimentos sobre a propriedade, na defesa pelas cavernas e outras formas de abrigo, estendendo-se para as áreas de vegetação, em busca do alimento8.

5GOMES, Orlando os define como ―quase-propridades‖ (Significado da Evolução Contemporânea do Direito de

Propriedade, RT 757-717, nov/1998)

6 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado (Coord. Min. César Peluzo), p. 1043. 7 VIEIRA, José Alberto C.. Direitos Reais, p. 666.

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Os primitivos viviam em grupos, sem uma organização formal, inexistindo o princípio da autoridade. Retirando o seu sustento da natureza, carecendo de instrumentos necessários à vida e à proteção, deslocavam-se para onde existisse a caça e a pesca, sem residência fixa, em vida nômade, repartindo o fruto da coleta, em manifestação de propriedade coletiva9.

O poder material sobre as coisas abrangeu o grupo, ligados por laços de parentesco ou convivência duradoura, sendo certo que as ideias iniciais de domínio se assemelhavam à demarcação de território, contudo, diante do nomadismo, inexistia o caráter de perpetuidade sobre a sobredita propriedade.

Fortalecidos os laços familiares, instituiu-se o matriarcado, como germe da autoridade e de organização grupal, daí evoluindo para grupos menores e deslocando-se a autoridade para a pessoa mais velha, que representava o tronco central do qual descendiam as gerações, surgindo o patriarcado, permanecendo o sentido de propriedade coletiva.

A partir do momento em que as sociedades começaram a fixar-se em determinadas áreas, com a evolução cerebral e desenvolvimento da agricultura e pecuária, a propriedade começou a desempenhar um papel importante na estrutura social, perdurando, por muito tempo, a propriedade familiar.

Por sua vez, a particularização da propriedade adveio como consequência natural da dissipação dos grupos ou da divisão dos seus membros, tornando-se mais consolidada quando os indivíduos se estabeleceram definitivamente em determinadas regiões10.

No Direito Romano se encontra a raiz histórica do nosso instituto da propriedade11, que foi individual desde os primeiros momentos.

A propriedade privada em Roma, em síntese, aparece em uma primeira época como uma instituição religiosa12; em uma segunda assume um caráter aristocrático e, na última, chega a transformar-se em propriedade individual privada, reduzida à área do direito familiar,

9 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações Urbanas ao Direito de Propriedade, p. 8. 10 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas, p. 171.

11 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol. IV, p. 81.

12 Como já mencionado, a religião influenciou a preservação da propriedade para o culto e para os antepassados,

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de certa extensão, quando se trata de bem imóvel ou circunscrita a coisas móveis, como os escravos. Na lei das XII Tábuas emerge, já, uma propriedade mais ampla sobre a terra, dentro de Roma, que permite ao titular, desde que seja cidadão romano, ampliar suas faculdades sobre ela13.

A partir do Século I d.c., a propriedade romana adquiriu o caráter de absoluta. Após, Justiniano unificou os conceitos que tratavam da propriedade privada. Foi acentuada a propriedade privada com a conquista de novas regiões, distribuindo terras aos guerreiros, que optavam entre aquelas de melhor qualidade.

Na Idade Média, formou-se o regime feudal com a concentração dos bens em mãos de poucas pessoas, em decorrência do enfraquecimento do poder real em virtude das inúmeras invasões dos povos bárbaros, o que gerou a necessidade de serem instituídos poderes locais para melhor proteção das terras e da população.

A propriedade feudal caracterizou-se basicamente por dois traços principais:

Os homens e as terras formando uma hierarquia, pois um homem depende de outro mais poderoso e a terra depende de outra mais importante. Os reis perderam seus poderosos poderes sobre as terras e os senhores feudais passaram a exercer plenamente seus poderes sobre as suas próprias terras, criando assim um vínculo entre ambos, possuidores e detentores da terra.

Dessa forma, no período medieval, a propriedade caracterizou-se basicamente pela primazia da propriedade imóvel. Dela advinha a riqueza e o poder, pois a subsistência social dependia fundamentalmente de seu cultivo14.

Já neste período, as ordens religiosas vinham reagindo contra a exploração do próximo, contra violência e contra o acúmulo de riquezas, manifestando-se, sob a influência de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, no sentido de que a propriedade constituía um direito individual, sagrado, mas que deveria ser exercido em benefício de todos. Consoante as lições de Santo Tomás de Aquino,

13 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas, p. 172.

14 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações, p. 24; Orlando Gomes assim caracteriza a

(19)

Deus destinou as coisas ao bem-estar de todos os homens, embora não se devesse aceitar a exploração coletiva da propriedade, por ser mais adequada a iniciativa individual: o homem produz mediante um estímulo, que é o remuneratório, e se todos fossem chamados a contribuir em conjunto, para a obtenção de um resultado impessoal e genérico, sem aferição individual, ninguém se esforçaria, havendo negligencia geral, uns esperando os outros, mas a sobra desse ganho pessoal, ou seja, o que ultrapasse as necessidades do proprietário deveria ser colocado para o benefício da comunidade15 .

Na fase moderna, a partir do séc. XVIII, em contraposição ao regime autoritário adotado por algumas monarquias, tais como a francesa, que proclamou o direito da Coroa sobre todas as terras, adveio, na Revolução Francesa, a declaração dos direitos do homem, que, dentre outros princípios, estabeleceu a propriedade como sagrada e inviolável (art. 17), ressuscitando o conceito romanista da propriedade exclusiva16, o que foi, posteriormente, incorporado ao Código Napoleônico (artigo 544), que pretendeu democratizar a propriedade, abolindo privilégios, cancelando direitos perpétuos17, afirmando-se como direito civil, garantindo ao seu titular a mais ampla liberdade, o direito à utilização econômica da coisa, dentro dos limites da regulamentação legal existente18.

Com a Revolução Industrial, propagou-se o liberalismo econômico, no que tange ao afastamento do intervencionismo estatal nas atividades privadas, expandindo a livre iniciativa, com a mais ampla liberdade na aquisição da propriedade, conceito enraizado nos sistemas legais e políticos dos países ocidentais, pelo capitalismo, no qual o conceito unitário de propriedade é restaurado, com exaltação à concepção individualista, de modo que o direito do proprietário é elevado à condição de direito natural, em pé de igualdade com as liberdades fundamentais19.

15 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações, p. 25.

16 MAZEAUD, Henri y Leon; MAZEAUD Jean, Lecciones de Derecho Civil, Parte Segunda, p. 16. 17 PEREIRA, Cáio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. IV, p. 82.

18 WALD, Arnoldo. Direito das Coisas, p. 112. Como já nos manifestamos anteriormente: ―Os conceitos do

liberalismo propagados pelo povo francês prestigiavam a propriedade imobiliária como um dos direitos naturais e imprescritíveis do homem (art. 2o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão),

proclamando a propriedade como ―direito inviolável e sagrado‖, cuja ilimitação prevista no direito romano

foi absorvida pelo Código Napoleônico, que prevê, em seu art. 544, a propriedade como sendo “le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu quón n‟en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements”, consagrado, outrossim, ao mesmo tempo, o princípio da legitimidade da

limitação do Estado sobre a propriedade, ao definir esse instituto, como ―o direito de gozar e de dispor das

coisas de modo absoluto, contanto que isso não se torne uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos‖.

(ELIAS FILHO, Rubens Carmo. As despesas do condomínio edilício, p. 45).

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Em sentido diametralmente oposto, implementou-se o marxismo que objetivou a socialização da propriedade, tornando propriedades exclusivas do Estado,

A terra, o subsolo, as águas e os bosques. Pertencem ao Estado os meios básicos de produção na indústria, na construção e na agricultura, os meios de transporte e de comunicação, os bancos, os bens dos estabelecimentos comerciais, de serviços públicos, empresas organizadas pelo Estado, o fundo imobiliário fundamental das cidades, assim como outros bens necessários para cumprir as funções do Estado20 .

Esses princípios que já não se sustentam, tendo-se instituído na grande maioria dos países o regime capitalista, e, consequentemente, o sistema da propriedade privada.

Após a Segunda Guerra Mundial, acentuou-se o fenômeno da ―socialização do direito‖, ―tendo-se em vista, de um lado, o desenvolvimento da teoria do abuso do direito e, de outro, o sentido de proteção ao mais fraco, como técnica de restabelecimento do equilíbrio social‖21, abandonando-se a concepção do direito de propriedade como um direito absoluto e individualista, para se dizer que a propriedade tem uma função social, ou, mais ainda, a propriedade é uma função social22, encontrando, atualmente, ―um ponto de relativo equilíbrio entre o liberalismo exacerbado do século XVIII [...] e o marxismo que defendia a abolição da propriedade privada‖23.

1.2.1 Breve notícia histórica da propriedade no Brasil

Como o liberalismo do século XIX reconheceu amplamente os poderes do proprietário só admitindo excepcionalmente a intervenção na propriedade alheia, tal conceito viu-se empregado no artigo 179, n. 22, da Constituição Imperial Brasileira de 1824, que garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude, salvo quando existisse interesse público, hipótese em que o cidadão seria previamente indenizado do valor da propriedade, o que foi repetido na Constituição de 1891, a qual inaugurou a República em nosso país, mantendo a característica da propriedade de direito absoluto, nos moldes do Código Napoleônico, porque,

20 Artigo 11, da Constituição Russa, de 07.10.77 21 PEREIRA, Cáio Mario da Silva

.Condomínio e Incorporações, p. 29.

22 AREAN, Beatriz A. Derechos Reales, vol. 1, p. 235.

(21)

por conveniências políticas, não interessava aos latifundiários uma noção mais social do direito de propriedade24.

A Constituição de 1934 já salientou em seu artigo 113, n.17, o caráter social da propriedade frisando que esse direito ―não poderá ser exercido contra o interesse social e coletivo‖, enquanto a Carta de 1937 relegou para a legislação ordinária a regulamentação do conteúdo e dos limites do direito de propriedade (art.122, n. 4).

A Constituição de 1946, não obstante tenha garantido o direito de propriedade, assegurando indenização justa e prévia, em caso de desapropriação (art. 141, § 16), permitiu a intervenção do Estado no domínio econômico (art. 146), condicionando o uso da propriedade ao bem-estar social, possibilitando que lei ordinária viesse a promover justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos (art. 147).

A Constituição de 1967, no governo militar, profundamente modificada pela Emenda Constitucional n.1/69, garantiu o direito de propriedade, salvo em caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social (art. 152,§ 22). Trouxe garantia aos autores de inventos industriais e de obras literárias e científicas (art. 153, §§ 23 e 24). No art. 150, fixou metas de ordem econômica, entre elas a ―função social da propriedade‖. Pela primeira vez, foi usada a expressão ―função social‖ para dispor a respeito da necessária coexistência entre os interesses do proprietário e da sociedade (arts. 157, III, e 160, III), como princípio de ordem econômica e social, não sendo elevado ao nível de garantia fundamental do cidadão. O princípio era aplicado apenas para a propriedade privada25.

A Constituição de 1988 garante o direito de propriedade, observada a sua função social, ressalvadas as hipóteses de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização (art. 5º, XXII, XXIII e XXIV), assegurando aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, às marcas, nomes de empresas e outros signos distintivos (art. 5º, XXIX).

24 PRADO, João Adelino Moraes de Almeida. A Função Social da Propriedade em face da Constituição Federal

1988, p. 36.

(22)

Faz menção expressa a função social da propriedade ainda no art. 170, III, que trata dos princípios gerais da ordem econômica, no art. 182, § 2º, quando fala a respeito da política urbana26 e também quando fala da política agrícola e fundiária, no art. 184 e no art. 186, onde expressa claramente que:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Enfim, como bem sintetiza Arnoldo Wald:

A evolução do direito de propriedade, diretamente vinculado às condições econômicas e políticas do momento, oscilando entre a exclusividade romanista e a dispersão ou superposição medieval, ora com amplas garantias para o seu titular, ora dependendo do interesse social representado pela vontade estatal. É, assim, um dos conceitos mais maleáveis do direito, adaptando-se sempre às contingências do momento, como verdadeiro instrumento do equilíbrio social, procurando conciliar as exigências, muitas vezes antagônicas, da segurança e da justiça, dos interesses coletivos e individuais27.

1.3 O objeto do direito de propriedade

Pode ser objeto do direito de propriedade tudo que seja suscetível de apropriação, coisas corpóreas, móveis e imóveis28, observadas as restrições previstas no ordenamento jurídico, sendo ainda controvertida a questão sob o ponto de vista da apropriação de bens incorpóreos29.

Nada obstante, como o artigo 5º, XXI, da Constituição, ao proteger o direito de propriedade, abrangeu também os créditos e toda posição jurídica de valor patrimonial.

26 A regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, o Estatuto da Cidade (Lei n.10.257, de

10.07.2001), impôs uma série de obrigações ao proprietário de imóvel urbano, conforme a dicção do § único, do artigo 1o: “as normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” visando a ordenação dos espaços habitáveis, para a garantia da qualidade de vida dos cidadãos.

27 WALD, Arnoldo. Direito das Coisas, p. 115 28 SANTOS JUSTO, A. Direitos Reais, p. 219

(23)

Cumpre assinalar que os bens móveis e imóveis têm tratamento jurídico diverso, compatível com sua conformação, assim como os bens intelectuais são tutelados de forma específica, não se aplicando, para eles, a teoria dos direitos reais30.

Como já anteriormente exposto, a propriedade não é apenas uma instituição jurídica, mas objeto de estudo da economia, da sociologia, da política, da filosofia, sendo certo que, em grande medida, ponderam Diez-Picazo e Antonio Gullon31, a propriedade e sua regulação jurídica não são mais do que uma superestrutura das ideias sociais, políticas e econômicas que em um período determinado movimentam as nações, de modo que uma definição legal da propriedade está sempre influenciada por um ambiente histórico em que é formulada.

Neste sentido, o Código Napoleônico é expressão do movimento liberal que deflagrou a Revolução Francesa, tendo disposto, em seu artigo 544, que a propriedade é ―O direito de gozar e de dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e pelos regulamentos.‖, redação também utilizada pelo Código Civil Italiano de 1865 (artigo 436).

Foi bastante criticado o exagero da adjetivação ―do modo mais absoluto” para o direito de gozar e dispor das coisas, porque o que é absoluto não admite graus32, tratando-se de verdadeira retórica do liberalismo, além de trazer no mesmo dispositivo, proibições ao direito de propriedade que se afirma absoluto.

A qualificação do direito de propriedade como absoluto, porém, consoante as lições de Francesco Gazzoni33, não decorre da ilimitação dos poderes inerentes à propriedade, mas ao fato de a propriedade não estar mais vinculada aos encargos e limitações impostas pelo senhor feudal, no pretérito.

30 Os direitos reais somente podem recair sobre coisas determinadas, conforme as lições de Edmundo Gatti.

Teoria General de los Derechos Reales, p. 74.

31 DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN Antonio. Instituciones de Derecho Civil, Derechos Reales, p. 104. 32 MONTEIRO, Washington de Barros. Direito das Coisas, p. 85.

33 GAZZONI, Francesco. Manuale de Diritto Privato

(24)

O Código Civil Espanhol, no artigo 34834, por exemplo, definiu a propriedade como o direito de gozar e dispor de uma coisa, sem outras limitações que as estabelecidas em leis, não tendo utilizado o pleonasmo acima indicado, assim como o Código Civil Português, que ao tratar do ―Conteúdo do direito de propriedade‖, prescreve ―O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”., redação semelhante à do artigo 832, do Código Civil Italiano de 194235, do artigo 2.51336 do Código Civil Argentino, entre outros.

Na mesma linha de raciocínio, o Código Civil Brasileiro de 1916 atribuiu o proprietário ―o direito de usar; gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha‖. e o Código Civil de 2002, no mesmo sentido do antigo, no artigo 1.228, estabeleceu: ―O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha‖.

Nada obstante, de fato, o direito de propriedade é absoluto37 dentro do âmbito resguardado pelo ordenamento jurídico, sendo o mais amplo e extenso, tanto que a ele é atribuída a oponibilidade erga omnes38 e, ainda, o caráter de plenitude39. Nas palavras dos irmãos Mazeaud,

O absolutismo do direito de propriedade se afirma não somente por sua oponibilidade contra terceiros, mas também com relação ao seu titular, é um direito excludente (I) e individual (II); em relação aos poderes que confere: é

34 Art. 348. La propiedad es el derecho de gozar y disponer de uma cosa, sin más limitaciones que las

establecidas en las leyes. El propietario tiene accion contra el tenedor y el poseedor de la cosa para reivindicarla.

35 Art. 842, do Código Civil Italiano: “Il proprietario há diritto di godere e dispore delle cose in modo pieno ed

esclusivo, entro i limiti e com l´osservanza degli obblighi stabiliti dall´ordinamento giuridico

36 Art. 2513 do Código Civil Argentino: “Es inherente a la propiedad el derecho de posser la cosa, disponer o

servirse de Ella, usarla y gozarla conforme a un ejercicio regular.”

37 Beatriz Arean, seguindo as ideias de Edmundo Gatti, após discorrer a respeito das diversas definições de

―absolutez‖, sustenta que o domínio (a propriedade) é absoluto porque é o único direito real que permite a

seu titular fazer da coisa o que quiser, usar e gozar dela como melhor lhe aprouver, alterar sua substância, até o extremo de poder destruí-la, alterar a sua destinação dando a ela a que considere mais adequado às suas necessidades, dentro do marco legal e desde que não atente contra os direitos de terceiros, a ordem pública, a moral e os bons costumes. (AREAN, Beatriz. Derechos Reales, Vol. 1, p. 248).

(25)

um direito total (III) e soberano (IV); em relação à sua duração, é um direito perpétuo (V)40.

O direito de propriedade constitui o núcleo dos direitos reais, de modo que todos os direitos reais da propriedade decorrem, os quais correspondem a modificações ou limitações dela.

Bastante elucidativas, em arremate, as lições de Orlando Gomes:

A propriedade é um direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto.

Direito absoluto também é porque confere ao titular o poder de decidir se deve usar a coisa, abandoná-la, aliená-la, destruí-la, e, ainda, se lhe convém limitá-lo, constituindo, por desmembramento, outros direitos reais em favor de terceiros. Em outro sentido, diz-se igualmente, que é absoluto, porque oponível a todos. Mas a oponibilidade erga omnes não é peculiar ao direito de propriedade. O que lhe é próprio é esse poder jurídico de dominação da coisa, que fica ileso em sua substancialidade ainda quando sofre certas limitações.

Por último, seu caráter de direito absoluto se manifesta mais nitidamente no aspecto real de poder direto sobre a coisa com a qual se distingue das outras relações jurídicas.

O direito de propriedade é perpétuo. Incluindo a perpetuidade entre seus caracteres, significa-se que tem duração ilimitada, e não se extingue pelo não-uso.

O aspecto pessoal do direito de propriedade revela-se no jus prohibendi, que consiste no poder de proibir que terceiros exerçam sobre a coisa qualquer senhorio. Por esse motivo, diz-se que é um direito exclusivo.

Tem ainda, como característica a elasticidade, pois pode ser distendido ou contraído, no seu exercício, conforme se lhe agreguem ou retirem faculdades destacáveis.

Considerada na perspectiva dos poderes do titular, a propriedade é o mais amplo direito de utilização econômica das coisas, direta ou indiretamente. O proprietário tem a faculdade de servir-se da coisa, de lhe perceber os frutos e produtos, e lhe dar a destinação que lhe aprouver. Exerce poderes jurídicos tão extensos que a sua enumeração seria impossível.

O direito de propriedade é assegurado na Constituição, salvo o caso de desapropriação, até por interesse social41.

40 MAZEAUD, Henri y. MAZEAUD, Leon Jean. Lecciones de Derecho Civil

, Parte Segunda, p. 35. No mesmo

sentido: ―Encontrando-se em mãos do proprietário todas as faculdades inerentes ao domínio, o seu direito se diz absoluto ou pleno no sentido de poder usar, gozar e dispor da coisa da maneira que lhe aprouver, podendo dela exigir todas as utilidades que esteja apta a oferecer, sujeito apenas a determinadas limitações impostas

no interesse público‖ .(GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol., p. 219).

(26)

1.3.1 Elementos constitutivos do direito de propriedade

Tratando, especificamente, do conteúdo do direito de propriedade, vários atributos decorrem de seu conteúdo, que se resumem na trilogia romana do jus utendi, fruendi et abutendi, acrescentando-se o poder de reaver a coisa injustamente possuída por outrem42.

Analisadas outras legislações, de mesma inspiração latina, como a italiana, francesa e a portuguesa, é possível verificar que, de forma analítica, a propriedade tem sido definida pela reunião dos direitos dos direitos de usar, gozar, dispor e reivindicar43.

1.3.1.1 O direito de usar

A faculdade de usar enseja colocar a coisa a serviço do titular sem alterar-lhe a substância, servindo-se da coisa, ou terceiro, de forma geral, lembrando, sempre, que o uso se subordina às normas de boa vizinhança e é incompatível com o abuso do direito de propriedade, questões a serem aprofundadas ao longo deste trabalho. Assim, tratando-se de uma casa, poderá nela morar, porém, nada impede que modifique seu destino e utilizá-la como depósito ou como comércio, se ao proprietário parecer mais conveniente, desde que não exista uma restrição administrativa ou convencional que assim proíba44, ou decorrentes da propriedade horizontal, que é objeto do presente estudo.

1.3.1.2 O direito de fruir

A faculdade de gozar envolve a percepção de frutos, naturais e civis, ou seja, extrair da coisa benefícios e vantagens. O direito aos frutos, previsto no artigo 1.232 do Código Civil, é uma das modalidades do gozo da coisa, todavia, os frutos e demais utilidades podem

42Apropriadas as lições de Melhim Namem Chalhub: ―O direito de propriedade contempla uma fase interna e

outra externa; na face interna, os direitos elementares que compõem o direito de propriedade são o direito de usar (jus utendi), o de fruir (jus fruendi) e o de dispor (jus abutendi), enquanto na face externa o direito de propriedade encerra o de exclusão, ou seja, o direito que tem o titular da propriedade de excluir quem quer que seja dos limites em que é assegurada a senhoria sobre a coisa, como, por exemplo, o direito de retomar a

coisa de quem injustamente a detenha.‖ (Direitos Reais, p.43).

43Como afirma Caio Mário da Silva Pereira: ―Se não é perfeita a definição, melhor noção não é apresentada.‖

(Instituições de Direito Civil, vol. IV, p.67)

(27)

ser atribuídas a outrem, por título jurídico especial, seja pelo uso, habitação, usufruto, locação e também na posse, na hipótese prevista no artigo 1.214, do Código Civil45.

1.3.1.3 O direito de dispor

A faculdade de dispor (jus abutendi) envolve o poder de consumir o bem, alterando-lhe sua substância, alienar ou gravar. Não corresponde à prerrogativa de abusar da coisa, destruindo-a gratuitamente. Nem mesmo no Direito Romano se admitia a ideia de uso antissocial do domínio, situação atualmente inconcebível à luz do bem-estar social46.

Corresponde, de toda forma, ao poder mais abrangente, porque somente aquele que puder usar e gozar o bem, poderá dele dispor, seja a título oneroso ou gratuito, permitindo-se, quando viável, também o desmembramento. Pode abandonar ou destruir a coisa, salvo as hipóteses legais, como o tombamento.

1.3.1.4 O direito de reivindicar

A faculdade de reivindicar envolve uma proteção específica, que se concretiza por meio da ação reivindicatória, porque de nada valeria ao proprietário ter o poder de usar, gozar e dispor do bem ou da coisa, se não lhe fosse permitido o direito de reaver de quem injustamente se apossasse47.

O direito de propriedade, como acima mencionado, encontra-se salvaguardado constitucionalmente (art. 5º, XXII, da Constituição Federal) e, igualmente as suas faculdades, que não podem, portanto, ser usurpadas, nem pelo Estado48, nem pelos particulares, salvo as situações decorrentes da observância da função social49, condição inerente ao exercício da

45 MONTEIRO, Washington de Barros. Direitos Reais, p. 95. 46 RODRIGUES, Silvio. Direito das Coisas, p. 75.

47 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas, p. 212. 48 Como característica do Estado Constitucional

49 A este respeito, verifique-se os instrumentos de política urbana, traduzidos pelo Estatuto Social, decorrente do

§ 4º, do artigo 182, da Constituição Federal, tais como a edificação e parcelamento compulsórios, o IPTU progressivo e desapropriação com pagamento de títulos da dívida pública (artigos 5º a 8º, da Lei

10.257/2001). Como elucida Renata Lourenço Ferreira dos Santos: ―Os instrumentos adotados pelo texto

(28)

propriedade (art. 5º. XXIII, da Constituição Federal) e aquelas decorrentes da autonomia da vontade, liberdade individual50, igualmente protegida pela Carta Magna.

Nesse sentido, as leis de interesse público, ou ainda as normas disciplinadoras do regime privado, prestigiarão o direito de propriedade e não o afetarão salvante os limites próprios do texto constitucional.

Na medida em que nosso ordenamento assegura a propriedade, como princípio positivado, condicionado ao interesse coletivo, a propriedade individual não deve ser ignorada e sim compatibilizada sob pena de restar ferido nosso próprio regime de Estado Constitucional. Para tanto, é inconcebível uma exegese formal do exercício dominial, pois o valor liberdade tem de ser compatibilizado com o da igualdade, teleologicamente orientado em face dos casos concretos.

Do exposto, não raro incorrerão, repisa-se, ingerências e limitações ao exercício do domínio, pelos princípios jurídicos que o informam em graus mais abstratos, pela já asseverada porosidade deste para com os de ordem pessoal, no âmbito da esfera proprietária, que o instrumentaliza51.

Neste sentido, as faculdades inerentes ao proprietário, separadamente ou em conjunto, é preciso sempre ter em mente, expressam um direito fundamental do cidadão e, com base nesta premissa, há que se verificar a legalidade das leis que venham sobre o domínio interferir.

Cabe, porém, deixar claro que a relação que se estabelece entre o proprietário e a coisa não se faz mais de forma unitária (teoria realista), ou seja, mediante o mero estabelecimento da pertinência da coisa ao proprietário, mas reorientada pelos valores advindos da Constituição Federal, pois mesmo os direitos reais decorrem de relação jurídicas intersubjetivas.

destinação concreta para a sua propriedade. São mecanismos destinados a impedir e inibir o processo da especulação imobiliária nas cidades, de conferir aos imóveis urbanos ociosos uma destinação voltada a beneficiar a coletividade. Isto é, o proprietário de imóvel urbano para garantir o seu direito de propriedade já deveria ter conferido a este uma função social. Na falta dessa destinação, o Poder Público municipal está constitucionalmente capacitado para tornar social a função da propriedade urbana.‖ (Efetivando a função social da propriedade através de instrumentos de política urbana, p. 10)

50 Característica do Estado Liberal 51 ARONNE, Ricardo

(29)

1.4 Função social da propriedade

Em busca do exercício do direito de propriedade de maneira a atender a sua função social, até mesmo em Roma existiam limitações ao direito de propriedade, de caráter privado e público, disposições relativas à distância entre as construções, altura e conservação das edificações etc52, que tinham como finalidade o interesse social.

Desde o Brasil colônia, como noticia Jeferson Carus Guedes, já se verificava a preocupação com a utilização produtiva da terra, na medida em que a Lei 601, de 1850 (Lei de Terras), disciplinou a utilização das terras, estabelecendo que seriam arrecadadas pela Coroa aquelas que, dadas em concessão, não tivessem sido aproveitadas. ―Em síntese, deve destacar-se que já naquele remoto tempo se registrava a exigência de ‗cultura‘ da terra como indicativo do interesse do particular sobre a fração de terra a legitimador da aquisição‖.53

O Código Civil de 1916, de inspiração romana, em seu artigo 524 estabelecia: ―A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua‖, mas, ao mesmo tempo o seu artigo 526, ao tratar da extensão do direito de propriedade, já contemplava:

A propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior, em toda a altura e em toda a profundidade, úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor-se a trabalhos, que sejam empreendidos a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse algum em obstá-los.

A seu respeito, já comentava Clovis Bevilacqua:

O proprietário do imóvel estende seu direito à superfície, inclusive o espaço aéreo correspondente, e ao sub-solo, em prolongamento vertical da porção de solo, correspondente à superfície. Mas a propriedade é noção econômica, a sua extensão deve corresponder à sua utilidade; é também um phenomeno social, deve adaptar-se às necessidades da vida collectiva. Sob o influxo da sociologia e da economia política o direito imprime à propriedade a forma, que ela deve ter. Por isso, ainda reconhecendo que a columna atmospherica acima do solo e as camadas do sub-solo pertencem ao proprietário do terreno, a lei civil estabelece limites a esse direito, tomando por medida a utilidade54.

52 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações urbanas ao Direito de Propriedade, p. 20. 53 GUEDES, Jefferson Carus

. Função social das propriedades, p. 348.

(30)

A observância à função social da propriedade, como retro mencionado, viu-se introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, na Constituição de 1934, sendo certo que as anteriores, de 1824 e 1891, já garantiam o direito de propriedade, resguardado o interesse público.

Cumpre destacar que a função social da propriedade, prevista no artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, está contemplada no artigo 1.228, §§ 1º e 2º, do Código Civil vigente, que dispõe:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas

finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer

comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

A propriedade deverá ser exercida de tal maneira que não prejudique o direito de terceiros, não impondo, porém, obrigações apenas ao proprietário mas, ―vai dirigido ao proprietário, ao não-proprietário, ao juiz, ao administrador e, naturalmente, ao legislador‖55 uma vez que para a aplicação imediata dos preceitos constitucionais, de que a propriedade deve atender ao fim social, cada ente civil, no exercício de suas funções, deve exigir o cumprimento da função social da propriedade, inclusive o particular, que deve abster-se de atentar contra o meio ambiente, relações de consumo, patrimônio cultural, artístico, genético, mesmo que não exista lei específica.

Contudo a observância da função social não deve levar à conclusão de que toda propriedade nela se esgota, como pretendia Duguit, que, consoante sua teoria, deveria impor a todo proprietário, a obrigação de empregá-la de acordo com sua finalidade social,

(31)

aumentando a interdependência social56, a caracterizar o proprietário como um encarregado de um serviço social.57.

Nada obstante, a função social da propriedade, ou melhor, consoante os ensinamentos de José Oliveira Ascensão, a ―função social dos direitos reais‖, não é vista apenas como forma de afastar o abuso de direito, mas por suas finalidades sociais, e, para tal função, existem intervenções limitadoras e impulsionadoras,

[...], no primeiro caso a lei pretenderia apenas manter cada titular dentro de limites que se não revelassem prejudiciais à comunidade, enquanto que no segundo interviria activamente, fomentaria, impulsionaria, de maneira a que de uma situação de direito real derivasse um resultado socialmente mais valioso58.

Porém jamais seria possível que, mediante as intervenções do Poder Público, toda a propriedade cumprisse sua função social, assim como não se tem condições de definir todos os meios de exercício do direito de propriedade, em consonância com o interesse social. Afastada a ilusão liberal da coincidência dos interesses individual e coletivo, privilegia-se ―a necessidade de assegurar que a propriedade não seja alheada do benefício social‖59.

A garantia da autonomia pessoal é, logicamente, o objecto primário da atribuição dos bens em termos reais. E essa falharia se a conduta do sujeito fosse minuciosamente determinada pela lei ou pelos órgãos públicos, sob a alegação de garantia da função social. O que se pretende antes de mais é a colaboração com a liberdade dos indivíduos. As intervenções em nome da função social devem ser prudentes, prevendo os casos em que os titulares se desviaram flagrantemente das necessidades gerais, ou em que estas se apresentem de modo premente60 .

No ordenamento jurídico pátrio, a função social está presente, de maneira expressa, em diversos ordenamentos jurídicos, não apenas quando se trata da propriedade imobiliária, mas nas propriedades, como se verifica, por exemplo, na própria Lei das Sociedades Anônimas ao exigir que o administrador exerça as atribuições que a lei e o estatuto lhe

56 MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988, p. 96. 57 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade, p. 61.

58 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Reais, p.192. 59 Ibidem, p.190.

(32)

conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa61.

Construída uma nova visão da propriedade, à luz de sua destinação social, apropriadas as lições de Stéfano Rodotà, citadas por Francisco Eduardo Loureiro62,

para quem a função social manifesta-se concretamente na relação jurídica da propriedade sob os seguintes aspectos: a) privação de determinadas faculdades; b) complexo de condições para o exercício de faculdades atribuídas ao proprietário; c) obrigação de exercer determinadas faculdades.

A propriedade privada contemporânea, como se verifica, apresenta novos contornos sustentados em dois princípios: - a faculdade do proprietário de exigir a abstenção dos sujeitos passivos na ingerência da coisa e o seu dever de transformar o seu bem, em prol do coletivo, dando-o uma função que atenda ao interesse social, de caráter subjetivo, decorrente das próprias características da propriedade63, de conteúdo dinâmico, como já se pronunciava Gustavo Tepedino, mesmo antes da vigência do Código Civil atual:

A propriedade pode ser estudada em dois aspectos, o estrutural e o funcional. A dogmática tradicional e, na sua esteira, o Código Civil brasileiro, preocupa-se somente com a estrutura do direito subjetivo proprietário. O art. 524 do C. Civ., com efeito, evitando defini-la, dispõe sobre os poderes do titular do domínio, fixando o aspecto interno ou econômico, caracterizador do senhorio, e outro externo, o aspecto propriamente jurídico da estrutura da propriedade. O primeiro aspecto, interno ou econômico, é composto pelas faculdades de usar, fruir e dispor. O segundo, o jurídico, traduz-se na faculdade de exclusão das ingerências alheias.

Estes dois aspectos, o interno e o externo, compõem a estrutura da propriedade, o seu aspecto estático.

Já o segundo aspecto, mais polêmico, é alvo de disputa ideológica, refere-se ao aspecto dinâmico da propriedade, a função que desempenha no mundo jurídico e econômico a chamada função social da propriedade64.

61 Artigo 154, da Lei 6404/76

62 LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa, p. 128.

63 ARONNE, Ricardo. Propriedade e Domínio, p. 190. Merece nota a lição de Pietro Perlingieri, trazidas por

Renan Lotufo: ―A estrutura da propriedade realiza a função muito complexa de solidariedade, que de um

ponto de vista moderno é completamente diversa daquela egoística, individualista, do século XIX. Com o tempo esta função mudou a estrutura do instituto da propriedade, de modo que ela não constitui mais um exclusivo direito subjetivo, mas vem a ser sempre mais uma situação de poder-dever, cujo aspecto negativo, limitativo, obrigatório assume uma postura prevalente.

A propriedade privada é uma situação jurídica subjetiva complexa, composta não só de aspecto positivo, de intervenção do sujeito privado, mas de aspecto negativo, de intervenção do Estado ou de terceiro sobre a sua situação jurídica. O Estado não é mais garantista, mas intervencionista.‖(A Função Social da Propriedade na Jurisprudência Brasileira, p. 343).

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O direito real, não se pode olvidar, deve ser exercido para atender o interesse individual, mas direcionando-se ao interesse social, ―em uma relação de concorrência conjuntiva, de coincidência, de equilíbrio sistêmico, sob pena de fazer perturbações na função‖65, função social, no sentido de utilidade, funcionalidade ou finalidade, estabelecendo uma cláusula geral, de conteúdo genérico, capaz de impor obrigações de fazer e de não fazer ao proprietário, a ser avaliada, em cada circunstância específica, de acordo com o contexto sócio, econômico, cultural e regional.

O proprietário de imóvel está sujeito à nova conformação do seu direito de propriedade, dada a necessária compatibilização de concepções66 e dos diversos mandamentos, que incidem sobre a propriedade, tais como as normas administrativas, urbanísticas, empresariais (comerciais) e civis, sob fundamento das normas constitucionais67, estando a função social da propriedade ―instrumentalizada e exteriorizada na CF – através do art. 184, ao prescrever a possibilidade de haver a desapropriação dos imóveis rurais que não cumpram a sua função social – e no Estatuto da Cidade – aplicando-a quanto às terras urbanas‖68.

O proprietário de imóvel rural, por exemplo, está sujeito ao cumprimento dos índices de produtividade, vinculado ao módulo rural, estabelecidos em conformidade com a localização do imóvel (artigos 184 a 187, da Constituição Federal), sob pena desapropriação para fins de reforma agrária, observadas ademais as normas do Estatuto da Terra, o qual, além de buscar níveis adequados de produtividade, alinhados com o bem-estar dos proprietários e trabalhadores das terras, também se preocupa com a conservação dos recursos naturais (artigo 2º, inciso I, alínea ―c‖, da Lei 4.504/1964)69.

Por sua vez, a comprovar que a apuração do cumprimento da função social dependerá da análise sócio-econômico, cultural e regional, quando comprovado o legítimo esforço do proprietário para cumprir os níveis de produtividade exigidos, o que não se obteve por

65 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas, p.195. 66 TAVARES, André Ramos

. Curso de Direito Constitucional, p. 705

67 DA SILVA, José Afonso

. Direito Constitucional Positivo, p.248

68 NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao Pensamento Jurídico e à Teoria Geral do Direito Privado, p.

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Referências

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