Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 042531
Relator: LOPES DE MELO Sessão: 28 Maio 1992
Número: SJ199205280425313 Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
FURTO FURTO QUALIFICADO VALOR INSIGNIFICANTE
CIRCUNSTANCIAS QUALIFICATIVAS
Sumário
I - Se a coisa furtada for de valor insignificante, não ha lugar a qualificação do facto como furto qualificado, de acordo com o artigo 297, n. 3, do Codigo Penal, ainda que se verifique alguma das circunstancias previstas no n. 1 do mesmo preceito.
II - Valor diminuto e aquele que não exceder uma unidade de conta processual avaliada no momento da pratica do facto (7000 escudos ate 31.12.91 e 10250 escudos a partir de 1.1.92 - n. 1 do artigo 6 do Decreto-Lei 212/89, de 30 de Junho, e Decreto-Lei 14-B/91, de 9 de Janeiro).
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1- Relatorio
O arguido A foi julgado no 3 Juizo Criminal de Lisboa, por acordão de 16 de Outubro de 1991 (folhas 76 a 78), tendo sido condenado, pela autoria material de um crime tentado de furto qualificado, definido nos artigos 296, 297, ns. 1, alinea g) e 2, alinea d), 298, n. 3, 22, 23 e 74, n. 1 e sua alinea d), todos do Codigo Penal, na pena de tres (3) anos de prisão.
Do mesmo acordão recorre o referido arguido apresentando a motivação de folhas 96 a 99 com as seguintes conclusões:
A)- O recorrente e toxicodependente ha cerca de 10 anos e, a quando da sua detenção, encontrava-se a efectuar um tratamento na Comunidade
Terapeutica de Aires do Pinhal, onde era tido como pessoa bastante dinamica
e onde começava a fazer progressos significativos.
B)- No fim do mes de Maio de 1991, o recorrente teve de se deslocar
temporariamente a Lisboa, ficando então instalado nas Instalações do Centro das Taipas. As instalações do Centro de Dia do Centro das Taipas estavam encerradas durante os fins de semana.
C)- Foi nesta altura que, vendo-se sem qualquer protecção e sem ninguem para o apoiar, e atravessando uma altura particularmente dificil para qualquer toxicomano em tratamento que o arguido tomou uma dose excessiva de
"Serenal", medicamento prescrito pelo medico, o que lhe provocou um estado de inconsciencia total.
D)- Foi neste estado que foi detido, não se recordando, na altura de nada do que se tinha passado, visto so ter recuperado a consciencia apos a detenção.
E)- O tratamento a que se submeteu deverá, imperativelmente, prosseguir.
Pelo menos e essa a conclusão que se pode retirar da leitura do relatorio clinico do medico psiquiatra que o assistiu, segundo o qual, e essencial para a recuperação do Aristides que ele regresse a comunidade terapeutica.
F- Alias, a sua vaga em Aires do Pinhal continua em aberto, apenas se aguardando o seu regresso, conforme se pode verificar pelo relatorio elaborado pela tecnica do I.R.S..
G)- Os problemas de toxicodependencia e a forte possibilidade de recuperação do recorrente com o tratamento, parece não terem sido levados em conta a quando da aplicação da pena de tres anos de prisão.
H)- Assim, e mesmo de duvidar que tenham sido analizados os dois referidos relatorios, uma vez que estes so passaram a constar do processo a partir do dia 28 de Outubro de 1991, quando o julgamento se realizou no dia 9 de Outubro de 1991, embora tivessem sido entregues no dia 8 de Outubro de 1991.
I)- Foi por sua livre vontade que o recorrente aceitou realizar o tratamento a que foi submetido e, a sua situação de recluso so podera vir a prejudicar a sua situação clinica.As prisões não se podem considerar o melhor local para um toxicodependente que decide tratar-se, pelo contrario.
J)- E do interesse da sociedade que o toxicodependente consiga tratar-se mesmo que para isso se relegue para segundo plano a execução da pena de prisão aplicada, especialmente quando o arguido decide colaborar no
tratamento. Pelo menos, e isto que se pode retirar da leitura do Preambulo do Decreto-Lei 430/83, e do artigo
36, n. 2, do mesmo diploma.
K)- Antes de tudo deve ser levada em conta a tendencia reconciliadora do nosso direito criminal. E neste contexto suspender a execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, nos termos do artigo 48 do Codigo Penal de modo
a permitir-lhe a continuação do tratamento.
O Ministerio Publico, na resposta de folhas 103 a 104 a aludida motivação, sustenta que o recurso não merece provimento.
2- Fundamentos e decisão:
2.1- Corridos os vistos legais e realizada a audiencia publica, cumpre decidir.
So recorre o arguido, o qual limita o ambito do seu recurso.
Com efeito, aceita que foi bem condenado pela autoria material do crime tentado de furto qualificado, previsto e punido nas disposições legais ja indicadas no relatorio do presente acordão.
Tambem aceita que a respectiva pena seja doseada nos tres (3) anos de prisão estabelecidos no acordão recorrido.
Mas pretende que a execução dessa pena de prisão devera ser declarada suspensa, nos termos do artigo 48 do
Codigo Penal.
2.2- A materia de facto provada e a seguinte:
No dia 9 de Junho de 1991, pelas 15 horas e 45 minutos, o Arguido A abeirou- se do veiculo automovel de matricula ..., propriedade de B, que se encontrava estacionado na Rua ..., Lisboa, visando apoderar-se de quaisquer objectos ou valores que se encontrassem no seu interior.
Assim, munido da tesoura que lhe foi apreendida e se encontra examinada nos autos de folhas 19, cujo teor se da por reproduzido, o arguido conseguiu
forçar a fechadura da frente do lado esquerdo, conseguindo assim abri-la e penetrar no interior de tal viatura.
Local onde então procedeu a desmontagem de duas colunas de som de marca
"Walibam", que ja se encontravam sobre os bancos da viatura, altura em que foi surpreendido por um agente da P.S.P. impedindo assim o arguido de se apoderar de tais objectos.
Tais colunas de som encontram-se examinadas a folhas
23, cujo teor aqui se da por reproduzido, tendo-lhes sido atribuido o valor de 4000 escudos.
Ao apoderar-se de tais colunas, com a intenção de as fazer suas, bem sabia o arguido que estas lhe não pertenciam e que estava agindo contra a vontade do seu legitimo titular, so não se tendo apoderado das mesmas por circunstancias alheias a sua vontade.
Sem profissão, andava o arguido em tratamento da sua toxicodependencia no Centro das Taipas e no "Companheiro", em Lisboa, aonde comia e dormia e lhe era cedido mil escudos por dia para gastos pessoais.
Não tem quem quer que seja a seu cargo.
A partir de 1982, ja respondeu e foi condenado multiplas vezes por factos qualificados. Estava ha tres meses em liberdade condicional quando praticou o
furto descrito.
2.3- O tribunal "a quo" qualificou os factos provados como integrando a autoria material do crime tentado de furto qualificado, previsto e punido nos artigos 296;
297; ns. 1, alinea g) e 2, alinea d), 298, n. 3, 22, 23 e 74, n. 1, e sua alinea d), todos do Codigo Penal.
Ao proceder assim, o referido tribunal ignorou o disposto no n. 3 do citado artigo 287, onde se preceitua que "se a coisa for de insignificante valor, não havera lugar a qualificação" (confere os acordãos da Relação de Evora de 10 de Abril de 1984, in Colectanea Jurisprudencia, ano IX, tomo 2, pagina 307, e do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de
1985 no Boletim do Ministerio da Justiça, n. 343, pagina 182).
Na hipotese destes autos, no ano de 1991, a coisa furtada (na modalidade de tentativa), e manifestamente de "insignificante valor", pois o seu valor global e somente de 4000 escudos (valor das duas colunas de som examinadas) -
inferior portanto a 7000 escudos.
Para o furto, abuso de confiança, roubo, dano burla, abuso de cartão de
garantia ou de credito, incendio, regras de construção, poluição, transportes, condução perigosa e peculato, no Projecto de Ferreira de 1991 da "Revisão do Codigo Penal", artigo 202, alineas a), b) e c), respectivamente, considera-se:
- "Valor elevado: aquele que exceder 50 unidades de conta processual penal avaliadas no momento da pratica do facto",
- "Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder
200 unidades de conta processual avaliadas no momento da pratica do facto", - "Valor diminuto: aquele que não exceder uma unidade de conta processual penal avaliada no momento da pratica do facto".
Sendo de 7000 escudos ate 31 de Dezembro de 1991 e de
10025 escudos a partir de 1 de Janeiro de 1992 - no n. 1 do artigo 6, do decreto-lei n. 212/89, de 30 de Junho, e o decreto-lei n. 14-B/91, de 9 de Janeiro) o valor de cada uma das referidas unidades de conta processual, devera considerar-se "valor elevado" aquele que exceder 350 contos; "valor consideravelmente elevado" aquele que exceder 1400 contos; e "valor
diminuto" (que corresponde ao aludido "insignificante valor") aquele que não excede 7 contos.
Portanto, a qualificação juridico-penal correcta dos factos descritos em 2.2 do presente acordão e a seguinte: autoria material do crime tentado de furto simples (e não qualificado), definido nos artigos 296,
22, 23 e 74, n. 1, alinea d), todos do Codigo Penal.
Assim, a respectiva moldura penal abstracta e a de prisão de um (1) mes a dois (2) anos (e não a de prisão de 1 mes a 6 anos e 8 meses).
Impoe-se, por isso, proceder a aludida requalificação juridica, a qual - por ser favoravel ao arguido - e permitida pelo n. 1 do artigo 40 do Codigo de
Processo Penal (que neste caso não proibe a "reformatio in pejus").
Fixamos a pena concreta em catorze (14) meses de prisão, ponderando o vasto passado criminal do arguido em materia de factos, o valor dos ojectos que tentou furtar, a sua integral recuperação pelo dono, o modo de execução do crime a intensidade do dolo revelada no seu consentimento e tambem a sua situação de toxicodependencia prolongada.
Atendendo a personalidade do arguido A, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao facto punivel, e as circunstancias deste, e de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena não bastarão para o afastar da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e
preservação do crime (artigo 48, n. 2, do Codigo Penal).
O certificado do registo criminal de folhas 39 a 56 destes autos mostra que o aludido passado criminal do mencionado arguido e o seguinte:
- condenado, em 24 de Março de 1982, no processo n. 497 do 3 Juizo Criminal de Lisboa, por furto de veiculo automovel, na pena de 9 meses de prisão
(suspensa por 4 anos), suspensão esta que por despacho de 25 de Maio de 1983 foi revogada (nos termos do artigo 89, paragrafo 2 do Codigo Penal de 1886) por violação da obrigação condicionante;
- condenado, no dia 22 de Fevereiro de 1984, no processo 1252/83 do 1 Juizo Criminal de Lisboa, por furto qualificado, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão;
- em 12 de Outubro de 1984, foi-lhe concedida a liberdade condicional, que veio a ser revogada por sentença de 28 de Abril de 1986, onde se determinou que cumprisse as penas que cumpria quando foi libertado condicionalmente, com dedução da parte ja cumprida;
- condenado, em 22 de Maio de 1986, processo n. 2721/85 do 1 Juizo Criminal de Lisboa, por furto qualificado, na pena de 4 anos de prisão-cumulo juridico com a pena do processo n. 203/85 da 2 Secção do 2 Juizo Criminal.
Condenado, no dia 30 de Janeiro de 1989, querela n.1045/88 do 4 Juizo Criminal de Lisboa, por furto qualificado, na pena de 18 meses de prisão - suspensa pelo periodo de 4 anos, suspensão essa que foi revogada por decisão de 13 de Fevereiro de 1991 nos termos do artigo 51 do Codigo Penal;
- condenado, em 14 de Dezembro de 1989, no processo
362/89 do 2 Juizo Criminal de Lisboa, por furto qualificado, na pena de 2 anos de prisão;
- no dia 12 de Março de 1991 foi-lhe concedida a liberdade condicional pelo periodo de 15 meses a contar da data de soltura, mediante cumprimento de
varias obrigações.
Perante tais antecedentes criminais e ponderando toda a materia de facto provada, a circunstancia de o arguido ter praticado o crime mais de tres meses apos lhe haver sido concedida mais uma vez a liberdade condicional e que nos estabelecimentos prisionais tambem ha assistencia medica, não pode deixar de se reconhecer que estamos perante um daqueles casos em que a lei impõe - não obstante os inconvenientes das curtas penas de prisão - a
manutenção do arguido em estabelecimento prisional (por não existir outra solução adequada).
3- Conclusão.
Nestes termos, concedem provimento parcial ao recurso reduzindo a pena de prisão para catorze (14) meses.
O recorrente pagara tres (3) U.C.S. de taxa de justiça e 1/4 de procuradoria.
Lisboa, 28 de Maio de 1992.
Lopes de Melo, Cerqueira Vahia, Pereira dos Santos, Sa Pereira.
Decisão impugnada:
Acordão de 16 de Outubro de 1991 do 3 Juizo, 1 Secção de Lisboa.