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Direito e ciência em ação: uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal

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Academic year: 2021

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Direito e ciência em ação: uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal

Daniele Martins dos Santos

1 – Introdução

Esse trabalho começa com a incômoda ideia de que a autoridade das leis não é um atributo a ela inerente como quer acreditar o professor de Introdução ao Estudo do Direito. A autoridade da lei a que nos referimos é o atributo que lhe dá a sensação de obrigatoriedade, de generalidade. Essa sensação ultrapassa questões tipicamente formais de validade, eficácia e vigência da norma para chegar a sua efetiva observância pelo público destinatário. Tal ideia surgiu quando do estudo de um procedimento conhecido como controle de constitucionalidade, através do qual o Supremo Tribunal Federal pode aferir a compatibilidade entre uma lei ou qualquer ato normativo infraconstitucional e a Constituição.

A partir desse mecanismo, o STF afere não só a constitucionalidade a partir do contraste com a Constituição, mas também a partir de elementos axiológicos, mormente princípios constitucionais.

“Os princípios passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins.

Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas(...) Estes são os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete.” (Barroso, 2002: 29)

Esses princípios constitucionais podem estar expressamente previstos na Constituição ou estar implícitos, mas são sempre abertos, não contendo uma descrição precisa sobre seu conteúdo, servindo, portanto, de convite para a entrada de componentes totalmente heterogêneos no âmbito da ação judicial.

Podemos dar exemplos como o princípio da dignidade humana, princípio da liberdade de associação etc. O conteúdo desses princípios será preenchido pelo órgão julgador, de acordo com a ação judicial. No caso do controle de constitucionalidade, o STF poderá, dependendo do pedido posto em juízo, reduzir ou dilatar a extensão do direito a liberdade de associação, por exemplo, de acordo com o que for levado em conta no julgamento.

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2 – Controle de Constitucionalidade: um encontro não marcado com a heterogeneidade.

O que esse sistema permite é que o STF construa parâmetros de validade das normas, de maneira que a autoridade das leis que têm sua constitucionalidade colocada em jogo depende da maneira como aquele Tribunal lida com as informações que chegam até ele. Para que a lei siga seu caminho e exerça sua pretendida autoridade, ela precisa que o STF afirme sua compatibilidade com a Constituição em um processo sujeito ao aparecimento de questões de toda espécie. Assim, muito embora os Ministros repitam o mantra da tecnicidade, repetindo que lhes cabe somente realizar um teste de compatibilidade, o que vemos, na prática, é a aparição de toda a sorte de influências, como a própria composição da Corte, a conjuntura política e econômica, o excesso de processos, uma variedade enorme de documentos, discursos, pessoas etc. A ligação desses elementos heterogêneos força e obriga a decisão judicial, de maneira que não se trata de uma mera consecução de “justiça plena”, através da aplicação da lei ao caso concreto, mas de um processo trabalhoso que envolve uma série de interligações.

O que vemos no mecanismo de controle de constitucionalidade é o desvelamento da rede traçada pela lei. Vemos que essa rede, em quase sua totalidade, é feita de buracos. Para agir, ou ter autoridade como dissemos acima, uma lei precisa de um ambiente muito bem estruturado, repleto de atores em plena consciência de suas faculdades. Uma lei que venha a ser editada pelo Poder Legislativo e promulgada pelo Poder Executivo, mas que não esteja devidamente preenchida por tais elementos heterogêneos, não terá êxito na sua circulação. No dizer popular ouviremos que “a lei não pegou”.

Em alguns casos em que a “lei não pega”, o procedimento de controle de constitucionalidade pode servir de instrumento para que uma lei fraca, que nasceu sem a força suficiente para reunir os elementos necessários para sua circulação, seja fortalecida e possa seguir seu caminho, ou, se não conseguir reunir aliados suficientes, seja declarada inconstitucional e tenha sua eficácia paralisada.

As ações diretas de inconstitucionalidade, nome formal que se dá as ações que tratam da constitucionalidade dos atos normativos, não realizam uma mera comparação. Os Ministros do STF fazem e desfazem, num movimento de determinação do conteúdo dos princípios e valores ditos constitucionais, para ao final construírem a decisão implícita na sentença. O

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Direito que vemos em ação no STF não transporta informações, mas as formata. Descrever os elementos trazidos para um processo judicial traz à tona a maneira como as “verdades” são construídas e os compromissos normativos e sociais envolvidos.

Apenas num local onde seja possível identificar um consenso acerca dos valores contidos numa norma é que nascerá a dita autoridade legal, que, portanto, não lhe é inerente. Ela só aparece quando toda a rede em que a lei circula está preparada e estabilizada para suportar seu trânsito.

3 - Ações Diretas de Inconstitucionalidade

Nesse caso específico de controle de constitucionalidade há um exercício atípico de jurisdição. A jurisdição, em geral, implica na solução de um litígio ou situação concreta a ser solucionada mediante a aplicação da lei pelo órgão julgador. Nas ações direitas de inconstitucionalidade o objeto é o pronunciamento sobre a própria lei. Diz-se que nesse processo não há partes, já que não trata de situações jurídicas individuais.

Nas causas debatidas no âmbito do STF o Ministro Relator do processo ou o Presidente do Tribunal poderão convocar a realização de audiência pública para esclarecer questões ou circunstâncias de fato de interesse público relevante (arts. 13, XVII, e 21, XVII, do RISTF).

A primeira audiência pública foi realizada em 2007 e até hoje foram realizadas quinze.

O Regimento interno do STF estabelece ainda que caberá ao Ministro que presidir a audiência selecionar as pessoas que serão ouvidas, divulgar a lista dos habilitados, determinar a ordem dos trabalhos e fixar o tempo de que cada um disporá para se manifestar (art. 154, parágrafo único, III, do RISTF). Qualquer pessoa pode se inscrever em audiências públicas, contudo, sua inscrição está sujeita a aprovação do Ministro-relator. Percebemos que o instituto da audiência pública constitui-se em terreno fértil à análise dos elementos heterogêneos trazidos ao julgamento.

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, apesar de não estabelecer critérios rígidos para a aprovação das participações, deixando muito espaço à discricionariedade, dá o tom da escolha ao se referir a pessoas com experiência e autoridade na matéria em discussão (Shapin, 2010). Assim, percebemos que o instituto da audiência pública constitui-se em terreno fértil à análise de relações entre o jurista e o cientista.

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No palco das audiências públicas, o STF conduz a massa de suas investigações nas fronteiras do conhecimento científico, onde as questões são incertas, contestadas e fluidas, e não sobre um pano de fundo de um conhecimento científico largamente estabelecido. As diversas exposições trazidas por cientistas de órgãos públicos e particulares colocam em evidência, lado a lado, a controvérsia científica e a autoridade legal em construção. Descrever os elementos trazidos por essa audiência pública para o julgamento pode ajudar a pensar os tribunais como titulares das múltiplas funções de intérpretes, reguladores, consumidores e coprodutores da ciência e tecnologia.

4 – Um estudo de caso: audiência pública referente ao novo marco regulatório da gestão dos direitos autorais.

A audiência que escolhemos foi convocada pelo ministro Luiz Fux, relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5062 e 5065. Nessas ações o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) e a UBC (União Brasileira de Compositores) contestam as alterações introduzidas pela Lei nº 12.853/2013, novo marco regulatório da gestão dos direitos autorais, na antiga Lei nº 9.610/1998. A alteração mais significativa foi a caracterização como de “interesse público” das atividades desempenhadas pelo Ecad e a consequente intervenção reguladora do Poder Público. Os autores das referidas ações afirmam que o diploma legal impõe tutela estatal direta e permanente sobre o aproveitamento econômico dos direitos autorais, cuja natureza seria, em sua opinião, eminentemente privada, além de introduzir no ordenamento jurídico normas desproporcionais e ineficazes para os fins a que se destinam, o que violaria diretamente princípios e regras constitucionais concernentes ao exercício de direitos privados e à liberdade de associação. O ponto nodal para os autores da referida ação de declaração de inconstitucionalidade (ADI) seria a declaração da sujeição dos direitos autorais aos princípios da livre inciativa e da livre concorrência, não podendo ser o simples fato de a gestão deles se dar de forma coletiva causa suficiente para determinação do interesse público dos efeitos patrimoniais deles decorrentes.

O Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot Monteiro de Barros, afirmou, em parecer apresentado, que a Lei nº 12.853/2013 teria apenas buscado aprimorar o sistema de arrecadação e distribuição dos direitos autorais. A lei teria se orientado pelos princípios da transparência, da eficiência, da idoneidade, da isonomia, da segurança e da prestação de contas. Para o representante do Ministério Público Federal, o regime dessa gestão coletiva

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não é, em absoluto, puramente privado, e isso justifica certo grau de interferência pelo Poder Público.

A audiência pública aconteceu na sala de sessões da Primeira Turma do STF e teve a entrada franqueada ao público em geral (como acontece em todas as audiências públicas). Além disso, ela foi transmitida ao vivo pela TV Justiça. Os vídeos ficam disponíveis no canal da TV Justiça no Youtube. Após a realização da audiência ela é transcrita e todos os ministros recebem um documento contendo a transcrição.

Ao abrir a sessão, o Ministro Luiz Fux esclarece: “(...) a audiência pública é novel instrumento de um processo que se democratizou. Porquanto, por vezes, questões jurídicas não se resolvem somente no plano técnico, elas também precisam espelhar aquilo que representa a expectativa da comunidade que vai ser destinatária da decisão judicial. O novo controle de constitucionalidade que visa a observar a liberdade de associação e os bons resultados dessa forma de tutela, hoje, até da própria Constituição Federal, que se profira uma solução razoável, uma solução justa, uma solução adequada ao público destinatário dessa decisão judicial. É por essa razão então que nós marcamos essa Audiência Pública. Um instrumento magnífico da democracia, de um processo popular participativo para ouvir aqui, dentro do possível, os especialistas da matéria (...).”

Foram admitidos a manifestar-se na audiência pública que aconteceu no dia 17 de março de 2014:

1 - Senador Humberto Costa (PT-PE), relator do Projeto de Lei que deu origem à norma;

2 - Compositor Fernando Brant, presidente da União Brasileira de Compositores;

3 - Senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), autor do requerimento de criação da CPI dos Direitos Autorais;

4 - Roberto Corrêa de Mello, presidente da Associação Brasileira de Música e Artes (ABRAMUS);

5 - Glória Braga, superintendente executiva do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad);

6 - Deputada Federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ), relatora na Câmara dos Deputados do projeto de lei que originou a Lei 12.853/13;

7 - João Luiz Woerdenbag Filho (Lobão), compositor, escritor, músico instrumentista, cantor e produtor musical;

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8 - Marcos Alves de Souza, diretor de direitos intelectuais da Secretaria Executiva do Ministério da Cultura (Minc);

9 - Maestro Luis Cobos, presidente da Federação Ibero-latinoamericana de Artistas, Intérpretes e Executantes (Filaie);

10 - Aderbal Freire Filho, ator e diretor teatral;

11 - Roberto Frejat, músico que faz parte do Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música (GAP);

12 - Marcelo Campello Falcão, presidente da União Brasileira de Editoras de Música (UBEM);

13 - Paulo Estivallet de Mesquita, diretor do Departamento Econômico do Ministério das Relações Exteriores;

14 - Roberto Menescal, músico e compositor;

15 - Ronaldo Lemos, membro do Conselho de Comunicação do Congresso Nacional e Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS);

16 - Gesner Oliveira, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-presidente do Conselho Administrativo de Direito Econômico (Cade);

17 - Sylvio Capanema de Souza, advogado e ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ);

18 - Marcílio Moraes, escritor, dramaturgo e roteirista, representante da Associação de Roteiristas e da Associação Brasileira de Cineastas (Abrace);

19 - Victor Gameiro Drummond, advogado representante do Instituto Latino de Direito e Cultura e da Associação de Gestão Coletiva de Artistas e Intérpretes do Audiovisual do Brasil (Inter Artis Brasil);

20 - Luiz Sá Lucas, representante do Ibope;

21 - José de Araújo Novaes Neto, músico e compositor, advogado especializado em direito autoral e representante, no Brasil, de dois órgãos internacionais de defesa dos autores, o Conselho Internacional de Autores e Música e a Aliança Latinoamericana de Autores. Juca Novaes é também diretor da Abramus (Associação Brasileira de Música e Artes);

22 - Carlos Ragazzo, superintendente-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE);

23 - Paula Mafra Lavigne, representante da UNS Produções Artísticas e UNS E OUTROS Produções e Filmes;

24 - Denis Barbosa, representante do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual.

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Na abertura da audiência o ministro esclareceu que não haveria espaço para debate e que este deveria ser travado durante a reunião do Plenário, quando do julgamento da ação. O julgamento, até a finalização desse texto, ainda não foi marcado. A função dessa audiência, como ressalta o relator, é a de “colher informações” que poderão ser utilizadas no debate a ser realizado no momento do julgamento.

Podemos reunir alguns exemplos da diversidade dos argumentos trazidos para a audiência, demonstrando assim a heterogeneidade necessária à conformação do julgamento:

O compositor Fernando Brant acusou os meios de comunicação de massa, em conjunto com o Poder Público e o Congresso Nacional de um conluio destinado a “massacrar” os autores e compositores. Disse ainda que a lei anterior (Lei nº 9.610/1998) demorou quase dez anos para ser aprovada pelo Congresso, enquanto a nova lei teria sido aprovada em uma semana, num processo “estranhamente célere”.

Muitos expositores falaram na repercussão externa da nova legislação. O próprio Fernando Brant ressaltou que a lei anterior estava de acordo com as modernas práticas internacionais adotadas no campo de direitos autorais, o que não acontece com a atual. Glória Braga afirmou que o Ecad segue normas e orientações internacionais para fixar preços e critérios de cobrança, além de regras de distribuição de valores arrecadados. Jandira Feghali ressaltou que, ao elaborar o texto, houve preocupação de cumprir a Constituição brasileira e todos os acordos internacionais que tratam de direito autoral. Luis Cobos afirmou que a nova lei é objeto de preocupação na comunidade criativa internacional, na medida em que seus dispositivos podem deteriorar as relações entre artistas e criadores, por um lado, e usuários e cidadãos por outro. Paulo Estivallet de Mesquita afirma que a lei não criou nada de inédito ao instituir o exercício da supervisão estatal na gestão de direitos autorais e não viola nenhum acordo ou reponsabilidade internacional, sendo compatível com as normas existentes em muitos países, principalmente os europeus. Denis Barbosa disse que, nos Estados Unidos, existem três órgãos que exercem a mesma função, também privados, mas permanentemente sujeitos à inspeção judicial.

Glória Braga se lembrou da Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada para apurar denúncias de irregularidades que teriam ocorrido naquele órgão e afirmou que o objetivo foi

“demonizar” a gestão coletiva de direitos autorais para “aprovar lei autoritária, intervencionista e inconstitucional”. Afirmou ainda que a referida CPI não teria comprovado

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a prática de qualquer ato ilícito pela gestão coletiva de direitos autorais. Colocou ainda a questão: “A quem interessa isso tudo?”.

Marcos Alves de Souza lembrou que os direitos autorais são a maior fonte de reclamações no Ministério da Cultura e que antes da nova lei o Estado não tinha como dar respostas a tanta demanda.

Lobão declarou: “Eu não fui informado sobre a lei. Fui pego de surpresa, resolvi fazer um vídeo e o publiquei na internet, dizendo que gostaria de saber sobre o que se tratava a lei”.

Declarou ainda: “Peço ao Supremo que olhe por nós porque essa situação é desproporcional e calamitosa”.

Roberto Frejat declarou surpresa pelo fato de as entidades que deveriam proteger e representar os músicos entrarem com a Ação Direta de Inconstitucionalidade contra uma lei que os próprios músicos pediram para o Congresso aprovar e que foi aprovada por unanimidade.

Marcelo Campello Falcão fala desconfiado do “modo açodado e sem qualquer avaliação operacional” que a lei teria sido aprovada. Afirma ainda que “foi estranha essa forma irresponsável como a lei tramitou urgentemente, sendo aprovada e sancionada em tempo recorde, sem qualquer consulta à sociedade civil e sem a opinião dos principais atores e destinatários finais da norma”.

Paula Lavigne afirmou que na elaboração da nova lei o Legislativo teria negociado o texto final com os diversos setores envolvidos. Declarou explicitamente: “Todos foram ouvidos”.

Gesner Oliveira apresenta um laudo técnico com dados sobre um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a pedido do Conselho Administrativo de Direito Econômico (CADE), indicando ser contraproducente a intervenção estatal na área.

Sylvio Capanema questionou a competência estatal para solucionar o problema dos direitos autorais, diante da “secular tradição de ineficiência do Estado brasileiro”.

Conforme pudemos observar dos recortes tirados das falas dos expositores, as informações colhidas são de toda a sorte. Desde laudos técnicos, como o apresentado pelo representante da Fundação Getúlio Vargas, até acusações de perseguição (Glória Braga), lamentações (Lobão), preocupações com a legislação estrangeira, desconfianças etc.

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Após a conclusão da audiência e a subsequente transcrição das exposições, o documento formado reúne vários “dados científicos”, anseios, paixões, crenças etc. Entendemos que a participação do público destinatário é essencial porque o poder judiciário, assim como o poder legislativo, precisa que esse público perceba e aceite a autoridade da lei.

Como dissemos, a autoridade não nasce com a lei. Ou ela deve estar preestabelecida, ou ela deve ser conformada em momento posterior ao seu nascimento. A autoridade será preestabelecida quando existe uma rede de elementos que comporta o trânsito da lei. Nesses casos, dificilmente veremos a propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade. Por outro lado, a autoridade pode ser conformada após seu nascimento quando aliados fortes o bastante conseguem preencher os buracos deixados durante o seu nascimento. Esses buracos podem, em alguns casos, ser preenchidos por uma decisão judicial que consiga reunir os elementos heterogêneos necessários.

Em alguns casos, como esse a respeito da nova lei de direitos autorais, os autores da ADI querem demonstrar que essa lei não possui autoridade, e, portanto, deve ser retirada do ordenamento jurídico. Por outro lado, como pudemos observar na audiência pública, há quem acredite que a lei traz as mudanças necessárias para o avanço da regulação dos direitos autorais, sendo resultado de um trabalho coletivo do Poder Legislativo e da classe de artistas, tendo, portanto, todos os elementos necessários para configurar sua autoridade.

O Ministro-relator organizou a audiência pública de tal forma que ficaram explícitos argumentos contrários e favoráveis à nova lei. A classe artística, o poder legislativo, o poder executivo, as entidades de classe, ou seja, grande parte dos interessados pôde participar e mostrar seu ponto de vista. O ponto que se quer chegar aqui é que não se trata, como afirmou o relator, de colher informações para se chegar a uma decisão, mas de decidir se a lei possui autoridade suficiente para circular. A discussão acerca da sua constitucionalidade passa assim a ser um instrumento útil para a construção do fortalecimento/derrocada da rede necessária para circulação da lei em jogo. No momento do debate e da decisão os ministros poderão se servir daquelas informações e utilizá-las como instrumento de legitimação da decisão tomada.

Luiz Fux afirmou que se deve proferir uma decisão justa, razoável, adequada ao público destinatário da decisão judicial. Se na audiência vemos manifestações opostas desse público, qualquer decisão que seja tomada poderá levar o título de justa/razoável/adequada.

O STF tem duas opções. Se decidir pela inconstitucionalidade, a lei será declarada nula e morrerá. Se ele decidir que a lei é constitucional, ela terá então todos os elementos jurídicos

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necessários à sua validade, vigência e eficácia. Elementos que, a rigor, sempre estiveram com ela. Mas esses elementos jurídicos, por si só, não garantem que a lei vai “pegar”. A decisão favorável do STF será mais uma aliada da lei, que deverá continuar lutando pela sua existência e circulação, através da afirmação de sua autoridade.

5 – Conclusão

A autoridade da lei não nasce junto com ela. A mera edição de uma lei através de um processo democrático não garante que ela será observada pelos seus destinatários. É comum ouvirmos que uma lei “não pegou”. Juridicamente não há explicação para esse fenômeno, já que todas as leis são dotadas de coercibilidade. Mas pudemos perceber que é necessário muito mais do que um processo legislativo formal para que uma lei “pegue”. É preciso reunir os elementos heterogêneos que conformam as informações que a lei pretende transportar. No caso em que estudamos, o STF é chamado a se pronunciar sobre a compatibilidade da lei com a Constituição Federal. Nesse pronunciamento o STF vai reunir diversos argumentos que vão fortalecer ou destruir a lei. Mas mesmo que o STF decida pela constitucionalidade da lei, não há garantias de que a lei será incorporada pelo seu público destinatário, já que existe uma controvérsia. Haverá apenas a constituição de mais alguns elos na cadeia. A audiência pública realizada no Supremo reúne muitos elementos importantes sobre o assunto, sendo, portanto, um local privilegiado para análise da controvérsia.

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